O Cinema Contemporâneo de Cabo Verde

July 31, 2017 | Autor: Mário V. Almeida | Categoria: Avant-Garde Cinema, Digital Cinema, Cinematography, Cinema Studies
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O CINEMA CONTEMPORÂNEO DE CABO VERDE1 “O cinema se recorda de tudo, de forma virtual e as vezes actual, mas mudou a nossa forma de recordar mudando os conteúdos da nossa memória, mudando a nossa própria memória.” Jacques Aumont, Amnésies. (Fictions du cinema d’ aprés Jean luc Godard. Paris: Pol, 1999, pp, 40-41) (…) Convém assinalar, primeiramente, que o cinema contemporâneo de Cabo Verde opera, desde há muito, num terreno cultural, artístico, normativo, ético e crítico pleno de dificuldades estruturais assinaláveis. Importa, por isso, trazer, à esta análise que pretende ser sistemática, os aspectos fundamentais desse cinema e o contexto em que ela existe e actua, nomeadamente: a sua expressão e tendências contemporâneas; a ausência de uma crítica especializada dos conteúdos, que deve estar assente numa revista científica de grande divulgação; a inexistência de uma Lei para o Audiovisual e Cinema. A estes aspectos juntamos alguma reflexão pessoal à volta do imaginário cabo-verdiano e sua possível representação no cinema. Estes aspectos estruturantes implicam estudos e investimentos consideráveis, porém, necessários para que se torne funcional, e verificável, o quadro cultural, artístico, normativo, ético e crítico do cinema no nosso país. Actualmente as lacunas existentes estão a deixar uma larga margem de manobra à uma prática informal, pouco controlada e irracional, que sustenta toda a ordem de piratarias e diletantismo. Registamos, na actualidade, uma avalanche de imagens turísticas e paisagísticas sobre Cabo Verde que indiciam algo mais hegemónico e que se prende com a excessiva transformação das ilhas em produtos turísticos e culturais. O recrudescer do nacionalismo cabo-verdiano e do orgulho nacional fez-se sentir no aumento da quantidade de imagens sobre o nosso país. A maioria delas é, por essa mesma razão, de pendor promocional e as que constituem, de algum modo, enquadramentos sociológicos, caem no jogo fácil de uma moralidade duvidosa. Existe uma ausência perceptível de 1

Este artigo está editado no livro científico “Avanca Cinema 2013 International Conference” da Conferência Internacional de Cinema de Avanca, publicado pelas Edições Cine-Clube de Avanca. – ISBN: 978-989-96858-3-3 Email: [email protected] Site: www.avanca.com

abordagens antropológicas e de críticas sociopolíticas arrojadas no cinema e documentário que se produz no arquipélago e o meio criativo audiovisual e cinematográfico, no seu conjunto, não cultiva as tendências criativas contemporâneas cujos produtos não são visionados de forma activa pelos criadores, pelo menos no que tange às mostras especializadas de documentários, que têm tido pouca aderência. Metaforizando, os realizadores nacionais, na sua maioria, não funcionam como “expedicionários” que exploram uma montanha desconhecida mas sim, como donos de uma estalagem isolada, sempre com os mesmos clientes, recebendo de vez em quando um estrangeiro nas suas instalações. De notar ainda que, apesar de se ter registado avanços nas movimentações estéticas e de haver propostas imagéticas críticas universais, a classe profissional não se centralizou, até então, à volta de uma publicação periódica, seja ela de carácter científico, tecnológico, artístico ou outro. Acresce a isso o facto inelutável de inexistência de uma Lei que sustente e regulamente o sector.

1. A HISTÓRIA, OS FILMES E AS TENDÊNCIAS ACTUAIS 1.1.

O cinema do período colonial e o pós-colonialismo2 no cinema

Esta modalidade de cinema cabo-verdiano situa-se na época colonial propriamente dita e estende-se à actualidade enquanto repercussões pós-coloniais, isto é, filmes nos quais se assinala ainda os efeitos de séculos de colonização portuguesa. Em termos específicos os filmes que estão nessa esfera ou são co-produções ou co-realizações no âmbito lusófono estando o seu conteúdo submetido a uma lógica de sentido que tem a língua portuguesa como âncora ou revela uma qualquer reacção contra uma outrora pretensa cultura dominante da metrópole. Trata-se, aqui, de um «arco emocional» que se estende desde o período colonial até as mais recentes produções cinematográficas. Segundo Machado (2008), em Cabo Verde a primeira exibição de um filme ocorreu em 1909 no «Cine-Teatro Africano» pertencente a João Henriques de Melo. Mas a primeira sala de cinema só foi criada em 1919 por iniciativa de Francisco Mascarenhas e A. Freitas. Em 1922 inaugurava-se a mítica sala de cinema «Eden Park» por iniciativa de César Marques Silva. A nível das produções autóctones tudo começou com O Guarda Vingador (Henrique Pereira 1954), um western, “o primeiro filme feito 2

O conceito de «pos-colonialismo» é distinto do «neocolonialismo», sendo este último entendido como uma nova dominação política, económica e know how.. Todavia, o termo «pos-colonialismo» é para o do «colonialismo» na mesma ordem de ideias em que o «pos-moderno» é para o «moderno», o que significa dizer que é uma derrocada das narrativas e das bases políticas do colonialismo sucedendo-se-lhe, porém, os efeitos sociológicos e identitários nas construções de sentido, neste caso concreto, no campo das artes e da cultura.

em Cabo Verde» (Machado, 2008) - a primeira experiencia do cinema; que buscava retratar precisamente o real arriscado, potencialmente heróico dos primeiros filmes de Hollywood. A este filme seguiram-se, ainda nos anos 50/60, O Cavaleiro Mascarado (Henrique Pereira, 1954); Segredo de Um Coração Culpado (Henrique Pereira 1955); Força de Cobiça (Chiquinho de Nhô Djunga) e Chang Terror de Mindelo (Chiquinho de Nhô Djunga), cujas datações precisas não é conhecida. O que veio a suceder-se, depois de uma longa elipse na rarefeita cinematografia cabo-verdiana, foi a tímida incursão nos domínios da adaptação de obras literárias de autores cabo-verdianos. Esta divida para com os primeiros aventureiros do imaginário das ilhas irá marcar a produção mais actual de filmes em Cabo Verde: Os Flagelados de Vento Leste (António Faria 1988); Ilhéu de Contenda (Leão Lopes 1995); Testamento do Sr. Napumoceno da Silva (Francisco Manso 1997); A Ilha dos Escravos (Francisco Manso 2006); todos, adaptações de argumentos originais de escritores cabo-verdianos nomeadamente Germano Almeida, Manuel Lopes ou Evaristo de Almeida. Uma das poucas aventuras em recriar o quotidiano do homem cabo-verdiano em guião original está no filme Fintar Destino (Fernando Vendrell 1998), um olhar saudosista que impressiona pela caracterização do personagem principal e pela reprodução de uma vivência mindelense muito próxima daquela que estamos, realmente, habituados a viver. Nesta obra a juventude cabo-verdiana mereceu, em parte, um tratamento mais honesto e em conformidade com o seu real desejo de auto-expressão (o amor sensual e as discotecas). Apesar de haver ainda uma certa visão paternalista na abordagem à realidade cabo-verdiana, herdada de um passado colonial congratula-se com este olhar mais condescendente para com a nossa juventude, sempre que ela aparece, nas condições de uma produção cinematográfica de grande orçamento. A rodagem de Futcéra – A menina dos olhos grandes (Alexis Tsafas e Fonseca Soares 2010) em S. Vicente e de Raboita de Rubon Manel (Carlos Freitas 2010), no Tarrafal, na jovem produção audiovisual e cinematográfica veio equacionar novamente o problema da representação de um imaginário cabo-verdiano num quadro histórico determinado. Carlos Freitas é um dos poucos realizadores naturais de Cabo Verde, com apetência natural para o género ficção, se levarmos em conta o seu anterior trabalho para a televisão A Caderneta (Carlos Freitas 2007), adaptado de um conto do claridoso Baltasar Lopes: uma câmara subjectiva que põe no mesmo ponto de vista o espectador e o doutor para quem a protagonista fala - um recurso estilístico que aparecera pela primeira vez em Lady in the Lake (Robert Montgomery 1946). O filme Futcéra – A menina dos olhos grandes (Alexis Tsafas e Fonseca Soares 2010) está baseado num conto tradicional original da ilha de

Santo Antão intitulada “A Feiticeira e a pombinha”. Esta produção é exemplo paradigmático na pesquisa de um certo imaginário cabo-verdiano que, enquanto corrente filosófica, está na literatura, duramente trabalhada pelos claridosos e pos-claridosos. Filmar uma obra literária adaptada poderia reforçar o seu imaginário na memória de quem conhece a obra ou despertar uma nova realidade no seio de um grupo que nunca o leu, e essa responsabilidade é sempre a do cineasta. Não raras vezes, a hegemonia da técnica sobrepõe-se, porém, a esse labor imperioso de se construir um imaginário, de desbravar terreno para um imaginário incerto. É que estamos mais preocupados em passar rapidamente ao rol de imagens possíveis de se fazer do que em preparar uma longa travessia pelo nosso imaginário até retirar dela uma poética. Da literatura provem-nos, de facto, uma dimensão do nosso imaginário naturalmente associado aos Claridosos que assentaram as bases sociológicas e antropológicas da caboverdianidade. Depois de séculos sob a «sombra» literária-ontológica-socializante do colonialismo português emerge o homem cabo-verdiano na sua insigne figura destacando-se do fundo politico-social que lhe é demarcado do ultramar. Essa figura é a dos próprios claridosos, na sua atitude e no seu modo de escrita, mais visível na adopção que se fez do crioulo como possibilidade poética e existencialista. Muito do que se produz e se produziu na literatura cabo-verdiana (claridosa e pos-claridosa) contem em si uma técnica de conversação que parece ter sido retirada dos longos serões de figuras eminentes da cena social cabo-verdiana. É o caso de Sereneta sem Luar (Jean Gomes, 1987), Ilhéu de Contenda (Leão Lopes 1995) ou, também Cabo Verde Nha Cretchéu (Ana Lisboa Ramos, 2007). Na nossa cultura adoptou-se esse universo representacional do quotidiano e da vizinhança, essa espécie de falar manso, despreocupado e com tendência para a evasão. Toda a literatura cabo-verdiana, desde os claridosos, encontra-se impregnada dessa veia conversacional. Um fenómeno idêntico a esse período áureo da caboverdeanidade (que despontava em Eugenio Tavares) está ainda por nascer na ficção cinematográfica, tanto a nível das adaptações como a nível das criações originais. Assinalase, por ultimo, uma outra movimentação a nível das co-produções no âmbito lusófono que, em vez do assunto, toma as ilhas como cenários especiais para argumentos originais e propostas estéticas novas como é o caso de A Casa da Lava (Pedro Costa 1994) ou os casos particulares de Nha Fala (Flora Gomes 2002) e Kontinuason (Oscar Martinez 2009). Do conjunto desse cinema pós-colonial, destacarei aqui dois (2) casos paradigmáticos actuais:

a) Tarrafal: Um Campo em Morte Lenta (João Paradela 2009)

O que aconteceu na noite da apresentação desta obra parece ter sido fruto de uma longa preparação política para uma mudança histórica ou acto inigualável a nível nacional. A forma como tudo foi cronometrado, o público presente, o facto de ter sido no Cinema do Plateau recém-aberto fez dessa exibição algo mais do que a exibição de um simples documentário. De facto, tratou-se de um acontecimento político a um nível que só os que conviveram de muito perto com a realidade surgida no meio audiovisual cabo-verdiano, conseguiriam compreender. O filme em si, pertencente ao género Documentário de Criação, retrata as memórias da prisão de Tarrafal com imagens de belo recorte num tempo cinematográfico próximo daquele que preenche os filmes de cineastas orientais como o clássico Ozu ou o contemporâneo Kim Ki Duk. Os poemas escritos e lidos por Mário Fonseca deram a carga poética às imagens plasmadas do realizador João Paradela. Pela primeira vez se viu na produção audiovisual nacional que o tempo pode ser uma entidade autónoma tornando-se numa personagem abstracta. Um tempo que transborda para lá dos limites da história narrada e intuída nas paredes daquela prisão, para abraçar uma comunidade local de Chão Bom na qual despontam imagens de crianças e mulheres do campo. Um tempo moroso, talvez demasiado moroso para o ritmo imposto ao telespectador desde o início. Naquelas imagens havia algo de mais imperioso e obsessivo que desafia a nossa persistência retiniana e a nossa quebra psicológica. A música de Mário Lúcio completa, é bom dizê-lo, um quadro de colaborações de forte carga emotiva e melódica.

b) Eden (Daniel Blaufukus 2011): requiem para um sonho esquecido «Eden», de Daniel Blaufukus, explora a perda original. Visualmente forte, é um filme sobre a memória da memória. Na verdade há duas memórias neste singelo documentário: a dos intervenientes que estão nele (Daniel Mascarenhas, Manuel Figueira, Spencer) e a da própria matéria do filme. É, também, um longo requiem, para os sonhos do cinema vividos no Cinema Eden Park, soberbamente filmada, com um climax «ficcional», na penúltima cena, interpretada por Malaquias*, com o seu violino solitário e translúcido, a preencher o espaço arruinado e vazio em que se transformou o local. Resta a música para resgatar a memória do cinema cabo-verdiano e isso nota-se nas cenas em que alguns intervenientes, tendo já esquecido algumas cenas de um filme, cantarolam uma canção que o representou. O realizador erigiu, de forma esclarecida e tranquila, um monumento ao cinema e encerrou um capítulo na história do "cinema cabo-verdiano". Mais do que as peripécias de um filme - «O Segredo de um Coração Culpado» (Henrique Pereira 1955) - que, talvez, tenha ficado retido nas alfandegas de Dakar e, posteriormente, destruído - quis o realizador focar-se nas

possibilidades de concluir esse esforço do "cinema", que outrora se queria fazer em Mindelo ou, provavelmente, recriá-lo nas suas parcelas. Um processo equivalente à da mumificação de um «corpo» de memórias, demasiado valioso, num ritual envolvendo a plateia e o filme. 1.2.

O Novo Cinema (Digital) Cabo-verdiano

Na nova vaga de cinema produzido com câmaras e suportes digitais registamos uma ruptura com a mentalidade pós-colonialista anteriormente descrito e a consequente emergência de tendências diversas na abordagem narrativa ao complexo histórico, social e cultural cabo-verdiano, nomeadamente, a que assistem os jovens realizadores de documentário de criação; os grupos produtores do teatro filmado e editado em DVD; a de uma certa vanguarda vídeo experimentalista; e, finalmente, a emergência dos criadores de curta-metragem de ficção. Nos breves subcapítulos que se seguem expomos os seus protagonistas e as suas movimentações. a) A maturidade do género documentário O género cinematográfico que se convencionou designar de documentário de criação, enquanto capacidade de expressão e de linguagem, só muito recentemente passou a ser conhecido do público cabo-verdiano, apesar de já ter atingido a sua maturidade nas práticas cinematográficas nacionais e na diáspora. Inclusive nos círculos intelectuais mais cultos, só nos últimos três anos se deu conta da existência desse novíssimo género cinematográfico, muito por influência da realizadora portuguesa Catarina Alves Costa com os seus filmes Mais Alma (Catarina Alves Costa 2002), sobre o músico santiaguense Orlando Pantera; e O Arquiteto e a Cidade Velha (Catarina Alves Costa 2003). Este género aparece, posteriormente, em produtos audiovisuais como: Batuque: A Alma de um Povo (Júlio Silvão 2005); O Percurso do Outro (Guenny Pires 2008); A Funny Kind of Porto Rican (Claire Andrade Watkins 2009); S.Tomé - Os Últimos Contratados (Leão Lopes 2010); Mindelo Traz d’Horizonte (2008) que nos dá a ver a vida e cultura contemporânea mindelense; O Candidato (Paulo Cabral 2013), filme político, recentemente exibido no Festin; entre outros trabalhos. De ressalvar que o primeiro sinal de que algo estaria a mudar na percepção que os realizadores nacionais têm do cinema e audiovisual desponta n’ O Percurso do Outro (Guenny Pires 2008), filme no qual se viu uma mudança de perspectiva na forma como se estruturou os assuntos nela retratados. Destaque também para a forma como se produziu o referido documentário Batuque A Alma de um Povo (Julio Silvão 2005). É de realçar, aqui, o papel da produtora LX Filmes de Luis Correia neste processo, um dos responsáveis directos do programa de formação Africa DOC, que introduziu no seio dos

realizadores cabo-verdianos uma mudança de perspectiva na forma como olhamos para os documentários: planos longos, narração off que foge aos cânones da simples reportagem. Do conjunto dos documentários produzidos por realizadores cabo-verdianos destaca-se Contrato (Guenny Pires 2010) pela sua maturidade e pelo facto de ter sido melhor premiado pela crítica internacional concretamente, nos EUA, por ocasião do 12,º Roxbury International Film Festival (RIFF.). Se o documentário S.Tomé: Os Ultimos Contratados (Leão Lopes 2010) nos apresenta os cânones do género documentário de criação, este filme, com o mesmo tema, traz-nos os novos ventos do activismo político-social introduzido por nomes internacionais como Michael Moore. Não basta fazermos uma obra de carácter documental e artístico é preciso intervir na realidade ao ponto de alterá-la. A entrevista cedida por Noam Chomsky, no filme, constituiu uma bela surpresa e atribuiu a este trabalho a autoridade necessária para se lançar em voos mais arrojados de análise histórica de um problema crucial em África, e, neste caso particular de S.Tomé, ou seja, a ideia chomskyana de que ao corromper activamente os poderes politico-militares em África as nações poderosas condenam, automaticamente, as crianças e os velhos. Para compreender esta obra de Guenny Pires, há que recordar a sua primeira obra «O Percurso do Outro», que explora também o périplo do autor / realizador em busca do sentir cabo-verdiano que está presente nele e nos outros, ate obter daí a imagem insigne do homem das ilhas. Esse percurso continuou, agora, na direcção de S.Tomé e Príncipe onde o realizador reencontra o tio que já não via há muito tempo, e acerca de quem já se tinha perdido a esperança de que estivesse vivo, ainda, nas roças daquela ilha famigerada que tantos dramas encerra na história do povo cabo-verdiano. Trata-se de um percurso coerente do realizador. O reencontro entre ele e o tio desavindo (um dos momentos mais pungentes e catárticos desta narrativa documental) consuma um dos grandes propósitos da escrita narrativa contemporânea chamado cine-verité: o mais importante é a história particular das pessoas que a protagonizam, mais do que a representação dos factos, acontecimentos ou processos. Não é inocente o facto de dois melhores documentários produzidos em 2009-2010 serem precisamente sobre a questão dos contratados para o trabalho nas roças de S.Tomé, que por lá ficaram. O drama da emigração para aquelas ilhas é, seguramente, a mais traumática para a história de Cabo Verde, tendo afectado todas as gerações de cabo-verdianos. É difícil encontrar alguém que não tenha um familiar perdido naquelas roças de cacau, nos tempos em que os contratos de trabalho eram realizados com burlas e com omissões de factos. Isso constitui uma reserva de dramas e tragédias facilmente explorável para os cineastas que quiserem se aventurar nela.

b) Do teatro filmado ao cinema reinventado pelo teatro Nos finais dos anos 80 e década de 90, uma larga fasquia da produção audiovisual, desde as primeiras horas do vídeo e da televisão cabo-verdianas limitavam-se a pequenos concertos musicais e teatros filmados. A Juventude em Marcha sobreviveu às gerações de grupos teatrais e ganhou espaço numa área de negociação com a linguagem audiovisual originando o teatro filmado, como se de um género autónomo se tratasse. Na actualidade, o grupo teatral “Fladu Flá” de Sabino Baessa e «Tikai» de João Pereira tem sido o principal impulsionador do género. Basicamente o que os criadores fazem é encenar, teatralmente, as acções sem se preocuparem com a continuidade material e dinâmica das acções (caras ao cinema) dando mais atenção às caracterizações e ao texto dramático. Assistimos, no mês de Março e Abril de 2010, a um recrudescer do teatro como género, com a entrada em cena de um novo grupo Otaca, todos eles com gags fortes sobre a condição do homem cabo-verdiano na sua labuta por outras paragens e na sua luta diária com as intempéries de um país transformado por dentro. Todavia, se é nos palcos e auditórios que o teatro triunfa assistira-se, na recta final do ano 2009, a um trabalho que desafiou as convenções do género: João Branco apresentava “No Inferno” com uma banda sonora pungentemente cinematográfica de Caplan Neves num registo raro de junção de aparato teatral (encenação, cenografia e figurinos) com a “vontade” de cinema, qualificando assim o melhor meio artístico cabo-verdiano com aquilo que gostaríamos de ver e ouvir em imagens montadas num ecrã. Uma reinvenção do cinema, pelo teatro, no mais secreto dos pactos entre géneros primos.

c) Uma vanguarda vídeo em construção Em Cabo Verde registamos uma longa elipse no processo que conduziu a práticas cinematográficas e videográficas vanguardistas. As movimentações estéticas da arte contemporânea a partir dos anos 60, só despontaram, na actualidade, com um núcleo vanguardista que se tem afastado da mainstream pela natureza do trabalho desenvolvido pelos criativos, pela novidade que ela encerra, pelo conteúdo e interesse dos mesmos. Trata-se, na verdade, de uma vanguarda descontextualizada, inspirada numa ordem que funciona algures. Uma das particularidades do meio audiovisual cabo-verdiano é que a vanguarda parece algo deslocada, pouco imbuída das especificidades que o caracterizam em outras paragens. Uma estrutura atomizada, livre na forma, no modo e no conteúdo dos trabalhos, que se estendem do puro experimentalismo, passando pela estilização dramática de marcos na história de Cabo Verde, ou pela forte carga

autobiográfica e diasporizada de consciências emergentes no seio dos emigrantes caboverdeanos. Narrativas autobiográficas, enquanto género documental, não existem no panorama audiovisual cabo-verdiano pelo menos no que diz respeito à sua instauração nos festivais e mostras de vídeos nacionais. Existe, porém, esses vídeos que são frutos da opção de certos artistas plásticos por uma nova possibilidade de expressão artística, que estão em busca de uma nova linguagem em que se possam expressar nas suas criações. Desse conjunto de trabalhos importa demarcar os trabalhos audiovisuais de Mito e de Cesar Schofield: o primeiro tem procurado desenvolver um movimento estético e político em diferentes projectos, enquanto o outro tem vindo a “instalar” uma postura singular no género, enriquecida com a pequena literatura que emerge, como complemento, dos vídeos da sua autoria. Em 2006, realizou-se um projecto designado Meta-Fora, promovido por Francisco Weil, brasileiro que se dedicou durante uma temporada em Cabo Verde a promover actividades ligadas ao cinema e documentário, tendo reunido um colectivo de artistas e activistas culturais nacionais á volta das possibilidades de se fazer um cinema autóctone em Cabo Verde. A Fundação Amílcar Cabral, que veio a ocupar uma lacuna deixada por Kafuka Cine Club (que falhara redondamente, enquanto tentativa de implantação de um cine-clube no país), organizou uma Mostra de Vídeo, em Julho de 2009, dando a ver essa nova expressão artística – a vídeo instalação - denominada Utopia (César Schofield 2009) um trabalho pessoal do realizador sobre a independência de Cabo Verde. Ao mesmo tempo que procurava dar expressão a esses autores a FAC promoveu, nessa altura, debates submetidos ao visionamento de material inédito, contemporâneo e de carácter social – uma bela demonstração de construtivismo á volta de valores partilhados pelas mais variadas sensibilidades.

d) A novidade das curtas-metragens de ficção: o cinema “tout court” Uma das novidades dos últimos certames tem sido a presença, em mostras e festivais, das curtasmetragens enquanto modo de expressão critica e ontológico face ao mundo. As curtas-metragens têm constituído, a nível internacional, nas ultimas décadas, uma possibilidade expressiva com características especificas que a distinguem das longas-metragens. A economia de sentido que lhe está associada impele-o para a busca de novos ângulos de abordagem em relação a um mesmo

problema, sem ser a mera preocupação em contar uma estória. Uma curta pode ir de 5 a 55 minutos e não será pela duração que ganha a sua especificidade mas pela capacidade de síntese e de exegese que ela alberga. Uma simples cena no interior de uma casa pode ser altamente gratificante enquanto cinema se ao espaço juntarmos a tensão que o tempo provoca e o insólito. Nada é mais certo do que isso numa curta-metragem: buscar o insólito e representá-la mas o desejo de encena-lo não deve, em princípio, sobrepor-se às contingências da produção. O cineasta só deverá contar consigo próprio, no que toca às ideias, à operacionalidade da câmara e do material áudio porque cada um desses elementos é um elemento estilístico na abordagem que se faz a uma matéria. Uma curta-metragem, sobretudo no género ficção, é a única via para o cineasta que pensa realmente trilhar os caminhos da ficção cinematográfica, tout court. É provavelmente o único género cinematográfico através do qual se deve olhar fundamentalmente para a questão da autoria (como ela é entendida na literatura). É o caso de Ulime (Tambla Almeida 2009) que se apoia num registo mais autóctone sobre a questão da seca que assola as ilhas e o destino dos homens, radicando-a, consciente ou inconscientemente, numa figura mitológica; e o suspense/thriller A Rapariga (Mário V. Almeida 2013), uma curta-metragem ficção produzida, este ano, em homenagem a Alfred Hitchcock. Ambos os realizadores encetaram, cada um á sua maneira, uma busca pessoal de novos caminhos para o cinema cabo-verdiano.

2. AS PUBLICAÇÕES, A CRÍTICA, E A LEI 2.1.

A publicação especializada sobre cinema e a prática de um cinema crítico

Urge, quanto a nós, na contemporaneidade, a criação de uma revista de crítica especializada (científica, artística e profissional) sobre o cinema. Desde a vaga da emergência do vídeo nos anos 60/70, nomeadamente com o grupo nova-iorquino Raindance que a preocupação com a crítica e os conteúdos de uma cultura audiovisual e cinematográfica se impôs sob o formato de uma revista de crítica e análise sistemática, numa longa tradição iniciada pelos Cahiers du Cinema, da Nouvelle Vague francesa, na qual se pôde estruturar as ideias e as linhas de força de um programa artístico e ideológico para todo um movimento. Em relação a este aspecto sistemático há, também, um vazio, não existindo, de momento, nenhuma revista ou publicação periódica artística, científica ou profissional sobre as práticas audiovisuais em Cabo Verde. O que tem havido, para além de inúmeros artigos esporádicos em jornais, revistas, suplementos culturais, internet, é alguma prática

de jornalismo cultural sobre o cinema, bem como alguns “textos substanciais”, neste novo percurso do intelectual cabo-verdiano, no quadro da literatura científica sobre a comunicação audiovisual em Cabo Verde, como por exemplo, a secção “O Audiovisual em Cabo Verde, 30 anos de percurso” de Jorge Soares Silva (2005), publicado, em 2005, pelo Ministério da Cultura, por ocasião da comemoração dos 30 anos da cultura, no qual, já se pressentia uma preocupação, do autor, para com os destinos desta área da actividade artística devido ao facto inexplicável da extinção do Instituto Cabo-verdiano de Cinema, em 1977, que representa, obviamente, um vazio no campo do cinema e audiovisual cabo-verdiano. Numa das singelas passagens desta obra Jorge Soares Silva chega a clamar, em jeito de premonição: “Para que haja produção cinematográfica, é necessário haver equipas que produzam desde vestuário até cenários, desde carpintaria até decoração. Será necessário dar início a acções de formação nas diversas áreas, ligadas, directa ou indirectamente, à actividade produtiva do audiovisual.” (Silva, 2005:337)

Existem outras referências não menos substanciais em termos de análise e crítica em matéria de cinema e de comunicação audiovisual, em geral, nomeadamente: a “Evolução do sector cinematográfico em Cabo Verde (1999-2004)”, artigo de José Maria Barreto; “O Cinema e os seus valores em Cabo Verde”, de Alberto Rui Machado, publicado nos Cadernos dos 1.ºs Encontros Internacionais de Cinema em Cabo Verde; “A influência da televisão nos hábitos culturais”, uma tese de mestrado da Samira Furtado que se traduziu num artigo científico publicado a revista “Contacto” (n.º 1, 2.ª Série), de 2012, pela Universidade Jean Piaget de Cabo Verde; “Conteúdos Programáticos Culturais na Televisão de Cabo Verde” (idem Revista “Contacto” de 2012) e “Cultura Audiovisual em Cabo Verde”, publicado pela SOCA, em 2010, ambos de Mário Vaz Almeida; sendo este ultimo um ensaio que se caracteriza como uma abordagem crítica da experiencia videográfica nacional acoplado, ostensivamente, ao cenário internacional dos acontecimentos ocorridos no campo audiovisual. Quanto à prática de um cinema crítico ela deveria, necessariamente, traduzir-se na capacidade para questionar a comunicação audiovisual, no seu todo, mas também, os poderes, a prática da significação simbólica e deve, sobretudo, estar imbuído de uma certa “desconfiança” em relação ao pequeno ecrã. A tese de Lipovetski e Serroy nos ajuda a compreender este fenómeno: estes autores atestam essa espécie de «desconfiança» com o progressivo afastamento dos documentários em

relação à televisão, enquanto poder centralizador, ao mesmo tempo que se procuram novos espaços de mediação como as salas de cinema e auditórios de palestras. Esse afastamento é-o, também, em relação ao formato de relato-padrão das televisões, em geral, e a recusa em ceder perante isso, para se poder ter acesso a verdade interrogando a realidade por todos os meios - som, imagem e montagem. Discorrendo sobre este novo fenómeno comunicativo de carácter social e político que apelidam de «neo-documentário» os autores tecem a seguinte consideração: “[o neo-documentário] oferece ao seu público uma satisfação particular: a desmistificação, a denúncia das mentiras, o prazer de sair da caverna das ilusões. Preenche a necessidade do indivíduo contemporâneo de se sentir um sujeito livre, pensante e crítico num sistema que o impele a consumir sem parar» (Lipovetski & Serroy, 2010: 141

Se essa situação de independência do espírito, exposta por estes autores é desejável, existe, todavia, um problema de outra ordem, por sinal, mais estrutural: o poder económico. Segundo Enzensberger (2003), o facto dos dispositivos de captação de som e imagem serem já acessíveis a um assalariado põe em perigo os intelectuais burgueses, ou seja, se as pessoas pudessem levar os seus meios audiovisuais aos locais de trabalho, às repartições públicas ou às escolas, destruiriam «a forma particular de produção de intelectuais burgueses» (Enzensberger, 2003). Isto porque, segundo o autor, o visionamento das matérias audiovisuais, imbuídos de uma «auto-exposição de fundo moral», potencia, necessariamente, uma auto-compreensão política (o que anularia a intervenção crítica burguesa). Daí, a própria sociedade burguesa se defender, em certos casos, com a justificativa de sigilo comercial e institucional. Nesta mesma ordem de ideias, a vaga de vídeos amadores, da comunidade hip hop de rappers caboverdeanos, sobre os problemas sociais no país ou algum potencial vídeo artesanal sobre a vaga de trabalho infantil nas grandes superfícies comerciais de Calú & Ângela, só é desejável desde que «permaneça socialmente e, logo, seja também esteticamente irrelevante». Quando os vídeos dessa natureza saem do isolamento e da marginalidade é para integrar a lógica intelectual socialista, como as sucessivas palestras com visionamentos audiovisuais nas universidades do nosso país, ou para integrar o aparelho tecnológico burguês como o mais recente concurso-campanha “Faz um filme cool por 500.000 escudos” da Cavibel, cujos executivos e investidores convidaram os jovens a fazer um filme do seu refrigerante «Kul» com direito a um prémio considerável. Esse tipo de fenómenos ocorre, não raras vezes, e traz sempre uma sequela: a consequente perda da capacidade crítica dos autores das obras.

Os últimos documentários de grande fôlego dos realizadores cabo-verdianos não trazem nenhuma reflexão crítica sobre a realidade económica, social e política do nosso país. Todos eles se concentraram, sintomaticamente, sobre um mesmo assunto: os cabo-verdianos que foram levados, em regime de contratos burlados, param as roças de S.Tomé e Príncipe e que por lá ficaram. Cada um, a seu modo, averbou um determinado aspecto desse drama longínquo com repercussões no presente do homem cabo-verdiano colocando-se quando muito, a si próprios, no drama (caso de Guenny Pires e o seu prestimoso «Contrato»), mas nenhum deles se referiu ostensivamente ao alcance social e político desse drama na sociedade santomense (que é onde eles vivem) tendo um desse documentários soçobrado, penosamente, no aspecto tragicómico desse fenómeno histórico. Nenhum deles, uma vez estando lá com todo o equipamento, sondou as consequências actuais do drama na sociedade santomense e as políticas sociais do governo de S.Tomé para essas pessoas, que devem ser já considerados como problemas daquele país. Se são uns desavindos, nenhum se referiu directamente aos culpados (se os há, de facto) desta fatalidade na história. Seja como for, é lá que todas essas pessoas vivem presentemente e teremos que deixar se ser saudosistas politicamente engajados de um drama longínquo e passarmos a ser mais críticos nesse drama que é uma questão planetária – o das migrações, fronteiras e transfronteiras. 2.2.

A premência de uma Lei para o Cinema e Audiovisual

A Associação de Cinema e Audiovisual de Cabo Verde (ACACV), criada a 31 de Março de 2012 (ver. Boletim Oficial da sua oficialização em Anexos), data da sua assembleia constituinte realizada no Convento da Cidade Velha, veio colmatar uma das lacunas que o meio audiovisual detinha. De acordo com os seus estatutos, trata-se de uma associação sem fins lucrativos, que está engajada na promoção do cinema e audiovisual cabo-verdiano e na implementação de acções em prol do desenvolvimento deste sector. A criação desta nova entidade cultural é o culminar do esforço continuado de uma equipe de realizadores, produtores, criativos multimédia, guionistas e cinéfilos que labutam na área do audiovisual e cinema na cidade da Praia. Desde logo, um dos maiores desafios que se coloca a Associação é o envolvimento de outras entidades que partilham da mesma paixão pelo cinema e audiovisual, nomeadamente, a DN Artes - Núcleo Cinemidia que implementa o programa cultural denominado “Cultura Móvel” em prol do cinema e vídeo; o Festival «Fáxi Fáxi», inspirado no conhecido Festival «Fast Forward»; e o Festival Internacional de Filmes da Ilha do Sal.

Mas convém perguntar: o que é que a associação recém-criada encontra pela frente a nível das instituições, da Lei e da regulamentação do sector? Nada: nem Lei, nem instituição. Assim, a questão que se coloca aqui é outra: como garantir a legitimação e sustentabilidade desta área de produção de saber e de prática artística de uma arte que tem, já, os seus actores activos? É que nenhuma acção de activismo e prática profissional e cultural, em audiovisual e cinema encontrará eco sem um quadro legal e normativo que deverá instituir, para a posteridade, nomeadamente: os serviços e organismos do sector, que deverão estar sob a tutela do Ministério da Cultura; o ensino artístico e formação profissional nesse domínio; a normativa de registo de empresas cinematográficas e de produtos audiovisuais; o modelo de financiamento para um fundo de Investimento; as modalidades de contribuição e de contratos de investimento, entre outras medidas. O Governo deverá partir do princípio de que existe uma cultura audiovisual activa que expressa a realidade cabo-verdiana em termos artísticos, científicos e jornalísticos, e deve erigir essa regulamentação na linha da Convenção da UNESCO para a Protecção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (aprovada em Outubro de 2005). Um conjunto de acções que se pode, como em outras paragens, concentrar num único organismo, regra geral, em moldes de Instituto de Cinema e/ou Audiovisual e/ou Multimedia. Porém, houve, nos anos 80, um Instituto Cabo-verdiano de Cinema que chegou assinar um acordo com a sua congénere em Portugal de cuja cooperação resultou o filme Os Flagelados do Vento Leste (António Faria 1988), mas esta instituição criada por decreto-Lei está extinta, na actualidade. Nunca mais se retomou o ímpeto inicial apesar dos esforços da sua retoma nos anos 90. Neste momento, em Cabo Verde, a única acção que privilegia, quase em exclusivo, este sector tem o selo da cooperação portuguesa e aparece com o programa internacional ACP Cultures+ que surge numa fase em que o Programa DOC TV

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Implementado pelo Secretariado Executivo da CPLP, está

atravancado. Pensamos, pois, que, em última instância, a situação é mais agravosa do que pode parecer á primeira abordagem, isto é, o que provavelmente, estará subjacente a essa demora e atraso na aprovação de uma Lei de incentivos para o sector do cinema, é o que, na acepção habermasiana, se denomina «neutralidade ético-política», uma espécie de ordem jurídica estatal que se abstêm de se pronunciar sobre novas formas culturais que se afastem da «nação cultural»; uma matéria, aliás, exaustivamente abordada por Habermas (2004) que nos dá a reflectir o seguinte: “Já que questões ético-políticas são um componente inevitável da política e já que as respectivas regulamentações dão expressão à identidade colectiva da nação de

cidadãos de estado, é muito plausível que a partir delas se desencadeiem batalhas culturais nas quais minorias desprezadas passem a defender-se contra a cultura majoritária e insensível.” (Habermas, 2004:254)

Uma batalha que, adianta Habermas (2004), normalmente, só se efectiva com a «inevitável impregnação ética» daquilo que deve, antes de mais, ser considerado como «processo democrático de efectivação dos direitos fundamentais». Habermas exemplifica esta situação com as garantias constitucionais de que gozavam as Igrejas Cristãs na República Federal Alemanha – apesar da liberdade religiosa assente nessa mesma constituição - e com o status especial que a Constituição alemã concede à família, opondo-se ou negligenciando outras parcerias similares ao casamento. Trata-se, em última instância, da questão da identidade colectiva, de uma «nação cultural», que se estrutura a partir de formas culturais de vida; mesmo que essa identidade já esteja se readaptando aos novos tempos, ou como diz o próprio, «já tenham se afastado das tradições da sua origem» (Habermas, 2004:256). Cabo verde é um país cuja identidade tem sido fundamentalmente, parafraseando o historiador cabo-verdiano António Correia e Silva, uma «identidade musicada» e por outro lado é muito pouco marcada pelas suas próprias representações imagéticas. Basta dizer que toda a aposta cultural do Governo e do Ministério da Cultura vai para esse sector como já se deu a entender e, facto inelutável, o maior partido na oposição tomou como palavra de ordem para toda a sua candidatura o lema «Cabo Verde é Música». Nesta perspectiva, chegou-se, praticamente, a uma situação em que os cineastas e cinéfilos são conotados, basicamente, como «minorias culturais». Porém, mais do que a simples questão da identidade cultural importa saber qual é a narrativa cultural que o país quer passar, para além da sua música. Num capítulo nevrálgico da sua obra, Hall (2006: 52-56) discorrendo sobre a questão da identidade cultural, no contexto da pós-modernidade, num capítulo dedicado as culturas nacionais como comunidades imaginadas, identifica cinco (5) grandes narrativas culturais: em primeiro lugar, a narrativa da nação, ou seja, aquilo que diz a história e literatura nacional, tal como a história da independência nacional e do dealbar da democracia; em segundo lugar, a narrativa que assenta as suas bases na tradição e intemporalidade e no incessantemente vivido, como aquelas pequenas coisas que nos tornam efectivamente crioulos cabo-verdianos (e não europeu ou africano): em terceiro lugar, as narrativas baseadas nas ritualizações e tradições inventadas como a banderona ou tabanka; em quarto lugar, a do mito fundacional, isto é, uma narrativa que aponta para as origens da nação, como o mito das Hespérides; por último, a narrativa cultural que reivindica a pureza e originalidade do folclore nacional sem paralelo em outras paragens, como a

nossa morna, por exemplo. Nesta perspectiva, o discurso do cinema aparece como a modernidade que confronta as referidas narrativas e que surge do impacto da última fase da globalização sobre as identidades nacionais. Segundo Hall (2006) uma das características dessa modernidade é a «compressão espaço-tempo» que constitui «a aceleração dos processos globais, de forma que se sente que o mundo é menor e as distâncias mais curtas, que os eventos em um determinado lugar têm um impacto imediato sobre as pessoas e lugares situados a uma grande distância» (Hall, 2006:69). Os sistemas de representação que surgem no seio dessa modernidade constituem, para o autor, o ónus da questão, uma vez que a sua configuração e reconfiguração «têm efeitos profundos sobre a forma como as identidades são localizadas e representadas». Esta formulação, quanto a nós, revela precisamente as qualidades transformadoras do cinema que não devem ser descuradas. A associação, recentemente criada, no quadro do seu activismo cultural, deveria, agora questionar: esperamos por num novo estádio de desenvolvimento do país ou devemos, antes, avançar com as reivindicações e pressionar o governo com uma proposta de lei para o cinema e audiovisual? 3. CONCLUSÃO Podemos afirmar, conclusivamente, que, em Cabo Verde, a literatura, a música, as artes plásticas e, muito recentemente, o artesanato («formas culturais de vida» na acepção habermasiana ou a narrativa cultural dominante na acepção de Hall), têm tido um enfoque diferente do Governo, contrariamente à 7.ª Arte, que tem sofrido uma espécie de “descriminação positiva”. Acresce a isso, o facto dos intelectuais deste país serem indiferentes a esta nova prática intelectual, a este novo pensamento que se estrutura desde a imagem, sua linguagem e os seus arquétipos para uma abordagem legítima ao campo político, social, artístico e ideológico; e cujos processos de produção e estratégias narrativas já integram os programas de cursos de cinema e documentário das universidades europeias e americanas, desde os anos 60. Os políticos, nas suas actividades partidárias e ideológicas, só conhecem o cinema e audiovisual enquanto mass media que pode e deve ser instrumentalizada e performatizada para servir os interesses da classe. Daí a aprovar-se uma Lei para o sector em causa, convenhamos que a procissão ainda vai no adro. Os artistas cabo-verdianos, em geral, conhecem o cinema, mas desconhecem, por exemplo, o papel e o alcance dos documentários enquanto exegese do mundo e, se ouviram alguma vez o termo cine verité, associam-no, vagamente, a um género cinematográfico que está muito longe de constituir-se como arte, no entendimento que têm do termo. Acresce a isso o facto da maioria dos realizadores optarem, de modo sensato, pelo documentário, prescindindo do risco de uma vã tentativa em

quebrar uma longa barreira psicossocial de um largo espectro social que insiste em olhar para o cinema como mero e supérfluo entretenimento. Paralelamente ao imaginário claridoso/pós-claridoso, colonial/pos-colonial, existe esse outro imaginário que tende a sair das vivências quotidianas da camada jovem, plena de ritmo, estilos diferenciados e hibridismo cultural, em ruptura com a anterior, e que não tem, ainda, plena expressão no contexto de criação ficcional e cinematográfica nacional. Tornou-se, nesta altura, necessário restituir à ficção o seu papel de construtor de realidades, e ao activismo artístico e cultural o seu verdadeiro espaço, face à uma cultura televisiva com tendência para a hipocrisia e o grotesco.

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