O centauro desfeito: a desconstrução da cultura gaúcha no Paraná do século XIX

October 17, 2017 | Autor: Magnus Pereira | Categoria: Cultural History
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O centauro desfeito. A desconstruçâo da cultura gaúcha no Paraná do século XIX

por Magnus Roberto de Mello Pereira

Abstract. - During the 18lh and 19'h centuries, in the cattle raising region of Southern Brazil, Uruguay and Argentina, a way of life was enforced, which became known as the "gaucho" culture. After the independences, the local elites, while adopting european behavior and cultural standards, began to fight the "gaucho" culture as rough. In the brazilian State of Paraná, the local elite managed to get rid of them. Notwithstanding, towards the end of the 19'h century, what was considered uncivilized, began to be regarded as lost traditions deserving to be recovered by folklorists.

0 presente artigo nasceu de um impulso provocado pela observaçào de duas fotos tiradas durante o cerco da Lapa, na Revoluçâo Federalista do final do século passado. Ambas eram de autoría de um mesmo fotógrafo e cada urna continha um grupo de combatentes. Numa estavam os 'gauchos' do Rio Grande do Sul, e na outra os campeiros paranaenses da Lapa. O que me chamou a atençâo foi a semelhança entre os dois grupos quanto à indumentária. Sem as anotaçôes deixadas no verso pelo fotògrafo, näo seria tarefa fácil distinguir 'pica-paus' paranaenses e 'maragatos' do Rio Grande. A questâo que nasceu naquele momento foi a de como, a partir de urna semelhança tao recente e tao evidente, chegou-se à diferença dos dias de hoje? De um lado os rio-grandenses, à semelhança de uruguaios e argentinos, tao arraigados a suas 'tradiçôes gauchas', de outro os paranaenses, marcados por urna 'ausência de tradiçâo'. A partir de um nucleo comum de costumes passados, tivemos processos paralelos de construçâo e desconstruçâo de tradiçôes presentes. Para o leitor do Rio Grande do Sul, tao habituado à leitura da construçâo, pode ser de algum interesse conhecer um pouco do processo paranaense de desinvençâo de tradiçôes.1 1

Em artigo publicado anteriormente nesta mesma revista, já tive a oportunidade

Jahrbuch für Geschichte Lateinamerikas 36 © Böhlau Verlag Köln/Weimar/Wien 1999

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Magnus Roberto de Mello Pereira U M MOMENTO DE APROXIMAÇÂO

É por demais conhecido que muitos dos 'paulistas' ou 'sorocabanos' que a literatura rio-grandense consagrou como responsáveis pela ocupaçâo das terras do continente de Säo Pedro foram, de fato, 'curitibanos'. Até a emancipaçâo política da Quinta Comarca de Säo Paulo e a criaçào da Provincia do Paraná (1853), o termo 'curitibano' designava o conjunto dos moradores dos planaltos paranaenses. Nao só os de Curitiba, mas os dos Campos Gérais, de Guarapuava e de Palmas, e os do oeste de Santa Catarina. Seriam os moradores destas regiöes, voltadas à pecuária, os responsáveis pela colonizaçâo do planalto mèdio do Rio Grande do Sul, na primeira metade do século XIX.2 Todavía, os vínculos económicos e sociais entre as duas regiöes antecedem este fato. Desde o século XVIII, com a abertura do Caminho das Tropas, as relaçôes económicas e a conseqüente mobilidade dos moradores levaram à formaçâo de um substrato cultural comum entre Rio Grande e Paraná, ao qual denominamos cultura gaucha ou campeira do Brasil Meridional, que, por sua vez, compartilhava muitos elementos com o gauchismo uruguaio e argentino. Antes da assinatura do tratado de Santo Ildefonso, em 1777, o Brasil Meridional foi objeto de uma acirrada disputa entre as coroas ibéricas. Em 1772, nos planos ajustados entre o Morgado de Mateus e o Brigadeiro José Custodio de Sá Faria, com o objetivo de efetivar a posse portuguesa, foram propostos diversos privilégios a serem concedidos aqueles que se dispusessem a se fixar na regiäo. Entre estas propostas aparecem o perdào de crimes, a prorrogaçâo de dividas e o monopolio da criaçào de muías nos campos ainda esparsamente ocupados do sul do Brasil. O plano abordava outro aspecto que viria a ser determinante na configuraçâo tanto da sociedade paranaense como da sociedade rio-grandense oitocentistas. E também muito conveniente ñas fronteiras o haver estas fazendas e criaçôes de bestas e muarés sem as haver no interior do País, para que se possa dar giro ao Negocio, e modo de vida aos que querem negociar de explorar outros aspectos da sociedade paranaense. Ver Magnus R. Μ. Pereira, "A gosto e capricho dos primeiros proprietários: a trajetória de uma cidade brasileira nos séculos XVIII e XIX": Jahrbuch für Geschichte von Staat, Wirtschafi und Gesellschaft Lateinamerikas 32 (Köln 1995), pp. 3 3 3 - 3 7 1 . 2 Sobre esta questâo, ver Roselys Vellozo Rodeijan, Os curitibanos e a formaçâo de comunidades campeiras no Brasil meridional (Curitiba 1992).

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neste tráfico, porque com ele se conseguem muitas utilidades; aos que têm dinheiro, emprestando-o e lucrando os seus juros: os que têm crédito e correspondências; prestando os seus abonos e interessando-se neles; e os que nâo têm nada, encarregando-se destes meios e indo comprar as bestas às Fronteiras: e ganhando o lucro do maior preço que se alcança em as passarem, vendendo-as de mäo em mäo, e de Capitanía em Capitanía, porque de umas para outras as vem comprar diversos negociantes, e sempre com avultado proveito de Sua Majestade nos direitos que lhe pagam ñas entradas e ñas passagens. 3 Como se percebe, nâo há nada de espontáneo no desenvolvimento da economia agropastoril baseada no criatório e na comercializaçâo de muarés, responsável por muitas características do sul do Brasil durante o século XIX. O seu arcabouço foi delineado conscientemente por funcionários coloniais portugueses e, tal como previsto, os fazendeiros do 'continente' tornaram-se grandes criadores de muías. Aos 'curitibanos' coube o papel de intermediadores entre os produtores do extremo-sul e os mercados consumidores situados mais ao norte.

O s SENHORES DOS CAMPOS GÉRAIS

O desenvolvimento da rota comercial Viamâo-Sorocaba teve como conseqiiência a transformaçâo da primitiva estrutura agrària dos Campos Gérais. Durante o século XVIII, como salientou o historiador Brasil Pinheiro Machado, os campos paranaenses do segundo planalto eram caracterizados pela existência de grandes sesmarias voltadas à pecuária bovina, exploradas por donatários absenteístas que residiam quase sempre em Säo Paulo, Santos ou Paranaguá.4 A abertura do Caminho das Tropas, representou um duro golpe para a produçào pecuária dos Campos Gérais. Pressionada pela concorrência do gado sulino, a economia da regiäo entra num processo de reorientaçâo onde a comercializaçâo de muarés desempenharia um papel fundamental.

3 "Projecto, ou plano ajustado por ordern de S. M. F. entre o Governador & Capitäo General de S. Paulo D. Luis Ant° de Souza & o Brigadeiro José Custodio de Sá Fana": Monumenta, 1 (Curitiba 1987), p. 63. 4 Brasil Pinheiro Machado, "Formaçâo histórica": Altiva P. Balhana (ed.), Campos Gérais; estruturas agrárias (Curitiba 1968), p. 30.

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Ao findar o século, aquele fazendeiro ausente fora substituido pela figura do fazendeiro-tropeiro residente nas fazendas da regiào, tal como viria a tornar-se preponderante no século XIX. Todavía, antes que mais um século Andasse, o universo destes novos latifundiários entraria num processo de dissoluçâo que culminaría com o abandono da terra e a fixaçâo de seus descendentes nas cidades. A trajetória da familia de Jesuino Marcondes de Oliveira e Sá, a última grande liderança paranaense do Partido Liberal, onde militava a maioria dos fazendeiros, pode ser tomada como exemplar.5 Seus avós maternos sâo a origem de um imenso clä familiar que, à partir do final do século XVIII, se espalhava entre o Rio Grande do Sul e os Campos Gérais e de Guarapuava. Os Sá foram os responsáveis pela fundaçâo de Palmeira e de muitas fazendas da regiào. O pai de Jesuino, o Baräo de Tibagi, era um dos muitos sorocabanos atraídos para os Campos Gérais devido à posiçào privilegiada que a regiào ocupava na rota das muías. José Caetano de Oliveira foi um daqueles típicos fazendeiros residentes do século XIX que atravessaram suas vidas dedicados ao trato do gado, ao comércio de muías e ao mandonismo local. Seu filho Jesuino tornou-se o mais notável dos representantes da geraçâo bacharelesca que se seguiu. Estudou Direito em Sâo Paulo e Pernambuco, além de passar algum tempo na Europa para se ilustrar. Veio a ser deputado, senador, ministro do Impèrio e presidente de provincia. Ao morrer, nao possuía mais terras. Vivia da especulaçào com títulos da divida pública.6 Outro exemplo sugestivo do abandono das propriedades rurais nos foi relatado por Tobias Monteiro, que, em 1903, visitou os Campos Gérais. A partir do ocorrido com os descendentes da proprietária de urna grande fazenda pontagrossense, ele sugere que o processo era generalizado. Os herdeiros de seu dominio, sem dúvida, o fragmentaram, e como tantos outros, foram se refugiar nas cidades. Foram, talvez, pedir à proteçâo do governo, à escravidäo da política, os modestos recursos necessários à sua existência e, com o aumento de suas familias e de seus encargos, verào crescer dia a dia, em seu interior, a misèria do funcionario público.7 5 Ver Moysés Marcondes, Pae patrono; Jesuino Marcondes de Oliveira e Sá (Rio de Janeiro 1926). 6 Machado, "Formaçâo histórica" (nota 4), p. 30. 7 Tobias Monteiro, De Rio de Janeiro au Paraná (Rio de Janeiro 1903), p. 98.

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Exemplos como os aqui apresentados, dos quais a documentaçâo paranaense é farta, nos permitem, sem grande margem de erro, chegar a algumas conclusöes. Nos Campos Gérais, a existência daquilo que certas vertentes da produçào historiográfica costumam nos apresentar como 'familia patriarcal rural brasileira' é tardía e de duraçâo relativamente curta. Coincide aproximadamente com o período compreendido entre os fináis do século XVIII e do XIX. Durante tal período, um grupo de fazendeiros conseguiu enfeixar em suas mäos o mando político, o poder económico e o dominio das estruturas judiciárias da Quinta Comarca de Sao Paulo e, depois da emancipaçào, da Provincia do Paraná. Esses Senhores dos Campos Gérais se eternizariam no dominio das Cámaras Municipals dos Campos Gérais e de Guarapuava e, até serem deshancados pela elite da erva-mate, na de Curitiba.8 As razöes apontadas para o encerramento do período legislativo de 1831 sao elucidativas da composiçâo ocupacional da cámara municipal curitibana da primeira metade do século. Naquela época, o territòrio sob jurisdiçâo de Curitiba estendia-se por todo o primeiro planalto paranaense e atingía a regiâo de Palmeira, já nos Campos Gérais, de onde provinham muitos dos vereadores. Marcou a Cámara para a ultima reuniäo deste ano o dia Dezesseis de Setembro por motivo da maior parte dos vereadores declararem as impossibilidades de näo poderem assistir as Sessöes do mês de Outubro por ser o tempo de tratarem dos negocios de animais de que usam fora do distrito.9 Os demais cargos públicos também foram privilègio das mesmas personagens que nesta época do ano costumavam pedir licença de suas funçôes. Outubro era o mês de partir para o continente de Säo Pedro porque o ciclo completo do tropeirismo demandava aproximadamente seis meses. Este era o tempo necessàrio para ir ao sul, comprar as muías, trazê-las aos Campos Gérais e estar a tempo na feira de Sorocaba, que ocorria entre fevereiro e março de cada ano. Por mais de um século o poder político no Paraná esteve nas mäos destes fazendeiros-tropeiros. Entretanto, devemos ter em mente que isto nâo foi pacífico. As disputas entre os fazendeiros e os exportadores de 8 Sobre a substituiçâo das elites económicas paranaenses, ver Magnus R. M Pereira, Semeando iras rumo ao progresso; Ordenamento jurídico e económico da sociedade paranaense. 1829-1889 (Curitiba 1996). 9 Curitiba, 12 de julho de 1831, Atas da Cámara Municipal de Curitiba, Boletim do Archivo Municipal de Curitiba 44 (Curitiba), p. 30.

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erva-mate, que militavam no Partido Conservador, por vezes assumiam formas sanguinolentas. Tais conflitos chegavam a extrapolar as regras da política institucional, levando algumas eleiçôes a se transformarem em verdadeiras batalhas campais, com mortos e feridos de ambos os lados. JOGOS, ARMAS E CAVALOS

O presente estudo é uma tentativa de apreender alguns aspectos da vida cotidiana das localidades paranaenses envolvidas no tropeirismo, bem como as suas transformaçôes ao longo do século XIX. Para este efeito, foram utilizadas as posturas elaboradas pelas cámaras dos diversos municipios dos Campos Gérais, de Guarapuava, e do planalto de Curitiba. A escolha de tal documentaçâo nâo foi aleatòria. Quando se fala em vida cotidiana, temos em mäos um objeto de estudo extremamente fugidio devido à sua inconstância. A grande vantagem das posturas é o seu caráter capilar. Os vereadores costumavam legislar a todo instante sobre os mais variados aspectos da vida de seus municipios, mesmo sobre alguns aspectos que hoje consideramos prosaicos. Desta forma eles acabaram por nos legar registros sobre uma série de manifestaçôes sociais, bem como das transformaçôes que elas sofreram no decorrer do tempo. Os vereadores demonstravam-se particularmente sensíveis às práticas culturáis que ocorriam no interior do espaço urbano. Ocorre, que desde o inicio do século XIX, estabelecera-se uma cisäo cultural na sociedade paranaense. Os senhores dos Campos Gérais, ainda que centrados ñas suas fazendas, abandonaran! os costumes dito populares e passaram a adotar diversos hábitos da burguesía européia. Dentre estes, um dos mais significativos para o processo de diferenciaçâo socio-cultural era o de proporcionar educaçâo formal aos filhos homens. As primeiras geraçôes de fazendeiros instruidos eram compostas, em sua maioria, de recém-conversos a tais valores e práticas. Nesse primeiro momento, a sua afirmaçâo cultural passava pela negaçào dos velhos costumes. Esse grupo seria mais crítico em relaçào às manifestaçôes culturáis do restante da populaçâo paranaense, do que o haviam sido os funcionários coloniais portugueses no século XVIII. Por todo lado eles veriam barbàrie, maus costumes e atraso. Como integrantes dessa geraçâo, os vereadores de Curitiba e Castro, responsáveis pelas primeiras posturas do período imperial, estavam

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profundamente auto-imbuidos do papel de civilizadores. O preámbulo das posturas de Castro de 1830, semelhante ao adotado ñas de Curitiba em 1829, é extremamente significativo a esse respeito. Naquele momento, tais vereadores se propunham a criar, por decreto, um povo portador de hábitos morigerados. "Castro, 21 de junho de 1830. Desejando a Cámara Municipal da Vila de Castro, que os habitantes de seu Municipio gozem do sistema representativo, que autoriza a todo Cidadäo intervir nos negocios de sua Pàtria na conformidade da Constituiçâo do Impèrio, e querendo remediar os abusos que por tanto tempo têm peado a marcha Constitucional do Povo que representa, e firmar a sua tranqüilidade e sua segurança individual e proprietária: resolve . . . em primeiro lugar, e nâo por acaso, acabar com alguns costumes ampiamente difundidos entre a populaçâo local: o jogo a dinheiro, o porte de armas e os bailes populares conhecidos por batuques ou fandangos." 10

Para os latifundiários que controlavam as cámaras de Curitiba e Castro, o 'cultural' se afigurava como lugar privilegiado da intervençâo estatal. Só se chegaria aos resultados políticos e económicos desejados através da transformaçâo dos costumes. Do ponto de vista das elites locáis, as manifestaçôes mais negativas da cultura dos vaqueiros ou tropeiros quando de passagem pelas cidades eram a truculência, os jogo a dinheiro, o porte de armas, os uso constante de cavalos e o estímulo ao estabelecimento de zonas de prostituiçâo. Todos esses elementos estavam presentes nos Campos Gérais, e eram conflitantes com os novos padröes de urbanidade almejados pelos fazendeiros vereadores. O porte de armas foi uma das principáis preocupaçôes das cámaras municipals. "Art. I o Todo individuo livre, que for achado com armas defesas de dia ou de noite como Pistolas, Bacamarte, Facas de Ponta, e outras armas proibidas pela Lei, dentro desta Vila, suas Freguesias, Capelas, ou Arraiais, perderá tais armas com que for apanhado para o Oficial e seus Homens que lhas tirarem, e pagará uma multa pecuniária de 2$000 para as despesas do Concelho, ou seis dias de Prisäo, se nao tiver com que satisfaça a mencionada multa. Castro, 21 de junho de 1830."11 "Art. 6 o Toda a pessoa que, sem licença, der tiros dentro desta vila, sofrerá a multa, sendo de dia, de 2$000, e sendo de noite, de 4$000, além da pena de 2 a 5 dias de prisäo, exceto em festividades, ou outros quaisquer atos de regozijo público. Guarapuava, 5 de setembro de 1854."12

10 Posturas Municipals de Castro (Castro 1830), f. 1. Manuscrito do Arquivo Público de Sào Paulo. 11 Ibidem. 12 Coleçào de Leis, Decretos e Regulamentos da Provincia do Paraná (Curitiba 1854), p. 28. Doravante citada como C. L. D. R. P. P.

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Entretanto, nem todos os elementos da cultura regional foram abandonados pelas classes dominantes locáis. O jogo e a paixäo por cavalos sâo dois bons exemplos. As posturas curitibanas de 1829, ao proibirem os jogos de azar, falavam nao só dos nào-morigerados, mas de "muitos cidadäos, que nao poucas vezes têm arruinado seus patrimonios deixando suas familias expostas à misèria".13 Apesar da proibiçâo dos jogos a dinheiro com baralho e dados, as corridas de cavalo nunca foram legalmente cerceadas. Além dos bailes, este era um dos divertimentos prediletos dos paranaenses abastados. Nos jomáis, as referencias às corridas eram freqüentes. Por ocasiäo de uma grande festa realizada em Castro, correram diversas parelhas em cancha reta, como era o costume, e Baralhado, um cavalo até entäo considerado invencível, foi finalmente derrotado. "Correram os tais cavalos, e o Baralhado foi vencido; porém nao quero dizer tudo quanto sei a respeito, näo podendo deixar de aplaudir o comportamento cavalheiroso dos castrenses, a quem se devem a ordem e harmonía que reinou naquele ato; é preciso confessar que o povo de Castro perde dinheiro com o maior sangue frió possível."14

O autor da correspondência ao jornal chega a sugerir que o hábito do jogo era um elemento constitutivo da psicologia do castrense. As parelhas de cavalo eram disputadas por todo o lado. Porém, a atuaçâo das cámaras em relaçâo a elas limitou-se a um aspecto puramente fiscal, cobrando uma taxa para sua realizaçâo. "É permitido as corridas de cavalos unicamente nos suburbios das povoaçôes, uma vez que para isso tenham obtido licença da autoridade competente, e o conhecimento do fiscal de haver pago a imposiçâo municipal de 20$000 das carreiras cujas apostas sejam de mais de 100$000, de cada um dos contratantes; 10$000 das de mais de 50$000; 5$000 das de mais de 20S000; e 2$000 das de menos de 20$000. Guarapuava, 22 de abril de 1870.'"5

Apesar de sua atraçâo pelo jogo e pelos cavalos, os latifundiários paranaenses nao deixaram de criar obstáculos legáis às manifestaçôes culturáis mais expressivas da regiao sob seu dominio político e económico. No Paraná, como já vimos, os grandes fazendeiros setecentistas geralmente nao eram 'caudilhos' na acepçào estrita da palavra. Eies näo

13

Posturas municipals de Curitiba (Curitiba 1829-1859), f. 1. Livro manuscrito do Arquivo da Cámara Municipal de Curitiba. 14 O Dezenove de Dezembro (Curitiba 10 de abril de 1855), p. 3. 15 C. L. D. R .P. P. (nota 12) (Curitiba 1870), p. 81.

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foram simultaneamente estancieiros e chefes de bandos que comungavam, até por urna questäo estratégica, dos mesmos costumes de seus peöes. Seus filhos, como vimos, eram hacharéis que pouco tinham a ver com essa cultura gauchesca. Em 1860, foi editado um opúsculo intitulado Passeio a minha terra, que ilustra muito bem a questäo. O autor, Salvador José Correia Coelho, era rebento de urna familia de fazendeiros e comerciantes da Lapa, que fora mandado a Sao Paulo para estudar Direito na Faculdade Sao Francisco. Num de seus passeios de férias à casa paterna, ele elaborou um relato de viagem onde os vaqueiros e peöes de tropas dos Campos Gérais foram apresentados em tons de curiosidade etnográfica. "Aquele que nos Campos-gerais entrega-se continuamente ao costeio da criaçâo no campo, fazendo o serviço a cavalo, é conhecido por 'monarca da coxilha', traz na cabeça um chapeuzinho de copa rasa e abas um tanto largas, que prende-se ao rosto por urna barbela de trancelim de seda ou algodâo tintos; pôe-no à banda e nâo usa de gravata; por cima da camisa traz o poncho listrado e fombrado, a que se dà o nome de - ' p a l a ' - , feito de là; à cintura a - 'guaiaca' - sorte d'ornato que tem o duplo firn de servir-lhe de bolsa e de cinta: esta peça de couro garroteado e ornada de bordados [ . . . . ] de retrós de cores, na face ostensível é presa por dois broches, ordinariamente duas moedas d'oiro, prata ou metal branco, conforme os teres do individuo; calças mui largas com feiçâo de cerollas; botas de couro cru, de ordinàrio urnas pemeiras; esporas d'enormes rosetas com largas presilhas e correntes, que quase que impedem o andar do proprietàrio, chamam-nas - 'chilenas' - e sâo tâo grandes que nao permitem na marcha conservar os pés na posiçâo natural, força é pois mover-se ñas pontas deles tardamente como a preguiça ou tartaruga em terra. [ ....] Ele qualifica de - pingo - ao cavalo, de -peixe - ao chicote, de - cipó - ao laço, as esporas muitas vezes de - motucas - . Fuma cigarro, cujo envoltorio denomina - mortalha - . O seu falar é cheio d'inteijeiçôes; usa d'hipérboles atrevidas e arriscadas e de bravatas espanholas; no discurso pronuncia palavras em voz baixa e sem haver transiçâo pronuncia outras alteando-as, como que por arrancos, sempre exprime os diminutivos com a desinência em -ito-." 16

Neste relato o gaucho é o 'outro'. Ele e Salvador Coelho definitivamente nao compartilhavam de urna mesma cultura. Tanto para o fazendeiro quanto para as novas personagens urbanas, o monarca da coxilha pertencia àquele grupamento de pessoas näo-civilizadas que precisavam, ao menos enquanto estivessem na cidade ou na sua periferia, aprender os novos códigos de civilidade. Muitas das posturas paranaenses que tentavam regulamentar os costumes tinham por alvo justamente estes homens. Vimos que os 16

Salvador J. Correia Coelho, Passeio à minha terra (Sâo Paulo 1860), pp. 7 4 - 7 5 .

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artigos iniciáis dos primeiros códigos de postura de Curitiba e Castro propunham-se a "extirpar" os jogos, o hábito de andar armado e os bailes populares. Todos esses costumes, e mais o concurso às prostitutas, estavam profundamente arraigados no universo cultural dos vaqueiros e tropeiros. A conduçào de tropas era um traballio penoso através de rotas que às vezes ultrapassavam o milhar de quilómetros. Após atravessar sertöes desérticos no Rio Grande do Sul e as matas entre Lages e os Campos Gérais, os tropeiros entravam na rota paranaense pontilhada de lugarejos perfeitamente equipados para lhes oferecer um pouco de diversäo nem sempre barata. O naturalista francés Auguste de Saint-Hilaire, em sua passagem por Castro na década de 1820, viveu a má experiência de ter sido enganado por seus guias, que obrigaram-no a permanecer nos arredores da cidade além do previsto, para que pudessem passar mais uma noite com as prostitutas. A troco de seus percalços, ele deixou um relato indignado sobre o assunto. "As prostitutas pululam nos mais ínfimos lugarejos, e é ñas mäos délas que os cantaradas deixam o fruto do seu traballio. Por isso os donos das tropas de burros evitam cuidadosamente os povoados e procuram pernottar em lugares isolados ou em ranchos distantes das vilas e arraiais. Quando näo podem evitar os povoados, seus tropeiros escondem os burros a firn de poderem passar mais tempo em farras com as mulheres, além disso roubam os seus patròes e provocam desordene de todo o tipo."17

As bodegas de beira de estrada, localizadas nos arrabaldes das cidades dos Campos Gérais, eram os locáis onde os peôes de tropas ou mesmo os trabalhadores jornaleiros buscavam as bebidas e as meretrizes, e onde muitos deixavam seu dinheiro ñas mesas de jogo. Devido ao clima de imoderaçâo reinante em tais tabernas, surgiam conflitos que, algumas vezes, eram resolvidos a bala ou facadas. "O que o Sr. Curioso devia contar-lhe, Sr. redator, era que há lugares naquele distrito [Rio Negro], onde se acoitam, e onde se pratica, no presente, as maiores gentilezas, por exemplo, no Saltinho, estrada da Mata, existem José Furtado e seu irmäo Joaquim Furtado, amasiados o primeiro com Antonia do Rosàrio, que ali tem uma taberna (por causa de quem ali mesmo se mataram, há pouco tempo, dois homens na flor da idade), e o segundo com a filha desta, existindo com eles Manoel dos Santos, criminoso de morte em Säo José. Ali se joga, e todos se dedicam a ele e bebem da temporada, ficam ¡mediatamente embriagados, e logo depois limpos do que possuem. Que lhe informe, Sr. redator, o inspetor da estrada da Mata, o que viu praticando 17 Auguste de Saint-Hilaire, Viagem a Curitiba e provincia de Santa Catarina (Belo Horizonte 1978), p. 56.

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com seus jornaleiros, quando se retiravam do serviço. Uns deixaram simplesmente os seus salários, outros além dos salários, animais arreados de lombilhos e cangalhas, finalmente, até a pròpria roupa do corpo."18

Mas o que ocorria nesses locáis nao se restringía ao que foi descrito. Ali se tecia toda urna rede de camaradagem. As tabernas e vendas eram instituiçôes de crédito que forneciam mantimentos ao tropeiro de passagem para Sorocaba, que se comprometía a pagá-los na volta. Eram também espaços onde continuaram ocorrendo as manifestaçôes culturáis proscritas pelas legislaçôes municipals. Violeiros e cantadores iam de taberna em taberna demonstrando os seus talentos. Contudo, as posturas municipals buscavam exercer seus efeitos também nestes locáis. "Art. 51. E expressamente proibido ñas casas de bebidas ou tavernas ajuntamento de pessoas com tocatas, danças ou vozerias: o dono da casa sofrerá a multa de 20S000 e o ajuntamento será dissolvido. Art. 54. Os donos das vendas, botequins e casa de pasto em que forem encontradas pessoas a jogar jogos proibidos, incorreräo ñas penas do artigo antecedente [30$000 de multa e oito dias de prisäo]; e tais pessoas em 4$000 cada urna e très dias de prisäo. Ponta Grossa, 24 de abril de 1862." 19

Pudemos observar anteriormente que, quanto às corridas, a atuaçào das cámaras foi marcada pela liberalidade. O mesmo nao aconteceu em relaçâo à presença do cavalo e do cavaleiro no espaço urbano. AvéLallemant cunhou urna imagem expressiva para definir os vaqueiros e tropeiros paranaenses do século XIX. Devido à quase simbiose que mantinham com seus cavalos, chamou-os de centauros,20 A cidade era o local onde o centauro deveria ser desfeito, homem para um lado e cavalo para o outro. Os habitantes dos Campos Gérais e de Guarapuava eram centauros por excelência. No inicio do século XIX, assim que adentrou os Campos Gérais, Saint-Hilaire viu, com espanto, a íntima convivência entre homens e cavalos. "Os homens estâo sempre a cavalo e andam quase sempre a galope, levando um laço de couro preso à sela, que é de um tipo especial denominado lombilho. Os meninos aprendem desde a mais tenra idade a atirar o laço, a formar o rodeio e a correr atrás de cavalos e bois."21

18

O Dezenove de Dezembro (Curitiba 29 de agosto de 1855), p. 3. C. L. D. R. P. P. (nota 12) (Curitiba 1862), p . 7 5 - 8 . 20 Robert Avé-Lallemant, Viagens pelas Provincias de Santa Catarina, Paraná e Säo Paulo-, 1858 (Belo Horizonte 1980), p. 284. 21 Saint-Hilaire, Viajem a Curitiba (nota 17), p. 18. 19

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O hábito do galope, citado pelo viajante, daría motivo para as primeiras restriçôes à presença do centauro no espaço urbano. Em meados do século XIX, todos os municipios paranaenses adotavam posturas contra tal pràtica. "Art. 36. E proibido a qualquer pessoa galopar ou correr a cavalo pelas ruas da povoaçâo sem que seja com reconhecida precisäo. Os contraventores, sofreräo a multa de 2 a 4$000, e o duplo na reincidência. Na disposiçâo deste artigo fleam compreendidos os filhos familias, agregados e escravos. S. José dos Pinhais, 4 de setembro de 1854."22

Ñas cidades próximas às regiòes de campos, onde vivia a maioria dos centauros, o controle da presença de cavalos no espaço urbano seria ainda mais detalhado pelas posturas. A constante presença de tropas e cavaleiros fazia persistir na cidade uma série de hábitos próprios do meio rural que contrariavam os preceitos de urbano adotados pelos vereadores. "Art. 12. Fica proibido conduzirem-se pelas ruas da vila animais em laço, correr-se a cavalo, e domá-los: aos contraventores multa de 10$000. Guarapuava, 15 de março de 1862."23 "Art. 21. Conservar animais atados ñas portas das casas, de modo a embaraçar o trànsito: multa de 2$000. Campo Largo, 18 de abril de 1874."24

VALSAS, XOTES, BATUQUES E FANDANGOS

Para concluir, vamos nos deter na legislaçâo que procurava enquadrar as danças.25 A escolha de um aspecto tâo prosaico do cotidiano da sociedade paranaense do século XIX, para o encerramento deste artigo tem a sua razào de ser. Os desdobramentos das restriçôes às danças regionais sâo bem mais complexos do que podem parecer à primeira vista. Elas ilustram, de forma exemplar, o impacto da opçâo das classes dominantes paranaenses por um certo cosmopolitismo urbanizante. 22

C. L. D. R. P. P. (nota 12) (Curitiba 1854), p. 21. C. L. D. R. P. P. (nota 12) (Curitiba 1862), p. 37. 24 C. L. D. R. P. P. (nota 12) (Curitiba 1874), p. 117. 25 A abordagem que fazemos do fandango é, obviamente, histórica e sociológica. Do ponto de vista musical, a bibliografia sobre o fandango do Paraná é bastante precària. Ver Fernando Correa de Azevedo, "Fandango do Paraná": Cadernos de Folclore 23 (Rio de Janeiro 1978). Roselys Vellozo Roderjan, Folclore Brasileiro: Paraná (Rio de Janeiro 1981). 23

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Impacto este que talvez, ainda hoje, possa explicar alguns componentes subjetivos da identidade paranaense. No pesado vocabulário usado contra os batuques e fandangos utilizado na redaçâo das posturas curitibanas de 1829, também adotadas em Castro em 1830, transparece a indignaçâo moral dos vereadoresfazendeiros contra esses divertimentos 'populares'. "Tendo sido sem proveito todas as providências policiais até agora dadas, para se extirparem os batuques, que sem mais razäo que a corrupçâo dos costumes, se têm arraigado neste Povo, e que däo azo à perpetraçâo de muitos delitos que resultam da promiscuidade de ambos os sexos da classe imoral de escravos, e libertos, que nâo fazem tais ajuntamentos senào para dar pasto à devassidào e à desordem da crápula, com ofensa manifesta da moral pública, e tranqiiilidade dos Povos por isso provém = artigo primeiro = Que nenhum individuo deste Municipio faça nem consinta fazer-se em sua Casa dentro desta Vila, suas Freguesias, Capelas e seus suburbios, ajuntamento para batuques, sem prèvia licença por escrito do respectivo Juiz de Paz, cuja licença será apresentada ao Competente Oficial de quarteiräo: sob pena de pagar urna multa de quatro a oito dias de prisào que será julgada pelo mesmo Juiz de Paz = Artigo segundo = Os Juízes de Paz nâo concederâo tais licenças, senào com muito justificado motivo: inda em tais casos especificarâo em suas licenças, que os donos da casa em que tais ajuntamentos tiverem lugar nao consintam ai escravos de ambos os sexos, furtivamente subtraídos das casas de seus senhores bem como filhos familias e pupilos sem consentimento de seus pais ou tutores, debaixo das penas cominadas no artigo antecedente além da responsabilidade por qualquer desordem que por tal ocasiäo acontecer = Artigo terceiro = se nâo compreendem ñas antecedentes disposiçôes aqueles bailes ou funçôes, que por motivo de regozijo público ou particular a qualquer familia tiverem lugar em casas decentes e entre gente morigerada. Curitiba, 24 de setembro de 1829."26

A ressalva contida no artigo terceiro elucida, sem que sejam necessárias maiores consideraçôes, algo que precisa ser retido e enfatizado: na sociedade paranaense do século XIX, as classes economicamente dominantes viveram um processo de diferenciaçâo cultural do restante da populaçâo. Essa cisào se manifestava exemplarmente no ato de dançar. As familias morigeradas promoviam bailes e funçôes por motivo de "regozijo particular", ao mesmo tempo em que acusavam os bailes populares de ajuntamentos para "dar pasto à devassidào". No começo de século, o Sargento-mor de Castro organizou para Saint-Hilaire uma demonstraçào de danças como a chula e o anu, que hoje acreditamos corresponder a certos fandangos regionais, abstendose, por ser quaresma, de apresentar o batuque. Conforme determinava a legislaçâo vigente. 26

Posturas Municipals de Curitiba (nota 13), f. 2.

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"O Sargento-mor näo se limitou a fornecer a música; cuidou também para que houvesse dança. Nâo foram permitidos os batuques por causa da quaresma, mas os convivas dançaram aos pares urna dança muito semelhante às antigas alemanas, e outras danças a quatro e denominadas, na regiäo de anu e chula, em que os dançarinos fazem urna espécie de sapateado, dobrando os joelhos, e que nào deixam de ter seu encanto." 27

Na realidade, foi mostrado ao viajante algo muito próximo aos "bailes ou funçôes" dados em "casas decentes e entre gente morigerada". Na década de 1820, os fazendeiros dos Campos Gérais ainda mantinham alguns vínculos com a cultura popular, e nào tinham aderido completamente a modismos culturáis europeizantes. As gentes morigeradas dançavam, ao menos na quaresma, um fandango desprovido de suas características mais lascivas, hoje estereotipado no folclore do extremosul. Décadas mais tarde, o engenheiro inglés Thomas Bigg-Wither, teve a oportunidade de presenciar um fandango menos morigerado e nos deixou uma descriçào bastante precisa da maneira de dançar das classes populares. "Em passo batido e lento, mas ritmico, acompanhando as violas, os homens começaram primeiro a dança, adiantando-se e retirando-se para o centro do círculo alternadamente, e as mulheres também batiam os pés, mas nâo avançavam. Ao firn de doze compassos musicais, todos em conjunto, homens e mulheres, batiam palmas très vezes, o que servia de sinal para que todos dessem maior intensidade aos movimentos de corpo e batessem com mais força no chào. Durante aqueles minutos que pareciam intermináveis, tivemos entâo de bater os pés também sobre o soalho pesado, sacudir os braços e o corpo e bater palmas. A proporçâo que a dança continuava a agitaçâo ficava mais forte, a voz se transformava em grito, o menear do corpo, antes gracioso, tendía a contorçôes violentas." 28

Estas contorçôes e movimentos dos quadris eram representaçôes bastante explícitas de provocaçâo sexual, o que ofendía o pudor das classes dominantes recém-adeptas de um certo puritanismo. Muitos estudos costumam consignar os fandangos como expressäo cultural de origem estritamente ibérica, o que é um engano. Alguns estudiosos da cultura popular européia localizam a origem dos fandangos na América Latina, inclusive daquelas modalidades que se tornaram 'tradiçôes' em Portugal e na Espanha. Vejamos o que diz o historiador Peter Burke a respeito. 27

Saint-Hilaire, Viajem a Curitiba (nota 13), p. 55. Thomas Plantagenet Bigg-Wither, Novo caminho no Brasil meridional (Rio de Janeiro 1974), pp. 152-153. 28

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"[O fandango] veio da América para a Espanha por volta de 1700, e fez com que urna testemunha comentasse que 'me pareceu impossível que, depois de urna dança dessas, a moça pudesse recusar qualquer coisa ao seu parceiro!'. A testemunha devia saber do que estava falando, pois seu nome era Casanova." 29

Isso talvez nos ajude a compreender o porqué da repugnância moral das classes dominantes contra o fandango. Provavelmente as danças populares daquela época pouco se pareciam com os seus resquicios pasteurizados hoje reconhecidos como manifestaçôes folclóricas. Multas das danças latino-americanas, quer as dos brancos, quer as dos negros, eram pantomimas sexuais. A insistência no aspecto da lascivia das danças paranaenses mais antigas deve-se principalmente a um motivo: deixar claro que o principal móvel das proibiçôes aos fandangos foi a nova moral burguesa adotada pelas classes dominantes locáis. Em alguns momentos, transparece na legislaçâo pertinente um certo cálculo económico, ou seja, que, ao proibirem as danças, os senhores procuravam impedir que seus escravos e empregados gastassem energia em atividades näo-produtivas. Embora näo se possa desconsiderar completamente este aspecto, ele de certo nâo foi decisivo. Percebe-se que os vereadores, inicialmente, nâo tinham o propósito de legislar sobre os costumes fora do espaço urbano, entretanto seriam levados a se imiscuir na regiao rural. Ñas posturas que proibiam o jogo, os vereadores falavam em esconderijos nos suburbios onde aconteciam práticas ilegais. A fuga das atividades proscritas para o rocío e fazendas próximas aos núcleos urbanos deve ter evidenciado, para os vereadores, que o controle das cidades só seria efetivo se incluísse o campo. Em relaçâo aos fandangos, as posturas inicialmente limitavam as restriçôes aos espaços urbanos e seus arredores. Elas buscavam enquadrar apenas os habitantes da cidade justamente por estarem fora do controle imediato de algum senhor. O que ocorria dentro das fazendas era de inteira responsabilidade dos seus proprietários, e näo deveria ser regulado pela cámara. Era uma questäo de arbitrio exclusivo dos senhores se os escravos, agregados ou mesmo eles próprios dançassem o fandango dentro do latifúndio. Em principio, este era um espaço onde a dança poderia ser tratada por um cálculo económico. Porém, respondendo a uma série de pressóes que vinha sofrendo, em 1837 a Cámara de Curitiba tomou uma atitude inédita: aprovou uma proposta de postura que estendia a proibiçâo dos batuques ou fandangos a 29

Peter Burke, Cultura popular na idade moderna (Sao Paulo 1989), p. 142.

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todo o municipio. Assim, as preocupaçôes com a civilidade urbana começariam a influir nos costumes do meio rural. "Art0 2 o Ficam proibidos os batuques ou fandangos ainda mesmo fora das povoaçôes, sem licença do Juiz de Paz respectivo, que só a poderá conceder à pessoas de reconhecida probidade e por ocasiâo de casamento: o dono da casa que consentir a introduçào de filhos familias e escravos sem consentimento de seus Pais ou Senhores sofrerá a multa de 5 a 10$000 réis: à mesma pena ficam sujeitos os que fizerem tais divertimentos sem a licença acima declarada. Curitiba, 6 de fevereiro de 1839." 30

A partir da década de 1860, começaria a ocorrer urna liberalizaçâo em relaçâo aos fandangos. Naquele período, a maioria dos municipios adotaria posturas de redaçâo simplificada, onde transparece apenas a preocupaçâo das cámaras em nao perder a fonte de renda representada pelas licenças. Assim, a açâo das cámaras no que diz respeito aos fandangos ficaria progressivamente reduzida a uma questäo fiscal. "Art. 6 o Aquele que promover ou consentir batuques, fandangos ou ajuntamento de escravos ñas povoaçôes e seus suburbios, incorre na multa de 20$000, salvo tendo licença da autoridade policial, pela qual pagará o imposto de 5$000. Castro, 8 de abril de 1874."31

Esta liberalizaçâo talvez se explique pela alteraçâo de certos hábitos da propria elite local. Desde a década de 1850, as classes dominantes paranaenses elegeriam o baile 'público' como um de seus divertimentos prediletos. Porém, naquela época, o baile representava bem mais do que um simples divertimento. Em 1858, Avé-Lallemant, ao descrever um baile realizado em Curitiba para comemorar a independência brasileira, tocaría num aspecto fundamental. "Pelas 8 horas estavam reunidos os lápitas da cidade e os proceres dos campos, na melhor concordia, embora me tivessem afirmado que o velho òdio de Santa Luzia e Saquarema ainda continuava ardendo debaixo dos coletes dos curitibanos e talvez ainda agitasse mais de uma saia-baläo das damas presentes."32

No Paraná, o saläo de baile desempenhou um papel importante na unificaçâo das classes dominantes. Por diversas vezes, as relaçôes conflituosas entre os industriáis do mate e os senhores dos Campos Gérais, que militavam respectivamente nos partidos Conservador (saquarema) e Liberal (luzia), tinham desembocado em incidentes sangrentos. Ñas eleiçôes de 1852, um choque ocorrido em Sao José dos Pinhais entre 30 31 32

Posturas Municipals de Curitiba (nota 13), f. 25. C. L. D. R. P. P. (nota 12) (Curitiba 1874), p. 35. Avé-Lallemant, Viagens (nota 20), p. 274.

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estas facçôes políticas resultou em dez mortes e algumas dezenas de feridos. O clima de amenidade compartilhado no ambiente das festas obviamente nao anulava as diferenças entre as duas facçôes, mas contribuiu para que aprendessem a conviver polidamente dentro dos moldes de urbanidade. Isso näo deve ser considerado como um efeito colateral, que tenha aparecido por mero acaso. Os promotores dos primeiros grandes bailes contavam com tal efeito arrefecedor de ánimos. A primeira 'sociedade de bailes' fundada em Curitiba recebeu o nome muito sugestivo de Harmonía. "FOLHETIM Revista Mensal. Falaremos da sociedade de bailes, que se trata de estabelecer nesta capital. Tem por nome, por divisa, por firn, a - Harmonía - : o pensamento de sua instalaçâo é urna conseqiiência da atual ordem de coisas. Com a instalaçâo da provincia, com a harmonía dos partidos políticos, devia também aparecer alguma coisa em favor da harmonía das familias, na nossa opiniào urna sociedade de bailes, organizada com esse pensamento, muito concorrerá para estreitar as relaçôes íntimas entre os diversos grupos da grande familia paranaense, e que os acontecimentos políticos haviam sobremaneira afrouxado. [ . . . . ] Sôfregos esperamos os primeiros bailes da Harmonía! em meio dos prazeres de um sarau, as horas voam como os dias da felicidade, os pensamentos tristes desaparecem, como a branca geada aos raios tépidos do sol, e as ilusöes da vida, a poesia d'alma, a realidade do prazer nos cerca por todas as partes, no refletir das luzes, ao gemer melodioso da música, no aroma das flores, a estouvada walsa, e a schottich, prazer à escolha de muitos fashionables, pondo tudo em movimento, eletriza todos os coraçôes, e imprime η'alma um inefável contentamento. AMERICUS." 33

Acompanhando urna tendências mundial, as classes dominantes paranaenses acabaram adotando a valsa e o xote, danças de rodopiar que, durante o século XIX, tomaram conta dos salôes da aristocracia européias, para depois espalharem-se pelo restante do mundo 'civilizado'. Os bailes promovidos pelas elites locáis estavam longe de ser festas familiares entre "parentes de até 4 o grau", como previa a legislaçâo colonial portuguesa. 34 Isso talvez ajude a explicar a razäo da maior tolerancia em relaçâo aos bailes promovidos pelas classes baixas. Porém, assim como no começo do século, esta elite nao aceitava que seus bailes fossem equiparados aos fandangos. Consideravam humilhante requerer licenças policiais. Em 1864, a Cámara de Curitiba faria urna tentativa de diferenciaçâo legal entre as duas manifestaçôes culturáis. 33

O Dezenove de Dezembro (Curitiba 1 de julho de 1854), p. 3. Ver Altiva P. Balhana e Cecilia Westphalen, Lazeres e festas de outrora (Curitiba 1983), p. 11. 34

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"O Senhor Vereador Dr. Antonio Cándido apresentou o seguinte artigo de postura para ser submetido à consideraçâo da Cámara - Os batuques ou fandangos de que trata o artigo 135 das posturas municipals em que for mister licença nâo se refere a bailes que com música se dançam valsas, quadrilhas, xotes, etc. o que posto em discussâo foi aprovado e deliberou a Cámara que se remetesse ao Exm° Governo da Provincia para ser provisoriamente aprovado. Curitiba, 13 de julho de 1864." 35

O vereador tentava caracterizar os bailes justamente através daquilo que era dançado pela burguesía: a valsa, a quadrilha e o xote. Esta proposta de postura nâo foi aprovada pelo governo provincial, e de qualquer modo, seria urna providência inútil. Lentamente, as classes baixas urbanas começaram a adotar maneiras de dançar próximas às da elite. Os batuques ou fandangos tornaram-se festas eminentemente rurais. Na cidade, a criadagem, os escravos e os operários encontrariam divertimento barato em bailes onde se pagava entrada. Nessa nova modalidade de baile popular, conhecida por sumpf, também dançava-se polcas, xotes e valsas. 36 O acompanhamento musical nâo era feito nem pela orquestra dos bailes burgueses, nem pelos instrumentos de corda utilizados nos fandangos. Os imigrantes alemäes e da Europa Oriental encarregaram-se de introduzir, junto com seus ritmos, o gosto pela sanfona e pelos instrumentos de sopro. Tais bailes mereciam a atençâo das autoridades policiais, que os qualificavam de ambiente desregrado e corruptor. "Esses divertimentos, com raras exceçôes, säo freqüentados por criadas estrangeiras, libertos, escravos, menores e filhos familias que muitas vezes se deixam corromper pelos funestos exemplos que ali observam."37

Antes que o século XIX se encerrasse, a questäo do fandango e de outros costumes populares entraría em uma nova fase. Os mesmos intelectuais que naquele período costumavam exaltar a modernidade e o progresso do Paraná lançariam olhares lacrimosos para a singeleza e a pureza dos costumes de 'amigamente'. Já em 1900, o historiador paranaense José Francisco da Rocha Pombo apontava que, mesmo no campo, as 'tradiçôes' estavam desaparecendo. "A vida dos centros, 35

Atas da Cámara Municipal de Curitiba, Boletim do Archivo Municipal de Curitiba, 63 (Curitiba), p. 74. 36 A historiografía paranaense nao estabeleceu o motivo e a origem de tal designaçâo. Nâo se sabe se esse tipo de bailes já eram chamado de sumpf (banhado, charco) na Europa ou se é uma especificidade germano-paranaense. 37 Relatório do Presidente Manoel Pinto de Souza Dantas Filho, Relatório do Chefe de Policía (Curitiba 1880), p. 7.

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o bulício das cidades foi contrafazendo a primitiva simplicidade dos costumes e usos populares. Baniu-se o que havia de mais poético entre a populaçâo dos campos". 38 A transfiguraçâo do fandango, que, setenta anos antes, era considerado um ajuntamento para "dar pasto à devassidäo e à desordem da crápula", seria encarada como perda. "O fandango está tâo desfigurado que nem recorda mais as antigas expansées ruidosas do baile rústico. As danças sào as modernas, importadas das cidades, e tudo está contrafeito, tudo perdeu a graça e a singeleza que tinha."39

Premida pela repressào ou adotando progressivamente os hábitos burgueses, as classes populares paranaenses produziram certos sincretismos culturáis como o sumpf. Ou seja, morigeraram um pouco seus hábitos e adotaram maneiras de dançar próximas às usadas pelos burgueses em seus bailes, tentando assim preservar o seu espaço de diversäo. Chegaríamos à virada do século com a polícia reprimindo os novos bailes populares urbanos. Entretanto, as antigas manifestaçôes culturáis passam a um novo patamar. A elas era atribuido um caráter de autenticidade em oposiçào aos hábitos europeizantes. Algumas carnadas urbanas buscavam no mundo rural, a pureza das raízes campestres. Em 1899, um jornalista do periódico castrense A Evoluçâo, produziria uma expressiva crónica sobre um fandango realizado no bairro rural de Catanduvas. Em geral, ele busca dar um tom de comicidade às cenas, acentuando os nomes risíveis dos participantes "enfiados em seus ponchos" e a chupar chimarräo. Apesar de os homens estarem geralmente armados, e de alguns "travarem-se de razào" fora do paiol, a descriçâo nào insistía num caráter violento, lascivo ou desregrado da festa. "Fizeram a roda. As velhas de lenços no pescoço, tamancos e vestidos amarrotados e as moças um pouco mais caprichosas nos vestuários, formavam pares com o Bentica, Jango Turuna, José sem Perigo, Bento Mendoim, Chico Taquara e o mestre sala Nhô Vadô Grande, uns sem paleto, outros com chapéus no alto da cabeça e todos armados de compridas adagas, rompendo o puxado com um bater de palmas e sapateado ensurdecedores, até que saia a nova quadra. A quem era dirigida esta, tinha obrigaçâo de oferecer licor, e neste intervalo alguns folgadores diziam suas delicadas pilhérias

38

José Francisco da Rocha Pombo, O Paraná no centenário (Rio de Janeiro 1980), p. 106. 39 Ibidem, p. 107.

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à moça da quitanda, outros jogavam o truco, e os velhos, em geral chupando o chimarrâo, contavam às folgadeiras alguma cousa sobre as leis da agricultura."40

Este relato já nao possuía um cunho etnográfico. Nao era voltado a um público europeu sedento por exotismo. O seu destinatàrio morava a poucos quilómetros de onde a festa era realizada. Um texto desta natureza tinham como objetivo exercitar a diferença. As elites de Castro, afetando um fastio fin-de-siècle em relaçào à cidade, buscavam reforçar o seu cosmopolitismo acentuando a ruralidade dos campeiros de Catanduvas. "Era dia. Retiram-se todos fatigados e eu voltei no meu muar lerdo e teimoso pescando todo o caminho, e refletindo que se näo fora a insipidez da cidade, näo teria precisào de trotar quase sete léguas para assistir um fandango, e cacetear os leitores com sua descriçâo."41

Enquanto isso, alguns intelectuais como Rocha Pombo ou Julio Perneta procurariam documentar os resquicios dos bailes, cantonas e poesías 'populares' de antigamente, considerando-os as raízes da "naçào paranaense". Os costumes das classes populares de outrora seriam tomados como expressivos do "espirito anónimo da raça". "Um grande serviço que temos ainda por fazer no nosso Paraná é o de coligir nas diversas zonas do Estado o que ainda porventura se conserve do nosso gènio popular. Como Teófilo Braga em Portugal e como Silvio Romero entre nós, bem se podia ainda no Paraná arquivar em volumes grande quantidade de material endereçado ao futuro investigador do espirito anónimo da raça. E bastante valioso havia de ser semelhante trabalho, porque revelaría, nas tradiçôes que subsistem, toda a excelência do antigo gènio que esplendeu, espontáneo e exuberante sob o sereno céu là do sul."42

O abandono de urna cultura comum pelas carnadas economicamente dominantes foi um processo que, à partir do século XVIII, teve amplitude quase mundial. Neste sentido, os fazendeiros e industriáis do mate paranaenses nao foram uma exceçâo. A valorizaçâo do que restou desta cultura, entendendo-a como 'popular' ou 'tradicional', também foi um fenómeno universal. Rocha Pombo nâo fala à toa em "naçào paranaense". No período compreendido entre o final do século XIX e os anos 20, a questäo nacional agitou a Europa central. Na regiäo, quantos novos estados näo foram propostos a partir de ancestralidades ou de 40 Ver José Augusto Leandro, O palco e a tela na modernizaçâo de Castro. 1896-1929 (Curitiba 1995). Dissertaçâo defendida na Universidade Federal do Paraná. Policopiado. A Evoluçào (Castro 12 de novembre de 1899), pp. 2 - 3 . 41 Ibidem, p. 3. 42 Rocha Pombo, O Paraná (nota 37), p. 106.

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tradiçôes populares corauns a determinado 'povo' ? Caso tais tradiçôes nâo existissem, cumpria inventá-las. No Brasil, este também foi o momento em que alguns segmentos intelectualizados começaram a discutir o 'ser naçâo' e em alguns estados firmaram-se alguns movimentos de recuperaçâo de 'raízes'. Os casos mais efeti vos de construçâo de 'tradiçôes' regionais ocorreram em Sao Paulo e no Rio Grande do Sul. O paulista foi levado a se reconhecer numa ancestralidade bandeirante. Na primeira república, quando Säo Paulo passou a deter a hegemonía política e económica do país, o bandeirante tornou-se urna espécie de ancestral arquetípico da naçâo. Num processo paralelo, os rio-grandenses procuram fazer reconhecer a sua especificidade no contexto nacional hipostasiando suas 'tradiçôes gauchas'. Apesar do esforço de alguns intelectuais da virada do século, nenhuma dessas tradiçôes se afirmou no Paraná. Disso resultou uma espécie de sensaçâo de desconforto. Os paranaenses nâo possuiriam tradiçôes próprias por faltar-lhes raízes e manifestaçôes culturáis características. Ora, os bandeirantes 'quatrocentöes' estäo na origem dos primeiros processos de ocupaçâo portuguesa do Paraná. Uma opçâo pela cultura campeira também seria perfeitamente cabível. Como se pode perceber ao longo deste texto, o gaúcho, com seus trajes, danças e linguajar característico, é tao 'autenticamente' paranaense quanto o é rio-grandense, uruguaio ou argentino. A presença dos imigrantes é freqüentemente apontada como causa para o 'desenraizamento' paranaense. Tal hipótese nâo se mostra muito sustentável, basta perceber que Säo Paulo e o Rio Grande do Sul receberam contingentes migratorios maiores do que o Paraná e, mesmo assim, elaboraram as suas mitologías regionais. A especificidade do Paraná parece residir em outro ámbito. Os elementos para a articulaçâo de urna mitologia sempre estiveram presentes, mas ninguém parece ter demonstrado força ou vontade política suficiente para fazê-lo. É plausível que isso seja resultado da sucessiva descontinuidade dos grupos que dominaram política e economicamente a regiào. Como cada novo grupo ascendente rivalizava com aquele imediatamente destronado, nâo caberia fazer valer no imaginário da época mitos calcados em tradiçôes passadas, freqüentemente lidas como sinais de atraso. Mas isto é uma mera suposiçào à espera de quem se disponha a enfrentar mais detalhadamente o problema. O estudo da invençâo e

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desinvençâo das tradiçôes ou seja, da formaçào cultural de um povo, além de seu interesse intrínseco, também pode oferecer contribuiçôes sob outros aspectos. Como adverte o historiador inglés Eric Hobsbawm, pode nos revelar muito dos componentes subjetivos de certas construçôes político-sociais como é o caso do Estado do Paraná.43 Para os rio-grandenses, e também para uruguaios e argentinos, o conhecimento da maneira como as elites paranaenses do século XIX trataram um fundo cultural comum às diversas regiöes, pode contribuir para uma abordagem menos naturalizante das 'tradiçôes' gauchas e que, portante, enfrente o que elas possam ter de 'artificialidade'.

43

Eric Hobsbawm & T. Ranger, A invençâo das tradiçôes (Rio de Janeiro 1984),

p. 23.

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