O cinema e sus histórias na vida contemporânea

September 13, 2017 | Autor: Adriana Moellmann | Categoria: Cultural Studies, Cinema, Narratives, Fiction, Stories
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O filme é A Chegada do Trem à Estação (L'Arrivé du train à la Ciotat. França, 1896). Dir. Auguste & Louis Lumière. As primeiras projeções do filme causaram espanto na plateia, que, não acostumada ainda às imagens do cinema projetadas na tela, teriam corrido com medo de o trem sair das telas e as alcançarem.
O cinema e suas histórias na vida contemporânea
Adriana Moellmann
Universidade de Brasília – UnB, Brasil

Abstract
All the stories that we listen and see live in us .
Walter Benjamin, in his essay The Narrator, says how the experience of the teller is essential to storytelling. By this view, the narrator would be both the one that tells from his own place and the one that came back from his experiences abroad. Therefore, what is known and what is exotic are together in the different speeches of the teller.
The stories that we hear seem to originate far away, but they can actually be very close in the ways of speech, in the experience that it brings, in the own material presence of the teller. Plots that seem absurd can present themselves very near to us.
That is what happens to Roberto, the character in Sebastián Boreinzstein's movie, Chinese Take-Away. A store owner that is very disenchanted with the world, he finds himself with the help of the stories in the newspaper. While they are weird and had come from distant places, the absurdity of those strangers' lives' stories he can perceive a world that seems impossible to understand.
Impossible... until one of these stories seats at his table.
Fictional narrative, literature, distance, spaces are brought to us by the moving and sounding images of this movie. The narrative in it tells about itself. From this film and with the ideas presented by Benjamin, this work brings the importance of fictional narratives in our daily life and how we see the world.
Keywords: Cinema; narrative; experience; fiction, reality, stories.

Introdução: as histórias e seus inícios.
...a vertigem da arte – daquela que fala para todos e não inventa nada, a não ser o real.
(Luz, 2002: 76).

Toda história se inicia com um recorte no tempo, no espaço... Esse recorte marcará o seu começo para o espectador e apresentará as tramas que se desenrolaram aos nossos olhos e ouvidos. O início de uma história é a apresentação de um novo mundo, e nele entramos muitas vezes sem saber o que encontrar.
Um casal oriental se encontra em um barco, cercado de uma bela paisagem. Visivelmente apaixonados, o espectador navega com eles. A paisagem é bela; o amor dos dois é doce. O moço volta suas costas à amada e pega as alianças de casamento. Trata-se de uma surpresa. Percebemos que iremos presenciar um momento especial. Esquecidos do que nos cerca, a surpresa é grande quando, do céu, cai uma vaca no barco. Ela o parte ao meio, interrompendo a proposta de casamento.
Uma vaca que cai do céu. Oras, vacas não voam e não surgem assim, no ar. A cena é inusitada e marcaria – ênfase para o tempo do verbo – o absurdo do acontecimento. Mas o espectador pode racionalizar o que vê da seguinte forma: por se tratar de um filme, uma obra de ficção, tudo, ao contrário da chamada vida real, pode acontecer. Assim, seguimos para a próxima cena, intrigados com o início, mas não totalmente espantados. A explicação, provavelmente, acontecerá em algum momento da narrativa fílmica.
O que podemos não saber, nesse instante, é que uma vaca caiu do céu, na Rússia, e afundou um barco pesqueiro japonês. Mas os fatos ainda se seguirão. Por enquanto, estamos apenas nas primeiras cenas.
O filme é Um Conto Chinês (Un Cuento Chino. Sebastián Borensztei, 2011), uma produção argentina. Eu a assisti no escuro do cinema, numa sala localizada em Brasília, Brasil, e a cena inicial, com a vaca voadora, causou-me surpresa, espanto e riso, apesar da desconfiança de que uma tragédia havia ocorrido ali.
A narrativa segue, então, para o outro lado do mundo. A imagem inicialmente se apresenta invertida, para aos poucos se colocar corretamente diante dos nossos olhos. Após o inusitado, o diretor apresenta-nos o corriqueiro. O que nos pode ser familiar, dependendo da vida que vivemos. Muda o país, mudam as cores, aparecem outros sons. Roberto e sua rotina diária na loja de ferragens que herdou do pai. Sua casa, contígua à loja, também uma herança, traz os objetos de memória da sua família. Traz os objetos de diferentes lugares do mundo que sua mãe, já falecida, colecionava.
Roberto vive imerso em lembranças e memórias de seus ancestrais. Nem todas são objetos, no entanto.
Outra herança deixada pelo seu pai foram as narrativas presentes em artigos recortados do jornal. Em comum, esses recortem trazem o absurdo em acontecimentos distantes no espaço e na experiência. Longínquas, essas narrativas falam de um mundo que não faz sentido, em que o inesperado está distante do cotidiano e se torna, assim, matéria das histórias.
O que Roberto e nós, espectadores, não sabemos ainda é que essas histórias se encontram mais próximas da nossa vida do que realizamos.
Este artigo é uma proposta de apresentar e pensar essa proximidade, nas imagens em movimento das narrativas trazidas pelo cinema, especialmente pelo filme Um Conto Chinês.

O alfabetizado com e nas histórias
Ao entrarmos no cinema, já sabemos de início o que podemos esperar. Se o filme é uma surpresa, as circunstâncias que cercam a sua exibição não o são; não hoje. A projeção em luz e sombras ocorrerá na tela que, num primeiro momento, encontra-se em branco à nossa frente. Nela, as possibilidades são inúmeras, mas o procedimento já é conhecido. As luzes se apagam gradativamente, espectadores atrasados buscam seus lugares. Propagandas e trailers de produções futuras – muitas delas bastante esperadas pelo público – aparecem à nossa frente, e ajudam a nos ambientar na sala de cinema. Nossas costas relaxam na poltrona e ambientamos nosso corpo e atenção ao filme a que iremos assistir.
Esse ritual já é conhecido. Nós o aprendemos durante a nossa vida, nas idas ao cinema desde criança. Milton José de Almeida, em Imagens e Sons: a nova cultura oral (2004), chama a atenção para a ideia de que somos alfabetizados no audiovisual. Diferentemente dos primeiros espectadores do cinema – figurados recentemente em A Invenção de Hugo Cabret (Hugo. Martin Scorsese, 2011) -, não iremos correr do trem que se aproxima de nós na tela à frente. Sabemos da mecânica da imagem, sabemos do projetor localizado ao alto, às nossas costas. Temos conhecimento, mesmo que superficialmente, de como se desenvolve uma produção cinematográfica. Reconhecemos os autores de um filme por outras produções anteriores. O título, no início do filme, já o caracteriza como uma obra.
Somos alfabetizados também no reconhecimento de como as narrativas podem se desenvolver. Milton José de Almeida (1999) novamente nos esclarece a respeito quando se refere aos espaços de significação: entre uma cena e outra, no corte realizado no roteiro e na sala de edição, o que não se mostra na projeção é, no entanto, reconhecido pelo espectador. A dona de casa fala ao telefone e, surpresa com a notícia que recebe, pega as chaves do carro. Na próxima cena, ela está já no seu automóvel, dirigindo-se, apressada, ao seu destino. Não precisamos vê-la encaminhar-se à porta, fechá-la, descer as escadas, dirigir-se ao seu carro e dar partida para reconhecermos esse trajeto percorrido. Os espaços de significação compõem também uma narrativa fílmica – nessa composição, o reconhecimento do espectador é parte da narrativa.
Somos alfabetizados também na distinção entre ficção e realidade. Mas, desde logo, enfatizo que, nesse ponto, o nosso alfabetizado realmente se complica.
As produções cinematográficas, hoje, apresentam um determinado grau de realismo. Em Trama Internacional (Internatiional. Tom Tykwer, 2009), produção norte-americana, ouvi de um de seus personagens que "a diferença entre a ficção e a verdade é esta: a ficção precisa fazer sentido." Ficção e verdade; ficção e realidade... Qual seja a oposição, a ideia é de que a ficção encontra-se distante e fora da realidade. Em um mundo à parte, ela constrói seus sentidos em reflexo, proximidade, simulacro, cópia da realidade. Os pensamentos e teorias divergem nos nomes e representações da ficção na vida, mas se encontram quando consideradas diferentes e longínquas da chamada realidade.
A ficção precisa fazer sentido. Assim, o que chamamos hoje de narrativa tradicional constrói-se dentro de um relativo realismo, numa estrutura que possui início-desenvolvimento-fim, da mesma forma que este artigo – o qual, aliás, também precisa fazer sentido. A trama se apresenta ao espectador – seu espaço e tempo, seus personagens, seu contexto. Ela se desenvolve a partir do argumento inicial presente no roteiro. E se encerra, de acordo com a sua necessidade de fazer sentido, em uma conclusão coerente.
Há filmes que invertem essa ordem, transgredindo-a e construindo sua narrativa em espaços que contestam esse realismo. Outros filmes deixam suas conclusões em aberto, num distanciamento dessa necessidade de fazer sentido. A riqueza das produções cinematográficas se apresenta nas diferentes visões de seus realizadores, em diferentes épocas e nacionalidades. E nelas embarcamos, sentados nas nossas poltronas, diante das luzes e sombras projetadas na tela à frente.
Quero destacar, no entanto – e essa ênfase está no cerne deste trabalho –, que, independentemente das diferenças entre as produções e suas estruturas narrativas, elas trazem em si, na sua essência mesma, um elemento em comum: as histórias dizem do ser humano e a ele se dirigem. A arte é realizada pelo e para o homem, e esse elemento humano já a insere na realidade da vida. No movimento da vida, como diz Píer Paolo Pasolini. Para o cineasta e escritor, um filme se faz real ao se apresentar ao seu espectador, independente do realismo de sua trama.
Para apresentar seu pensamento, Pasolini traz o episódio da morte do presidente norte-americano John F. Kennedy em 1962 – um evento da vida que, ainda hoje, não faz sentido algum. Ele se refere a um "pequeno filme em dezesseis milímetros que um espectador, por entre a multidão, rodou sobre a morte de Kennedy. Trata-se de um plano-sequência..." (1982: 193). Ele nos propõe imaginar, em torno do acontecido, a possibilidade de um filme sobre esse episódio: ele teria de conter todos os planos-sequência possíveis, ou seja, todos os pontos de vista subjetivos presentes no momento, olhares distintos, de distintos pontos de observação, sobre um mesmo fato.
Essa junção é impossível... mas, se ocorresse, ela representaria, então, a realidade do fato ocorrido? Ou ela essa realidade já pode se apresentar para os fragmentados olhares parciais de cada observador em seu contexto de observação?
A resposta ele apresenta no que considero uma de suas maiores contribuições para o entendimento do cinema na vida contemporânea:

A partir de todos esses modos é evidente que a realidade, com todas as suas faces, se expressou: disse alguma coisa a quem estava presente (quem estava presente fazendo parte: PORQUE A REALIDADE NÃO FALA COM OUTRAS COISAS SENÃO CONSIGO PRÓPRIA). (Pasolini, 1982: 194).

Os olhares são necessariamente fragmentados. Os infinitos planos-sequência só encontrariam sua totalidade na nossa construção própria, qual seja a imaginação. Um filme é um ponto de vista fragmentado. Representa um corte na realidade; os enquadramentos apresentados numa produção cinematográfica são uma escolha e, à medida que apresentam uma inclusão, representam, também, a exclusão do que ficou fora desse enquadramento.
No entanto, essa fragmentação e parcialidade não invalidam a força da imagem. A meu ver, elas constituem parte dessa força e do alcance que as imagens possuem atualmente. Walter Benjamin sustenta, no Prólogo Epistemológico-Crítico à sua tese de Livre Docência, Origem do Drama Trágico Alemão, a força do ensaio em contraposição ao tratado na busca da verdade. Benjamin apresenta já na epígrafe:

Dado que nem no conhecimento nem na reflexão nos é possível chegar à totalidade, porque àquele falta a dimensão interior e a esta a exterior, temos necessariamente de pensar a ciência como arte, se esperarmos encontrar nela alguma espécie de totalidade. Essa totalidade não deve ser procurada no universal, no excessivo: pelo contrário, do mesmo modo que a arte se manifesta sempre como um todo em cada obra de arte particular, assim também a ciência deveria poder ser demonstrada em cada um dos objetos de que se ocupa. (Johann Wolfgang Von Goethe, Materialien zur Geschichte der Farbenlehre - Materiais para a história da teoria das cores – 2004:p. 14).

Aparece aqui, desde logo, o lugar que o fragmento ocupa em seu pensamento. E, se levarmos em contra o que nos diz Walter Benjamin neste prefácio, também poderíamos afirmar que essa fragmentação, pelo contrário, confere a essas imagens toda a sua força e possibilidade. Com ela, construímos os diferentes e diversos sentidos que a arte nos possibilita. Que as narrativas, fragmentadas em suas diversas formas, nos traz de conhecimento da vida.
Mas, por ora, o foco continua na ficção e sua presença na vida cotidiana. A realidade não se ausenta da ficção, por mais absurda que a consideremos. Pasolini também esclarece que:

(...) ainda que nós, num filme de ficção, escolhamos um ponto de vista ideal, e por isso de certo modo abstracto e não naturalista, mesmo esse ponto de vista se tornará realista, e, no limite, naturalista, no instante em que a partir dele colocamos em campo uma câmara e um magnetofone: o resultado será algo de visto e de ouvido por um sujeito em carne e osso (isto é: com olhos e ouvidos. (Idem: 193).

O ser humano, seus olhos, ouvidos, pensamentos, contexto, escolhas, expectativas são o elemento da realidade essencialmente presente nas obras de arte – aqui, mais especificamente, nas produções cinematográficas e nas narrativas de ficção.
Assim, apesar de hoje esperarmos certo realismo das histórias – novamente lembramos do alerta de que a ficção precisa fazer sentido –, já sabemos de antemão que o que se apresentará aos nossos olhos, ouvidos e imaginação não é real. O filme está distante de nós – a tela à frente, o espectador diante dela. A ficção ali, projetada na tela; a realidade aqui, sentada na cadeira.
Se a distinção pudesse se fazer assim tão clara.
A questão é que, narrativa construída e representada, suas imagens, sons, história, personagens, contextos faça a fazer parte da vida de quem a assiste. São reflexões, memórias, reconhecimentos, reações, percepções... O elemento humano, diante da materialidade de um filme produzido distante de si e já finalizado, relaciona-se com as imagens trazidas por esse filme... cria, constrói, pensa, reage, percebe e opina. A realidade do ser não deixa a obra fílmica intacta. Cada espectador cria seu próprio plano-sequência a partir dos fatos que se desenrolam diante dos seus olhos, alcançam seus ouvidos e habitam sua imaginação.
Roberto considera a realidade bastante distinta da ficção. Diferencia as narrativas que recorta dos fatos que trazem os jornais. Mas, sem que perceba como, acaba por se sentar com essas narrativas à mesa do café. Tão longe, tão perto.

Vida, a narrativa mais estranha de todas
Roberto, protagonista de Um Conto Chinês, vive em um mundo de heranças. Da mãe, que não conheceu, ele mantém a coleção de objetos de todo mundo, com que a presenteia uma vez por ano, no seu aniversário. Ele não viaja para obtê-las, no entanto. Ele encomenda esses objetos, sentado no balcão da sua loja, sem se deslocar da sua rotina. Ele não vai ao mundo; este chega até Roberto.
Do pai ele herdou do pai uma forma muito peculiar de lidar com a falta de sentido do mundo: o recorte de narrativas inusitadas que ocorreram em locais do planeta distantes de sua cotidiana Buenos Aires.
Walter Benjamin, em seu ensaio O Narrador (1985), diz do fim da narrativa. O seu contexto para essa afirmação ocorre quando do desenvolvimento técnico dos meios de comunicação, com o advento de informações mais rápidas e numerosas ao alcance de maior parte das pessoas em uma cidade. Informações instantâneas que não se constituem, no entanto, em narrativas, elas não transmitem algo essencial: a experiência.
Benjamin aponta como duas as experiências fundamentais que o narrador transmitiria nas narrativas: a vivência do viajante, que, ao sair do seu local de origem, a ele retorna rico em experiências estrangeiras e do morador que permanece e, assim, narra a experiência daquele que conhece como ninguém seu lugar. Seja a experiência do longínquo ou do próximo, ela encontra-se no cerne de uma narrativa.
A informação rápida e passageira, que se torna passado já no final do dia, não conteria a experiência do narrador. Vazia dessa experiência, ela informa, mas não narra.
Roberto, como forma de se apegar a algo que fazia sentido para ele, segue a trilha que seu pai iniciou com o primeiro recorte de jornal. Ele encomenda periódicos que diversos lugares, que também chegam até ele, no balcão de sua loja. Com a pilha de jornais acumulando-se pela casa, ele se senta, à noite, só, e passa as folhas do jornal à procura dessas pequenas narrativas longínquas, escondidas em meio às notícias. Ele as encontra, insistente; recorta e as cola em um caderno, que guarda como colecionador à espera de novo objeto de coleção. Seu ritual nos remete às palavras de Benjamin: "Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes" (1985: 203). Histórias que Roberto busca. Sua voz e as imagens que cria, a partir do que lê, nos contam de personagens com destinos inusitados.

Romance fatal: o frenesi os deixou em maus lençóis. Na periferia de Catanzaro, os moradores ainda dão rizada. Ninguém se surpreendeu com o romance que todos já conheciam, mas a surpresa veio com o fim trágico e inesperado dos amantes... (Sebastián Borensztei, 2011)

Nesse ponto, o cinema mostra sua mágica e projeta, na tela, o pensamento de Roberto: um casal namora ardentemente no carro, à beira de um abismo, numa paisagem desértica. Acidentalmente, um deles solta o freio de mão do automóvel, que cai no abismo, matando os amantes.
Apesar de um fato noticiado no jornal, essa narrativa tem, para Roberto, a característica de um conto fantasioso. Diferente das suas próprias experiências de vida, doloridas e permanentes.
Walter Benjamin, ainda em O Narrador, conta como os soldados voltavam da Primeira Guerra Mundial vazios de narrativa. Sendo a guerra uma experiência desmoralizante, os que dela retornavam não conseguiam dizer dessa experiência.

No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha, não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável. E o que se difundiu dez anos depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com uma experiência transmitida de boca em boca. Não havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela guerra de material e a experiência ética pelos governantes. (1985: 198).

Do meu lugar de origem, no meu tempo, eu não passei por nenhuma das grandes guerras. Ou sequer pelas pequenas. Elas são, para mim, matéria de estudo dos livros de história. No entanto, quando Benjamin se refere a uma "experiência desmoralizante" eu reconheço o que ele diz e compreendo o vazio das narrativas do pós-guerra. Como? De onde vem esse reconheço.
Do cinema, esse grande narrador da vida contemporânea.
Rogério Luz, em Filme e Subjetividade, refere-se ao cinema que narra a vida:

O Cinema já foi chamado de fábrica de sonhos. E não foi ele, em sua função mais espetacular e rentável, o primeiro narrador universal dos tempos modernos? Ele continua, por meio das salas, da televisão e do vídeo, a difundir toda a sorte de narrativas... (2002: 71)

Nenhuma guerra foi tão filmada e narrada como a Segunda Grande Guerra, iniciada em 1939 e declarada finda em 1945. Em produções norte-americanas que exaltam seus heróis, em filmes do surrealismo italiano, que confrontam a desmoralização humana diante da guerra; em produções de outros países europeus, que contam da luta contra ou com o nazismo, essa experiência se constrói para mim. Ainda não terminou, como a guerra, pois, ao contrário desta, as narrativas são inúmeras e constantes. Trazem novas visões, ou suportam as anteriores. Contestam verdades consideradas já pacíficas. Criam novos heróis; desconstroem os antigos. Relativizam vilões incontestáveis. E, sobretudo, revivem um dos maiores crimes que a humanidade conheceu, o holocausto.
Em O Leitor (The Reader. Stephen Daldry, 2008), adaptação norte-americana e alemã para o cinema do livro homônimo de Bernhard Schlink (2009), traz um dos julgamentos ocorridos após a guerra. As diferentes reações dos personagens diante do julgamento de criminosas de guerra na Alemanha encontra ressonância em nós, espectadores, que, no entanto, não vivenciamos o que eles passaram. Mas, com outras histórias, outras narrativas anteriores, podemos ressoar algumas das opiniões e também opinar sobre Hanna e suas escolhas durante e após a guerra.
Luz, ao enfatizar como o cinema traz a experiência de uma violência que não acessamos fisicamente – e refere-se, para isso, especificamente ao Holocausto -, sustenta que assim ocorre porque "A arte não fala de fantasias, frustrações, impossibilidades. Ela é da ordem da realidade e trata de nomear, modificar e inventar a realidade, isto é, metamorfoseá-la" (2002: 74). Eu acrescento: a arte trata de narrar a realidade. E o cinema o faz como ninguém.
Lugares, épocas, pessoas... cidades, objetos, geografia... Nós reconhecemos o que nos é estranho pelas imagens e sons do cinema. Suas narrativas, construídas em realismo ou surrealismo, baseadas ou não nas chamadas histórias e fatos reais, criam uma memória eu m reconhecimento do que não poderíamos saber se não fosse por essas narrativas.
Elas trazem, também, a possibilidade de visões de mundo diferentes. Modos de conversar com a realidade que não teríamos se não fosse por essas narrativas de ficção, construídas com tanto cuidado por uma indústria cada vez mais global. Por outro lado, chegamos a locais nunca antes imaginados, a cotidianos que nunca conheceríamos por produções independentes, que nos alcançam pelos festivais e cinemas alternativos, que projetam em suas telas narrativas ainda mais distantes de nosso cotidiano. Em todas elas, indistintamente, vemos e, vivenciamos em nós, outras experiências.
Narrador de experiências do que está longe, o cinema pode ser aquele que conta da realidade cotidiana também. Não me refiro, porém, a produções locais, que fazem sentido somente para os habitantes do local em que realizadas. Para contar dessa proximidade, trago outra produção argentina.
Medianeras (Gustavo Taretto, 2011), uma produção argentina, mostra a vida de dois jovens solitários em uma Buenos Aires cada vez mais dominada por arranha céus. Em busca de um sentido na vida, Martin e Mariana têm várias afinidades: gostam dos mesmos filmes, emocionam-se nas mesmas falas de Woody Allen, cantam alto a mesma música no rádio, colecionam bonecos dos mesmos filmes... São vizinhos, mas poderiam morar em pontos antípodas no planeta, tanta é a distância que a vida moderna lhes impõe. Pelo menos até se encontrarem.
Esses dois personagens não se encontram comigo na origem ou na idade ou na profissão ou até mesmo no idioma. Falamos línguas diferentes, mas falamos do mesmo. Eles se referem à minha própria vida na cidade de forma mais próxima do que o jornal que acesso na internet todos os dias de manhã. A narrativa que apresentam em sua trajetória pela cidade me trouxe a minha própria existência muito proximamente. São narradores da permanência em um mundo fragmentado, que se reconhece, no entanto, em suas distâncias.

Conclusão: no fim da história...
Roberto retorna da Guerra das Malvinas, aos dezenove anos, para encontrar uma casa vazia. O recorte de jornal com que seu pai inaugura a tradição que o filho seguirá traz a foto de Roberto na guerra, com uma metralhadora na mão. Ele, que saiu do seu local de origem para fugir da guerra, vê sua escapada como inútil, ver, na foto do jornal italiano L'Unitá, o filho seguindo o mesmo caminho. Nessa noite, deita-se e não acorda mais.
Roberto retorna também para uma existência vazia de narrativas, depois da experiência desmoralizante da guerra. Numa casa repleta de memórias e lembranças, tenta preencher esse vazio com novas narrativas, que, como sua vida, não fazem o menor sentido.
Roberto, além da casa, da ferraria e dos objetos dos pais, herdou também esse vazio.

Homicídio Culposo: Romênia. Na pequena localidade de Velescu, a tragédia abalou a monotonia cotidiana. Os poucos habitantes dessa vila medieval ao sul de Bucareste continuam surpresos pela tragédia de um barbeiro que morreu e tirou a vida do seu cliente também. (Sebastián Borensztei, 2011)

Roberto é, para nós, espectadores, narrador em voz e imagens do que lê no jornal. Histórias absurdas que se configuram como ficção, assim como as notícias do jornal – afinal, a guerra noticiada nos meios de comunicação foi bastante diferente da realidade que vivenciou.
Ele é o narrador que permanece no seu lugar. Conta da experiência de haver vivido ali toda a sua vida. Sua narrativa conta a experiência de quem permaneceu. Não é de se estranhar, assim, que seus dias de folga sejam a contemplação solitária daqueles que chegam e parte, daqueles que vivenciam o longínquo. Sentado em sua cadeira de praia, ao lado do seu automóvel também herdade, ele contempla os aviões que chegam e partem. Contempla o que se aproxima e aquilo que se distancia, a partir de um mesmo local. Seu fascínio está presente em objeto, que ele acrescenta à sua herança: no carro que lhe deixou seu pai, pendurado no retrovisor, encontra-se um pequeno avião, lembrança constante de que o mundo se estende para além do ambiente familiar de Roberto.
A experiência de longe chega a ele, no entanto, mesmo que ele insista na permanência. Nesse descanso do diário, o inusitado cai literalmente no seu colo: um viajante chinês é expulso de um taxi ao seu lado. Roberto quer se eximir de qualquer envolvimento com o estranho, mas acaba por trazê-lo para a sua intimidade. Mas o que parece estranho, está incrivelmente perto. Com a ajuda de um tradutor, ao final do filme, o início do filme retorna a nós.
E duas narrativas próximas e distantes se encontram, em lados opostos da mesa do café.
Roberto, com a ajuda do tradutor, narra a sua história. Conta das suas origens e esclarece a Jun, o chinês que socorreu, o seu hábito de recortar as histórias no jornal:

Meu pai foi um imigrante italiano. Todos os domingos ele recebia o jornal italiano L'Unitá. Num domingo, dia 20 de abril de 1982, L'Unitá trazia esta notícia: Argentina está em guerra com a Inglaterra. Meu pai não a recortou pelo título, que por si só já é absurdo, mas sim por causa desta foto. Esse sou eu, com uma metralhadora mag. O meu pai se foi da Itália fugindo da guerra. Não sabia que aqui haveria outra guerra esperando por ele. Nós lutamos em inferioridade de condições. Finalmente, tivemos que nos render. Depois nos fizeram prisioneiros, até nos entregarmos. Levaram-nos ao Porto de Buenos Aires às escondidas, como se fossemos merda. Queriam nos engordar nos quartéis antes de nos mandarem para casa, como se alguns quilos pudessem mudar a história. Mas para mim nada mais importava. Depois que se mata uma pessoa, duas, dez, depois de ver os seus companheiros morrerem, o que pode importar? Eu só queria voltar para a minha casa e abraçar meu pai. Quando cheguei, dei-me conta do que havia acontecido. Eu não tinha nenhuma notícia dele. Com o bloqueio da Inglaterra, nada me chegava. A última vez que o meu velho recebeu o jornal L'Unitá , ele veio com essa foto na capa. Qual teria sido a sua impressão? Ele a recortou e guardou. Nessa noite, ele se deitou na cama e nunca mais acordou.
A vida é um grande absurdo sem sentido. (Sebastián Borensztei, 2011).

Para provar o que diz, ele lê outras histórias recortadas e coladas no caderno. Assim, descobre que o distante encontra-se definitivamente perto. Uma das narrativas de sua coleção senta-se à sua mesa. Tomava com ele o café da manhã todos os dias e no quarto vizinho dormia todas as noites. O recorte de jornal, etéreo em sua página no caderno, torna-se outra narrativa, a oral, presente na pessoa de Jun.

Vaca cai do céu e causa uma tragédia. Ladrões de gado usam avião cargueiro para roubar animais. Um grupo de camponeses armados os esperavam. (Sebastián Borensztei, 2011).

Que sentido há nisso? Jun, personagem da história, argumenta que tudo tem um sentido. E, sentado à mesa, ele reafirma a Roberto como, longe ou perto, no outro lado do mundo ou à sua frente, na mesa do café.
Assim que, para contar de como as narrativas constroem a visão de mundo na contemporaneidade, eu trouxe uma produção de um país que não o meu, apresentando-o num local ainda mais distante. O cinema, narrador da experiência de viver nesta época, parece distante, mas encontra-se incrivelmente próximo.
Um Conto Chinês foi baseado nos chamados "fatos reais" – tão difusos numa narrativa fílmica que precisam de aspas. Ao procurar pela manchete, eu encontrei um artigo a respeito:


Vaca voadora afunda barco japonês:

Crer ou não crer. Esse foi o dilema apresentado aos tripulantes de uma lancha patrulheira russa ao resgatar os náufragos de um pesqueiro japonês: - "Uma vaca caiu do céu e afundou nosso barco", tentaram explicar os pescadores em desgraça ao serem resgatados. Ante a dúvida, os russos decidiram prendê-los.
A história chegou a ser publicada pelo diário Komsomolskaja Prawda, há uns meses, numa pequena seção de notícias insólitas, do tipo "Acredite se quiser", e causou o riso em milhares de russos que acreditavam que aquilo era conversa fiada dos japas. Mas com o tempo descobriu-se que o conto dos pobres náufragos japoneses era real.
Não só isso: a vaca que caiu do céu russo e afundou o pesqueiro japonês figura num relatório da Embaixada alemã em Moscou que tem um título muito sugestivo: "A segurança no céu da Rússia". O relatório foi enviado da embaixada em Moscou à chancelaria alemã em Bonn em 24 de abril passado e é assinado por um alto oficial da embaixada, Oberst Harden. (http://www.mdig.com.br/index.php?itemid=2742)

A notícia, dados publicados em um jornal, tornou-se narrativa, transformou-se em um filme e contou da experiência do ser humano em busca por um sentido na sua existência.
Durante os créditos finais do filme, aparece a notícia no telejornal russo, que originou a história de Roberto, Jun e a vaca que cai do céu. "Essa foi a notícia mais estranha que já narrei", diz o apresentador. Da China ela se dirigiu à Rússia para, após, chegar à Argentina em uma história de ficção. De lá, veio ao Brasil, em forma de filme e chegou à minha vida. Do Brasil, chegou ao papel e dirigiu-se a Portugal em um artigo para um congresso sobre cinema.
Essas histórias e seus narradores... viajam o mundo e diminuem a distância entre a realidade, a ficção, um lado e outro lado do mundo, as pessoas e suas experiência. Narradores orais e imagéticos na contemporaneidade, elas ontam da vida, da nossa realidade, ajudando-a a construí-la. Ajudando-a a fazer sentido, em um tempo em que muitas coisas fogem à nossa compreensão.
Aparentemente longe, elas sentam-se conosco à para o café. Todos os dias.

Bibliografia
ALMEIDA, Milton. Imagens e sons: a nova cultura oral. 3ª edição, São Paulo: Cortez, 2004. (Coleção questões da nossa época), 112 p. - ISBN 8524905298.
_______Cinema: arte da memória. Campinas, SP: Autores Associados, 1999, 168 p. - ISBN 8585701757.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e cultura: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7 ed. Traduzido do alemão por Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994 (Obras escolhidas; v. 1), 256 p. - ISBN 8511120300.
________. Origem do drama trágico alemão. Traduzido do alemão por João Barrento. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, 368 p. – ISBN 9723709716.
LUZ, Rogério. Filme e Subjetividade. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2003, 153 p. - ISBN 8586011576.
PASOLINI, Pier Paolo. Empirismo herege. Traduzido do italiano por Miguel Serras Pereira. Lisboa: Assírio & Alvim, 1982, 256 p. – ISBN 9723700468.
SCHILINK, Bernhard. O Leitor. Traduzido do inglês por Pedro Sussekind. Rio de Janeiro: Record, 2009, 235 p – ISBN 8501085413.
Vaca voadora afunda barco japonês in Metaformose Digital – sete anos a sua produtividade. http://www.mdig.com.br/index.php?itemid=2742

Filmografia
Hugo (2011). Dir. Martin Scorsese, USA.
L'Arrivé du train à la Ciotat (1896). Dir. Auguste & Louis Lumière, France.
Medianeras (2011). Dir. Gustavo Taretto, Argentina.
The Reader (2008). Dir. Stephen Daldry, USA/Germany.
The International (2009). Dir. Tom Tykwer, USA/Germany/UK.
Un Cuento Chino (2011). Dir. Sebástian Borensztein, Argentina/España.





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