The Horse and the Bull in Prehistory and in History
Coordination Fernando Augusto Coimbra
2016
O cavalo como animal psicopompo na Europa do I milénio a.C. Fernando Coimbra Centro de Geociências, uID 73 - FCT Centro Português de Geo-história e Pré-história Instituto Terra e Memória -
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Resumo: A informação veiculada por textos clássicos, gregos e latinos, juntamente com a análise da iconografia existente em arte rupestre, cerâmica, moedas e ourivesaria revela uma profunda crença na imortalidade da alma entre diversos povos europeus da Idade do Ferro. Entre estes dois tipos de fontes (literatura e evidência arqueológica) o cavalo aparece frequentemente como um animal de carácter psicopompo, isto é, um guia da alma no outro mundo. O autor apresenta diversos exemplos desta valência do cavalo, efetuando ainda algumas considerações sobre o seu simbolismo funerário, que se associa com a existência de elites equestres no Sul da Europa durante o I milénio a.C. Palavras-chave: cavalo, psicopompo, imortalidade, simbolismo funerário, elites equestres. Abstract: The information provided by classical texts, Greek and Latin, along with the analysis of the existing iconography in rock art, ceramics, coins and jewellery reveals a deep belief in the immortality of the soul between various European peoples from the Iron Age. Between these two types of sources (literature, and archaeological evidence) the horse frequently appears as an animal of a psychopomp character, i.e., a guide of the soul in the Otherworld. The author presents several examples of this attribute of the horse, making also some considerations about the funerary symbolism that is associated with the existence of equestrian elites in southern Europe during the 1st millennium BC. Keywords: horse, psychopomp, immortality, funerary symbolism, equestrian elites.
Nota introdutória No seio das sociedades estratificadas da Idade do Bronze e da Idade do Ferro o cavalo adquire grande importância a nível social, militar, económico e religioso. Passa, desse modo, a estar associado com elites de carácter equestre que constituem uma verdadeira aristocracia, com diversos exemplos nas sociedades proto-históricas da Europa. 343
O cavalo adquire ainda nesta época um vincado simbolismo funerário, aparecendo frequentemente como um animal de carácter psicopompo (1), isto é, um guia de almas. Existem numerosos exemplos desta valência do cavalo, quer na literatura clássica greco-latina, quer na própria arqueologia, com casos interessantes, datados da Idade do Ferro, em arte rupestre, cerâmica, moedas (Fig. 1) e ourivesaria. Estes dois tipos de fontes (literatura e evidência arqueológica) revelam uma profunda crença na imortalidade da alma entre diversos povos europeus do I milénio a.C., que se encontra simultaneamente associada ao simbolismo funerário do cavalo. Portanto, para se compreender o carácter psicopompo deste animal naquela época é indispensável conhecer as crenças e as práticas fune-
Fig. 1 – Moeda gaulesa com “ave-cavaleira” (Segundo Marco, 2008) .
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rárias europeias coevas. Esse carácter está bem atestado em enterramentos diversos, desde as Idades dos Metais, quer na Europa Ocidental, quer na Europa Mediterrânica e ainda na Ásia, onde o cavalo acompanha frequentemente os príncipes guerreiros.
1 – O carácter psicopompo do cavalo Apresentamos seguidamente alguns casos onde o cavalo surge com carácter psicopompo, primeiro na literatura clássica e depois na iconografia arqueológica. Por exemplo, a Ilíada (XXIII, 171-2, 242) refere que Aquiles ordenou um sacrifício de quatro cavalos sobre a pira funerária do seu amigo Pátrocles, morto na guerra de Troia, de modo a que eles o guiassem até ao reino de Hades (o além-túmulo). Semelhante costume encontra-se também no mundo romano, relatado por Políbio (Epist. IV, 2, 23), que refere a imolação dos cavalos do orador Régulo na pira do seu filho (Gomes, 1997). A evidência arqueológica revela frequentemente uma forte crença numa vida para além da vida. De acordo com M. Green (1992: 167), “the presence of Iron Age graves filled with food, drink and other equipment attests to the belief that the deceased would have need of possessions in the next world”. Em algumas dessas sepulturas, cavalos foram sacrificados e enterrados junto com seus proprietários, provavelmente com o mesmo objectivo mencionado na Ilíada. Em relação à iconografia, o diadema de ouro de Moñes (Astúrias, Espanha), datado entre o século II a.C. e o século I d.C. (Marco, 2008) representa o que parece ser uma cena do Outro Mundo, mostrando figuras humanas com um carácter ornitomorfo segurando caldeirões (2), entre vários peixes e homens a cavalo. Algumas moedas gaulesas do séc. I a.C. representam a denominada “avecavaleira” (Fig. 1), sendo a ave a metamorfose animal da pessoa falecida ascendendo, no cavalo, para sua morada astral (Marco, 2008), podendo constituir este último animal um atributo de uma divindade (3). De facto, a ideia Celta de metamorfose (4) é a crença de que os domínios dos animais, homens e deuses, vida e morte, não estão separados, mas são aspetos de um sistema total integrado no qual seres sobrenaturais têm a capacidade de mudar de forma (Marco, 2008). Estes dois exemplos veiculados pelo diadema de Moñes e pelas moedas gaulesas ajudam a compreender melhor algumas cenas em arte rupestre da Grécia, de Itália e de Portugal, que associam figuras humanas e cavalos. De facto, na Rocha 3 de Profeta Elias (Philippi, Grécia) é possível observar uma cena constituída por um escudo, um arco com flecha e um cavalo selado, sobre o qual está representado outro cavalo de maiores dimensões, intencional345
mente sem cabeça, e cavalgado por uma forma abstrata semelhante a um “Y” (Coimbra, 2009: Fig. 9.1; Coimbra, 2013: Fig. 1). Este conjunto faz lembrar, apesar da distância geográfica, as estelas funerárias da Península Ibérica datadas do Bronze Final, onde se representa o guerreiro morto acompanhado pelas suas armas. Nestas gravuras de Philippi, o facto de tanto o cavalo como o cavaleiro não terem cabeça significará provavelmente que estão mortos (Coimbra, 2007), constituindo, talvez, a figura em “Y” a metamorfose da pessoa falecida sobre o dorso do cavalo que a conduzirá ao mundo dos deuses. Em Itália, na Rocha 27 de Foppe di Nadro (Valcamonica), uma figura antropomórfica constituída apenas por cabeça, pescoço e braços parece flutuar sobre um cavalo. Figuras semelhantes, embora sem estarem associadas a cavalos, podem ser encontradas em Zurla, e, de acordo com Sansoni e Marretta (2001), de uma maneira fenomenológica parecem aludir aos espíritos de pessoas falecidas, recordando as almas dos antepassados. Deste modo, a figura humana incompleta de Foppe di Nadro parece ser conduzida pelo cavalo para o além-túmulo. Em Portugal, na Rocha 3 de Mocissos (Alqueva), uma figura antropomórfica de pé no dorso de um cavalo (Baptista, 2002) parece ser dirigida não só por este animal, mas também por três aves aquáticas, seguindo os motivos zoomórficos todos na mesma direção. Infelizmente, a falta da indicação do Norte no único desenho disponível sobre estas gravuras, atualmente submersas, não permite identificar se os animais se dirigem para oeste, onde, na mitologia celta, se encontra o acesso para o Outro Mundo (Coimbra, 2013).
Fig. 2 – Escultura funerária timorense (Foto: F. Coimbra).
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O carácter psicopompo do cavalo sobrevive em mitologias diversas, muito depois do I milénio a.C. Por exemplo, diversas estelas funerárias da Suécia do séc. VIII e do séc. IX revelam a representação de Sleipnir, o cavalo de oito patas, montada do deus Odin da mitologia escandinava, que transportava no seu dorso as almas para o Valhala, o paraíso dos guerreiros viquingues mortos em combate. Casos muito mais recentes podem ser vistos numa escultura funerária timorense em pau-rosa (5), datada de 1940, onde uma figura humana viaja para a terra de repouso dos antepassados no dorso de um cavalo com representações do Sol e da Lua, símbolos que na religião timorense se complementam, identificando Maromak – o deus único e supremo (Fig. 2).
2 – Cavalos, elites equestres e mundo funerário Na Península Ibérica, de acordo com García-Gelabert e Blasquéz Martínez (2006: 104), “los testimonios más antiguos de la vinculación del caballo con las creencias funerarias entre los pueblos prerromanos de Hispania podrían ser los carros tirados por animales, que pudieran ser équidos o bóvidos, representados en las estelas del período orientalizante.”
Fig. 3 - Cavaleiro-guerreiro da R. 1 de Profeta Elias (Foto: F. Coimbra).
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A associação do cavalo com crenças funerárias além-túmulo contribui também para uma associação com as elites aristocráticas e a esfera do poder (Tirador, 2011). De facto, na arte rupestre proto-histórica da Grécia, da Itália, de Espanha e de Portugal há muitos exemplos de homens a cavalo representados com as suas armas, como símbolo da sua importância social, o que permite pensar na existência de elites equestres durante a Idade do Ferro. Por exemplo, numa gravura rupestre da Rocha 1 de Profeta Elias (Philippi, Grécia), podemos observar o que será certamente a representação de um chefe ou de um grande guerreiro, devido à quantidade de armas exibidas (Fig. 3). Para além disso, o uso do carro de cavalos como símbolo de clara superioridade sobre o resto da população encontra-se em todas as civilizações a partir do Bronze Final desde o próximo Oriente até ao Ocidente (García-Gelabert e Blasquéz Martínez (2006). Essa diferença de estatuto social está bem patente numa gravura da Rocha 27 de Foppe di Nadro (Valcamonica, Itália), onde uma personagem (com menor status) puxa, pelas rédeas, um cavalo em cujo dorso se encontra um “grande senhor” (Fig. 4).
Fig. 4 – “Senhor da guerra”, a cavalo, puxado por um “escudeiro” (pintura de R. Sousa inspirada no original).
Estas elites poderiam inclusivamente ter utilizado símbolos para as distinguirem da restante sociedade, como parece acontecer com várias fíbulas de bronze com a forma de cavaleiros encontradas na área celtibérica (Royo Guil348
lén, 2005). Além desses artefactos, as tribos celtibéricas de Numância (Espanha) utilizaram um estandarte de bronze com a forma de um cavaleiro sentado num cavalo de dupla cabeça, “seeming to be a representation of the heros equitans – the hero horse rider – with the aim of justifying a mythical past and legitimate their social power” (Coimbra & Oosterbeek, 2012: 15). Deste modo é muito natural que estas elites quisessem ser representadas a cavalo até em cenas funerárias, o que na verdade pode ser observado não só em arte rupestre, mas também em vários vestígios arqueológicos, como moedas, joias, cerâmica e estelas funerárias (Coimbra, 2013). Para além disso, existem na Europa e na Ásia diversos exemplos de inumações de seres humanos juntamente com cavalos sacrificados (Albizuri et al. no prelo), o que remete simultaneamente para uma diferenciação social dessas personagens e para o carácter funerário e psicopompo destes animais.
Nota final De acordo com C. Renfrew (1994: 49), “iconographic representation is one of the most promising routes towards the detail of some belief systems”, argumentando também o autor que a interpretação pode frequentemente ser difícil mas, em alguns casos, é possível detetar referências ao que podem ser temas recorrentes através de culturas diversas (Renfrew, 1994). De facto, analisando várias culturas europeias da Idade do Ferro, um tema recorrente que aparece com forte evidência é o carácter psicopompo do cavalo, que F. Quesada e M. M. Gabaldón (2008) também associam, desde a Pré-História, a um simbolismo solar (6). A importância do cavalo entre povos ibéricos é mencionada desde escritores clássicos e pode ser observada através de muitos exemplos iconográficos, revelando o alto valor social, militar, económico e religioso deste animal, o que pode explicar a existência de santuários como El Cigarralejo (Murcia, Espanha), onde uma divindade protetora dos cavalos era adorada (Quesada & Gabaldon, 2010) e onde foram encontradas muitas estatuetas votivas equinas (7). A associação do cavalo com crenças relativas à existência de uma vida alémtúmulo leva à existência de cenas funerárias em arte rupestre, cerâmica, ourivesaria e numismática, entre outros vestígios arqueológicos, onde se retratam as referidas elites equestres como antepassados ilustres, que assim se perpetuam na iconografia do I milénio a.C.
Notas: 1 Do grego ȥȣȤȠʌȠȝʌȩȢ (psychopompós), palavra composta por ȌȣȤȠ (psyche, alma) e ʌȠȝʌȩȢ (pompós, guia). 2 Estes caldeirões podem ser uma referência aos banquetes do outro mundo. Por 349
exemplo, de acordo com Green (1992), na mitologia irlandesa, estes festejos consistiam em comer carne de porco e beber álcool em grandes quantidades, fornecidas pelo caldeirão inesgotável. 3 Para Sófocles, o cavalo era um companheiro da divindade solar (Fol, 1983). 4 Do grego PİIJĮȝȩȡijȦıȚȢ (metamorphosis, metamorfose), palavra composta por ȝİIJĮ (meta-, mudança) e ȝȠȡijȒ (morphi, forma). Esta metamorfose foi interpretada por alguns autores clássicos como a crença pitagórica na ȝİIJİȝȥȪȤȦıȚȢ (metempsychosis, metempsicose), a transmigração das almas. 5 Patente no Museu do Oriente, em Lisboa. 6 O simbolismo solar do cavalo está bem patente, entre outros casos, no carro solar de Trundholm (Dinamarca), datado da Idade do Bronze, nos cavalos de Hélios (Grécia) e em algumas moedas célticas de ouro, onde este animal surge juntamente com representações de um sol radiado. 7 Para além destas esculturas pétreas, outro tipo de estatuetas votivas de cavalo, em bronze, foi também encontrado em outros santuários ibéricos como Pinos Puente ( Jaén) e Mesa de Luque (Córdoba) e no povoado celtibérico de Numância (Bellido, 2003).
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