O Cinema da Classe Média

July 17, 2017 | Autor: Rodrigo Bouillet | Categoria: Cinema
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Bernardet em Tempo de Brasil Em 1959, Alex Viany foi responsável pelo inaugural estudo sobre a história do cinema brasileiro Introdução ao cinema brasileiro. Glauber Rocha, quatro anos depois, propôs sua Revisão crítica do cinema brasileiro. Mesmo se propondo a investigar uma suposta tradição brasileira que localizaria e estabeleceria as bases do projeto moderno cinemanovista, Revisão crítica foi escrito, sobretudo, para separar o joio do trigo (na acepção de Glauber) no novo quadro que se estabelecera no cinema brasileiro e, assim, fazer sua defesa aos projetos dos novos cineastas (afinados às linhas propostas por ele). Às vésperas do fatídico ano de 1968, Brasil em tempo de cinema veio para analisar estética e historicamente algumas das obras realizadas até ali que atualizaram o país cinematograficamente à vanguarda internacional, avaliar suas contribuições (e espelhamentos) aos debates sobre um projeto de Brasil. Acrescido de uma nota introdutória de Eduardo Coutinho – na realidade, um pequeno trecho de fala extraído de uma mesa redonda do festival É Tudo Verdade de 2006 que discutia a análise do documentário na obra de Jean-Cluade Bernardet –, a nova edição de Brasil em tempo de cinema conserva, sem alterações, todos os textos publicados conforme o original de 1967. Tal opção, mais do marcar a vontade de reproduzir o impacto do livro à época de seu lançamento, ou ainda, para além de qualquer tipo de fetichismo, revela o frescor de sua pertinência. Faziam-se cinco anos da estréia de Cinco vezes favela (Dir.: Marcos Farias, Miguel Borges, Carlos Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman), filme-símbolo cinemanovista, bem como do também celebrado documentário Garrincha, alegria do povo (Dir.: Joaquim Pedro de Andrade). Ignorando maiores rusgas estéticas dentro do seleto grupo ou questões geracionais, o ano de 1962 ainda teve Porto das Caixas (Dir.: Paulo César Saraceni), Os cafajestes (Dir.: Ruy Guerra) e Boca de Ouro (Dir.: Nelson Pereira dos Santos), fora o pouco lembrado Os mendigos (Dir.: Flávio Migliaccio). Bernardet passeia com liberdade sobre a produção brasileira de 1958 a 1966. Neste período de tempo, muitas transformações ocorreram no Brasil. No quadro político-social, a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, o golpe de 1964, e estava-se às vésperas da decretação do AI-5, em dezembro de 1968. No campo cinematográfico, temos o “fim” da chanchada. Em 1962, as empresas cariocas Atlântida Cinematográfica e Cinelândia Filmes encerram suas atividades como produtoras. A Cinedistri desistira do filão no ano anterior. Já a Herbert Richers diversifica sua carteira de filmes e passa a ter um novo entendimento sobre o gênero. Um ano depois do lançamento do livro, em 1968, se sedimentariam “movimentos” (cinema marginal e da pornochanchada) e políticas (a Embrafilme e sua estreita relação com os diretores cinemanovistas) no cinema brasileiro que foram tomando corpo ao longo daqueles anos. Brasil em tempo de cinema nunca se pretendeu uma obra definitiva, tanto que o próprio autor chama seus textos de ensaios. Como ele mesmo assinala, o número de obras que o interessava era pequeno – tanto do ponto de vista de um mercado invadido pelo produto estrangeiro quanto dentro de sua própria filmografia (o que não impediu de obscurecer a cinematografia nacional de gênero) –, o que afetava representatividade e repercussão das produções, além de haver dificuldades para acompanhar e rever os filmes. Jornal do Brasil – Caderno Idéias & Livros (21/07/2007) “O Cinema da Classe Média” (pg. 8) Texto sobre o relançamento do livro “Brasil em tempo de cinema”, de Jean-Claude Bernardet

Seja como for, o livro trata de um tipo específico de cinema realizado no Brasil, de um viés entendido como político-estético-cultural mais engajado, progressista. É quem são os responsáveis por estes filmes, por estes discursos? Conforme Bernardet, é a classe-média a condutora do movimento cultural brasileiro. O autor não estava sozinho nesse processo de revisão. Assim como ele, somente no final da década de 1960 o cinema nacional conseguiu captar de forma mais bem acabada quanto o Brasil estava efetivamente se inserindo numa sociedade de massas, de consumo, de trocas simbólicas cada vez mais rápidas. Isso vale tanto para o cinema mais politicamente engajado, como no caso de Opinião pública (Dir.: Arnaldo Jabor, 1967), como para o de interesse eminentemente comercial, tal qual Roberto Carlos em ritmo de aventura (Dir.: Roberto Farias, 1968). Bernardet, então, analisou esse cinema vindo de uma classe-média ilustrada, como ela via seus dilemas, como se apresentava e representava, ou ainda como os personagens oriundos de seu estrato ausentavam-se (ou encobriam-se) nas diversas narrativas – ocasião tão ou mais complexa do que levá-los às telas. Que processo de elaboração de uma obra que fazia um diálogo transverso era aquele: as mazelas do povo estavam a serviço de um diálogo com a classe dirigente do país, mas que desinteressava ao estrato de onde vinham os realizadores, e não chegava às grandes camadas da população – seja pelo mercado dominado pelo produto estrangeiro seja pelo alijamento político e cultural. O autor tece um filme a outro buscando compreender obras e realizadores, argüindo a todos sobre sua responsabilidade social e política no grande debate sobre o país que chega às suas salas de cinema. E, se não chegar, é mais um dado significante. Hoje em dia, há uma reedição desses problemas em outros termos. O filme nacional continua a ter seu acesso ao público dificultado por um circuito exibidor estrangulado (alguns diriam comprometido) pelo blockbuster estrangeiro – habitualmente já pago em seu mercado doméstico e disponibilizando de maior poder de fogo em sua publicidade, sendo assim, tomando espaço (literalmente) das salas nacionais sem necessidade de retorno financeiro volumoso. A precariedade do cinema brasileiro, então, revela-se na conquista de seu mercado: a incapacidade de grandes lançamentos em série, o lançamento de filmes com poucas cópias e a escassa verba para publicidade. Bernardet resgata uma fala de Humberto Mauro de 1930 para ilustrar a situação do cinema brasileiro de 1967 que pouco difere da situação descrita. Assim, os filmes da apregoada retomada continuam sendo realizados pela classemédia e encontram o mercado exibidor afunilado. No entanto, deslocaram seu eixo de interesse investindo no diálogo com camadas mais amplas da população (as quais o preço do ingresso é restritivo) só que em obras já sanadas financeiramente (via leis de incentivo) e ao sacrifício de pesquisas estéticas e abordagem conservadora dos diversos temas. Mesmo com as facilidades de produção e exibição de filmes através do barateamento dos equipamentos digitais, estes são, em sua maior parte, feitos e exibidos, pela classe-média – detentora das condições financeiras para a compra dos equipamentos. A crescente implementação de oficinas e escolas de audiovisual nas periferias é extremamente recente e ainda se encontra distante de uma expressão genuinamente sua. Seja lá o que isso possa ser (se é que um dia possa vir a existir), os professores são oriundos da classe-média, os filmes exibidos como forma de estudo são os mesmos títulos do panteão brasileiro ou estrangeiro, e os alunos estão acostumados a uma dieta a base de blockbusters estrangeiros e à televisão. Jornal do Brasil – Caderno Idéias & Livros (21/07/2007) “O Cinema da Classe Média” (pg. 8) Texto sobre o relançamento do livro “Brasil em tempo de cinema”, de Jean-Claude Bernardet

Talvez estejamos testemunhando uma aproximação estratégica de uma classe-média empobrecida a camadas populares (com melhores linhas de crédito) no intuito de encorpar sua voz e realmente garantir alguma forma de diálogo com a classe dirigente do país. Em Brasil em tempo de cinema é patente o incentivo ao debate sobre as possibilidades artísticas e propostas políticas daquele ano de 1967, a apresentação de um esboço aos que vinham filmando e aos aspirantes de como o autor compreendia aquele momento. Longe de se arrogar certezas, ele queria cultivar em outros a sua inquietação. Chamava ao debate realizadores, governo, críticos e público. E, enquanto as aspirações classe-média conduzirem o movimento cultural brasileiro, ainda estaremos todos provocados pelas palavras de Bernardet. Rodrigo Bouillet é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense; Organizador do Cineclube Tela Brasilis; Diretor Geral da Associação de Cineclubes do Rio de Janeiro (ASCINE-RJ, 2007-2009).

Jornal do Brasil – Caderno Idéias & Livros (21/07/2007) “O Cinema da Classe Média” (pg. 8) Texto sobre o relançamento do livro “Brasil em tempo de cinema”, de Jean-Claude Bernardet

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