O Cerco – sobre a epidemia de peste bubónica no Porto em 1899 e a sua documentação fotográfica

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O Cerco – sobre a epidemia de peste bubónica no Porto em 1899 e sobre a sua documentação fotográfica O pequeno texto que apresentamos tem como principal objectivo servir de enquadramento às imagens que seleccionámos para este ensaio fotográfico. A maioria é da autoria do fotógrafo portuense Aurélio da Paz dos Reis, as outras têm o carimbo da Photographia Guedes, uma casa de fotografia conhecida na cidade nessa época. Mostram as acções de combate à epidemia pelas brigadas sanitárias e pelos bombeiros, o trabalho de rectaguarda realizado pelo pessoal médico, sob a direcção de Ricardo Jorge, e documentam várias acções levadas a cabo pela população e pelas forças vivas da cidade. Introdução O primeiro caso de peste bubónica no Porto, daquela que seria considerada como a terceira1 grande epidemia global de peste, foi registado no dia 6 de Julho de 1899 por Ricardo Jorge2, médico responsável pelos Serviços de Saúde e de Higiene do Município, que ele próprio fundara em 1892. Ele era então um médico e um académico de grande prestígio, que desde há muito se dedicava às questões de Saúde Pública, de que irá ser o grande reformador em Portugal3. Estávamos no final do século XIX. Ora, no deambular do novo século viviam-se em Portugal tempos de profunda transformação económica, social e científica. O Porto é, em particular, uma cidade em grande ebulição. A sua transformação rápida, de uma sociedade rural e comercial numa urbe industrial, aparece associada a uma abertura às novas tecnologias, às novas ideias, ao liberalismo, ao republicanismo, ao progresso e ao desenvolvimento da ciência. Na década de 80 um terço da população já está ligado à indústria, desde 1883 que existe uma distribuição municipal de água, pela Companhia Geral das Águas. É criado o primeiro transporte público urbano, o “Americano”. No Porto nascem no final do século inúmeros jornais e revistas, grande parte com inspiração republicana e mesmo revolucionária4, floresce uma intensa vida artística à volta do Centro Artístico Portuense. Esta agitação social, cultural e artística reflecte uma intensa actividade económica que, por exemplo, 1

A primeira epidemia data do século XIV e a segunda do século XVI e XVII Ricardo Jorge nasceu no Porto em 1858. Licenciado em neurologia em 1879, pela Escola Médico-Cirúrgica do Porto, iniciou a sua vida profissional no ano seguinte, em 1880, como professor, precisamente na Escola Médico-Cirúrgica do Porto. Mas alguns anos depois decide abandonar a neurologia e dedicar-se ao estudo de Saúde Pública. 3 A perspectiva progressista de Ricardo Jorge na Saúde Pública começou a delinear-se com um conjunto de intervenções como membro da comissão técnica de saneamento da cidade do Porto. “Não farei offensa ao homem portuense, se me atrever a dizer que umas tres quartas partes das nossas casas são mais ou menos uma especie de sentina cloisonnée”, escreveria ele ainda em 1880, num relatório apresentado à Comissão de Saneamento. Nesse relatório descrevia a fragilidade da higiene na cidade e defendia a realização de um inquérito alargado que possibilitasse um levantamento minucioso de todas as situações críticas e apresentava mesmo quatro propostas concretas, com um questionário pormenorizado, que cobriam os problemas mais importantes da higiene na cidade do Porto. Apresentaria quatro anos mais tarde um conjunto de críticas e de propostas nas conferências de 1884,realizadas por ocasião da ameaça de cólera em Lisboa. Ricardo Jorge mostraria já aí a sua indignação perante as posições administrativas e ignorantes das entidades oficiais que, perante a ameaça da doença, sobrevalorizavam a importância de um cordão sanitário na fronteira. Nota: estas conferências foram colectadas em Higiene Social e Aplicada à Nação Portuguesa. Em 1899, na sua publicação Demographia e Hygiene na Cidade do Porto, afirmaria que o Porto era das cidades europeias onde a taxa de mortalidade era mais alta, à roda de 30%. E descreve com pormenor as condições de insalubridade em que viviam as populações, e que eram responsáveis por muitas dessas mortes. 2

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No editorial do nº1 do jornal A República Portuguesa, criado em 1890, onde colaborarão muitos dos intelectuais republicanos do Porto, nomeadamente Aurélio da Paz dos Reis e Henrique António Guedes de Oliveira, João Chagas, seu director, escreveria: “A obra deste jornal será inteiramente e desassombradamente revolucionária. Tanto vale dizer que será um jornal de combate e dirá tudo o que for mister, a despeito da vontade pessoal do rei; a despeito da tirania dos governos; a despeito do ódio e da antipatia dos homens e dos partidos que exploram o país”

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permite a abertura de oito bancos na cidade, durante a década de 80. Este era um campo fértil para a nova “inteligentzia do Porto”. A inteligentzia do Porto… pertencia à geração positivista. É esta geração que segue à geração romântica do Café Guichard e do Águia de Ouro. Em 1878 surgira a revista O Positivismo, dirigida por Teófilo Braga e o médico Júlio de Matos, director do hospital Conde Ferreira. Em 1882 a revista fizera uma cuidada recensão crítica sobre o darwinismo da Evolução da Espécies. O republicanismo parecia apostado em chamar a si o cientismo que crescia na Europa da 5 segunda revolução industrial. Aurélio tem 20 anos e já colecciona recortes de jornais. Deve ser então que, através da revista O Positivismo, entra em contacto com as ideias de Charles Darwin. As obras que acabará por comprar, provavelmente numa das suas viagens a França, são as mais representativas do novo materialismo evolucionista, A Evolução das Espécies e A Descendência do Homem. M. do Carmo Serén, Manual do Cidadão Aurélio da Paz dos Reis

O positivismo contrapunha-se a um revivalismo romântico. A segunda metade do século XIX assinalaria também alguns dos mais notáveis progressos técnicos e científicos na Medicina e em muitas áreas do conhecimento subsidiárias da Saúde Pública. Em 1882 Koch descobrira o bacilo da tuberculose. Assim, uma medicina suportada em métodos científicos começava, neste tempo de transformações aceleradas, a impor-se a uma medicina arcaica, feita de mezinhas, assente em práticas de natureza empírica. As mudanças na área da Saúde Pública eram em grande parte sustentadas em avanços da microbiologia, que irrompia com força, mudando profundamente a medicina e as suas práticas. Identificados os agentes patogénicos microbianos, responsáveis pela maior parte das doenças contagiosas que assolavam a Europa do século XIX, a sociedade e, em particular, a comunidade científica podem começar a compreender um pouco melhor alguns dos seus mecanismos de propagação e finalmente combatê-los com maior eficácia. A peste no Porto acabaria por desempenhar, neste contexto, um papel fundamental na aceleração desta mudança, ao favorecer a revolução que o laboratório e o microscópio traziam à medicina. A peste contribuiria ainda, com as necessidades urgentes que evidenciou, para um avanço efectivo nos Serviços de Saúde Pública, impondo uma necessidade inadiável da sua reorganização, com um reforço de competências e autonomização6. Ricardo Jorge desempenharia nesta reforma um papel fulcral, primeiro no Porto à frente dos Serviços Municipais de Saúde Publica, depois em Lisboa, na Direcção Geral de Saúde Pública. Neste mundo em mudança, que acelerava para o novo século, não é também por acaso, com certeza, que a fotografia e o cinema encontrariam no Porto um dos redutos onde, na Europa, mais cedo conseguiriam florescer. Na fotografia e no cinema, de fim e de início de século em Portugal,

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A autora refere-se a Aurélio da Paz dos Reis, portuense ilustre e fotógrafo, que nos vai acompanhar neste nosso ensaio. 6

Algo equivalente acontecera em 1837, na sequência da epidemia de cólera e da Revolução de Setembro de 1836. Passos Manuel adoptara então um conjunto de medidas progressistas, que contribuíram para a alteração gradual do conceito tradicional de saúde, que deixa de corresponder só à cura, para passar a integrar também a prevenção da doença. Criou o Conselho de Saúde Pública, constituído por três médicos, dois cirurgiões e dois farmacêuticos, nomeados pelo governo, mas com delegados nos diferentes Distritos Administrativos do Reino, que coordenaria todas as políticas sanitárias nacionais e distritais. Esta estrutura seria reformulada mais tarde em 1844 e 1845 e adquiriria também a missão de vacinação da população contra a varíola, a única vacina existente à época. Mas, sobretudo por razões políticas, assistir-se-ia depois a um retrocesso, e o Conselho de Saúde Pública do Reino seria extinto em 1868, passando as suas funções deliberativas e executivas a ser exercidas pela Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, sendo criada uma Junta Consultiva de Saúde Pública, presidida pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Reino. Esta reestruturação teria como principal argumento as dificuldades do tesouro e seria, na voz do próprio Ricardo Jorge, “um filho de damnado coito burocratico… um verdadeiro escandalo da sciencia, do senso cummum e da saude publica (p 23: Hygiene Social Applicada Á Nação Portugueza). Seria esta a estrutura ainda existente, quando ocorreu a peste bubónica no Porto.

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ressalta com grande preponderância a figura de Aurélio da Paz dos Reis, certamente um dos grandes fotógrafos europeus do final do século XIX e dos primeiros anos do século XX. Aurélio foi jornalista, comerciante, industrial, músico, apaixonado pela fotografia e pelo cinema e um revolucionário republicano – participaria na revolta de 31 de Janeiro de 1891 e tornar-se-ia uma espécie de símbolo do republicanismo mais puro portuense - intervindo activamente em toda vida social, económica e política do município7. E fotografou a sua cidade nas suas diversas facetas. Deixou um espólio considerável do Porto, Matosinhos e Gaia. Fotografou os grandes acontecimentos sociais, políticos que marcaram o Porto do seu tempo. Nenhum acontecimento de relevo ficou em branco, a cheia do Douro, no Porto, com a correspondente visita de D. Manuel II, o incêndio do Teatro S. João, os episódios da peste bubónica do Porto, a visita de Eduardo VII, em Lisboa, as extraordinárias imagens de proclamação da Republica em Lisboa, ou muito mais tarde, acontecimentos como o naufrágio do Veronese. M. do Carmo Serén, Manual do Cidadão Aurélio da Paz dos Reis

Aurélio registaria assim em fotografia a epidemia de peste bubónica no Porto de 1899, permitindonos perceber com maior realismo o clima de enorme sobressalto que o surto originara na cidade, tal como registaria, uns anos mais tarde, a crise da pneumónica. Para além das fotografias de Aurélio, merecem realce algumas imagens, que igualmente registam essa epidemia, da colecção da Foto Guedes, que era nessa época uma das casas de fotografia mais importantes na cidade do Porto. A peste de 1899 iria ser, por isso, para nós diferente dos surtos pestíferos anteriores, pois seria fixada pelo olhar certeiro de Aurélio e pelos fotógrafos ao serviço da Foto Guedes8. A peste e o seu combate – o cerco à cidade A terceira epidemia de peste teria tido a sua origem na província de Yunnan na China, por volta de 1840. Demoraria portanto cerca de 60 anos a viajar até ao Porto, onde seria identificada em 1899. Como chegou ninguém sabe. Alguns defenderam que a peste teria chegado ao Porto, de facto, mais cedo, e que alguns casos de morte, que a epidemia teria provocado, poderiam ter sido mal diagnosticados. Mas tal nunca se provou e na imprensa apareceram muitas e imaginativas teorias sobre a forma como a doença teria sido trazida. Ricardo Jorge nunca conseguiu provar a existência de casos anteriores, tal como nunca conseguiu identificar qual teria sido exactamente a porta de entrada da doença na cidade, apesar de ter desenvolvido esforços para a localizar, pois essa informação poderia ajudar a isolar a doença. No dia 4 de Julho de 1899, Ricardo Jorge foi informado sobre algumas mortes inesperadas e inexplicáveis, que teriam ocorrido na Rua da Fonte Taurina, na Ribeira. Visitou o local passados dois dias e contabilizou quatro casos mortais entre dez infectados. Todos viviam “em prédios miseráveis e imundíssimos”9 escreveria ele. A mera observação dos sintomas levou o médico a suspeitar de peste e a recomendar de imediato o internamento e o isolamento de todos os doentes contagiados. Ricardo Jorge logo fez também recolhas de amostras nos tecidos dos gânglios linfáticos infectados e hemorrágicos (bubões), para tentar identificar a causa das mortes e validar eventualmente o seu 7

Poderemos encontrar em todas as actividades efervescentes na cidade do final do século o nome de Aurélio da Paz dos Reis, nos jornais e nas revistas, no Orfeão Portuense, no Circulo Artístico Portuense, na Associação Comercial do Porto, nas tertúlias do Café Lisbonense, no Ateneu Comercial do Porto, nos Fenianos, no Partido Republicano.

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Não conhecemos imagens da epidemia de peste de outros fotógrafos. JORGE, Ricardo, A peste bubónica no Porto, Seu descobrimento; Primeiros Trabalhos (1899)

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diagnóstico, se confirmasse o bacilo de Yersin, responsável pela peste bubónica. A 9 de Julho, escreveria, descrevendo as suas observações: “bacilo que microscopicamente revestia a morfologia do da peste – curto, atarracado, coração bipolar, espaço branco intermédio”10. No dia 12 de Julho, pela primeira vez, num relatório que envia para o Governador Civil, identifica explicitamente, e com bastante certeza, a doença como a peste bubónica. No dia 28 de Julho envia um novo relatório, ainda mais completo, onde reafirma a sua convicção de que se trata de peste bubónica. Será também Ricardo Jorge, que dirige o laboratório bacteriológico municipal que fundara, quem confirmará, por exame bacteriológico, no dia 8 de Agosto de 1899, o diagnóstico anterior de peste. Essa confirmação seria validada pelo trabalho laboratorial realizado em paralelo por Câmara Pestana, director do Instituto de Bacteriologia de Lisboa. As reacções por parte das autoridades locais e por parte das forças vivas da cidade foram hesitantes e por vezes contraditórias. Mostravam preocupação, acompanhavam a situação, mas temiam que a cidade e em particular a sua economia pudessem ser afectadas, e durante muito tempo chegaram a negar a epidemia. A reacção por parte das autoridades políticas nacionais vai também ser hesitante e contraditória até ao dia 17 de Agosto, quando é publicado um decreto governamental que impõe as primeiras medidas de cerco sanitário à cidade. Existem alguns dados que parecem indicar que essa medida drástica e repentina resultou em grande parte de pressões internacionais. As medidas excepcionais seriam ainda reforçadas por um outro decreto de 23 de Agosto. A cidade é cercada pelo exército, são fortemente restringidas entradas e saídas, quer de pessoas, quer de mercadorias. O “cerco”, como irá ser recordado, irá ter consequências muito negativas, pois vai juntar à epidemia, grande instabilidade económica, desemprego e fome, acentuando as condições já muito débeis em que sobreviviam as classes mais pobres da cidade. Na opinião de alguns, este cerco brutal, decidido pelo governo em Lisboa, e onde alguns verão represálias pelo 31 de Janeiro, contra a opinião firme das forças vivas locais, que se manifestarão de todas as formas para obrigar o governo a recuar, e assegurado pelas autoridades locais, ainda que apenas em nome de um servilismo partidário ao governo, terá condicionado vivamente a atitude futura dos portuenses relativamente a Lisboa, marcada por uma distância crítica, mas ao mesmo tempo por uma subserviência inibidora, de quem responsabiliza Lisboa por tudo o que de mal acontece à cidade, mas é incapaz de afirmar a sua independência. O cerco constituiria uma humilhação, provocaria a indignação geral e até a determinada altura uma revolta contra os serviços médicos e contra o próprio Ricardo Jorge que, cansado11, acaba por deixar a cidade para assumir o cargo de inspector-geral da recém-formada Direcção-Geral de Saúde e Beneficência Pública12, que representaria um marco fundamental na história da Saúde Pública em Portugal. Aí Ricardo Jorge prosseguiria a reforma dos serviços de Saúde Pública em Portugal, tendo sido o impulsionador e o autor do Regulamento Geral dos Serviços de Saúde e Beneficência Pública de 1901.

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Idem, ibidem.

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Ricardo Jorge escreveria “A agitação de parte da população do Porto, adversa ás mais elementares e consagradas medidas prophylacticas, e que chegou a romper por vergonhosos desmandos e desacertos, entretinha-a parte da imprensa periodica, que falseando a sua missão, promovia a negação da existencia da epidemia pestilencial, affrontava as autoridades publicas, injuriava e aggredia os seus agentes, concorrendo por todos os modos para o descredito e mallogro da defesa da saude publica.” ( p.167, A Peste bubónica no Porto-1899). 12 Câmara Pestana substituiria Ricardo Jorge na frente de combate contra a peste no Porto, e acabaria por ser contaminado; faleceria a 15 de Novembro de 1899 com apenas 36 anos de idade.

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O cerco seria finalmente levantado no final de Dezembro, em vésperas do Natal, quando o número de casos registados era já muito baixo, podendo-se no entanto afirmar que a peste ficaria no Porto endemicamente até cerca de 1915. A contabilidade final, ao entrar no século XX, vai ser de 320 casos, 132 mortais. Análise sobre a peste de 1899 e o cerco à cidade A posteriori, parece ser possível hoje afirmar que o carácter contido13 da epidemia não se terá devido em nada ao cerco decidido pelo governo que, para além de tudo era ineficaz, porque não fora preparado e porque fora decidido sem dotar a cidade dos meios necessários para o concretizar, mas sim a outras medidas tomadas pelos responsáveis médicos, em particular as campanhas de extermínio dos ratos. Mas o pequeno número de casos de contaminação pela peste ter-se-á devido sobretudo a um conjunto de circunstâncias ambientais e de desenvolvimento da doença, que favoreceram o seu declínio. A espécie de pulga que predominava em Portugal seria pouco eficaz a transmitir o bacilo e acredita-se que o rato, essencial na transmissão entre humanos, teria desenvolvido uma imunidade contra a epidemia, graças a uma mutação do bacilo, o Yersinia pseudotuberculosis. Só estas circunstâncias felizes permitiriam manter os efeitos da epidemia na Europa, como relativamente contidos, em vez da catástrofe humanitária que fora observada no Oriente anteriormente. Esta contenção da doença e da mortalidade associada pode explicar também a reacção da burguesia portuense, que via até outras doenças – tuberculose ou o typho como mais ameaçadoras do que a própria peste. A posteriori, se o cerco militar à cidade se pode considerar como uma medida arcaica e até contraproducente, pelo descrédito que gerou nos serviços médicos, fazendo com que até houvesse casos de doença escondidos, como refere o próprio Ricardo Jorge no seu relatório, “pelos menos um quinto dos casos teem sido desconhecidos”, a prática médica no combate à epidemia parece revelar um conhecimento actualizado e uma grande modernidade de procedimentos, quer na componente de análise bacteriológica, quer no combate organizado no terreno, nomeadamente contra os ratos, identificados como os portadores do bacilo. Também as práticas de isolamento dos doentes infectados14, de desinfecção das habitações, de vacinação das pessoas que tinham contactos com os doentes, de lavagem das ruas e dos esgotos com desinfectante, de cremação dos cadáveres em cal viva, foram medidas correctas e certamente eficazes. Algo que parece inegável também é a peste detectada na Ribeira ter exposto uma cidade suja, sem saneamento, muitas vezes sem água potável, com condições de habitabilidade muito deficientes e com graves problemas de salubridade. É preciso destruir quanto antes os bairros imundos onde a peste se acoita, e as ilhas inhabitáveis, antros infectos…para extinguir completamente o mal seria necessário sanear a cidade, arrasando completamente três bairros: o do Barredo, o da Fonte Taurina e o de Miragaia.

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Para percebermos quão contida a peste bubónica foi, bastará comparar com a epidemia de cólera, chamada cholera morbus ou cólera asiática, que terá chegado à europa ocidental entre 1826 e 1832. Dada como extinta em 1837, estendeuse pela Rússia, Alemanha, Inglaterra, França, Espanha e Portugal, e teria feito mais de um milhão de vítimas. A invasão de cólera em Portugal viria efectivamente a acontecer em Janeiro de 1833, na cidade do Porto, com a chegada do vapor London Merchant, que trazia como passageiros o General Solignac, o seu Estado-Maior e cerca de 200 soldados, destinados a engrossar as fileiras do exército liberal. A epidemia logo se espalhou por todo o país e as primeiras mortes foram registadas alguns meses depois, em Abril de 1833, no hospital de S. José em Lisboa. 14 Eram internados no hospital chamado Guelas de Pau, que fora fundado em 1884 para isolar e tratar doentes com cólera. Em 1899 o hospital foi adaptado para receber os doentes contagiados com peste bubónica, adquiriu entretanto o nome de Hospital Senhor do Bonfim; finalmente em 1914 passou a chamar-se Hospital Joaquim Urbano.

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Ricardo Jorge, Demographia e Hygiena na cidade do Porto

Por isso, as vítimas pertenciam quase todas aos estratos da população mais pobres, que habitavam sem condições mínimas de higiene15, o que favorecia o desenvolvimento de pragas, como ratos e pulgas. A defesa de melhores condições de habitação, a exigência de condições sanitárias mínimas, para que os médicos e os elementos mais progressistas da sociedade alertaram, tornar-se-iam um campo de acção, que apenas começara a dar os primeiros passos. Os padrões de higiene e de habitabilidade não mais pertenciam só à esfera privada, mas eram uma obrigação do Estado e dos Serviços Públicos de Saúde. Mas depois do diploma de 4 de Outubro de 1899, que criou a Direcção-Geral de Saúde e Beneficência Pública, e da sua regulamentação, em 1901, faltava ainda dar um passo decisivo, ou seja, cortar o secular cordão umbilical que ligava a saúde pública em Portugal à beneficência, o que só aconteceria em 1911, depois da instauração da República, com a criação da Direcção-Geral de Saúde, por decreto do Ministro do Interior, António José de Almeida. Ricardo Jorge seria então nomeado Director-Geral de Saúde. Ricardo Jorge continuaria a ser um espírito crítico na sua luta em prol da saúde e do bem-estar das populações, manifestando-se muitas vezes contra as desculpas governamentais de falta de recursos para não investir no saneamento, na higiene das cidades e nos serviços de saúde. Estamos chegados à época de um novo direito das gentes, de uma moralidade física geral, em que, por vivas que sejam outras preocupações de ordem política e colectiva, ascendeu entre elas ao lugar das mais instantes a da solidariedade higiénica internacional. Ricardo Jorge, em preâmbulo do diploma que estabelecia a reorganização da DGS, em 1926

As fotografias da peste no Porto Este ensaio reúne algumas imagens da peste no Porto do fotógrafo Aurélio da Paz dos Reis e da Photographia Guedes, uma das mais renomadas casas dedicadas à fotografia na cidade Invicta no fim do século XIX. Aurélio da Paz dos Reis (1862-1931) é uma personagem extraordinária do seu tempo. Foi um dos pioneiros da fotografia e do cinema16 em Portugal. Recebeu inúmeros prémios e medalhas pelas suas fotografias, nomeadamente na Exposição Universal de Paris de 1900. A sua primeira fotografia conhecida é de 1882, quando tinha vinte anos. Fotografou regularmente até cerca de 1920. Mas também foi poeta, dramaturgo, jornalista, músico, compositor17, comerciante, membro activo da 15

Cerca de 75% dos casos de peste registados durante o surto em 1899 correspondem a habitantes do Porto medieval – Sé, S. Nicolau, Vitória e Miragaia - onde as condições de habitabilidade eram mais fracas.

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O seu primeiro e mais célebre filme foi Saída do Pessoal Operário da Fábrica Confiança (1896), rodado na esquina das ruas de Santa Catarina e Passos Manuel, na cidade do Porto. O filme é inspirado no primeiro filme da história do cinema, rodado em França pelos irmãos Lumière, La Sortie de l’usine Lumière à Lyon (1894 – 1895). De realçar que o filme de Aurélio foi rodado apenas um ano depois do filme dos irmãos Lumière. Assim, o início da história do cinema em Portugal ficaria para sempre ligado ao Porto, onde a 12 de Novembro de 1896, no Teatro Príncipe-Real – hoje Sá da Bandeira – o filme de Aurélio é projectado durante o intervalo do espectáculo em cena. Os cartazes anunciavam o Kinetographo Português com Photographia Animada. Graças a Aurélio, Portugal estaria entre os quatro primeiros países a realizar um filme. Aurélio faria algumas dezenas de pequenos filmes - são conhecidos 35 - acabando por abandonar o cinema, por problemas financeiros – o seu financiador desistiria do projecto - e por não poder acompanhar todo o processo de realização dos filmes, o que lhe não agradaria. Cineasta de curta duração, mas suficiente no entanto para poder revelar uma enorme capacidade de realização, capaz de imprimir movimento e verosimilhança às cenas. 17 A notoriedade pública de Aurélio teria começado, quando tinha 19 anos, precisamente com a música. Em 1881 compôs uma peça intitulada Polka Singela que seria publicada no jornal republicano Folha Nova. Foi sócio fundador do Orfeão Portuense.

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Associação Comercial do Porto, empreendedor de vários negócios, floricultor premiado e político republicano de relevo, membro do partido republicano, tendo participado na Revolta do Porto de 31 de Janeiro de 1891, julgado e absolvido. Foi vereador e vice-presidente da Câmara do Porto, depois de instaurada a República. Foi membro do Grande Oriente Lusitano Unido. Para M. do Carmo Serén, “A Maçonaria representa para Aurélio a possibilidade de exercer o seu ideal de beneficência e instrução”. De facto, Aurélio apoiaria inúmeras instituições de beneficência na cidade: asilos, orfanatos, associações. A parte do seu espólio fotográfico que sobreviveu é constituída por 2464 positivos e 9260 negativos, conservados no arquivo fotográfico do Centro Português de Fotografia, CPF; muitos deles são chapas de vidro estereoscópicas18, processo de que ele gostava particularmente. Apesar de ser sempre apresentado como fotógrafo amador, vendeu muitas fotografias19 ao longo da sua vida, em Portugal e no Brasil. Aurélio terá conhecido Ricardo Jorge em 1888, quando ambos colaboravam no influente jornal portuense O Norte. Manteve ligações próximas com a Casa Biel (antiga Casa Fritz) de Emílio Biel e com a Fotografia Moderna de Leopoldo Cyrne. Henrique António Guedes de Oliveira é outra personalidade multifacetada do Porto do final do século XIX. Era amigo de Aurélio da Paz dos Reis, com quem partilhava, entre outros gostos, o gosto pelas touradas. Estudou Arquitectura na Escola de Belas Artes do Porto e foi professor de cadeiras de História de Arte e director dessa Escola entre 1919 e 1929. Foi poeta, dramaturgo, jornalista, tendo colaborado em muitos jornais e revistas, muitas vezes de carácter humorístico e satírico, Cáusticas seria aliás o título do seu primeiro livro de poesia. Grande humorista, foi amigo próximo de Rafael Bordalo Pinheiro. A par dessa actividade literária, Guedes de Oliveira vai também ligar-se, a partir de 1885, à fotografia, trabalhando durante algum tempo na firma Sala & Irmão. Foi admitido como sócio em 1886 e a firma passou a designar-se Guimarães & Guedes, Sucessores de Sala & Irmão. Mas em 1892 Guedes de Oliveira fundaria o seu próprio atelier, a Photographia Guedes, com portas abertas na Rua de Santa Catarina, nº 262 que se destacaria na fotografia de estúdio, em particular no retrato. Em 1898, seria o primeiro a introduzir um conjunto de inovações na arte da fotografia, como o processo Eastman, que permitiria a produção de provas bastante mais acessíveis. O seu espólio, à guarda do Arquivo Municipal do Porto, com imagens entre 1885 e 1932, é constituído por 59936 negativos em vidro e 735 negativos em película, com vários formatos. Nota: as fotografias da peste no Porto, que reproduzimos, e que integram o espólio da Foto Guedes, têm todas como assinatura o nome da empresa Foto Guedes. Não é portanto possível garantir que Guedes de Oliveira tenha sido o fotógrafo que as realizou. O texto seguinte de M.Carmo Serén serve para aumentar as nossas reservas.

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A máquina estereoscópica utiliza duas lentes que permitem simular a visão humana dupla, conjugando a visão do olho esquerdo e do olho direito, e que permitem assim, com um visor adequado, ter uma ilusão de tridimensionalidade. A fotografia estereoscópica, divulgada a partir da Exposição Universal de Londres de 1851, se vulgarizou nas duas décadas seguintes como entretenimento social e instrumento de divulgação (antes da multiplicação das edições em formato «carte de visite»), mas perdeu depois quase todo o seu impacto perante a novidade do cinema, ficando no final do século restrita a alguns grupos de amadores especializados (ver, por exemplo, La Photographie Stéréoscopique sous le Second Empire, Biblioteque Nationale de France, 1995). Paz dos Reis ter-se-á mantido até ao final fiel a esse processo já anacrónico. As imagens estereoscópicas caracterizavam-se em geral por uma ambição de realismo (de início recreado em estúdio) que se acentuava pela presença da terceira dimensão, funcionando como «tranches de vie» de um mundo em rápida mudança. Alexandre Pomar, no seu blog http://alexandrepomar.typepad.com/alexandre_pomar/2008/04/aurlio-paz-dos.html

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Existe um caderno com anotações técnicas e com informação sobre as encomendas de cada cliente.

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Guedes de Oliveira é, fundamentalmente, um fotógrafo de estúdio: os adereços num espaço restrito, a simulação das virtudes e das capacidades – a sala de estudo, com o seu livro, a recriação dos jardins, das balaustradas, do espaço de repouso com suas cadeiras e mesas de cortiça, o terreiro da quinta onde uma proprietária exibe o seu poder, o pequeno lago artificial onde uma criança simula um devaneio impróprio para a idade. E ainda os retoques na silhueta feminina, que se quer mais fina, ou a pedra, que permite acrescentar estatura a um homem baixo. M.Carmo Serén, O Porto e os seus Fotógrafos

A fotografia e os notáveis fotógrafos do Porto possibilitaram o registo da peste bubónica em 1899. Desde a invenção da fotografia em 183920 a evolução do processo fotográfico fora muito rápida. Essa evolução possibilitou a obtenção, de uma forma cada vez mais simples, de imagens de qualidade e, em particular, a obtenção de imagens vivas, do quotidiano. Equipamentos mais portáteis em vez de equipamentos quase não transportáveis, negativos em vidro (1851) que possibilitaram a reprodução simples e ad infinitum de cópias, técnicas sofisticadas – como a gelatina e brometo de prata (1880) que tornam o processo muito mais rápido e possibilitam a obtenção do instantâneo. E, ao contrário do que se poderia pensar, todas estas novidades chegaram rapidamente a Portugal, e em particular ao Porto, pois os fotógrafos portuenses mantêm contactos privilegiados com tudo o acontece em França e as inovações são imediatamente experimentadas e divulgadas21. O desenvolvimento do processo fotográfico permitiu que a fotografia pudesse desempenhar novas funções e cobrir novas áreas que antes lhe estavam vedadas. O crescimento da importância da fotografia baseou-se em grande parte em nos ajudar a acreditar que a nossa visão e a nossa crença nas formas reais coincidia com a realidade. … é mais fácil acreditarmos que o mundo é como o vemos. A fotografia foi posta ao serviço dessa ilusão. Ilusão que a sua adopção pelo método positivista e pelos agentes judiciais e policiais, ajudaram a fortalecer. Maria do Carmo Serén, A imagem fotográfica na percepção do espaço Essa capacidade mágica para parar o tempo, para congelar uma fracção do segundo e para desenhar com precisão e verdade o acontecimento, como um espelho com memória, continua a ser talvez a característica mais diferenciadora da fotografia, mas também porventura uma das suas maiores fontes de equívocos. Renato Roque, Fotografia e Beleza - Espelho meu, espelho meu…

Surge assim com toda a naturalidade uma fotografia dos acontecimentos, que viria a resultar no chamado fotojornalismo, e em paralelo uma fotografia de carácter social, para servir de denúncia da situação dos mais pobres, dos desprotegidos, que culminaria na chamada fotografia social. Estas novas áreas alargam os horizontes do que se poderia designar como uma fotografia documental. A fotografia parecia estar naturalmente vocacionada para realizar todas essas funções. Quer Aurélio, quer Guedes de Oliveira são evidências claras dessa ligação, que despertava, entre a fotografia e o jornalismo. Aurélio teve cartão de jornalista e publicou muitas vezes as suas imagens em revistas, em especial na Illustração Portugueza. Viajou algumas vezes até França e Brasil, não só com o objectivo de criar representações comerciais, mas também para fotografar, comercializando

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Daguerre foi considerado em França como o inventor da fotografia, pois Arago, em 1839, na apresentação oficial do processo fotográfico na Academia das Ciências em Paris, usou os seus daguerreótipos como prova dos resultados extraordinários obtidos, maravilhando todos os membros da academia. Mas a imagem mais antiga conhecida é a imagem de Nièpce de telhados de Saint-Loup-de-Varennes, obtida através da sua janela, treze anos antes, em 1826. 21 Um exemplo ilustrativo é a revista A Arte Photographica, revista mensal de divulgação dos progressos da photographia e artes correlativas (1884-1885) de que foram publicados 23 exemplares. Uma revista com o mesmo nome seria editada entre 1915 e 1917, mas com um conteúdo completamente diferente, muito influenciada pela chamada fotografia pictorialista.

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estas imagens em séries temáticas. Na sua actividade de fotógrafo gostava de fazer retratos a pessoas, família, amigos, gentes do teatro, mas era sobretudo um fotógrafo de rua, um fotógrafo que queria registar os acontecimentos marcantes da cidade. Guedes de Oliveira colaborou em inúmeros jornais e pertenceu até aos corpos dirigentes da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto. A fotografia documental, que se impusera desde os anos cinquenta22, alarga-se a uma fotografia do acontecimento e do quotidiano. As grandes obras industriais ou de construção são, naturalmente temas de séries fotográficas e eram acompanhadas por fotógrafos privativos… mas as imagens de rua da transição do século já falam outra linguagem, sejam as do republicano Aurélio da Paz dos Reis, no Porto, sejam as de J.Benoliel, monárquico e amigo de reis, em Lisboa. É a cidade dos acontecimentos ou do quotidiano, onde as pessoas são o assunto primeiro. Vê-se a cidade já fraccionada pelo que acontece… Maria do Carmo Serén, A imagem fotográfica na percepção do espaço

Aurélio é um fotógrafo extraordinário que reúne à capacidade técnica um olhar onde podemos descobrir e surpreender um traço profundamente moderno. É de facto um fotógrafo habilíssimo, que controla as imagens, faz ressaltar apontamentos estonteantes de vida, onde nos é difícil imaginá-lo com a ponderação que nos habituou. Maria do Carmo Serén, Manual do Cidadão

Nas fotografias da peste não fará certamente ressaltar “apontamentos estonteantes de vida” mas é capaz de traduzir o drama que uma epidemia como aquela traria à cidade. Ele é um homem de múltiplas vivências e trata com o mesmo entusiasmo tudo o que acontece à sua volta: os desfiles, as festas da cidade, as touradas, as feiras, o passeio público no Palácio de Cristal, as exposições, as praias burguesas na Foz, as casas burguesas dos seus amigos, os seus companheiros de luta, a sua família, as actividades de tempos livres, os asilos de raparigas, que ele ajudou a criar e a manter, mas também comícios e manifestações republicanas ou acontecimentos políticos e sociais relevantes que aconteciam na cidade. O seu olhar era com certeza o de um idealista, de um burguês, de um republicano e, como diz Maria do Carmo Serén, “Conhecemos o Porto republicano pelas suas imagens”. A fotografia de Aurélio é de uma cidade em mudança, uma cidade aberta e liberal. Na espantosa fotografia da reunião dos comerciantes da cidade no Palácio da Bolsa (ver figura XXX), em que eles tomariam uma posição de força contra o cordão sanitário decidido pelo governo durante a peste bubónica, apesar da multidão que ocupa o Pátio, Aurélio consegue transmitir, na opinião de M. do Carmo Serém, “um sentimento de organização e ordem”, que ele acreditava a Republica traria. A ligação da fotografia de Aurélio ou da Photographia Guedes com a chamada fotografia social não é tão óbvia. A fotografia social assume como missão documentar situações sociais que nos devem merecer reflexão, como é o caso de situações de extrema pobreza ou de desrespeito pelos mais elementares direitos humanos. A sua origem coincide precisamente com o tempo de que falamos, 22

Um fotógrafo documental exemplar, contemporâneo de Aurélio, e que também vivia no Porto, seria Emilio Biel. O seu trabalho documental da construção da Ponte Dona Maria Pia e sobre a expansão do caminho-de-ferro são exemplos paradigmáticos. Lançamento de caminhos de ferro, pontes, estações, edifícios monumentais como a Ópera de Paris ou o Palácio de Cristal, no Porto, a produção da estátua da liberdade para oferecer aos Estados Unidos, em França, tiveram minuciosos levantamentos fotográficos. As grandes capitais são fotografadas minuciosamente, quer repetindo encenações já conhecidas da pintura, quer procurando o mais pitoresco, menos conhecido. M. do Carmo Serén

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final do século XIX, com principal incidência primeiro no RU e depois nos EUA, sendo normalmente nomes obrigatórios os ingleses Henry Mayhew e Thomas Annan23 e os americanos Jacob Riis e Lewis Hine24. A fotografia social ganharia um relevo muito grande já no século XX, com o projecto Farm Security Administration (FSA)25, um organismo criado em 1937 nos Estados Unidos da América, coordenado por Roy Striker, e que se destinava a documentar a situação dos agricultores muito pobres, durante a grande depressão. A divisa do Departamento de Informação da FSA era "mostrar a América aos americanos". Não nos parece que o trabalho de Aurélio ou da Foto Guedes contenha já essa determinação social de fotógrafos como Riis ou Hine. De facto, no caso do Aurélio ele fotografa claramente com a perspectiva de uma nova burguesia ascendente, republicana. Não é visível uma identificação com os mais pobres e marginalizados. Por isso M. do Carmo Serém realça o “sentimento de organização e ordem” na fotografia da reunião na Bolsa. E justifica: É a virtude da burguesia, habituada aos surtos de tifo marginais e controláveis, a rejeitar o diagnóstico de Peste de Ricardo Jorge para defender os seus negócios. O mesmo equilíbrio nas imagens da capital de Benoliel; até as greves parecem risonhas e pacíficas. A Fotografia, mesmo abordando o movimento dos fluxos e refluxos da cidade, a vivência político-social das suas camadas, define ainda a ordem teatral da composição e a estética desinibida dos cenários. Maria do Carmo Serén, A imagem fotográfica na percepção do espaço

Bibliografia PEREIRA, Gaspar Martins e SERÉN, Maria do Carmo, O Porto oitocentista, 1995, Porto Editora JORGE, Ricardo, A peste bubónica no Porto,1899, Repartição de Saúde e Hygiene da C.M. Porto JORGE, Ricardo, Hygiene Social aplicada à nação portuguesa, 1885, Civilização. JORGE, Ricardo, Demographia e Hygiene na Cidade do Porto, Repartição de Saúde e Hygiene da C.M. Porto, 1899 JORGE, Ricardo, Saneamento do Porto. Relatório apresentado á Comissão Municipal de Saneamento, 1880 PONTES, David, O cerco da peste no Porto-Cidade, imprensa e saúde pública na crise sanitária de 1899, 2012, FLUP ALVES, Jorge Fernandes, Emigração e sanitarismo – Porto e Brasil no século XIX, 2004, I Encontro Luso-Brasileiro de Epidemiologia VIEGAS Valentino, FRADA João e MIGUEL José Pereira , A DIRECÇÃO-GERAL DA SAÚDE - NOTAS HISTÓRICAS, 2006 DAVID, Henrique. Mortalidade no Porto em finais do século XIX, FLUP, 1989 SERÉN, M. do Carmo, A imagem fotográfica na percepção do espaço: paisagem e espaço urbano na fotografia portuguesa, CITCEM, 2010 SIZA, Maria Tereza e SERÉN, M. do Carmo, O Porto e os seus Fotógrafos. Porto Editora, 2001 SIZA, Maria Tereza e SERÉN, M. do Carmo, Manual do Cidadão Aurélio da Paz dos Reis, CPF, 1998

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Henry Mayhew era um reputado jornalista londrino. Publicou na década de cinquenta dois livros, que mostravam as condições de vida da classe operária na cidade de Londres. Esses dois livros, London Labour (1850) e London Poor (1852), eram ilustrados com gravuras feitas a partir de daguerreótipos do fotógrafo inglês Richard Beard. Thomas Annan era um fotógrafo escocês. Por encomenda da cidade publicou Photographs Of The Old Closes and Streets of Glasgow (1868). 24 Em 1890 Riis registou em fotografia as condições de vida dos desempregados e sem-abrigo de Nova Iorque. O livro chama-se How the Other Half Lives. Também seria atraído pelo destino dos imigrantes, a maioria a viver em condições de extrema pobreza nos bairros de lata de Nova Iorque. Riis é um fotógrafo que toma partido pelo lado dos fracos, cuja fotografia apela a uma consciência social. Em 1908 o Comité Nacional de Trabalho Infantil (National Child Labor Committee) contrataria Lewis Hine, um professor de sociologia, que defendia o papel de intervenção social que a fotografia deveria assumir, para documentar as condições de trabalho infantil na indústria americana, onde ele constituía um flagelo. Publicaria nas primeiras décadas do século XX milhares de fotografias, que emocionariam a nação Americana. Lewis Hine dedicaria também atenção à situação dos imigrantes. O trabalho destes dois fotógrafos teria grande impacto social e até verdadeiras consequências políticas, conduzindo à criação de programas de educação ou a leis para dificultar o trabalho infantil. 25 A Farm Security Administration (FSA) contou com uma equipa de fotógrafos de renome, entre os quais Walker Evans, Dorothea Lange, Arthur Rothstein e Russell Lee, que fizeram fotografias de migrantes nas zonas rurais dos EUA, com o objectivo de registar as enormes dificuldades destas populações e de avaliar a evolução dos programas de ajuda aos agricultores. Entre os anos 1935 e 1942, a FSA juntou cerca de 270 mil negativos. Actualmente estão arquivados na Biblioteca do Congresso, em Washington D.C.

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ENSAIO FOTOGRÁFICO

AURÉLIO DA PAZ DOS REIS

Técnicos de saúde. Foto de grupo. Foto estereoscópica

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Aspecto de doentes nus para observações

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Nota: uma grande parte das imagens de Aurélio da Paz dos Reis que reproduzimos neste pequeno ensaio foi obtida, de facto, com uma câmara estereoscópica Mackenstein, mandada vir de Paris. No entanto, por se não justificar a impressão da imagem dupla em todas elas, optámos por apenas mostar o par de imagens estereoscópicas apenas nesta, e em todas as outras reproduzimos apenas uma das imagens.

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Técnicos de saúde preparados para desinfestação

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Técnicos de saúde em laboratório

Ricardo Jorge com Balbino Rego, Sousa Júnior e peritos indicados pela vereação do Porto em reunião

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Ricardo Jorge no Laboratório de Higiene Municipal

Ricardo Jorge e outro médico no Laboratório de Higiene Municipal

Reunião de comerciantes e homens de negócios do Porto no Palácio da Bolsa, para discutir o impedimento à economia da cidade provocada pelo cordão sanitário

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Incêndio numa casa devido à peste

Incêndio numa casa devido à peste

Montra de comerciantes em protesto contra o cordão sanitário

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FOTO GUEDES

Corporação de bombeiros, fazendo limpeza a casas insalubres do Porto, devido à propagação da Peste Bubónica

Carro do Serviço Municipal de Desinfecção, com uma corporação especial de bombeiros, fazendo limpeza a casas insalubres do Porto, devido à propagação da Peste Bubónica

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Bombeiros desinfestando um caixão

Dr. Ricardo Jorge no Laboratório Municipal de Bacteriologia

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Fotografias do bacilo da peste da autoria de Plácido Costa

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Plácido Costa foi outra personagem extraordinária dos finais do século XIX. Médico oftalmologista distinto, foi o inventor de vários equipamentos médicos e um precursor da microfotografia. Seria além disso, um muito bom fotógrafo amador, tendo deixado um espólio de fotografias da cidade do Porto. Os seus trabalhos de fotografia médica seriam muito importantes para os estudos da arteriografia do sistema linfático.

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