O cinema em Merleau-Ponty – em um caminho da saturação do imaginário

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Revista Sísifo – v. 2, nº 1, agosto 2015. Ano 2015 - ISSN: 2359-3121 - www.revistasisifo.com

1ª EDIÇÃO/ANO 2015 www.revistasisifo.com

Revista Sísifo – v. 2, nº 1, agosto 2015. Ano 2015 - ISSN: 2359-3121 - www.revistasisifo.com

Endereço para correspondência / Adress for correspondence: Revista Sísifo Site: www.revistasisifo.com / E-mail: [email protected] Feira de Santana — Bahia — Brasil

Revista Sísifo – Feira de Santana – v. 2, n. 1 (2015) Nº 1 – Agosto 2015 – Ano 2015. Filosofia – Periódico Feira de Santana – BA – Brasil ISSN: 2359-3121

FEIRA DE SANTANA-BA

v. 2, nº 1

p. 1 – 73

Ano 2015

Revista Sísifo – v. 2, nº 1, agosto 2015. Ano 2015 - ISSN: 2359-3121 - www.revistasisifo.com

EDITORES Marcelo Vinicius Yves São Paulo ORGANIZAÇÃO DO DOSSIÊ Yves São Paulo COLABORADORES Eduardo Pellejero José Castanheira Leonardo Oliveira Araújo Luize Queiroz Mauro Luciano

Os artigos e demais textos publicados nesta revista (online, PDF ou qualquer outro meio) são de inteira responsabilidade de seus autores. A reprodução, parcial ou total, é permitida, desde que seja citada a fonte.

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SUMÁRIO EDITORIAL .................................................................................................................... 1 CRÍTICA – DEPOIS DA CHUVA Yves São Paulo ................................................................................................................ 2 O CINEMA EM MERLEAU-PONTY – EM UM CAMINHO DA SATURAÇÃO DO IMAGINÁRIO Mauro Luciano de Araújo ................................................................................................ 7 PERCEPÇÃO E CINEMA UM OLHAR ONTOLOGICAMENTE CINEMATOGRÁFICO Luize Queiroz ................................................................................................................ 14 O PERSONAGEM-ESPECTADOR E O COLAPSO DO ESQUEMA SENSÓRIOMOTOR NO CINEMA Leonardo Araújo Oliveira .............................................................................................. 23 O CINEMA E O TEMPO CRIADO – ESBOÇO DE ENSAIO Yves São Paulo .............................................................................................................. 32 MATÉRIA E LINGUAGEM: MODELOS DE PRODUÇÃO DE SENTIDOS NO FILME José Cláudio S. Castanheira ........................................................................................... 41 SESSÕES NÃO NUMERADAS: ALGUMAS NOTAS SOBRE O CINEMA E A EMANCIPAÇÃO DO OLHAR Eduardo Pellejero .......................................................................................................... 58 SUBMISSÃO ................................................................................................................ 71 ÍNDICE DE IMAGENS ................................................................................................ 73

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EDITORIAL O que é o cinema? Fazer esta pergunta é mais simples do que respondê-la. O cinema possui muitas facetas, e é saudável que as tenha. Afinal, como diz Mark Cousins, o que move o cinema é a paixão, a inovação. Tudo isso se apresenta na tela, na escuridão da sala de projeção. O cinema nos ensinou muito sobre o nosso mundo. Mostrou as selvas mais distantes da civilização e o fundo do mar. Enviou o homem à lua meio século antes das primeiras tentativas reais. Mostrou o quanto que somos capazes de amar e odiar. O quanto que a humanidade é má, e o quão terna também. Enquanto arte, o cinema não pode deixar de mudar, de se nos fascinar. Para isso, é necessário que seja capaz apresentar surpresas. E, acredite, ele ainda guarda muitas surpresas. Poderíamos dizer que o cinema é vida. Como também poderíamos dizer que é a morte. Poderíamos dizer que o cinema é a ação. Como também poderíamos dizer que é o repouso. O cinema é tudo isso porque vive dentro da imaginação humana – esta, sem limites estabelecidos, que enxerga além da linha do horizonte, além das materialidades. Que enxerga possibilidades múltiplas na realidade e na fantasia. Na opressão e na libertação. Na ordem e na anarquia. Mas eis que há uma faceta do cinema que pouco é conhecido de seu grande público: a literatura teórica. Sim, porque para que o cinema se mantenha nesta saga inventiva é preciso pensá-lo também. Não somente antes da criação dos filmes como também depois. É daí que surge a ideia do dossiê de cinema da Revista Sísifo. Se os filmes permanecem em nossa mente antes e depois de feitos, por que não escrever sobre eles? Destrinchar as muitas possibilidades de se pensar o cinema? Nesse sentido, autores de diferentes formações se juntam neste dossiê para apresentar-nos diferentes lados desta extensão do espetáculo cinematográfico. E os agradecemos pelo esforço realizado para fazer deste estudo uma realidade. Dedicamos este dossiê à memória de: André Setaro (crítico de cinema) e Olney São Paulo (cineasta) Yves São Paulo (organizador) 2

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Crítica DEPOIS DA CHUVA De Cláudio Marques e Marília Hughes

Yves São Paulo1

Existem alguns planos muito curiosos em Depois da chuva, que parecem se repetir ao longo do filme. A câmera permanece estática e no interior da imagem quase não há movimento. Os personagens ficam sentados ou de pé, fazendo ou esperando alguma coisa acontecer, o que não necessariamente pede a eles a sua mobilidade. A duração dos planos é razoavelmente longa, permanecem em tela quase que o mesmo tempo que as discussões dos adolescentes na escola. Mas nelas há algo de diferente. Um sentimento que se escoa por entre cada frame projetado na tela. Ao longo da cena soa uma música, um punk, gênero facilmente associado aos anarquistas oitentistas que se tornou hino graças a algumas bandas bem lembradas no filme - os álbuns dos Sex Pistols aparece com certa constância nos diálogos e nas paredes. O típico a se fazer quando há na trilha sonora de um filme uma canção punk ou heavy metal é acelerar o ritmo do filme. Colocar as imagens numa agilidade semelhante àquela da canção. Isso se faz pelo movimento de câmera, pelo movimento no interior 1

Graduando em Filosofia pela Universidade Estadual de Feira de Santana e editor da Revista Sísifo.

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das imagens ou mesmo pela montagem acelerada em que os planos duram segundos ou menos que um segundo em tela. Com algumas exceções (como as cenas dos encontros de Caio com sua namorada), Depois da chuva não segue este padrão de construção fílmica. As imagens são estáticas - em algo que me lembrou especialmente o cinema de fluxo oriental de Tsai Ming-liang, apesar de serem propostas radicalmente diferentes enquanto a música é posta demandando a agilidade, a velocidade. A música é explosão enquanto a imagem é calma. Este dualismo é muito sensível ao trabalho realizado pela dupla de diretores em seu debute em longa-metragem. O que demonstra que os cineastas pensaram muito bem em como compor seu filme antes de transformá-lo em realidade. Isto porque estas cenas em que se dá o dualismo desenvolvem uma emoção no espectador que pode não ter seu significado bem compreendido, mas que será sentida. A proposta do filme é de realizar um registro em primeira pessoa de um momento histórico. Mais do que falar do Brasil em seu momento de abertura política, o filme busca o impacto da história sobre o indivíduo. Ao tratar do indivíduo ele encontra os indivíduos que flutuam ao seu redor: os colegas de escola, os professores, a mãe, os amigos anarquistas. Os personagens em geral parecem atirados numa inércia que os planos fixos captam bem. Porque, apesar de "inércia" evocar a movimentação - necessária à feitura de um filme -, aqui ele surge como um descontrole (continuo me movimentando mesmo depois de ter tentado parar). A câmera é fixa como se esperasse a ação dos personagens (os anarquistas dizem que tem que agir por conta própria, mas por que não agem?), mas eles em poucos momentos fazem alguma coisa. Quando a câmera se põe em cena como provocadora é porque encontra no mundo quem esteja disposto à ação. E a ação somente surge quando seus personagens resolvem tomar as rédeas de suas próprias vidas. A ação surge no relacionamento de Caio com a colega de escola, que vira sua namorada. E na performance de sua banda num festival na escola. O papel da câmera aqui passa a ser mais que observar os jovens, mas buscar o sentimento que os guia. Quando o anarquista amigo de Caio descobre-se sozinho em meio à sua batalha política, perde as forças para fazer um pronunciamento em sua rádio de frequência roubada, como ele orgulhosamente pontua. Microfone em mão, sozinho do prédio onde fica o equipamento, ele pergunta se há alguém o ouvindo. Enquanto isso a câmera recua como se sentisse a necessidade de libertá-lo. Mais que isso, registra a sua solidão.

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Depois da chuva é um daqueles filmes em que os significados não serão dados ao espectador, que terá que procurá-los em cada quadro. Comecei este texto falando das imagens de pouco movimento ao som de canções punk. Ao ser posta estática, a câmera não somente filma o fato, mas espera que algo se desvele de debaixo daquele envoltório que são as coisas que ela capta. Tal como o Cézanne de Ponty pinta o que há no interior das coisas, a câmera da dupla Marília Hughes e Cláudio Marques capta o que há por trás daquele envoltório chamado corpo. Há uma raiva em Caio contra todo o mundo, mas o que pode ele fazer para apaziguá-la? Entrar para o grêmio estudantil ou pular para a morte de um prédio abandonado? O filme busca este desvelar do sentimento do jovem que se descobre enquanto ser social. Cria uma trama com tudo aquilo que uma narrativa normalmente pede: um conflito, um romance, uma moral. Mas esta moral de Depois da chuva está muito mais próxima de uma ética política do que a moral de conto de fadas. É uma moral de esquerda desiludida, de uma juventude que já cresceu vendo (e entendendo) as coisas perdendo seu rumo. Depois da chuva se resolve muito melhor no que diz respeito ao desenvolvimento do subjetivo do jovem do que enquanto narrativa para solucionar um conflito originalmente posto. O que poderia surgir como defeito, aparece enquanto provocação. O filme salta para fora da tela para questionar o espectador sobre seu próprio momento político numa análise histórica - e os dados históricos do momento narrado nos são dados pelo filme. Cabe a nós, espectadores, fazermos nosso dever de casa. *** Uma breve nota sobre o ritmo cinematográfico. Costumeiramente pensado como sendo própria à montagem, o ritmo cinematográfico se desenvolve, também, no interior do quadro. É noção que Andrei Tarkovski já tinha bem desenvolvida em seu cinema e que expõe em Esculpir o tempo, livro em que apresenta seu pensamento. Diz o cineasta: “O fator dominante e todopoderoso da imagem cinematográfica é o ritmo, que expressa o fluxo de tempo no interior do fotograma” (p. 134). Em Depois da chuva, a cena que me chamou particular atenção e que talvez pudesse resumir o filme – o que seria uma heresia – se desenvolve em um plano, onde o grupo anarquista que orbita em torno do protagonista (ou em torno do qual o 5

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protagonista orbita) se encontra em um prédio abandonado. Câmera fixa, personagens sentados no chão sem alterar seus posicionamentos em momento algum, cantam uma canção repetitiva, tocada com instrumentos aparentemente improvisados: nunca conheci quem tivesse levado porrada, nunca conheci quem tivesse levado porrada, nunca conheci quem tivesse levado porrada..., repete à exaustão a cantora, seguida por seus parceiros, numa rapidez que concede à letra a sonoridade de golpes sendo desferidos no interior de quem canta. Pensamos aqui numa noção de ritmo não tanto ligada à de Tarkovski, como sendo conectada ao interior do plano, somente, mas também à coisa cinematográfica, ao filme e a sua moldagem – uma montagem eisensteiniana, por exemplo. Mas neste caso, o ritmo da montagem é deixado de lado. A música cantada pelo grupo possui um grande apelo à aceleração, seus golpes que clamam pelo corte, pela aceleração da montagem – e os diretores o percebem e a recuperam, desta vez somente enquanto trilha sonora, numa cena mais “dinâmica”, rápida. O tempo do plano passa a ser ditado não pelo movimento quase nulo dos personagens para ser tomado pela música. O som – o que poderia nos lembrar o alémquadro de Fritz Lang em M, o vampiro de Dusseldorf – passa a ser este tempo interno aos sujeitos filmados, àquilo que a câmera, a princípio, não seria capaz de filmar. E eis mais uma das facetas das quais é capaz a câmera de filmar: desvela-nos a temporalidade interna ao sujeito.

Referências bibliográficas: TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. 3ª ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2010.

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O CINEMA EM MERLEAU-PONTY Em um caminho da saturação do imaginário

Mauro Luciano de Araújo2

Muito pouco se fala sobre os caminhos que tanto Sartre, Bergson, e principalmente Merleau-Ponty trilharam ao tentar descrever o que seria a imagem contemporânea (ou moderna, a notar as influências e contingências do “mundo moderno” na filosofia francesa do século XX). Enfim, falar sobre a “Imagem” nestes autores, parece intrigante – principalmente hoje em dia quando a compreensão do imaginário sofre duras críticas e é colocado à escanteio. O que se chamou de existencialismo, na verdade, não existiu em larga escala. Porém, nesse período incisivo do pensamento francês, surgiram autores que intensificaram sua presença nas variadas fórmulas atingidas pela psicologia da época. Aqui, neste ensaio, procuramos aliar MerleauPonty, controverso autor, mas nem por isso, ou talvez por isso, tão influente, ao que se poderia afirmar sobre seu olhar acerca do cinema instituído em sua época.

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Mestre em Imagem e Som pela UFSCar – Universidade Federal de São Carlos; especialização em Ética e Epistemologia pela UFS – Universidade Federal de Sergipe, publicou o livro Existencialismo e critica no cinema.

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Revista Sísifo – v. 2, nº 1, agosto 2015. Ano 2015 - ISSN: 2359-3121 - www.revistasisifo.com Em um excelente artigo publicado em português, Susana Viegas, da Universidade Nova de Lisboa, explica de maneira cuidadosa a situação pela qual o cinema chegou a MerleauPonty, ou que Merleau-Ponty chegou ao cinema. Ela chega a dizer que: Grande parte dos filósofos contemporâneos à era cinematográfica não compreenderam o cinema como um elemento filosófico autônomo e digno de investigação e, tal como aponta criticamente Gilles Deleuze, “é muito curioso que Sartre, em L'Imaginaire, encare todos os tipos de imagens, exceto a imagem cinematográfica. Merleau-Ponty interessava-se pelo cinema, mas para o confrontar com as condições gerais da percepção e do comportamento. A situação de Bergson, em Matière et mémoire, é única” 3

Digno de citação, Sartre realmente deu pouca atenção ao fenômeno social da câmera, que mudaria as sociedades crentes na modernidade, e que usava as imagens fotográficas do século XX como matéria prima. Não se tem muito em conta, inclusive, a rejeição de Henri Bergson à então chamada sétima arte. Quando vemos Deleuze, como filósofo da tradição, retomar o início de século e seu pensamento invertendo Matéria e Memória, observamos um comentário à parte que talvez já pudesse ser notado em Ponty – também tradicional, a seu modo. O texto do filósofo e fenomenólogo que mais invoca sua preocupação com o tema data de uma conferencia proferida em 1955 – Le cinema et la nouvelle psycologie.4 Nele, percebemos, ao menos, um interesse maior acerca do que o ritmo proposto pelas durações da imagem no cinema trazia de novo na percepção do mundo. Este que foi traduzido por José Lino Grünnewald e publicado em 19695, e ainda na década de 1980 no Brasil no compêndio fundamental que propôs o tema da psicologia e cinema como interligados historicamente, organizado por Ismail Xavier, A experiência do cinema.6 Nesta conferência nota-se uma atenção redobrada aos assuntos que o filósofo iria desenvolver com mais acuidade posteriormente, no quesito da linguagem e na concepção e criação dentro da instrumentalização desta – desde sua etapa préobjetiva no universo infantil, ou bruta, até a desenvolvida socialmente com a 3

VIEGAS cita Deleuze .Conversações Conversações, Conversações trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Fim de Século, 2003, pág.73. Cf. disponível em: http://filmphilosophy.squarespace.com/1-maurice-merleau-ponty#_ftn1, acessado em 25 de maio de 2015. * Mestre em Imagem e Som pela UFSCar – Universidade Federal de São Carlos; especialização em Ética e Epistemologia pela UFS – Universidade Federal de Sergipe, publicou o livro Existencialismo e critica no cinema. 4 PONTY, Merleau. Le cinema et la nouvelle psychologie. psychologie Paris: Folioplus philosophie, Gallimard, 2009. 5 GRÜNNEWALD, José Lino. A ideia do cinema. cinema Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969. 6 XAVIER, Ismail. A experiência do Cinema. Cinema Rio de Janeiro: Graal, 1983.

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constituição (ou, quase instituição) do olhar. Isto quando leva-se em conta que MerleauPonty conversava com uma tradição não unicamente, e talvez não incisivamente, da filosofia, mas, e principalmente, com uma história da psicologia como ciência do humano – pois, já se evidencia isso no título da sua fala. Este campo das imagens, para ele, também seria frutífero pela força cartesiana que predominava no campo cognitivo, ou das ciências cognitivas no entorno dos debates sobre a psique e noções epistemológicas que estas ciências tentavam preconizar. Principalmente porque, para Merleau-Ponty, assim como para Bergson, o cartesianismo teria sido um ponto de partida para uma espécie de filosofia francesa, falando em grosso modo, e lá em Descartes já se observava algo que se compreendia por uma espécie de não dissociação entre imaginário e realidade (em termos psicanalíticos posteriores). O que atraiu estes dois filósofos contemporâneos, Bergson como conceitos e Ponty como campo de pesquisa, praticamente, foi a relação do corpo (ou de suas subjetividades) e a imagem. Aqui, neste ponto específico, podemos interferir um pouco mais, traçando alguns comentários sobre, e como, Merleau-Ponty tentou compreender o cinema em seu tempo de inflexão no social moderno que se elaborava intuitivamente. À propósito de uma introdução a este estudo sobre as imagens, “cinema”, também em senso comum, na época das tentativas fenomenológicas, não era aquilo que hoje compreendemos. Não eram as inúmeras telas que habitam hoje em praticamente todas as salas domésticas com a TV, todos os bolsos com os smartphones, e todos os shoppings com os multiplexes. Pesquisas sobre a imagem, ainda no início do século passado, a saber as próprias citadas no texto sobre as experiências feitas por Kuleshov e Pudóvkin, não resolviam uma curiosidade que, na França, percebeu-se como algo muito além a ser adiantado pelos “efeitos” procurados ou causados pela imagem cinematográfica. Em Bergson, especificamente, a imagem cinematográfica, em texto publicado em 1907,7 partia do princípio da ilusão – e não da materialidade. Aceitandose que, como o próprio Deleuze revitalizaria, Bergson não tratava em seu capítulo a respeito a ilusão cinematográfica de um cinema que iria se desenvolver posteriormente. Àquela época, as imagens cinematográficas não possuíam ainda, efetivamente, caráter “gráfico”. Eram, as imagens, apenas “cinema”. Cinematógrafo, porém, sem problematização lingüística, ou de linguagem. A imagem que surge, portanto, nos textos do pensamento francês é uma dotada de

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Cf. BERGSON, H. A Evolução Criadora. Criadora São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2005.

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significação que envolvia não a certeza do que se compreendia do que se via. Para melhor comentar esta chave de relações entre imagem e vida, Ponty descreve uma situação: (...) de modo mais profundo descobre-se, como demonstrou Sartre, que a cólera é uma conduta mágica, através da qual, renunciando à Ação eficaz dentro do mundo, damo-nos, ao nível imaginário, uma satisfação inteiramente simbólica, como aquele que, numa conversa, não podendo convencer seu interlocutor, recorre às injúrias que nada provam, ou côo aquele outro que, não ousando atingir seu inimigo, se contenta em mostrar-lhe, de longe, os punhos cerrados. 8

Examinando o filme, ou melhor, os filmes de cinema de sua época, Ponty diria que a dimensão imaginária seria provocada psicologicamente por esse processo que poderíamos chamar de projeção – e ele não aconteceria somente na relação entre espectador e filme, como visto na citação acima. Qual seria essa dimensão, portanto, que se compreende por imaginária, dentro das relações sociais, para o filósofo? Nada muito amplo pode ser ressaltado neste artigo, que vista somente apresentar o problema para, quem sabe, alguma pesquisa mais concentrada e com mais fôlego futura analisar. Podemos salientar que preocupação, ao menos, estava no autor. SOBRE A CHEGADA DO IMAGINÁRIO Em textos posteriores, como na tese de Fenomenologia da Percepção, também mais tarde em A Prosa do Mundo, O visível e o Invisível, e no inacabado, porém não menos objetivo em seus ensaios, O Olho e o Espírito, a questão se delineia com mais clareza e sai do problema da linguagem para o seu possuidor: um corpo, ou corporeidade, inserido num amálgama imagético espetacular. O cinema, às vezes citado, como espetáculo de um corpo que olha, como mesmo se observa às vezes a própria filosofia do autor,9 na qual o corpo humano e os derivados órgãos que percebem e interagem com a vida estão inseridos no campo da sensibilidade – à parte da racionalidade. Para o filósofo, aliás, como claramente intui em artigos do livro Signos, dentro ainda do cerco geral da filosofia da linguagem, a racionalidade estaria para a filosofia clássica assim como a sensibilidade para a filosofia moderna.

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MERLEAU-PONTY. O cinema e a nova psicologia. in Xavier, Ismail (org) A experiência do cinema. cinema Rio de Janeiro: Graal, 1983. p. 109. 9 PARLANT, Pierre. Le texte en perspective – la figure Du philosophe – La Scéne de l’être. In. PONTY, Merleau. Le cinema et la nouvelle psychologie psycho logie. logie Paris: Folioplus philosophie, Gallimard, 2009,

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Contudo, nada muito distante do que se compreende por imagem dentro da tradição filosófica – algo que ganharia materialidade na medida que também assumiria sua forma imanente dentro das relações visíveis. O sentido, sens, de Ponty, está principalmente no visível, no olhar: na imagem. Certamente essa perspectiva deriva de um diálogo proposto muito ao longe com o que ele possivelmente poderia travar com o pensamento selvagem, ou o chamado pré-objetivo, que Levi-Strauss entendia como precursor de uma visão contemporânea da antropologia. O pensamento primitivo, simbólico como é, segundo sua concepção, conversa com a realidade através das imagens – não da racionalidade. Atingia, portanto, Merleau-Ponty, no alvo da sociedade moderna. Essa materialidade da memória acurada pela imagem e sua sobrevivência, seja bergsoniana em sua invenção e criação, seja da pintura em suas formas do pensamento através da corporeidade do tato de um autor-pintor. As imagens materiais, portanto, deste imaginário antes transcendental e metafísico, assumem formas na pintura moderna. Ganhariam textura, força cognitiva, materialidade além do olhar: para o filósofo, como preconizado pela sua conferência acerca do cinema, a imagem era também, e parecia sempre ter sido, táctil em certa direção, e era adquirida através da percepção e dos sentidos. Significados também possuem texto, neste amálgama que nos faria tocar as imagens. Uma bela metáfora descritiva de Ponty, vista em alguns de seus textos, exemplifica essa relação com a imagem, muito presente posteriormente em Deleuze. Quando vemos algo dentro de uma piscina, não vemos apenas aquele “algo”, mas sobretudo a imagem que a piscina nos traça em formas delineadas por sua dimensão e densidade. Ali, portanto, o olhar também toca na indicialidade do objeto. Toca como a mão, ou como qualquer outra parte do corpo, segundo o filósofo. Certamente, se houvesse um estudo mais acurado – e houve com Deleuze, afinal – sobre a materialidade dessa imagem material que existe, tem consciência própria, vive, plena de significados a ser percebida, notada, descrita, ela seria vista também como “pensamento”, ou, nos termos de Descartes: como o pensamento vivo, que vive. A máxima, portanto, do existir, dentro do amálgama geral de imagens vivas (com vida própria), com consciência autônoma e moventes como o pensamento, não seria o próprio cinema e sua instituição imaginária que teria trazido aos contemporâneos?

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Neste caso, certamente os russos, no vetor de Dziga Vertov – autor retomado por Jean-Luc Godard, à parte de um desenvolvimento eisensteineano da linguagem mais apropriada ao público cinematográfico – poderiam nos dar novas saídas à compreensão do olho subjetivo, ou, deslocado do espírito, mas encarnado do próprio. O cinema para essa linha de pensamento, seria o próprio pensamento de um olho, ou olhar, que pensaria por si próprio: em sua autonomia de máquina que é, e em uma autonomia de aparato que proporciona sua vivência. As imagens cinematográficas, ingenuamente vista pelos pensadores franceses da primeira metade do século passado, eram como um “em si”, sem dúvidas – eram um quase-texto, a ser propriamente analisado após percebido, a ser, como novidade, pensado e transformado em pensamento. Porém, o olho da câmera, kinoeye, como menciona Deleuze sobre o movimento, adota a corporeidade do olho humano. Não estaria distante da noção de cinema clássico, portanto, o que Vertov manifestava, declarava. Também não tão longe do moderno. Ali, no cine-olho, o material ultrapassa a simples imanência das imagens, e provoca. Provoca, enfim, o corpo – agora sim, humano, ainda que maquínico. Desejos, afetos, pulsões, ações, acontecimentos, fenômenos, tudo estaria na imagem e sua relação com o mundo percebido. E, nascendo este cinema no século XX, também tornaria claro o nascimento do que se chamou de imaginário. O problema, portanto, se dá na medida em que já haveria um imaginário profundamente delineado em formas e geometrias vitais vidas na época da existência da pintura. Ainda que, pela ciência que também compartimentaria a arte, visto da maneira de um imaginário configurado como alegórico – de difícil sacralização e que envolveria pouco um indivíduo que assimilasse o movimento das imagens –, a pintura, principalmente no renascimento, provocaria o simbólico levando o espectador a uma nova noção de virtualidade. Vidas potenciais que seriam trazidas à tona pelas imagens pintadas em perspectiva realista; as já tradicionais composições com ponto de fuga central, a harmonia, o trompe l’oeil, etc. Aí se instala a questão de Merleau-Ponty: a quê, ou como se pode observar essa modificação de “idades” (da era de uma imagem táctil e pré-objetiva da pintura, do pintor artesão, à imagem espetacular do cinema, o universo espectral da indústria maquinária). Que individuo, que espécie, portanto, é esta que nasce rodeada pelo amálgama de um virtual agora materialmente elaborado através da composição de imagens realistas em movimento? Aí também aparece a crítica, como a assimilação do que se entende por imaginário na psicanálise: um mundo permeado por traumas e cisões, castrações, 12

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frustrações, por pouco tempo também chamado de moderno em uma civilização que deslocaria todas as imagens a um caráter transcendental – portanto, imaterial, a certo modo. A cisão principal se dá, agora a partir de Ponty, quando o olho, ou olhar, ainda “atrasado” ou “descompassado” com os ideais modernos, pois no visível persistiria o enigma, o mistério, a dificuldade de compreensão do mundo – contudo, apenas em poucos casos: “doente”. Por isso a ausência de julgamento no filósofo nisto que falamos aqui num a partir. Para quem conhece o filósofo, Cézanne evidentemente teria guardado algo que dosa o olhar moderno “científico” com o antes do compreendido, este pintor que serviu como um quase-autor para o filósofo. Neste artista, o denominado virtual contemporâneo se expressaria em contornos, linhas, “formas materializadas”, as que seriam também denominadas como “gestuais” por Ponty.10 Gestos, portanto, que expressam sentidos, sentimentos: afecções, movimentos, pulsões, ações: fenômenos, como dito acima. Não estaria Ponty, em sua época, falando de uma imersão que hoje se pode provocar através de instalações, ou mesmo na possibilidade dos jogo virtuais e da participação do espectador diretamente na imagem como amálgama? Cedo e anacrônico para falar nestes termos, porém tarde para encarar um possível denominador comum entre a noção de imaginário e de virtual. Referências Bibliográficas: Bibliográficas: BERGSON, H. A Evolução Criadora. Criadora São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2005. DELEUZE, Gilles. Conversações, Conversações trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Fim de Século, 2003. GRÜNNEWALD, José Lino. A ideia do cinema. cinema Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969. LECONTE, Patrick. La perception: Cézanne chez MerleauMerleau- Ponty. Ponty Revista Philopsis. 2000. MERLEAU-PONTY. O cinema e a nova psicologia. in Xavier, Ismail (org) A experiência do cinema. cinema Rio de Janeiro: Graal, 1983. MERLEAU-PONTY, Maurice. Signos. Signos São Paulo: Martins Fontes, 1991. MERLEAU-PONTY, Maurice. Le cinema et la nouvelle psychologie. psychologie Paris: Folioplus philosophie, Gallimard, 2009. PARLANT, Pierre. Le texte en perspective – la figure Du philosophe – La Scéne de l’être. In. MERLEAU-PONTY, Merleau. Le cinema et la nouvelle psychologie. psychologie Paris: Folioplus philosophie, Gallimard, 2009, XAVIER, Ismail. A experiência do Cinema. Cinema Rio de Janeiro: Graal, 1983. 10

LECONTE, Patrick. La perception: Cézanne chez Merleau-Ponty. Revista Philopsis. Disponível em http://www.philopsis.fr/IMG/pdf_perception_cezanne_leconte.pdf . Acesso em 29 de maio de 2015.

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PERCEPÇÃO E CINEMA Um olhar ontologicamente cinematográfico

Luize de Queiroz11

Em 1945, ano em que publica sua principal obra, La phénoménologie de la percepcion, o filósofo fenomenólogo existencialista Maurice Merleau-Ponty profere uma conferência intitulada Le cinéma et la nouvelle psychologie, o que nos dá subsídios suficientes levados por esta coincidência temporal para pensar uma evidente ligação entre os temas percepção e cinema. Fortemente influenciado pelo pensamento de Martin Heidegger, pela fenomenologia transcendental de Edmund Husserl e pela teoria Gestalt podemos encontrar resquícios desses pensamentos na fenomenologia da percepção proposta pelo filósofo e pelo que mais tarde vem a se configurar em uma ontologia. Resquícios estes que será de suma importância para uma ampla compreensão do que ele irá estabelecer na sua argumentação sobre as artes.

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Licenciada em Filosofia pela Universidade do Recôncavo da Bahia (UFRB).

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Apesar da evidente preocupação por parte do filósofo de se pensar as questões pertinentes à filosofia e o cinema, as reflexões acerca das artes em M. Merleau-Ponty está intrinsicamente ligada à pintura, o que se pode constatar nos textos Le doute de Cézanne e em L’oeil et l’espirit os quais se constituem como exclusivamente dedicado à discussões sobre a pintura, apesar de apresentar como contraponto argumentativo outras modalidades artísticas como a escultura, literatura, o teatro e até mesmo o cinema. Observando este destaque que o filósofo dá a pintura em um segundo momento de seu pensamento, podemos notar certo distanciamento das reflexões com intuito de definir a percepção em detrimento de uma aproximação desta à reflexão sobre a visão, e neste sentido, toma a pintura em especial à de Cézanne para empreitar este projeto. A visão segundo M. Merleau-Ponty, “É um pensamento que decifra estritamente os sinais dados no corpo”, mas antes ainda, nos esclarece que a visão “para além dos “dados visuais” abre para uma textura do Ser” 12 Em outras palavras, a visão é onde acontece o encontro de todos os aspectos do Ser. Discutiremos essas questões com mais ênfase mais adiante. Ao que diz respeito ao cinema, podemos encontrar já algumas referências na obra La phénoménologie de la percepcion, mas o tema ganha mesmo destaque e corporeidade como já dito na conferência proferida em 1945, Le cinéma et la nouvelle psychologie, no capítulo L’art et le monde perçu de Causerus (1948) e por fim nas aulas de estética de 1952/1953 (Résumés de cours. College de France, 1952-1960). Contudo, levando em conta a ligação possível entre as discussões estabelecidas pelo pensamento de M. Merleau-Ponty acerca das artes, portanto, à pintura com as referências sobre o cinema ainda que nos apresente escassas, a questão que se pode estabelecer é: de que modo podemos entender a importância do cinema na sua filosofia e para a filosofia no modo geral? Esta pergunta, embora não seja a questão do intuito deste artigo, estimamos podê-la responder no seu desenvolvimento. Susana Veigas, em seu artigo sobre percepção e cinema, também se pergunta: “[...] como entender a importância e o interesse que o cinema teve na sua filosofia?”13. Para ela, a resposta se encontra na evidencia dos discursos apresentados pelo próprio filósofo. Stefan Kristensen, em sua obra Maurice Merleau-Ponty, une esthétique du mouvement, defende que “Merleau-Ponty tinha uma abordagem cinematográfica às artes visuais em 12

MERLEAU-PONTY, Maurice. Textos escolhidos/coleção os pensadores – 2ª ed. – São Paulo : Abril Cultural, 1984. p. 91. 13

Cf. VIEGAS, Susan. Film&Philosophy-Mapping an Encounteur. Maurice Merleau-Ponty. Instituto de Filosofia da Linguagem. 2010.

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geral e que, se a pintura é, na verdade, a linguagem que mostra a génese da nossa relação com o mundo, o cinema é aquela que torna visível o invisível das nossas relações com o outro”14 CINEMA E PERCEPÇÃO O tema do cinema em M. Merleau-Ponty é, sobretudo, mediado pelo fenômeno da percepção principalmente porque acolhe ainda que criticamente os princípios da Gestalttheorie, cuja exploração da relação entre conteúdo e forma, fundo e figura se faz aparente. Tendo isto em vista, o filósofo considera que a sétima arte vivificaria, não só a experiência de nossa inerência no mundo, como também às coisas e o outro, enquanto meio de interrogação filosófica no sentido além do ilustrativo. Nesta perspectiva, a relação entre cinema e filosofia, traz em voga a significação estética do mundo, dada em nossa percepção das coisas e de outrem. A conferência Le cinéma et la nouvelle psychologie, ao tratar da questão do cinema, o faz de modo breve e exploratório aludindo a questões contemporâneas a respeito da psicologia no que se refere a percepção, a intersubjetividade e, por conseguinte, do lugar em que ocupa a arte do cinema. O fio condutor estabelecido por M. Merleau-Ponty se desenvolve a partir do esclarecimento a respeito da percepção. Para o filósofo, no sentido intelectualista não muito estimado por ele, “a percepção torna-se uma interpretação dos signos que a sensibilidade fornece conforme os estímulos corporais, uma hipótese que o espírito forma para explicar suas impressões.”15 Uma segunda concepção da percepção ainda solidária a primeira vem por parte do empirismo moderno, que afirma ser a sensação e a percepção causadas pelos estímulos dos objetos externos, onde temos a partir disso, um processo de associação de sensações em uma percepção. A percepção para M. Merleau-Ponty, “não é uma espécie de ciência iniciante e um primeiro exercício da inteligência; é preciso que reencontremos um comércio com o mundo e uma presença, nele, mais antiga que a inteligência”16. Em suma, a percepção para nosso filósofo é a questão privilegiada de onde sobrevém o cinema como um tema que seduz, pois toda a arte só se exerce sobre um fundo inalienável do qual nos 14

KRISTENSEN, Stefan. Maurice Merleau-Ponty, une esthétique du mouvement. Archives de

Philosophie, 69 (1) (Printemps 2006), p. 123. Apud. VIEGAS, Susan. Opt. cit. 15 16

MERLEAU-PONTY, Maurice. Sens et Non-sens: Gallimard, 1996. p.42 Idem. 1996, p. 66.

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possibilita perceber o mundo, as coisas e o outro. A ideia da experiência enquanto comércio com o mundo, nos leva segundo as mais recentes análises psicológicas sobre a percepção estabelecidas pela Gestalt ao problema do outro. Ao contrário da psicologia clássica, que compreendia a percepção como um mosaico, reunindo e reorganizando partes extra partes do qual formaria um campo perceptivo, a psicologia Gestalt ou da forma afirma a percepção como global de abertura do estar-já-no-mundo ou numa terminologia heideggeriana, Ser-aí. Já que estamos imersos no mundo, a percepção é imediata e sintética configurando um todo, da forma sobre o fundo. O interesse de M. Merleau-Ponty pelo cinema, enquanto algo percepcionado, se baseia a partir do que foi posto pela fenomenologia da percepção, do olhar e também a partir de uma aproximação do outro à intersubjetividade. No cinema, esse caráter em que o espectador compreende de um modo excessivo aos dados do sentido, é de suma importância, pois Merleau-Ponty nos diz: “quando percepciono, não penso o mundo, ele organiza-se perante mim” 17 e com isso quer dizer que as análises de um objeto em geral se aplicam igualmente ao cinema ao passo que este é um objeto a se percepcionar e não a se pensar de modo imediato.

Ou ainda, “é através da percepção que podemos

compreender a significação do cinema: não se pensa o filme, percepciona-se”

18

. Tal

como no sistema da percepção em que o todo antecede as partes, também o cinema é percepcionado com um todo, onde o som, a imagem, o diálogo se encontram em um todo alcançando uma forma temporal. Uma vez que as análises que a psicologia faz sobre o ato perceptivo no cinema, da relação intríncica entre o espectador e as imagens que são projetadas se constituem, podemos aplica-la igualmente à percepção do mundo e do outro. Na percepção de um filme aprendemos a compreender a mudança de cenário, a sobreposição de objetos, o desaparecimento do campo de visão, entre outros, porque a nossa percepção não está, temporalmente, fechada no instante presente, já que o filme é percepcionado como um todo temporal. Daí a importâncias das análises de M. Merleau-Ponty, pois elas permitem não só compreender o cinema como a arte de tornar visíveis certos objetos como também certos comportamentos. Há de um modo geral, um aspecto cinematográfico na própria realidade, que torna possível um modelo de compreensão psicológico e filosófico que lhes é comum. Já que inicialmente afirmamos que existe uma reviravolta no pensamento filosófico de M. 17 18

Idem. 1996, p. 91. Idem. 1996, p. 104.

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Merleau-Ponty, das reflexões contidas na fenomenologia da percepção para uma reflexão a cerca da visão com os estudos sobre a arte (mais específicamente sobre a pintura) podemos também considerar legítimo que o cinema se destaque como objeto que concilia os dois projetos contribuindo, de maneira positiva, tanto para a reflexão sobre a percepção como para a reflexão sobre a visão. O OLHAR CINEMATOGRÁFICO SOB UMA ONTOLOGIA DO VER Logo no prefácio de La phénoménologie de la percepcion o problema da percepção é compreendido como o meio pelo qual temos acesso a verdade. No entanto, a verdade não nos dá nunca o acabado. Pois, uma verdade acabada seria a paralisia do presente, da situação que por ventura nos encontramos, que nos possibilita erros e acertos. A percepção originária, segundo M. Merleau-Ponty, olha as coisas como que pela primeira vez. Uma percepção originária, dirá o filósofo, é já expressão. Se a expressamos novamente, haverá, portanto duas expressividades, a expressividade do mundo e a das linguagens expressivas, ou seja, a linguagem da literatura, da pintura, que serão especialmente tratadas pelo filósofo, ou da música e do cinema como nos possibilita a interpretação. A relação entre percepção e diferentes formas de expressão é assunto tratado em Le Langage Indirect et les Voix du Silence. Neste texto, M. Merleau-Ponty se propõe a compreender diferentes formas que a expressão se apresenta, como a expressão da pintura e da literatura, mas também a história, em sua expressividade e seu sentido, como fundadas na percepção. No entanto, será em uma nota de trabalho de Le visible et l’invisible, que M. Merleau-Ponty vai pensar o ser como fundo da percepção. Essa percepção se assentará para ele na oposição entre figura e fundo, que constitui o ser. Em tudo que é visto o olhar muda de posição em um surgir e desaparecer, ou numa terminologia heideggeriana, um velar-se enquanto se desvela, que constitui o modo de nosso acesso sempre limitado do ser. O ver só é possível, no entanto, porque o visto emerge de um fundo que se ausenta. O sujeito da percepção deixa de ser o corpo próprio, este corpo de cada um como o vive e o percebe, para se tornar carne que é para ele um elemento do Ser. Onde esta mantém com a carne do mundo relações mais imbricadas. A carne é o elemento comum entre sujeito e mundo, de modo que corpo e mundo se constituem numa reciprocidade de experiência tecida no fundo carnal. Ela é o ponto de origem, daquilo que antes do que nada é pensável. A carne sustenta, como elemento originário, possibilidade e tecido 18

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invisível, o visível que irradia um modo de Ser, que aparece como cristalização momentânea a partir da experiência no mundo que une sujeito e mundo, corpo e coisas, num horizonte comum. Ela liga aquilo que é visível, ou seja, a coisa do mundo e aquele que vê, ao corpo, sendo condição de que ambos são feitos, indicando uma relação de proximidade que dá àquele que vê uma espécie de familiaridade prévia com o visível. 19 Maurice Merleau-Ponty influenciado pela Gestaltheorie vai compreender também o Ver nesta relação figura-fundo. Ver se torna, no entanto, um jogo de posições, oposições e equivalências entre as figuras do ser e seu fundo invisível. “Ver [...] é [...] assistir por dentro à fissão do Ser” 20. A respeito disso, Alberto Tassinari no posfácio da edição brasileira de L’oeil et l’Espírite, vem dizer: “Se a fissão do Ser é sua separação, sua divisão, ela é a separação entre o Ser que é figura e o Ser fundo, invisível. Ela é enfim, a diferença diacrítica entre o que vejo e o que não vejo. E que só pode ser vista por dentro do Ser, pois o Ser não tem um fora.” 21 Nesta passagem, ele nos remete a tomada de M. Merleau-Ponty do pensamento de F. Saussure, no qual o filósofo influenciado por ele formula uma concepção do Ver como um sistema diacrítico ao associar Ser e Ver. É evidente que em L’oeil et l’espirit, M. Merleau-Ponty pretende renovar e tornar mais concreto o pensamento de M. Heidegger, quando fala sobre os aspectos do visível. Já que Ver é ver sobre um fundo de Ser, os aspectos do visível são como categorias do Ser. O Ser enquanto tal, não pode ser dito. Retrai-se na linguagem em que ele mesmo surge. Não pode ser dito nem visto. Então se faz importante ser dito que M. Merleau-Ponty não fala de uma visão do Ser, fala de uma fissão do Ser. Diante disso nos explica Marilena Chauí: Ao fazer falar a experiência como fissão no Ser, Merleau-Ponty levanos de volta ao recinto da encarnação, abandonando aquela maneira desenvolta com a qual a filosofia julgava poder explicá-la, perdendoa. Doravante, não se trata, em primeiro lugar, de explicar a experiência, mas de decifrá-la nela mesma, e não se trata, em segundo lugar, de separar-se dela para compreendê-la. Somos levados ao recinto da experiência pelas artes, cujo trabalho é a iniciação que nos ensina a decifrar a fissão no Ser.22

19

Cf. ALVIM, Mônica Botelho. A ontologia da carne em Merleu-Ponty e a situação clínica na Gestaltterapia: entrelaçamentos. Ver. Abordagem Gestalt. Vol.17 nº2 Goiânia dez. 2011. 20 MERLEAU-PONTY, Maurice. Textos escolhidos/coleção os pensadores – 2ª ed. – São Paulo : Abril Cultural, 1984. p.108. 21 MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito (seguido de A linguagem indireta e as vozes do silêncio e A dúvida de Cézanne). Tradução de Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. Prefácio de Claude Lefort. Posfácio de Alberto Tassinari. Rio de Janeiro: Cosac & Naify, 2004. P.155. 22 CHAUÍ, Marilena. Merleau-Ponty a obra fecunda. Ver. Cult. Ed. 123. 2010

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Levados a essa experiência pelas artes, ainda em L’oeil et l’espirit, M. MerleauPonty busca na pintura, sobretudo em Cézanne uma profundidade que é igualável a um ramo do Ser. A profundidade para o filósofo é a figura que vai mais longe em direção ao fundo do Ser, pois ela pulsa entre a visibilidade e a invisibilidade. Essas deformações por assim dizer da arte moderna, é o que espera M. Merleau-Ponty compreender por uma ontologia do Ver, ou seja, como expressões concretas dessa ontologia. Sem os ramos do Ser (profundidade, cor, forma, linha, movimento, contorno) tudo perderia densidade. E assim se dá sua concepção de relação entre o Ser e o Ver, em suas reflexões acerca da pintura constituindo uma Ontologia do Ver. Mas o olhar que aqui nos interessa é o olhar cinematográfico. Ora, no cinema o olhar de quem percepciona torna-se um olhar cinematográfico, um olhar que coincide e coexiste com o próprio filme. Onde o vidente coexiste com o visível. O olhar no cinema, é reinventado a si próprio como olhar visível. Por isso, o potencial filosófico do cinema será o de mostrar por meio da significação estética do mundo, que é dada por meio da nossa percepção das coisas, de que modo estamos imersos no mundo e nos outros, e principalmente de que modo a própria intencionalidade se manifesta. O exterior dos corpos, nos seus comportamentos e gestos, são uma manifestação de uma consciência intencional, de uma consciência que toca. Maurice Merleau-Ponty mostra que o interior invisível se mostra no exterior visível e, neste sentido o cinema tem o poder de mostrar o interior do corpo através do exterior do corpo vivido, por meio das representações dos gestos. No entanto, o filme em sua criação de forma temporal, não consiste apenas em anexar som e imagens, porque a relação entre os dois elementos é primordial, pois há um sincronismo entre som e imagem a fim de criar uma realidade envolta na relação visível e invisível. Chamando a atenção para outra ordem de realismo, capaz de revelar não só o mundo, mas o outro e as coisas em nossa percepção originária, como seres reais, ou seja, carnais, M. Merleau-Ponty busca compreender, na imagem cinematográfica, não apenas uma representação do mundo, mas a própria presença viva de nossa carnalidade, ou seja, para o filósofo a imagem é carne. Do mesmo modo que a tela de um pintor, o filme transcende sua materialidade gráfica, pois revela em “carne e osso”, a presença23. O amor, o medo ou até mesmo o ódio, que vemos em tela expressam igualmente estes sentimentos vividos fora dela. Escreve ele: 23

Cf. PINTO, Débora Morato... [et al] Ensaios sobre a filosofia francesa contemporânea. São Paulo: Alameda, 2009 p. 134-137.

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Revista Sísifo – v. 2, nº 1, agosto 2015. Ano 2015 - ISSN: 2359-3121 - www.revistasisifo.com Eis porque a expressão humana pode ser tão apreensível no cinema: este não nos dá os pensamentos do homem, como o fez o romance durante muito tempo: dá-nos a sua conduta ou o seu comportamento, e nos oferece diretamente essa maneira especial de ser no mundo, de tratar as coisas e os outros, que é, para nós, visível nos gestos, no olhar, na mímica e que define com evidência cada pessoa que conhecemos.24

A exemplo da arte pictórica, o cinema em sua técnica cinematográfica nos permite ser compreendida, nas palavras do próprio filósofo, como uma “técnica do corpo”, pois, “ela figura e amplifica a estrutura metafísica de nossa carne”25, esta carne que se transfigura como meio formador entre mim e outrem, o ator e o espectador, o visível e o invisível. Desse modo, na nossa experiência carnal do movimento existe um espaço e um movimento, que é presença total no mundo que se vivifica a partir do cinema. Diz M. Merleau-Ponty: O cinema, inventado como meio de fotografar os objetos em movimento ou como representação do movimento tem descoberto junto a si muito mais que a mudança de lugar, isto é, uma maneira nova de simbolizar os pensamentos, um movimento de representação. Pois, o filme, seu corte, sua montagem, suas mudanças de ponto de vista solicitam e por assim dizer celebram nossa abertura ao mundo e ao outro, do qual ele faz perpetuamente variar o diagrama.26

A arte cinematográfica, no entanto, cria uma nova linguagem, e por isso, um novo modo de dizer o Ser. Uma nova estética que faz surgir uma dialética do visível e o invisível tomados como contrapartida um do outro. Na imagem cinematográfica, “um filme significa como temos visto em ultima análise o que uma coisa significa: um e outro não falam a um entendimento separado, mas se dirigem ao nosso poder de decifrar tacitamente o mundo e os homens e coexistir com eles.”27 O cinema e a filosofia nos conduz a um valor estético que leva M. Merleau-Ponty a dizer: “O cinema está particularmente apto a tornar manifesta a união do espírito com o corpo, do espírito com o mundo e a expressão de um no outro. Eis por que não é surpreendente que o crítico possa, a propósito de um filme, evocar a filosofia.” 28

24 25

MERLEAU-PONTY, Maurice. Sens et Non-sens: Gallimard, 1996. p. 74. Idem. Textos escolhidos/coleção os pensadores – 2ª ed. – São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 92.

26

MERLEAU-PONTY, Maurice. Résumés de Cours: College de France (1952-1960). Paris: Gallimard, 1968. p. 20. 27 Idem. Fenomenologia da Percepção. 3ª ed. São Paulo: Martins Fonte, 2006. p. 73. 28 Idem. op. cit., p. 74.

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Referências bibliográficas: ALVIM, Mônica Botelho. A ontologia da carne em Merleu-Ponty e a situação clínica na Gestalt-terapia: entrelaçamentos. Revista: Abordagem Gestalt. Vol.17 nº2 Goiânia dez. 2011. CHAUÍ, Marilena. Merleau-Ponty a obra fecunda. Revista: Cult. Ed. 123. 2010 MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. _____________. O visível e o invisível. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. _____________. O olho e o espírito (seguido de A linguagem indireta e as vozes do silêncio e A dúvida de Cézanne). Tradução de Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. Prefácio de Claude Lefort. Posfácio de Alberto Tassinari. Rio de Janeiro: Cosac & Naify, 2004. ____________. Textos escolhidos/ Maurice Merleau-Ponty; seleção de textos de Marilena Chauí; Tradução e notas de Marilena Chauí, Nelson Aguilar, Pedro Morais. – 2ª ed.- São Paulo; Abril Cultural, 1984. (Os pensadores). ____________. Sens et Non-sens. Paris: Gallimard, 1996. ____________. Résumés de Cours: College de France (1952-1960). Paris: Gallimard, 1968. VIEGAS, Susan. Film&Philosophy-Mapping an Encounteur. Maurice Merleau-Ponty. Instituto de Filosofia da Linguagem. 2010. XAVIER, Ismael. A experiência do cinema: Antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme, 1983. (Coleção arte e cultura; v. nº 5)

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O PERSONAGEM-ESPECTADOR E O COLAPSO DO ESQUEMA SENSÓRIO-MOTOR NO CINEMA

Leonardo Araújo Oliveira29

Publicações, projetos de pesquisa e de extensão vêm crescendo cada vez mais em torno da relação entre filosofia e cinema. A linha mestra que tem guiado a maioria dessas produções pode ser resumida com a seguinte fórmula: utilizar filmes para ilustrar teorias filosóficas. Entre 1983 e 1985, Gilles Deleuze, já reconhecido como filósofo e historiador da filosofia (tendo escrito vários trabalhos monográficos nesse campo) publica dois volumes sobre cinema, Cinema 1: a imagem-movimento e Cinema 2: A imagem-tempo. Nesses livros, entre uma enorme lista de filmes, cineastas e correntes cinematográficas, figuram nomes de pensadores como Immanuel Kant, Friedrich Hegel, Friedrich Nietzsche, Henri Bergson, Charles Sanders Peirce, entre outros. Todavia, o trabalho de Deleuze parece muito distante da abordagem mais corrente acerca da relação entre filosofia e cinema, resumida acima. Gostaria de expor um pouco do percurso deleuzeano em sua originalidade. Para tanto, trabalharei com Bergson, Hitchcock e alguns nomes do neorrealismo italiano, como Rossellini e De Sica, em conexão com os seguintes temas percorridos por Deleuze na passagem da imagem29

Mestrando no Programa de Pós-graduação em Filosofia da UNESP. Bolsista Capes. Contato: [email protected].

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movimento à imagem-tempo: a falência do esquema sensório-motor e a posição ocupada simultaneamente por espectador e personagem. O filósofo francês Henri Bergson defende que toda matéria é imagem. Ele eleva a imagem ao nível ontológico. O mundo é feito de imagens que agem e reagem umas sobre as outras, sem qualquer determinação fixa de quais imagens agem e quais reagem. A consciência não cria imagens, mas ela própria é uma imagem que, no entanto, seleciona outras imagens. As imagens estão no mundo, existentes de direito para toda consciência, ainda que não reveladas. A revelação das imagens se dá quando elas aparecem para uma consciência, passando da existência de direito para a existência de fato. Destarte, é possível compreender como Deleuze, a partir da caracterização da consciência por Bergson, identifica a consciência ao plano cinematográfico. A diferença entre um corpo (que também é imagem) dotado de consciência das demais imagens consiste na posse de um intervalo de movimento entre o movimento percebido e o movimento executado. Segundo essa descrição nosso corpo funciona como um sistema sensório-motor. Ele percebe movimento e aciona movimento, uma vez que o ser vivo é feito de ação e sua percepção funciona segundo a ação, para manter-se vivo: “A atualidade de nossa percepção consiste portanto em sua atividade, nos movimentos que a prolongam” (BERGSON, 2006, p. 72). Como tudo é imagem, desse contexto argumentativo é possível perceber os conceitos de imagem-percepção e imagem-ação. A consciência é um intervalo entre essas duas imagens, é uma imagem opaca, um écran. Mais “próxima” da consciência está a imagem-afecção. Esse intervalo de movimento é o que Deleuze denomina de centro de indeterminação. Indeterminado, ele oscila entre os três tipos de imagem. A imagem-percepção é a primeira imagem apreendida na compreensão dessa imagem-vivente, do plano cinematográfico segundo Deleuze e da consciência segundo Bergson. Esse tipo de imagem é formada na medida em que é formada uma percepção subjetiva no centro de indeterminação. A imagem-ação, por sua vez, é concebida segundo a face ao mesmo tempo oposta e complementar da percepção subjetiva. Tendo em vista o esquema sensório-motor, é preciso remeter a percepção a uma ação que se desdobra dela. Mas para que exista uma ação a quem a percepção almeja e alcança, o movimento deve passar pelo centro mesmo do intervalo, que é ocupado pela imagemafecção. No cinema, Deleuze estabelece a seguinte correspondência entre essas imagens e os tipos de enquadramento de câmera: imagem-percepção e plano geral (ou de 24

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conjunto); imagem-afecção e primeiro plano (ou close); imagem-ação e plano médio (ou americano). Em Cinema 1, antes de considerar a imagem-ação, Deleuze menciona uma imagem de passagem (entre a imagem-afecção e a imagem-ação): é a imagem-pulsão. Esse tipo de imagem é de difícil alcance e definição, segundo o próprio Deleuze. Ela estaria relacionada com a literatura naturalista, que tem Émile Zola como seu grande representante. Segundo o filósofo francês, o naturalismo não se opõe ao realismo, ao contrário, ele prolonga-o. No cinema, essa característica se expressaria em imagens superrealistas, ou mesmo, em imagens surrealistas. Por isso Luis Buñuel estaria entre os cineastas representantes da imagem-pulsão. As três primeiras imagens apresentadas também têm como base a ontologia bergsoniana. Em Matéria e memória, Bergson procura distanciar-se de duas teses que ele afirma serem igualmente excessivas, a saber, o do idealismo e a do realismo. A primeira reduziria “a matéria à representação que temos dela”, enquanto a segunda faria da “matéria algo que produziria em nós representações mas que seria de uma natureza diferente delas” (BERGSON, 1999, p.4). A matéria seria algo mais do que a “representação” idealista e menos do que a “coisa” realista. Nesse sentido que Bergson compreende a matéria como um conjunto de imagens. Contudo, Bergson também desenvolve a ideia de que o intervalo entre movimento percebido e movimento executado pode produzir uma fissura, um retardo motor. A partir dessa problemática, Deleuze, no último capítulo do livro acerca da imagem-movimento, intitulado A crise da imagem-ação, desenvolve a possibilidade do surgimento de outra variedade da imagem-movimento, com a introdução do mental no cinema. Destarte, é pensada a crise da imagem-ação, e com ela, mais ainda, surge todo um questionamento da imagem-movimento pela quebra do esquema sensório-motor, que, quebrado por dentro, não se exerce, pois “as percepções e as ações não se encadeiam mais” (DELEUZE, 2009, p. 55). A imagem mental não pertence ao mesmo nível da seleção de imagens feitas por Deleuze no interior da imagem-movimento (imagem-percepção, imagem-ação, imagemafecção e com alguma ressalva, imagem-pulsão), uma vez que nela o “mental” incide de maneira exterior a imagem. Aos olhos de Deleuze o principal representante do cinema da imagem mental é Alfred Hitchcock. Essa imagem é importante devido ao fato de que o cinema de Hitchcock oferece o principal atestado de crise da imagem-ação desde seu interior. Não 25

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estaria no “nível” do neorrealismo italiano, pois seu cinema ainda era de predominância da imagem-movimento, mas ali já se misturava os lugares ocupados por espectador e personagem. Disque M para matar (Dial M for Murder), por exemplo, pode ser visto como todo um processo de raciocínio, em que Tony Wendice (interpretado por Ray Milland) trama um plano para assassinar sua noiva Margot (Grace Kelly), e após a falha do plano, busca levá-la a prisão. Tony age como se tudo tivesse ao controle de seu raciocínio. O cálculo único se debruça, em termos de materialidade fílmica, sobre a unidade do cenário. Todo o filme se passa tendo como centro do cenário o apartamento do casal. Seis anos antes Hitchcock dirigia Festim Diabólico (no original: Rope). Nesse longa-metragem a unidade do cenário é ainda mais radical. Assim também é a unidade do raciocínio, filmado em uma só peça, um único plano que percorre o apartamento sem sair dele, tendo seus cortes de uma tomada para outra omitidos pelo virtuosismo técnico do diretor, que teve que lidar com a limitação dos rolos de filme que não passavam de 10 minutos. Dois jovens assassinam um rapaz e fazem um jantar festivo sobre o seu corpo, escondido em um baú. Assim como em Disque M para Matar, o filme acontece pelos argumentos expostos, numa batalha de ideias que gira em torno do tema do crime. Mas somente esses exemplos não são suficientes para determinar a especificidade de Hitchcock enquanto cineasta da imagem mental. Poderíamos elencar uma série de filmagens de outros cineastas que se aproximariam muito do que foi descrito até aqui. Uma rápida olhada no cinema norte-americano e poderíamos pensar em um elenco de filmes de investigação criminal ou de caráter mais diretamente judiciário que poderiam satisfazer as exigências do cinema da imagem mental. Mas isso soa contraditório com a ideia de que a imagem mental traz a crise da imagem-ação. Portanto, é válido acrescentar elementos que, junto aos descritos, possa oferecer uma visão mais satisfatória da peculiaridade da imagem mental. Pois bem, Janela Indiscreta (Rear Window) nos parece o melhor exemplo para fechar a apresentação da ideia de imagem mental no cinema. Nessa obra reside o maior questionamento do esquema sensório-motor realizado no cinema de Hitchcock. O fotógrafo Jeff (protagonizado por James Stewart) se encontra paralisado em uma cadeira de rodas após um acidente de trabalho. Confinado em seu apartamento, o personagem passa a assistir o mundo a partir de sua janela. Por muitas vezes podemos perceber o corpo de Jeff atuar como um sistema sensório-motor danificado. Ao perceber os 26

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acontecimentos através de sua janela aberta, Jeff não pode responder da maneira que se esperaria em um filme de ação. Sua percepção não leva a uma ação imediata. Sua reação é retardada. Abre-se a fissura entre percepção e ação, revelando um estado de impotência motora. Para Deleuze, Hitchcock estabelece outra relação entre o pensamento e a imagem cinematográfica. Em Disque M, já era possível ver o espectador se tornar personagem com a câmera sendo direcionada, em alguns momentos de diálogos, para quem escuta, ocupando, assim, o lugar de quem fala. Mas se nessa obra espectador e personagem são unidos pelo tipo de enquadramento, em Janela Indiscreta o cineasta inglês faz dessa união a própria questão do filme. Jeff/Stewart é um espectador/ator do próprio filme, que gira em torno de sua visão, de sua expectativa e re-ação a partir daquilo que seus olhos e ouvidos apreendem. Deleuze constata em sua visão do cinema de Hitchcock um momento de reversão do domínio do movimento sobre o tempo. Segundo o autor, a imagem-tempo apareceria apenas com o neo-realismo italiano, em que o tempo estaria em condições de emergir de maneira direta, isto é, sem estar subordinado ao movimento. As imagens diretas do tempo seriam alcançadas por meio das imagens puramente óticas e sonoras, que Deleuze denomina de opsignos e sonsignos. Contudo, é possível notar que a imagem mental no cinema de Hitchcock não deixa de condicionar o personagem a uma situação ótica pura. Basta enquadrarmos o caso do personagem de James Stewart na cadeira de rodas, condenado a tocar o mundo fora de seu apartamento apenas com o olhar. Dessa maneira a imagem-movimento é colocada em xeque, sobretudo em função da quebra do esquema sensório-motor: “É que e o esquema sensório-motor já não se exerce, mas também não é ultrapassado, superado. Ele se quebra por dentro. Quer dizer que as percepções e as ações não se encadeiam mais” (DELEUZE, 2009, p. 55). A hierarquia que o movimento impunha sobre o tempo é desarticulada, a quebra leva às situações óticas e sonoras puras, mas o esquema sensório-motor ainda se apresenta, mesmo que quebrado. O movimento aberrante havia sido reconhecido, mas também conjurado. Tratava-se do movimento que foge a centros de determinação, uma espécie de movimento anormal. Deleuze acredita que o movimento aberrante oferece uma imagem do tempo em sua totalidade, anterior mesmo a ação, isto é, ao próprio movimento: “Se o movimento normal vai subordinar o tempo, do qual nos dá uma representação indireta, 27

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o movimento aberrante atesta uma anterioridade do tempo, que ele nos apresenta diretamente” (DELEUZE, 2009, p. 51). Deleuze acredita que esse movimento já se apresentava com os grandes pioneiros do cinema, como Jean Epstein. Mas nesse mesmo terreno deduziu-se uma tentativa de reparação desse movimento, de modo que as aberrações tenham sido normalizadas, compensadas, “submetidas a leis que salvavam o movimento, [...] e que mantinham a subordinação do tempo” (DELEUZE, 2009, p.54). Desse modo, foi preciso esperar cineastas como Hitchcock para que o movimento sofresse uma crise na imagem, no interior da imagem-ação – uma das formas mais marcantes da imagem-movimento, sobretudo em Hollywood. Foi preciso a inserção de uma interferência no esquema sensório-motor, uma desproporção instalada entre movimento recebido e movimento executado, entre a percepção e a ação, para que houvessem o aparecimento das situações óticas e sonoramente puras. Mas em Hitchcock não predomina as imagens diretas do tempo. A reversão do domínio do movimento sobre o tempo em seu cinema ainda é muito inicial, na medida em que a imagem-movimento ainda não é agredida por inteiro em seu domínio. Atacase a imagem-movimento, mas o faz de seu interior, não escapando dela. Situações sonoras e óticas puras, enquanto vistas ainda a partir da imagem-movimento, mesmo que atestando a crise da imagem-ação, permanecem sob o modelo dicotômico situaçãoreação. As imagens, nesse modelo, necessitam de uma impossibilidade de ação decorrente de uma situação dada (por exemplo, a perna quebrada em Janela indiscreta), o que configura a situação ótica pura como resultado de um meio, como reação a um meio dado previamente. Por essa via, até mesmo o efeito de transformar o espectador em personagem é criado em função da identificação entre os dois em meio a uma situação sensório-motora. Por isso, em busca de um cinema da imagem-tempo, Deleuze recorre a outras produções. Algumas delas residem numa corrente que na história do cinema veio a se denominar neorrealismo, que emergiu na Itália do pós-guerra. Contra as interpretações correntes em seu tempo, André Bazin procurou analisar o neorrealismo sem se limitar ao conteúdo dos filmes, buscando atingir seus aspectos formais. Destarte, a importância do neorrealismo para a história do cinema não viria do conteúdo social de seus filmes, mas do fato de que essa corrente criou o que Bazin denomina de imagem-fato (Cf. BAZIN, 1991, p.253). Deleuze, por sua vez, concorda que a importância do neorrealismo não deve ser reconhecida apenas em seu conteúdo. No entanto, sua posição singular na história das imagens cinematográficas não reside

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em sua ligação com um pretenso realismo, mas sim em sua relação com o tempo, em poder propiciar uma imagem direta do tempo que reverta o predomínio do movimento. Segundo o filósofo francês, independente de sua situação sensório-motora, o personagem neo-realista “registra, mais que reage” (DELEUZE, 2009, p.11). Assim como Hitchcock, o cinema neorrealista, a sua própria maneira, transforma as posições do espectador e do personagem em uma situação única. Tal configuração pode ser vista em filmes dirigidos por Roberto Rossellini. Rossellini é um diretor muito conhecido em torno da relação entre filosofia e cinema, sobretudo por ter realizado uma série de longas-metragens acerca da vida e das ideias de pensadores renomados na história da filosofia, como Sócrates, Agostinho, Descartes e Pascal. Mas o que mais interessa Deleuze em Rossellini são os sonsignos e opsignos, de modo que outros filmes são mais pertinentes para a discussão deleuzeana sobre a imagem-tempo. Mencionaremos dois deles, em que a transformação dos personagens em espectador é marcante. Em Alemanha ano zero (Germania anno zero), o jovem Edmund Koeler, interpretado pelo também Edmund (Moeschke) se suicida após tudo que vê. Do alto de um prédio em ruínas, nos últimos minutos do filme, após uma série de perambulações (característica marcante do neorrealismo) o garoto assiste o mundo lá fora, também em ruínas, inclusive o corpo de seu pai – principal motivo de sua perambulação durante todo filme – ser carregado, após o próprio Edmund ter lhe abreviado a vida de dor e sofrimento. O suicídio de Edmund não se dá somente por ter envenenado o pai. Sua morte não se entrecruza mais com sua ação do que com sua visão, ela está intrinsecamente ligada àquilo que ele vê, à sua condição de personagem-espectador. Europa '51 seria outro longa-metragem de Rossellini que serviria como exemplo. Irene Girard (vivida por Ingrid Bergman), personagem que não experimentava nada fora do mundo burguês em que vivia, após e a partir da morte do filho passa a conhecer o mundo das favelas e dos conjuntos habitacionais da Itália do Pós-guerra. Deleuze aborda essa cena no capítulo Para além da imagem-movimento, em A imagemtempo: quando o olhar da personagem se livra da função prática de dona-de-casa, “que arruma as coisas e os seres, para passar por todos os estados de uma visão interior, aflição, compaixão, amor, felicidade, aceitação, [...] ela vê, aprendeu a ver” (DELEUZE, 2009, p.9). Assim, Deleuze parece enxergar nesse filme uma espécie de pedagogia do olhar.

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Embora, ao analisar o cinema de Vittorio De Sica, Deleuze dê mais atenção a Umberto D, outro exemplo de uma pedagogia da visão e de um aprendizado através do olhar pode ser oferecido pelo célebre longa-metragem Ladrões de bicicleta (Ladri di biciclette). Ali, o pressuposto para o desenrolar do enredo é precisamente uma quebra de um sistema sensório-motor, quando o personagem Antonio Ricci, antes ocupado com o seu trabalho ou com a procura dele, têm suas atividades mecânicas interrompidas pelo furto de seu instrumento de trabalho: a bicicleta. Passando a empreender uma tarefa que foge de seu cotidiano, ele começa a enxergar a Itália em suas misérias e contradições, realizando um movimento de apreensão da Itália em seu espírito, aprendendo a vê-la. Deleuze diz não fazer história do cinema, mas parece acompanhar o aspecto histórico ao iniciar o segundo volume de sua obra abordando precisamente o neorrealismo, no período após a segunda guerra mundial, pois esse movimento é tido como a grande influência de várias outras manifestações coletivas envolvendo um estilo próprio na história do cinema, como a nouvelle vague, o cinema novo alemão e o cinema novo brasileiro, todos movimentos artísticos datados da segunda metade do século XX. São cineastas participantes dos movimentos citados que são constantemente invocados por Deleuze no segundo volume, nomes como Jean-Luc Godard, Alain Resnais, Werner Herzog, Wim Wenders e Glauber Rocha. No entanto, é preciso levar a sério quando Deleuze diz não fazer história do cinema. O que escrevemos até aqui já serve como exemplo de base dessa tese, uma vez que citamos alguns filmes de Hitchcock pertencentes ao cinema da imagem-movimento que são historicamente posteriores a filmes de Rossellini situados no cinema da imagem-tempo. Os personagens do cinema neorrealista, ao experimentarem situações óticas e sonoras puras, constatam a presença de algo muito forte, da ordem do intolerável, de algo impossível de ser vivido, segundo Deleuze. Essa experiência e essa constatação levam esse tipo de cinema para além do esquema sensório-motor, e para além da imagem-movimento. A principal preocupação de Deleuze com essa linha de argumentação é pensar a passagem para a imagem-tempo, a liberação do tempo na imagem em sua forma pura. Para tanto, realiza o procedimento negativo de verificar os momentos de falência da imagem-movimento. O principal desses momentos ocorre com a imagem-ação. Nos livros de Deleuze não existe, de modo algum, uma crítica a imagem-movimento, mas sim aos clichês que a ocuparam e imobilizaram sua potência de criação. Esse movimento negativo liberta não só a temporalidade pura – questão que não 30

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aprofundamos aqui –, mas como podemos perceber desde já, libera também uma discussão em torno da relação entre personagem e espectador. Essa discussão amplia a formulação teórica acerca do cinema, não apenas de sua produção para sua recepção, mas para um mergulho em uma reflexão sobre a própria prática de ver e do aprendizado com as imagens. Assim o cinema mostra sua potência de destruição de clichês e de reinventar a si próprio.

Referências bibliográficas: BAZIN, André. O cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991. BERGSON, Henri. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005. ______. Matéria e memória. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. DELEUZE, Gilles. Cinema 1: a imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985. ______. Cinema 2: a imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2009. DIAL M for Muder. Direção: Alfred Hitchcock. Produzido por Warner Bros., 1954. 105 min. EUROPA '51. Direção: Roberto Rossellini. Produzido por Ponti-De Laurentiis Cinematografica, 1952. 113 min. GERMANIA anno zero. Direção: Roberto Rossellini. Produzido por Tevere Film, SAFDI e Union Générale Cinematographique, 1948. 78 min. LADRI di biciclette. Direção: Vittorio De Sica. Produzido por Produzioni De Sica, 1948. 93 min. REAR Window. Direção: Alfred Hitchcock. Produzido por Paramount Pictures e Patron Inc., 1954. 112 min. ROPE. Direção: Alfred Hitchcock. Produzido por Warner Bros., Transatlantic Pictures e Metro-Goldwyn-Mayer, 1948. 80 min.

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O CINEMA E O TEMPO CRIADO Esboço de ensaio

Yves São Paulo30

Este texto é um ensaio. Como o próprio nome já diz, aqui não será apresentado nenhum dado definitivo, mas algumas implicações que nos levarão a uma conclusão. Nosso objeto de estudo é o tempo cinematográfico. Enquanto espectador de um filme, percebo que o tempo passa enquanto assisto à obra. Enquanto cinéfilo, percebo que diferentes cineastas trabalham de formas diferentes para nos fazer perceber o tempo. Ora ele é alongado, ora ele parece curto. Trata-se de um ensaio escrito, antes de qualquer coisa, por um cinéfilo, e por isso muitos serão os filmes abordados aqui, neste que é um ensaio de introdução a um pensamento. Comecemos, então, com uma história: Em Turim, no dia 3 de janeiro de 1889, Friedrich Nietzsche deixa a residência no número 6 da Via Carlo Alberto, talvez para dar um passeio, talvez para ir até o correio para recolher sua correspondência. Não longe dele, ou realmente bastante longe dele, um cocheiro tem problemas com seu cavalo teimoso. Apesar de sua premência, o cavalo resolve empacar, o que faz com que o cocheiro - Giuseppe? Carlo? Ettore? - perca a paciência e comece a chicoteá-lo. Nietzsche avança até a multidão e 30

Graduando em Filosofia pela Universidade Estadual de Feira de Santana e editor da Revista Sísifo.

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põe um fim ao brutal espetáculo do cocheiro, que está espumando de raiva. O forte e bigodudo Nietzsche repentinamente pula na carroça e abraça o pescoço do cavalo, soluçando. Seu vizinho o leva para casa, onde ele fica deitado por dois dias, imóvel e silencioso, em um divã até que finalmente murmura suas últimas palavras: "Mutter, ich bin dumm." ("Mãe, eu sou idiota."). Ele vive ainda por 10 anos, meigo e demente, sob os cuidados de sua mãe e irmãs. Do cavalo, nada sabemos.31 As palavras acima são enunciadas pelo narrador do filme O Cavalo de Turim (A torinói ló) do cineasta húngaro Béla Tarr. Elas soam para o espectador enquanto este mergulha na escuridão da sala de cinema proporcionada pela tela preta que mantém o filme sem qualquer representação espacial daquilo que é retratado pelo narrador. Perante esta falta, o espectador se vê obrigado a construir a cena em sua mente, afinal de contas todas as ferramentas lhes são dadas para que ele o faça. Ele sabe em que momento histórico do evento (a data do evento lhe é informada), ele sabe quem são os personagens, sabe a localidade e a ação lhe é detalhada. Tudo isto faz com que a cena, embora não seja apresentada na tela surja em sua mente. La Jetée é um filme de Chris Marker que nos apresenta uma humanidade frágil perante as destruições causadas pela terceira guerra mundial, onde a humanidade tem que se refugiar no subterrâneo das grandes cidades (o filme se passa em Paris), mas vivendo de maneira precária. O curta em questão é todo construído por uma sucessão de fotografias que apresentam a história que está a ser narrada por um narrador que não participa da trama. Alfred Hitchcock desenvolveu durante sua carreira algumas das mais importantes noções de construção cinematográficas que hoje possuímos, além de ter acrescentado alguns termos importantes para o dicionário cinematográfico32. Eis sua explicação sobre a diferença entre suspense e surpresa: A diferença entre suspense e surpresa é muito simples, e costumo falar muito sobre isso. Mesmo assim é frequente que haja nos filmes uma confusão entre essas duas noções. Estamos conversando, talvez exista uma bomba debaixo desta mesa e nossa conversa é muito banal, não acontece nada de especial, e de repente: bum, explosão. O público fica surpreso, mas, antes que tenha se surpreendido, mostram-lhe uma cena absolutamente banal, destituída de interesse. Agora examinemos o suspense. A bomba está 31 32

TARR, B. O cavalo de Turim. 2011. TRUFFAUT. HITCHCOCK. Hitchcock/Truffaut, p. 137-138.

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debaixo da mesa e a plateia sabe disso, provavelmente porque viu o anarquista colocá-la. A plateia sabe que a bomba explodirá à uma hora e sabem que falta quinze para a uma - há um relógio no cenário. De súbito a conversa banal fica interessantíssima porque o público participa da cena.33 Tomemos a mesma cena descrita por Hitchcock: um grupo de pessoas conversa em torno de uma mesa, e debaixo dela existe uma bomba com um relógio em contagem regressiva. O espectador sabe da presença daquela bomba, o que o deixa bastante apreensivo, porque um daqueles personagens é o mocinho da história. Em certo momento da conversa uma das pessoas sentadas à mesa deixa um papel cair no chão e se abaixa para pegá-lo. Ao fazê-lo descobre a bomba e informa aos demais. Um deles decide desarmá-la. O relógio continua em contagem regressiva. Faltam agora alguns segundos para que a bomba exploda nas mãos de nosso herói, que ainda não conseguiu desligá-la. Os segundos começam a passar lentamente. De repente o relógio mostra que faltam dez segundos para a explosão. O diretor prefere fazer um passeio pelo rosto dos presentes para mostrar a apreensão estampada no rosto de todos. Esta cena dura mais do que um segundo, mas quando ele volta para o relógio da bomba ele contabiliza nove segundos. O tempo continua passando e o diretor resolve agora, aos cinco segundos, fazer um flashback com o personagem e vemos todos os momentos felizes que haviam sido mostrados no filme. Com isto ele assegura o afeto do espectador para com o personagem deixando quem assiste mais nervoso, não querendo que aquele sujeito morra. Este flashback pode durar até vinte ou trinta segundos, mas quando voltamos o relógio da bomba ainda está em quatro segundos. Em um plano/contraplano o diretor mostra o personagem e o objeto que o aflige, e esta pode ser uma das poucas cenas em que o segundo é respeitado, mas a preferência pelo aumento do tempo em uma cena de suspense é aconselhável para aumentar a tensão do espectador. Por fim ele consegue desarmar a bomba e o espectador respira aliviado. É curioso tratarmos o alongamento do tempo partindo de Hitchcock. O cineasta inglês em momento algum promove tal feito. É ação que poderíamos ter creditado, antes, a Michelangelo Antonioni. Mas preferimos guiar este ensaio por meio de imagens, afinal estamos a falar de cinema, e as criações de Antonioni não nos dariam esta impressão se transcritas da imagem à palavra escrita. O caso é que Hitchcock se baseia numa criação de um tempo próximo ao fenomênico. Lembremos duas cenas de 33

TRUFFAUT. HITCHCOCK. Hitchcock/Truffaut, p. 77.

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diferentes filmes seus. A primeira de Os pássaros (the birds): um pássaro ataca num posto de combustível, o frentista deixa a mangueira cair e a gasolina escorre pela rua. Um homem de costas não percebe esta ação e acende um cigarro, deixando o fósforo cair ao chão, causando a explosão. Mélanie, a protagonista do filme assistia a tudo da janela de uma lanchonete ali perto. A montagem de Hitchcock busca capturar sua reação, e nada mais faz que por uma fotografia do rosto dela a olhar aquela cena macabra. Outro momento de sua filmografia em que isso pode ser percebido é na cena da morte do investigador em Psicose (Psycho), esta sendo quando o homem entra na mansão de Norman Bates, que surge de detrás de uma porta e o esfaqueia. A cena poderia ter sido alongada quando o investigador chega ao topo das escadas para criar sentimento mais profundo de suspense: Norman poderia estar atrás de qualquer uma destas portas. Mas a rapidez confere ao filme a sua agilidade nos dando a impressão de algo real. É a busca de um tempo realista. Hitchcock não quer que seu espectador imagine estar assistindo a um filme e por isso não lhe dará tempo de perceber que está assistindo a um filme. Em 8 1/2, Federico Fellini apresenta Guido Anselmi, seu alter-ego, um diretor de cinema que se vê em crise de criatividade pouco antes das filmagens de seu próximo filme, o qual ainda não possui uma história, mas que já possui equipe e elenco contratada. É em meio a esta crise do personagem que Fellini nos permite uma viajem em sua mente. Vemos o mundo por meio do personagem, o que significa que percebemos aquilo que Guido capta dela. Saímos da realidade e passeamos por seus sonhos, desejos e lembranças. Todas estas cenas são tratadas com igualdade ao longo do filme, nenhuma cena é discriminada por um fade, fusão ou transformação estética do filme (tal como modificar a cor da cena) e cabe ao espectador distingui-las. Já em Cantando na Chuva (Singin’ in the rain) são os números musicais que nos dão esta discriminação entre a imaginação e realidade. Os números musicais são sempre postos quando o personagem demonstra uma ideia, uma emoção, uma memória. É o caso da famosa cena da dança na chuva que dá nome ao filme. Don Lockwood, nome do personagem de Gene Kelly, sai da casa de sua amada, Kathy Selden, feliz pelo encontro que tiveram e por nele ainda surgir uma ideia que os faria colocá-la no mundo do cinema. A cena da dança na chuva não seria nada além do que a forma com que os diretores (Kelly e Stanley Donen) encontraram para demonstrar por meio de imagens o quão feliz está seu protagonista.

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Tudo o que até agora foi posto abraça a mesma ideia: a importância do tempo para a construção cinematográfica. O tempo é a principal fonte da construção fílmica, daí começar o texto por O Cavalo de Turim (A torinói ló). As palavras, quando faladas, não se encontram no espaço, mas no tempo. Elas, quando assim surgem, não podem ser representadas por meio do espaço, mas por meio de sua sucessão e duração, categorias temporais que nos fazem compreender, entre outras coisas, o espaço. Somente o tempo ordenava alguma coisa no filme naquele momento (não existia qualquer representação espacial para que pudéssemos colocar o contrário). Neste ponto podemos até mesmo dizer que Kant e seu seguidor na teoria de cinema, Jean Epstein, estão certos, o tempo seria a primeira das categorias de nossa mente para que possamos conhecer a realidade3435. A cena de abertura de O Cavalo de Turim (A torinói ló) mais que explicita isso, mas quanto ao cinema. Podemos fazer um filme somente com o tempo, mas não podemos fazer um filme com espaço, sem tempo. La Jetée segue um padrão muito parecido com a abertura do filme da Tarr, mas neste caso, ao paralisar o espaço, paralisa-se também um momento da realidade. As micronarrativas se perdem com a ausência da liberdade que o espaço normalmente possui e cede lugar para que a macronarrativa possa acontecer. Estas micronarrativas ficam escondidas nos movimentos de câmera e na movimentação dos personagens em cena36. Isso tudo se perde aqui. Desta maneira percebe-se que é por meio do tempo que se pode contar uma história no cinema (primordialmente), mesma conclusão a que chegou Bela Tarr quase cinquenta anos depois. Daqui, pode-se perceber que o tempo cinematográfico não respeita um tempo fenomenológico. Ele é construído à revelia dos fatos dados para que melhor se apresente na tela de cinema e para que melhor tenha efeito ao espectador que intui o tempo (a não ser quando é escolha do cineasta criar um filme realista, como acontece com Hitchcock). Citando Jacques Aumont: “O cinema é, em primeiro lugar, mecanicamente, ou melhor, “maquinicamente”, um instrumento para produzir tempo. Tem seus próprios procedimentos temporais, distintos dos procedimentos habituais” 37. Aumont faz este comentário acerca da teoria do cineasta Jean Epstein, que na década de 1940 passou a direcionar suas atenções às questões temporais do cinema. A partir dos exemplos práticos postos acima, somente podemos concordar com o que diz 34

AUMONT, J. As teorias dos cineastas, p. 41. KANT, I. Crítica da razão pura, p. 79, B 46. 36 Disponível em: http://www.studium.iar.unicamp.br/14/2.html. Acessado dia 02/09/2013 às 10:05. 37 AUMONT, J. As teorias dos cineastas, p. 38. 35

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Aumont/Epstein. Tarr, por exemplo, produziu tempo para fazer a abertura de O Cavalo de Turim (A torinói ló) – ele não fez a reprodução de qualquer ato fenomênico, o tempo apresenta-se intelectivo, tanto em sua construção quanto em sua percepção (como se estivesse a compor uma música). Já no caso de La Jetée, esta questão fica mais clara quando notamos que o tempo do filme não possui qualquer ligação com a temporalidade dos fenômenos externos à película. Ele segue o tempo que lhe é ditado pela permanência e sucessão das fotografias. Uma fotografia pode permanecer na tela por mais tempo do que a narração levaria para explicá-la ou para chegar até ela. E uma fotografia não respeita a temporalidade com a qual os fenômenos acontecem, ela congela o tempo e torna um momento eterno. Mas neste momento ainda não chegamos a nos posicionar no cinema enquanto imagens em movimento, que será o verdadeiro alvo da teoria de Jean Epstein. Quando Aumont coloca que o cinema “tem seus próprios procedimentos temporais” ele se refere ao que Epstein se prende quando constrói sua teoria, que são os efeitos de câmera: aceleração das imagens e câmera lenta, por exemplo38. É comumente aceito de que um filme, ou qualquer produto audiovisual, quando é montado ele recebe a visão do realizador, de que este irá manipular as imagens e moldar o discurso fílmico de acordo com a sua visão. Por isso quando temos uma imagem que não sofreu com um corte é aceito como possuindo a verdade – é o exemplo de Bazin da montagem proibida. Mas pode ser que ela também esteja embebida do olhar poético do cineasta que captou aquelas imagens. Exemplo disso seria a aceleração da gravação do crescimento de uma árvore. Em alguns segundos poderíamos ver o crescimento de alguns meses de uma árvore, claramente manipulando a construção temporal ou o tempo tido como real. Mas não somente com a manipulação de uma imagem que pode ser feita a construção do tempo no cinema. É aí que reside uma das maiores críticas à montagem no cinema. Andrei Tarkovski, cineasta soviético, criticava o cinema de seu compatriota Sergei Eisenstein por causa da temporalidade que não possuía qualquer semelhança com a realidade. As cenas ganhavam um peso desconfortável na vontade do cineasta de mostrar mais do que poderia ser mostrado simplesmente seguindo o tempo dado por um relógio. Em uma cena de batalha, por exemplo, ele poderia mostrar o confronto entre dois inimigos lutando com espadas até a morte de um deles e, logo em seguida, mostrar

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AUMONT, J. As teorias dos cineastas, p. 38.

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outros dois soldados lutando na mesma batalha, exatamente no mesmo momento que os personagens anteriormente apresentados lutavam – a montagem de ações simultâneas. Esta crítica de Tarkovski pode valer para a montagem cinematográfica, mas ela não enxerga os benefícios de criar um tempo para um filme – algo que vai um pouco além do esculpir o tempo a que Tarkovski se refere. O exemplo dado anteriormente da cena que segue o padrão de suspense seria um ótimo exemplo disso. O tempo é alterado para que o cineasta possua a atenção do espectador em sua obra e isso tudo promovido por uma série de plano/contraplano e outras técnicas comuns para quem se utiliza da montagem para contar uma história em um filme. O tempo é construído para que possa servir de ponte entre as imagens e a emoção do espectador. Fellini em 8 ½, ao tratar as imagens reais e mentais com igualdade (os sonhos e os fatos), brinca com o tempo e criando uma temporalidade subjetiva, ou melhor, faz a representação de seu tempo subjetivo no filme. Durante toda a duração da película passeamos pela mente deste personagem como se a câmera tivesse o superpoder de nos mostrar o fluxo mental de um sujeito, e durante pouco mais de duas horas víssemos parte daquilo que ele tem em mente. O filme abre com um sonho. Guido, preso dentro de um carro em um congestionamento, começa a sufocar até que consegue se libertar pela fresta da janela e sair voando por cima dos carros, dos prédios, até sair da cidade e chegar no mar. Durante grande parte desta cena, Guido não é mostrado, vemos aquilo que ele consegue captar daquele sonho. A câmera nos apresenta o ponto de vista de Guido, não necessariamente tomando a posição de seus olhos durante toda a cena (somente em alguns momentos). Mesmo quando ele sai do carro, e não mais estamos neste posicionamento privilegiado de sermos os olhos do personagem, a câmera fica atrás dele, mostrando qual seria a perspectiva deste mesmo personagem, mas dando o espaço necessário para que ele possa voar. Jean Epstein, uma década e meia antes do filme de Fellini já tinha feito esta relação entre a manipulação/criação do tempo do filme e a possibilidade de mostrar um sonho em uma obra cinematográfica: do mesmo modo que o sonho, o filme pode desenvolver um tempo próprio, capaz de diferir amplamente do tempo da vida exterior, de ser mais lento ou mais rápido do que este. Todas essas características comuns desenvolvem e apoiam uma identidade fundamental de natureza, uma vez que ambos, filme e sonho, constituem discursos visuais. Donde se pode concluir que o cinema deve transformar-se 38

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no instrumento apropriado à descrição dessa vida mental profunda39. Do mesmo modo que o sonho, escreve Epstein, o cinema é capaz de desenvolver um tempo próprio. Outro exemplo, ainda no filme de Fellini, é a cena em que Guido encontra seus pais, ambos já falecidos. A reprodução da temporalidade mental do cineasta faz com que esta cena seja apresentada de maneira peculiar, com os devidos saltos comuns de serem notados nos sonhos. Em um momento Guido está a conversar com sua mãe e com o auxílio de um corte ele está em frente ao túmulo do pai e o ajuda a descer. Este salto temporal, que modifica até mesmo o espaço (antes ele estava em uma parte do cemitério, depois do corte foi para outra), é o exemplo mais claro de como, cinema e sonho, desenvolvem uma temporalidade própria para a criação de uma história, afinal de contas o trabalho do cinema sobre o tempo nada tem a ver com a simples reprodução idêntica. O cinema sugere um mundo diferente do mundo fenomenal e mesmo do mundo real [...] porque desconecta o espaço de seu tempo-suporte40. É ainda nesta visão subjetiva do tempo que podemos retomar o ultimo filme citado no inicio do texto, Cantando na Chuva (Singin’ in the rain). A felicidade do protagonista não poderia ser demonstrada em sua real forma, em seu real “tamanho” se não fosse com um número musical. É o tempo dado pela música que dá a tonalidade da cena, a música que é levada pelo sentimento de felicidade do protagonista. É deste modo que os diretores preferiram, ao invés de mostrar um ator sorrindo caminhando pela rua - mostrando que ele está feliz, mas com a felicidade visivelmente contida – explodir o sentimento em um número musical. A música faz um constructo temporal da cena em que o dançar do ator passa a ser guiado por ela. E toda a cena volta para este par música-dança. Os cortes e movimentos internos ao plano são guiados de acordo com o bailar ritmado pela música. O tempo fílmico torna-se, também, um tempo musical. Mas neste caso, servindo ao desnudar emocional de seu personagem. O tempo apresentado no filme difere radicalmente do fenomênico para poder desvelar o tempo subjetivo. O cinema é uma máquina de criar tempo. O cinema não faz a simples reprodução do tempo dos fenômenos, porque estes são apresentados de acordo com a temporalidade criada pelo realizador para que eles possam se adequar ao discurso fílmico em 39 40

EPSTEIN, J. O cinema do diabo, p. 297. AUMONT, J. As teorias dos cineastas, p. 37.

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construção. Cada filme possui um discurso e todo filme tem em sua base o tempo que por sua vez é variável de filme para filme, como também, de cineasta para cineasta. Referência bibliográfica: AUMONT, Jacques; As Teorias dos Cineastas; Tradução: Marina Appenzeller; Papirus Editora, Campinas, 2008. XAVIER, Ismail (org.); A Experiência do Cinema; editora Graal, São Paulo, 2008. TRUFFAUT, François; Hitchcock/Truffaut – entrevistas; tradução: Rosa Freire D’Aguiar; Companhia das Letras, São Paulo, 2010. Filmes: CAVALO DE TURIM; Bela Tarr; Hungria; 2011. La Jetée; Chris Marker; França; 1962. 8 ½; Federico Fellini; Itália; França; 1963. Cantando na Chuva; Stanley Donen; Gene Kelly; EUA; 1952. Site: SUPPIA, A. L. P. O.; La Jetée, “documentário” do futuro. Disponível em: http://www.studium.iar.unicamp.br/14/2.html

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MATÉRIA E LINGUAGEM: Modelos de produção de sentidos no filme

José Cláudio S. Castanheira41

1. INTRODUÇÃO O cinema tem sido, ao longo de sua história, alvo de inúmeros questionamentos a respeito de sua natureza. Desses, destacamos alguns que podem nos ajudar a pensar o seu papel frente aos atuais modelos de comunicação e, mais especificamente, o lugar do som dentro da construção cinematográfica. 41

Doutor em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor e coordenador do curso de cinema da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisador na área de Estudos do Som, Cinema e Música. É um dos autores do livro Reverberations: The Philosophy, Aesthe-tics and Politics of Noise (2012), editado por Michael Goddard, Benjamin Halligan e Paul Hegarty e do livro Small Cinemas in Global Markets: Genres, Identities, Narratives (2015), editado por Lenuta Giukin, Janina Falkowska e David Nasser. José Cláudio atua também como compositor de trilhas sonoras e sound designer para filmes.

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Um dos problemas surgidos nas primeiras décadas do século XX, como uma espécie de consequência de um modelo industrial de produção que se instaurava, é o da autoria da obra cinematográfica. Essa discussão se acirrou por conta de movimentos de vanguarda que reforçavam seu caráter de manifestação artística sob a responsabilidade de autores individuais, impondo, cada um destes, sua marca distintiva ao filme. Essa postura certamente tem raízes no romance do século XIX e repercute até os dias de hoje. Em segundo lugar, a ideia (ou “as ideias”) de realismo tem gerado e pautado outras questões mais complexas, seja no tradicional cinema ainda filmado e exibido com o suporte de celulóide, seja em modelos de cinema digital, em que nem a película e, muitas vezes, nem a existência real dos objetos filmados, são necessários para sua concretização. Este trabalho pretende explorar alguns desses pressupostos, tomando como base a discussão proposta por Joachim Paech (2000) em que este aponta uma transição de um modelo de cinema visto fundamentalmente como arte independente para uma confluência ou uma quase indistinção das diversas mídias, o cinema incluso, no cenário contemporâneo. Para essa exploração, partiremos de uma crítica à noção de linguagem como estruturante da experiência cinematográfica. Apresentamos alguns argumentos de teóricos como Christian Metz endossando essa posição e, ao mesmo tempo, propostas discordantes por autores como Berys Gaut. A definição de linguagem, como apresentada por Donald Davidson, também nos fornece uma alternativa interessante ao determinismo estruturalista de Metz e demais pensadores centrados em um modelo linguístico de cinema. 2. CINEMA COMO ARTE E CINEMA COMO TEXTO Joachim Paech, ao fazer uma análise das mudanças de acepções de cinema ao longo do tempo, identifica uma progressiva alteração do filme: visto inicialmente como “obra de arte”, depois tratado como “texto” e, posteriormente, encarado como meio/mídia. A discussão de Paech é direcionada à maneira como, ao pensarmos traduções entre os diversos formatos e modelos de criação artística, mantemos ou adaptamos características específicas de cada um desses modelos. Se o fazemos simbolicamente, como, por exemplo, filmando a história contada em um romance, ou se o fazemos materialmente, adaptando características físicas ou procedimentos materiais específicos de uma mídia a outra. A esse fenômeno chamamos de “intermidialidade”, 42

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compreendendo no termo essas duas dimensões: a simbólica ou representacional e a material. Como “obra de arte”, o cinema está intimamente ligado ao conceito de “autor” e define-se a partir de sua “aura” de criação única. Como “texto”, o cinema passa a partilhar de esferas de significação comuns a outros meios e fica sujeito a uma análise de caráter interpretativo. Como meio/mídia, sobressaem suas características materiais, tanto como especificidades quanto como pontos de interseção entre os vários modelos de comunicação. A partir dos anos 60, tornou-se necessária uma reavaliação dessa figura autoral no cinema, em que ela se configura como apenas mais um dos elementos – e não o principal – através dos quais a análise fílmica deveria ser feita. A relação do filme, enquanto veículo narrativo, com toda uma série de fatores extrafilmicos, era condição necessária para o bom embasamento de qualquer estudo cinematográfico. O processo industrial, em que muitos profissionais assumem a responsabilidade por diferentes setores da produção dos filmes, coloca em xeque a possibilidade de apenas uma única pessoa ser apontada como “autora” da obra cinematográfica. Diferente das acepções clássicas de obra de arte, o suporte material passa a ser secundário na fruição do filme, dado que, uma vez gasta, a película poderia ser substituída por outra, sem prejuízo para a narrativa. Questiona-se a “aura” do objeto artístico, na medida em que, como descreve Benjamin (1994), o processo de duplicação mediado tecnologicamente retira da obra sua unicidade. Mais do que a marca do autor, que ainda é mantida a título de legitimação, mesmo em produções hollywoodianas de caráter mais comercial, a questão do suporte como secundário e, às vezes, desnecessário ao consumo da produção cinematográfica (como se torna cada vez mais comum) veio fortalecer as linhas de estudo que tinham no “conteúdo” seu principal objeto de análise. Muitas das teorias contemporâneas do cinema valem-se dessa ideia de que este deve refletir um contexto do qual tanto o realizador quanto o espectador fazem parte. Esse contexto não pode ser abstraído na experiência ou na análise do filme e independe, muitas vezes, da vontade consciente tanto de quem faz como de quem vê. Cabe ao teórico, ao crítico, investido de uma bagagem que o permita identificar quaisquer relações políticas, econômicas, sociais, ideológicas etc. associadas ao filme, trazê-las à frente, em um exercício de interpretação da obra de arte. A obra, desta forma, é “lida”

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como um texto, ao qual podem ser reduzidas as mais diferentes espécies de criações: imagens, sons, textos escritos etc. Vivian Sobchack (1992) faz uso da metáfora lacaniana do espelho para descrever esse tipo de relação que se dá entre a obra e o espectador. Por sobressair-se à liberdade subjetiva tanto do autor quanto do “leitor”, o cinema é encarado, nessa concepção, como uma mediação-em-si-mesma. Ele “reflete” quem o faz e quem o vê. É também útil destacar a diferença que Sobchack faz entre essa abordagem das teorias contemporâneas e os dois polos da teoria clássica do cinema: uma concepção realista e uma concepção formalista. Por realismo podemos entender uma visão de que o cinema nos apresentaria – ou deveria apresentar – a realidade como ela é. O caráter de mimese das tecnologias do final do século XIX e início do XX, sendo o cinema, nesse sentido, um herdeiro da fotografia, crê em uma reprodução imparcial do mundo à nossa volta. Teóricos como André Bazin (2005), além de apostar no cinema como obra de arte única e autoral, também o consideram como mais adequado a reproduzir fielmente o mundo que nos cerca. Tudo o que for da esfera da representação, tudo o que não for exclusivamente imanente no ato de captura pela câmera, deve ser descartado ou levado em menor consideração. O cinema é dotado, assim, de uma objetividade tal que o ato de perceber o filme equipara-se ao ato de perceber o mundo. O filme, associado aqui à metáfora da janela, é tratado como uma percepção-em-si-mesma (SOBCHACK, 1992). Na outra ponta dessa conceituação clássica da experiência cinematográfica tratamos o cinema não mais como uma janela para o mundo, como no caso da concepção realista, e sim como um quadro deste. Nele o autor vai retratar o que vê não de forma inocente ou direta, mas mediado por uma instância subjetiva. Nessa linha de pensamento destacaram-se realizadores e teóricos como Eisenstein e Kuleshov, defendendo a montagem como principal produtora de sentidos do filme. A subjetividade do autor toma conta e ultrapassa a simples descrição do mundo objetivo. O filme passa a ser uma expressão-em-si-mesma (SOBCHACK, 1992). Entretanto, tanto em um polo como em outro, podemos perceber uma ascendência do texto em relação a outras dimensões da experiência cinematográfica. Do lado realista, o filme deveria ser percebido como real para que pudéssemos mais facilmente entrar na história. A crença de Bazin era a de que quanto mais próximo de nossa percepção natural, mais o cinema se apresentaria como um prolongamento da experiência imediata. Mas ainda estaríamos atrelados a uma história sendo contada. A 44

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diferença que é defendida pela concepção formalista é a de que a linguagem, e não a percepção natural, seria a principal ferramenta para desenvolver a narrativa. Os significados possíveis são mais complexos do que aquilo que uma imagem sozinha pode mostrar. A passagem para um modelo de análise estruturalista implicou uma radicalização da ideia de texto presente no filme. Como já dissemos, a noção de que este não está submetido apenas ao autor, diferentemente do que era proposto pelos dois polos da teoria clássica, torna-se base para análises calcadas em discursos tão distintos quanto o marxismo, a psicanálise ou a semiologia. Fica claro na descrição da abordagem estruturalista a necessidade de alocar funções sintáticas e semânticas para elementos como planos e sequências com o mesmo peso que os usos de palavras e frases exercem em linguagens naturais. O estruturalismo empenha-se em descrever em minúcias as possibilidades de relações entre eventos na tela e efeitos significantes. É um pensamento que procura estabelecer “os campos de força e relações que constituem os sujeitos e signos dos sistemas culturais, para além de suas particularidades psicológicas (pessoalidade) e metafísicas (significação)” (PARENTE, 2007, p. 9). O próprio conceito de dispositivo, em acepções mais contemporâneas, inclui elementos que seriam pertinentes a estruturas simbólicas e/ou socioculturais. Para Parente (2007; 2008), o dispositivo seria constituído não apenas por aspectos arquitetônicos ou tecnológicos, mas também discursivos. Mesmo no caso do som, como veremos adiante, Metz afirma que toda forma de apreensão sonora deve também passar por instâncias linguísticas. O foco seria desviado do fenômeno perceptivo e se concentraria em formas de classificação e atribuição de papéis, mais do que simplesmente na descrição. “‘Entender’ um evento perceptual não é descrevê-lo exaustivamente, mas ser capaz de classificá-lo e categorizá-lo: do qual designar seu objeto seria um exemplo” (METZ, 1980, p. 27). Antes de aprofundarmos essas premissas sobre o som (e sobre a imagem) enquanto fenômenos linguísticos vamos descrever, um pouco mais detalhadamente, o conceito davidsoniano de linguagem. 3. CINEMA COMO LINGUAGEM Para iniciarmos uma crítica a essa espécie de engessamento resultante de uma perspectiva estruturalista quanto à produção de sentidos do filme, tomemos uma definição proposta pela filosofia analítica de Donald Davidson a respeito da linguagem. 45

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Davidson parte do princípio não de questionar o pressuposto estabelecido entre muitos filósofos da linguagem ou linguístas de que uma teoria da linguagem deveria levar em conta como os sentidos das frases são construídos a partir do sentido das palavras. Contudo, esse sentido deve ser tomado como algo abrangente, inerente ao conjunto de todas as frases de uma língua. Se frases dependem para o seu sentido da estrutura e nós entendemos o sentido de cada item na estrutura apenas como uma abstração da totalidade das frases em que ele consta, então nós podemos dar o sentido de cada frase (ou palavra) apenas dando o sentido de toda frase (e palavra) na linguagem (DAVIDSON, 2006, p. 159). A estrutura composicional da linguagem, em que as palavras só seriam passíveis de possuir significado a partir de sua inserção em frases, nos leva a pensar uma teoria que seria um cômputo de um conjunto finito capaz de produzir uma infinidade de frases com uma infinidade de sentidos. As frases, não as palavras, seriam as verdadeiras possuidoras de sentido. Contudo, esse sentido não pode ser único, definido apenas através dessas regras mais gerais. Esse caráter holístico que Davidson propõe para a atribuição de significados a qualquer frase construída caracteriza-se também, e justamente por sua abrangência, por uma natureza de indeterminação. Essa indeterminação na interpretação, que geraria possibilidades múltiplas de tradução de uma linguagem para outra, seria fruto de uma fragilidade na própria ideia de sentido como objetivo último de qualquer análise. Para Davidson, mais adequado que a opacidade do conceito de sentido seria trabalhar com o conceito de verdade. Especificar as condições sob as quais cada frase é verdadeira seria uma maneira mais eficiente de alcançar seu(s) sentido(s). Assim, qualquer teoria baseada na ideia de verdade deve levar em conta as predisposições mentais de quem fala e de quem ouve. As diferentes expressões, comportamentos e atitudes podem criar uma profusão de significados que nem sempre são atingidos através apenas de uma teoria da linguagem. Esses significados, por outro lado, só serão alcançados através da confrontação e de uma negociação entre as diversas posturas de ambos os lados. Para que uma linguagem seja compreendida é necessário um eterno ajuste das pressuposições interpretativas de acordo com o que deve ser interpretado. Nem sempre essas pressuposições são explícitas e, muitas vezes, exigem habilidades e conhecimentos (a respeito do outro, a respeito do mundo, atenção, 46

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imaginação etc.) que não são especificamente linguísticos. Essas são habilidades que não se encaixam em nenhuma explicação formal e fazem parte de um existir no mundo. Davidson propõe que, muito embora sejam facilitadoras, convenções linguísticas não podem ser a base única para o entendimento de qualquer linguagem. Essa postura, muito embora ainda centrada em uma possibilidade de interpretação através das estruturas da linguagem, pode nos ajudar a desconstruir o mito da “linguagem cinematográfica” como proposto pelas correntes estruturalistas, pelo menos naquilo que toma como molde as linguagens naturais, ou seja, aquelas com propriedades gramaticais específicas, mantidas e usadas por grupos ou populações, valendo-se de um repertório lexical, relações sintáticas e semânticas. Esse projeto, visível na obra Metz, sofre também a crítica de parte dos teóricos contemporâneos ligados à filosofia do cinema. A tendência a focar nas características representacionais do filme provém, em parte, da grande ênfase colocada em sua suposta capacidade de mostrar o real, como já mencionamos. Berys Gaut parte dessa proposição para perguntar como se estabelecem essas características. De que modo o cinema (ou as teorias cinematográficas) se define (ou é definido) diante dessa questão? Primeiramente, devemos notar que Gaut não se sente confortável com a ideia de uma linguagem cinematográfica. Descreve o modelo tradicionalmente vinculado a essa perspectiva, admitindo que algumas similaridades podem ser apontadas entre uma forma e outra. Em seguida, afirma que a imagem cinematográfica, exatamente por seu caráter de imagem, não é passível de ser reduzida às estruturas clássicas das teorias da linguagem. É pelo caráter de transparência atribuído às imagens, como uma espécie de chancela do realismo nelas presente, que o cinema guardaria uma dimensão para além do textual ou do linguístico. Analisando o modelo do cinema enquanto linguagem, Gaut descreve alguns argumentos usados para enquadrá-lo dessa maneira. Seriam eles: como meio de comunicação o cinema é portador de sentidos. Os sentidos são frutos dos planos que são postos juntos e de suas relações, assim como no caso de palavras formando frases. Essa organização dos planos pode apresentar erros, segundo determinadas convenções, como, por exemplo, a quebra de eixo ao se filmar sequências em campo e contracampo. Esses erros teriam o status de erros gramaticais. E aqui terminariam as semelhanças. Começam a surgir algumas diferenças em relação ao modelo tradicional das linguagens naturais. Entre elas: nós não podemos 47

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falar de um número finito de imagens possíveis, como nas diversas línguas possuímos um número limitado de palavras. A virtual infinidade de frases possíveis de serem construídas se dá pela combinação desses elementos finitos e desprovidos de significação per se fora de um contexto, o que não acontece no caso das imagens. Além disso, as relações que se apresentam entre objeto/palavra e objeto/imagem não são as mesmas. Enquanto na primeira temos uma atribuição de significados arbitrários, no tocante à imagem, temos uma relação causal. O registro do objeto no filme se deu porque os raios de luz, refletidos nele, atingiram a lente da câmera e sensibilizaram a emulsão na película (ou inscreveram-se eletronicamente na fita de vídeo ou foram convertidos em 0s e 1s em formatos digitais). Gaut critica a tentativa de Metz de aproximar forçadamente um modo de significação característico do cinema de um modelo que ele considera limitado, utilizando, para isso, a montagem como seu principal recurso. Para contornar a ausência de um léxico definido ou a relação entre imagens e objetos feita por analogia e não por convenção, Metz define a sequência (frase) como unidade de sentido do filme, ou seja, fruto das infinitas combinações entre unidades de linguagem (planos). Esta seria a base de significação do cinema. “A palavra, que é a unidade da linguagem, está ausente; a frase, que é a unidade do discurso é suprema. O cinema só pode falar por neologismos. Cada imagem é um hápax” (METZ apud GAUT, 2010, p. 54). Encontramos uma contradição nessa argumentação ao tentar forçar essa relação entre linguagem natural e cinema. Mesmo admitindo que palavras não sejam análogas a planos, e que uma gramática é uma relação entre palavras, Metz ainda quer estabelecer uma espécie de gramática entre planos. Mesmo a possibilidade de frases (sequências) não constituídas de palavras (uma vez que planos seriam, por definição, diferentes de palavras) soa forçada. A necessidade de encontrar relações entre os dois universos, em uma tentativa de estabelecer regras para a produção de sentidos, acaba por colocar em xeque a própria noção de sentido. Se é verdade que cada sequência (frase) é um hápax, ou seja, uma ocorrência única desvinculada de uma estruturação interna, como seria possível que terceiros compreendessem o significado das imagens? Mesmo estruturas mais sofisticadas, como a montagem paralela, não seriam ainda uma prova cabal dessa paridade entre cinema e linguagem natural. E aqui Gaut se aproxima da postura de Davidson: existem elementos, ou convenções, no processo de comunicação, que não são linguísticos.

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Visto como meio de comunicação, o cinema deve, forçosamente, admitir a existência de outras formas de produção de sentido que não apenas as textuais. Ao empreender uma análise fenomenológica da experiência cinematográfica, Vivian Sobchack (2004; 1992) dá destaque às relações entre o corpo do espectador e do realizador e o corpo do filme. Este compreendido como envolvendo todo o aparato tecnológico que possibilita sua existência. Para Sobchack, o cinema é um exemplo de nossa inerência ao mundo e sua tecnologia faz parte de nossa consciência intencional. A participação do corpo é condição necessária para a experiência, e a relação entre corpo e tecnologia tornam essa experiência mais complexa. Seria muito redutor tentar explicar todos os processos envolvidos no ato de assistir a um filme apenas através de questões linguísticas. Estaríamos desconsiderando todo um conjunto de informações que não podem ser traduzidas nesses termos. Se há algum aspecto de texto nessas considerações da autora a respeito do aparato cinematográfico, estes se apresentam na relação do homem com a tecnologia. Ao realizar a tradução de uma experiência imediata (que pode pertencer a mais de uma pessoa: fotógrafo, diretor etc.) para uma percepção corporificada (que ocorre quando assistimos ao filme projetado), o aparato funciona como um texto. Devemos aprender a “ler” a máquina. Seguindo uma definição de Don Ihde, Sobchack apresenta a tela como terminus dessa relação, como ponto em que se dá o contato entre percepção e mundo. Os diversos pontos de junção, onde os objetos são sentidos pelo realizador e por suas extensões no mundo (lente, microfone etc.), modificam nossa experiência e necessitam de um treinamento específico para que possam produzir sentidos, sentidos que também são específicos daquela experiência. Mesmo isolando-se a questão das materialidades do aparato e como elas podem interferir em nossa apreensão do filme, a própria natureza da imagem fotográfica (e aqui Gaut se refere mais especificamente à imagem analógica) impõe limites a essa redução dos planos a unidades mínimas de significação nos mesmos moldes que a palavra. Uma imagem fotográfica, nos diz Gaut, não pode ser considerada como algo finito. Ela pode ser subdividida em inúmeras partes de significação, dependendo do tipo de “leitura” que se faz dela. Um pedaço de imagem pode significar isoladamente (e possuir uma relação com o todo), o que não acontece com um “pedaço” de palavra (uma ou mais letras, combinadas ou não). Entendendo essa significação como algo contextualizado, que possua um mínimo de precisão e que partilhe da mesma realidade que o todo da frase ou da palavra original da qual as partes foram retiradas. 49

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No caso das tecnologias digitais, mais especificamente aquelas em que não há relação causal entre objeto e imagem – na computação gráfica, por exemplo –, a questão da linguagem pode se tornar um pouco mais complexa. Quando modelamos, através de softwares, os objetos que vemos projetados, podemos argumentar que estes objetos não precisaram da preexistência de outro real para se tornar imagem. Assim como o caráter arbitrário das palavras, as imagens também podem basear-se em construções independentes. Isso seria uma explicação bastante simplificadora da questão pelo fato de não levar em consideração que mesmo as imagens geradas por computação têm um apelo ao objeto empírico. Grande parte de sua significação vem através das relações que estabelecemos com a matéria que, supostamente, deu vida ou inspiração ao que vemos na tela. Mesmo as imagens estilizadas ou caricaturais de alguns filmes de animação têm, como ponto de partida, entes do mundo real. O que dizer, então, da constante preocupação com mecanismos de renderização cada vez mais sofisticados, em que o objetivo principal é o de criar a ilusão de texturas e movimentos cada vez mais realistas? O objeto modelado pode escapar, à primeira vista, de uma semelhança com a coisa real, mas, ao mesmo tempo, busca uma proximidade de instâncias sutis e que apelam para dimensões profundas de nossa apreensão do mundo que são os nossos sentidos. A suspensão da descrença, fator decisivo para a ilusão cinematográfica, dá-se, nesses casos, não por uma semelhança imediata entre objeto projetado e objeto filmado, mas por uma coincidência sinestésica. A forma do objeto passa a ser secundária, importando sua maneira de habitar o mundo. As regras físicas de funcionamento do universo impõem uma gestalt, um modo de existir que é inconsciente e apreendido por mecanismos corpóreos, pela semelhança de movimentos, pela sensação de peso etc. Há uma inteligência corporal em ação que condiciona nossa interpretação (se é que esta é uma palavra adequada neste caso) do filme. Quanto ao tipo de imagem digital que guarda essa relação causal entre objeto e plano filmado, também poderíamos aventar a possibilidade de uma dimensão linguística. Ao reduzirmos as imagens às suas mínimas partes, chegando aos pixels, não encontraríamos unidades de significação, mas elementos que só fazem sentido se vistos em conjunto. Poderíamos supor, então, que, diferentemente das fotografias tradicionais, as fotografias digitais têm unidades discretas, e em um nível mais profundo de subdivisão, o pixel, elas não 50

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denotam. Da mesma forma que “Sócrates” denota, mas nem individualmente as letras que formam a palavra, nem suas várias combinações, como “rato”, denotam nada (GAUT, 2010, p. 57). É certo que há uma dimensão de linguagem muito forte envolvendo tanto as imagens como qualquer outro elemento de comunicação hoje em dia sob o domínio do digital. A codificação binária é um modelo linguístico dos mais rigorosos que reduz elementos materiais, como intensidade de luz, cor, contraste, frequências, amplitude etc. a processos de numerização. O processamento pela máquina de objetos empíricos, transformando-os em informação, não deve dar margem a dúvidas, deve ser preciso fugir à inexatidão. É uma linguagem para máquinas e as máquinas não comportam metáforas ou associações livres como o faz a linguagem humana. Tão complexa é a tarefa de codificar e processar os mínimos detalhes envolvidos em processos de digitalização que não há possibilidade de interpretação por seres humanos dos códigos utilizados. Não há experiência na linguagem da máquina, apenas código. Só isso já seria suficiente para abandonarmos essa perspectiva como abonadora da imagem digital enquanto linguagem natural. O digital só se configura como experiência quando tornado analógico. Não há percepção digital. Tais tecnologias só podem ser “lidas” pelas próprias máquinas, ainda que a programação dessas máquinas tenha sido idealizada, primordialmente, pelo ser humano. 4. O SOM COMO LINGUAGEM A questão de fidelidade ao original sempre foi uma das principais preocupações com as tecnologias de registro na passagem do século XIX para o XX. A fotografia, o fonógrafo e, posteriormente, o cinema eram reconhecidos por sua proximidade com o real. “Iniciando-se após meados do século XIX, os produtos tornaram-se particularmente valorizados se eles pudessem ser caracterizados como ‘reais’, ‘genuínos’ ou ‘naturais’” (GITELMAN, 1999, p. 153). O som aparentemente apresentava uma maior resistência a classificações de caráter textual, em parte por desvincular a voz, um fenômeno invisível, de seu corpo visível. Várias foram as declarações da imprensa e mesmo do próprio Edison de que o registro sonoro seria uma forma de ressuscitar, de ouvir novamente os mortos. Essa dimensão metafísica pode ter colaborado na dificuldade de se enquadrar o registro sonoro como algo diferente de um contato muito próximo com o mundo real, apesar da

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mediação tecnológica. Nesse sentido, talvez, o som fosse mais avesso a uma estruturação em termos de linguagem. Mas, na medida em que a codificação de convenções de montagem cinematográfica se dava, ao som cabia um papel de conferir realismo a essa construção ainda em seus alicerces. Muitas das práticas que se seguiram, ainda no processo de junção entre som e imagens, e que culminaram com o que nós entendemos como cinema clássico-narrativo, foram tentativas de dar vida a uma projeção bidimensional que pouco a pouco causava menos espanto. O engajamento por meios físicos ou pela identificação subjetiva entre cada espectador e o que se via na tela, como no caso do cinema de atrações (GUNNING, 2006a; 2006b), foi cedendo terreno a uma narrativa lógica e autocentrada. O que era mostrado no filme deveria fazer sentido independente do que havia para além da projeção. Ao som, como nos diz Rick Altman (2004), cabia o papel de indicar os caminhos, de estabelecer esse caráter de verossimilhança, do que a imagem sozinha não era capaz. O som também dirigia o olhar, nos informava a que prestar atenção e a que não. Atores se posicionavam atrás das telas, bem na direção de seus personagens para que a voz e a imagem procedessem do mesmo lugar. O acompanhamento musical era substituído ou complementado por efeitos sonoros mecânicos ou pela reprodução do próprio som do objeto gravado em discos ou cilindros. O acompanhamento musical não era mais suficiente – muito embora atuasse em esferas de sugestão emocional – para descrever o universo que o som, junto com a imagem, descortinava. Mais do que um estruturação discursiva, o que o som procurava, nos primórdios do cinema, era fornecer elementos impossíveis para a imagem enquanto estrutura formal. Não podemos negar que também as imagens pudessem fornecer uma série de informações que não seriam da ordem apenas da construção linguística, dessa “gramática” cinematográfica. Há um bom número de estudos que se preocuparam em compreender como elementos resistentes a essa codificação estruturalista – como é o caso do “olhar” e seu endereçamento – poderiam produzir efeitos de ordem não apenas textual, mas também física, psíquica etc. O que se pode dizer é que essa classificação torna-se ainda mais complicada quando entramos no universo sonoro, seja pela metafísica descrita anteriormente, seja pelo caráter envolvente da propagação sonora, ou seja, por seu funcionamento distante de uma esfera visual e, em consequência, sendo comumente menos associado a aspectos racionais ou conscientes. Mas é claro que, como a imagem, o som também seria alvo dessa sistematização estrutural. 52

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Metz afirma que não há diferença funcional entre um tiro de revólver ouvido em uma sala de projeção de filme e o som do tiro original. Ou ainda, não haveria diferenças entre sons distintos de tiros em filmes, por maiores que sejam suas singularidades acústicas, uma vez que todos atendam à mesma função dentro da narrativa. Todos serão compreendidos como tiro. Toda e qualquer distorção imposta pelos mecanismos de gravação e reprodução será desconsiderada na experiência de quem ouve o som acompanhado das imagens. Para Metz, a linguagem seria um metacódigo dos sons, em que, para que haja uma completa identificação do que se ouve, é necessário especificar não apenas o som, mas também sua fonte. Assim, quando dizemos o “estrondo do trovão” é pelo termo “trovão” que conferimos um significado mais preciso ao objeto, sendo que “estrondo” é uma qualidade pouco precisa e que pode atender a vários outros objetos. A atenção às propriedades acústicas, estritamente falando, não seria o mais importante. “Ideologicamente, a fonte aural é o objeto, o som em si é uma ‘característica’. Como qualquer ‘característica’, ele está ligado ao objeto, e é por isso que a identificação deste é suficiente para evocar o som, enquanto o inverso não é verdade” (METZ, 1980, p. 26-27). Metz opõe a audição, que para ele designaria qualidades secundárias dos objetos, a sentidos como a visão e o tato, capazes de captar qualidades primárias, essencialmente materiais, das coisas. O tato poderia ser considerado, seguindo essa linha de raciocínio, como árbitro supremo da realidade, o critério principal para a definição da materialidade do mundo. O som funcionaria, nessa perspectiva, pelo estabelecimento de convenções e pelo acúmulo de qualidades secundárias. O som seria construído socialmente e devemos aprender as regras pelas quais os sentidos são conferidos a ele. Paradoxalmente, Metz não vê uma discrepância entre sua postura e uma abordagem fenomenológica da experiência cinematográfica. Ele busca uma descrição da apreensão das coisas, sendo que essa apreensão não é espontânea ou natural, e sim profundamente contaminada por instâncias culturais. Ela pode se dar de formas diferentes dependendo do grupo social em que estamos inseridos. Sem o conhecimento prévio desse corpo de relações, não há sentido possível. É como se Metz tentasse trazer a fenomenologia transcendental, defendida por Bazin (na verdade uma leitura precária da proposta husserliana), para uma esfera cultural. A cultura, e não os dados perceptuais (como nos sugere Sobchack), seria o parâmetro definitivo para o entendimento do filme. Quando penso em meu próprio campo de pesquisa, a análise cinematográfica, como eu poderia esconder de mim mesmo – e 53

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porque deveria – o fato de que todo um corpo de experiência cultural prévia, sem a qual uma “primeira visão” do filme não seria sequer visão [...] – que todo um corpo de conhecimento já presente em minha percepção imediata é necessariamente mobilizado para tornar possível que eu trabalhe? E como eu poderia esquecer o fato de que esse corpo de conhecimento é – que ele é e não é – o “cogito perceptual” da fenomenologia? O conteúdo é o mesmo, o status que atribuímos, não (METZ, 1980, p. 31). É claro que essa posição encontra diversas vozes discordantes. Tom Levin, por exemplo, nos diz a respeito das tecnologias de gravação e reprodução: “que um tiro de revólver pareça soar da mesma forma nos diferentes espaços acústicos da rua e dentro do cinema é um engano [...] a familiaridade entorpeceu a capacidade de reconhecer a violência feita ao som pela gravação” (LEVIN apud LASTRA, 1992, p. 66). Cada som é um som único, portador de significados próprios. Ao propor um “cinema de evento”, Rick Altman (2004) igualmente atenta para dimensões não categorizáveis dentro da experiência do cinema. Assistir a um filme é também estar sujeito a diferentes condições físicas que modificam nossa apreensão do que é mostrado na tela. O filme funciona dessa ou daquela maneira muito em função do seu entorno. Cada exibição, em que suporte for, é um evento único. Já Metz não encara o som como um evento único e não passível de repetição, mas como estrutura inteligível. O que parece contraditório quando ele afirma serem as sequências de imagens “neologismos”, eventos únicos. Metz, com efeito, rejeita a corrente versão da representaçãocomo-estímulo-sensorial em favor de uma nova versão da representação-como-inscrição-(legível). Metz, assim, enfatiza menos a unicidade perceptual do que a capacidade de gerar sentidos em um contexto particular, definido neste caso por parâmetros econômicos, institucionais e formais (LASTRA, 2000, p. 126). Mecanismos de mobilização física e de imersão do espectador dentro da narrativa, como tem se tornado bastante comum no atual cinema comercial, aparentemente funcionam segundo outra lógica. O caráter espetacular das grandes produções, repletas de efeitos especiais e que demonstram, particularmente, uma preocupação bastante grande em fornecer um contexto sonoro que envolva e convença o

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espectador, parece apontar para um nível de produção de sentidos que não exatamente o proposto pelo modelo estruturalista. 5. CONCLUSÃO Ao encaminhar a discussão do papel do cinema (e não apenas do cinema, mas também de diversas outras mídias) no atual ambiente comunicacional, Joachim Paech indica algumas das críticas sofridas atualmente por essa perspectiva estruturalista de análise textual. Uma epistemologia neo-formalista, segundo Peach, defendida por teóricos como David Bordwell (1996), traria o sujeito mais uma vez à frente da relação com o filme. Agora, em vez de considerar o filme como um “texto” que constrói o seu sujeito, definindo de onde espectador e realizador partem para compreender ou filmar, essa nova concepção advoga a existência de conhecimentos prévios que aqueles que vêm (e fazem) o filme devem possuir. Sem isso, sem essa experiência prévia, não há sentido possível. O filme passa a ser uma construção de quem o faz e também de quem o vê. Nós entendemos filmes tão bem (e mais facilmente do que textos literários) porque os esquemas que eles utilizam são, até certo ponto, homomórficos em comparação com aqueles usados em nossa percepção cotidiana, isto é, não precisamos aprender a entender filmes porque nós já sabemos nosso caminho no mundo (PEACH, 2000, não paginado). O estudo do cinema enquanto mídia possibilitaria, para Peach, uma atenção às diferentes relações que o discurso cinematográfico tem estabelecido com outros discursos, como a literatura, a música ou as artes plásticas, de modo a permitir uma “intermidialidade”, uma complementaridade entre as ideias de mídia e de forma. Uma relação em que os dois aspectos são lados de uma mesma moeda. Toda mídia só é observável enquanto forma. Ao mesmo tempo, é a mídia que dá as condições para a existência da forma. Essa “medialidade” da linguagem, da escrita ou das imagens designaria uma função, mas também uma forma de exercer essa função. De modo um tanto mcluhaniano, Peach nos diz ainda que uma forma pode se tornar a mídia de uma nova forma. Tal análise nos levaria a encarar o meio cinema como uma condição de perceber (e entender) o filme enquanto forma que não se baseia em uma linguagem natural, mas

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em uma eterna tradução e adaptação de repertórios. A forma material é também parte desses repertórios e é passível de ser cooptada pelo repertório de novas mídias. Os processos de mutação, transformação, tradução, adaptação, hibridação etc. entre as diferentes mídias é um campo atual e bastante promissor. Mas não é exatamente desconhecido. O primeiro cinema utilizava técnicas oriundas de diversos meios de expressão. Talvez, justamente por não estar ainda atrelado à ideia de linguagem cinematográfica. O cinema, como meio de imagens, sons e outras possíveis afetações sensoriais, não deve descartar nenhuma dessas possibilidades de se fazer compreender. Seja através de um exercício de interpretação ou simplesmente pelo acolhimento e pela identificação mais íntima entre espectador e filme.

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______. Linguagem e cinema. São Paulo: Perspectiva, 1980 PAECH, Joachim. Artwork, text, medium: steps en route to Intermediality. Universität Konstanz, 2000. Texto online. Disponível em: http://www.unikonstanz.de/FuF/Philo/LitWiss/MedienWiss/Texte/interm.html 56

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SESSÕES NÃO NUMERADAS: Algumas notas sobre o cinema e a emancipação do olhar Eduardo Pellejero42

Volta-te e torna a confiar nos teus olhos! Confia na velha máquina de filmar. Ela ainda pode produzir imagens.

Lisbon Story (Wim Wenders, 1994)

LIÇÕES DE INTERPRETAÇÃO Em Rear Window (1954), uma das obras-primas de Alfred Hitchcock, L.B. Jefferies (James Stewart), fotógrafo de guerra, preso a uma cadeira, praticamente desvalido, resolve um crime através da observação atenta e prolongada do que o rodeia. Em Blow-Up (1966), a provocativa adaptação de um conto de Julio Cortázar que filmara Michelangelo Antonioni, Thomas (David Hemmings), frenético fotógrafo de moda, fechado num quarto escuro, acredita revelar outro através da exploração obsessiva das suas imagens. Quietos ou inquietos, heróicos ou delirantes, as personagens que o 42

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cinema propõe muitas vezes encarnam as aventuras do olhar, e ao fazê-lo nos submetem a uma prova, na qual o que está em jogo é a nossa capacidade para interrogar as evidências do que é e descobrir o que não é – pelo menos imediatamente – visível43. Não é preciso internar-se nas cinematecas para embarcar nessa aventura, que perpassa o cinema no seu conjunto, inclusive quando adota as marcas do gênero, as prescrições do sistema de estudos ou as prerrogativas do mercado. Sob as suas formas mais explícitas, ganha algumas vezes as formas de um desafio manifesto, como em certos filmes nos que somos a priori convidados a solucionar o mistério que a intriga nos propõe, antes que encontre propriamente a sua solução argumental; é o caso das adaptações de alguns policiais clássicos, como Murder on the Orient Express (1974), de Sidney Lumet, assim como de boa parte dos thrillers contemporâneos, como Zodiac (2007), de David Fincher. Outras vezes, o desafio nos é lançado a posteriori, resolvido já o mistério, expondo-nos a imagens que vimos e não fomos capazes de observar com a necessária suspicácia; é algo que encontramos em alguns filmes de twist ending, como em The sixth sense (1999), de M. Night Shyamalan, onde no final somos confrontados com o que todo o tempo esteve à nossa frente, chamando-nos a redobrar a nossa atenção em relação às imagens. Outras vezes, por fim, o desafio coloca em causa, não apenas as nossas competências para ver e apreciar, mas também o alcance e os limites do que aparece enquanto via de acesso ao real – como em Memories of murder (2003), de Bong Joon-Ho, onde a ambiguidade das imagens e a interrogação crítica do olhar tencionam os elementos definidores do gênero até fazê-los em pedaços. Em todos esses casos é a intriga que nos instrui sobre o tempo e o esforço que exigem de nós as imagens, oferecendo-nos uma lição sobre o que significa ver e interpretar. A DESEDUCAÇÃO DO OLHAR Mas as imagens do cinema também podem oferecer-nos a possibilidade de uma aprendizagem, nas aparências e pelas aparências, que excede as histórias que conta e a lógica da lição.

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Refiro-me ao visível, mas certamente não podemos deixar de considerar todas as dimensões que fazem parte do cinema: o som, a linguagem, a narrativa. O cinema também nos oferece uma aprendizagem nessas matérias. The conversation (1974), de Coppola, e Blow out (1981), de Brian de Palma, por exemplo, retomando respectivamente Rear window y Blow-up, oferecem uma verdadeira lição do que significa ouvir e escutar.

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Em The third man (1949), de Carol Reed, uma das primeiras coisas que chama a nossa atenção é o uso e o abuso do plano holandês ou aberrante. As imagens aparecem inclinadas, em constantes jogos de plano e contra-plano, nos que a inclinação se dá em ângulos opostos. O recurso, provavelmente utilizado com a intenção de sublinhar a tensão de algumas cenas, consegue, de fato, perturbar-nos, produzindo em nós certo incômodo, alimentando a nossa ansiedade. Mas, ao mesmo tempo, o recurso se denuncia a si próprio, não dissimula o seu papel na disposição das imagens. Vemos as cenas, podemos sentir a tensão, e ao mesmo tempo vemos essa rara propriedade estética das imagens que a compõem. Não é improvável que esta última se imponha em nós sobre os efeitos induzidos, ao ponto de que, ao reingressar no domínio da horizontalidade que rege a maior parte das imagens que vemos diariamente, sintamos uma ligeira moléstia, uma espécie de enjoo, como um marinheiro ao pisar terra firme depois de um prolongado tempo em alto mar. Não é que a perspectiva aberrante dos planos de Reed seja mais adequada que a perspectiva da horizontalidade, mas a desestabilização da nossa predisposição perceptiva projeta uma sombra crítica sobre as poéticas que pretendem ocultar a sua artificialidade detrás dos prestígios de certas construções historicamente identificáveis44. Filmes como The third man nos oferecem a possibilidade de ilustrar-nos sobre as formas de pôr em imagem ao mesmo tempo que nos instruem sobre os fundamentos da interpretação (ao fim e ao cabo, apesar da sua singularidade, não deixa de ser um thriller). Esse trabalho não é necessariamente mais subtil nem mais discreto, ainda quando, acostumados a falar do cinema em termos de narração, possa resultar-nos mais difícil identificar as suas apostas e as suas operações. Em realidade, enquanto que a compreensão da trama de um filme depende do conhecimento prévio de uma série de convenções, as imagens, em si, se oferecem ao nosso olhar sem pressupostos, não solicitando de nós outra coisa que o nosso tempo e a nossa curiosidade, a nossa memória e a nossa imaginação. O que nos resulta inquietante, em verdade, é o estranhamento que a colocação em jogo de recursos desse tipo produzem em nós, habituados pelas poéticas televisivas e cinematográficas hegemônicas a que as imagens se nos ofereçam sob os modos da 44

Nem todas as imagens cinematográficas se prestam a essas aventuras, que, pelo contrário, muitas vezes tendem a reforçar os esquemas psicofísicos de reação condicionada e os códigos expressivos instituídos, sobredeterminando o sentido das imagens e deixando pouco ou nenhum espaço para o exercício crítico do olhar. Quando o cinema se abre a tal, implica um desfasamento em relação ao seu funcionamento comum (Rancière, 2011, p. 12). Cf. Pellejero, Eduardo. Eikasía: A consciência nas sombras do cinema. In: Paralaxe, nº especial. São Paulo: PUC-SP, 2014.

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naturalidade e da transparência (por princípio, impossíveis). Por exemplo, estamos acostumados a que as imagens sejam filmadas em enquadramentos fixos, ou em deslocações suaves, de preferência imperceptíveis. Daí que quando, num filme, se introduzem cenas filmadas com câmara subjetiva e sem expediente a mecanismos de estabilização, identifiquemos de imediato uma espécie de anomalia. Em realidade, a nossa visão está mais próxima disto, inclusive se o nosso cérebro é capaz de compensar boa parte dos nossos movimentos na construção do que vemos. Basta que nos alteremos um pouco para que as imagens comecem a dar saltos. Em Irréversible (2002), Gaspar Noé nos oferece uma experiência intensa de todo o que pode entrar nessas variações da percepção. Durante os primeiros minutos do filme, a câmara assume uma posição subjetiva e um comportamento frenético, agitandose constantemente, transmitindo-nos uma sensação de angústia e nervosismo difícil de suportar, que nos contagia o próprio ânimo de Markus (Vincent Cassel) e nos faz partícipes da vingança. Mais tarde a câmara tomará distância e assumirá uma posição de total imobilidade, dando-nos a ver, durante quase dez minutos, sem véus nem cortes nem rodeios, a tremenda cena da violação de Alex (Monica Bellucci). Aí também, a opção da câmara fixa tem um objeto específico, que é enfatizar a crueldade da cena, reduzindo a zero qualquer distração possível, impedindo-nos de focar a vista noutro lugar que não seja o corpo torturado da protagonista. É difícil, se não impossível, contemplar a cena do princípio ao fim, pelo menos sem parar para tomar ar, para recuperar a compostura. E não se trata de um efeito decorrente apenas do conteúdo da cena, que em última instância é (lamentavelmente) humana, demasiado humana, mas da composição estética da imagem, em si mesma totalmente inumana: ninguém é capaz de contemplar com semelhante frialdade, sem piscar sequer, uma cena assim. Raras vezes o cinema demostrou tão claramente que a composição de um plano é uma questão moral45. Aí onde está a câmara, não há ninguém, apenas uma máquina. Só pode tratar-se do olhar de um deus perverso ou, o que é o mesmo, do nada46. Essa paradoxal quietude da câmara perante a imagem que nos revolve o estômago não só suspende a progressão da história, mas a coloca de cabeça para baixo, forçando inclusive a inversão da sucessão temporal que pressupõem os incidentes da trama. Em todo o caso, esses recursos (câmara frenética/câmara imóvel), que certamente procuram golpear a 45

Como é sabido, Godard afirmava que “o travelling é uma questão moral”, brincando com uma frase de Luc Moullet, que pela sua vez afirmara que “a moral é uma questão de travellings”. 46 Para nós, pelo contrário, as imagens sempre estão em movimento, inclusive as imagens estáticas da pintura e da fotografia, mesmo que não seja senão porque os nossos olhos nunca ficam quietos.

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sensibilidade do espectador antes que este tenha clara consciência do que está vendo, se encontram totalmente à vista; logo disponíveis para a nossa consideração crítica – ao contrário do que em geral acontece nas poéticas da transparência que procuram manipular a nossa percepção sem que o notemos. Como é possível não sermos sensíveis, depois de ver o filme de Noé, às formas habituais em que é posta em imagem a violência47? Como esquecer que o movimento ou a quietude das imagens são algo mais do que metáforas do compromisso ou da indiferença do olhar? De modo geral, chamando a nossa atenção sobre as propriedades estéticas das imagens, sobre as formas sempre singulares da sua articulação, o cinema afirma sem rodeios a sua própria artificialidade. À consciência ou não dos seus realizadores, habitualmente às costas dos seus produtores, nega assim que seja possível dar conta de uma história através de imagens sem pôr em jogo uma série de operações complexas, que ao mesmo tempo velam e revelam aquilo que as imagens evocam. Baz Luhrmann dizia que no cinema tudo é técnica, inclusive quando parece não haver. Na sua frequentação, contudo, o reconhecimento da artificialidade, da opacidade e do perspectivismo do cinema podem converter-se em oportunidade para aprender sobre os dispositivos que aspiram a naturalizar um certo tipo de imagens, dando por descontada a sua transparência e neutralidade – logo, proclamando o seu caráter indicial, exigindo a sua assimilação referencial e a adesão total (acrítica) do nosso olhar. A minha intenção, com isto, não é distinguir um cinema bom ou libertário de um cinema ruim ou alienante, nem estabelecer uma diferença essencial entre o cinema e a televisão. Os clichés nos quais se anquilosa o nosso olhar, e que nos levam muitas vezes a equiparar certas poéticas cinematográficas ou televisivas às formas naturais em que se manifesta o mundo aos nossos olhos (se é que tem algum sentido falar dessa maneira), assombram por igual todos os modos de pôr em imagem. Ao mesmo tempo, a potência disruptiva das imagens pode manifestar-se em não importa que campo da criação artística, inclusive a rebeldia dos seus criadores, contrariando o sentido das fábulas que se propõem contar48. O que me interessa assinalar é menos ambicioso, mas não menos instigante. Se trata de considerar algumas das formas em que o cinema pode contribuir para a (des)educação do olhar, para a desnaturalização dos modos incorporados que temos de 47

Recentemente, Dan Gilroy tematizou de forma arrepiante os dispositivos televisivos de pôr em imagem a violência. Cf. Nightcrawler (2014). 48 Sobre o sentido da fábula contrariada, cf. Rancière, Jacques. La fable cinematographique. Paris: Seuil, 2001.

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ver, e, pelo mesmo, para a denúncia das poéticas da transparência que, ao mesmo tempo que procuram satisfazer as expectativas desse olhar normal ou normalizado, contribuem para o seu endurecimento. As neurociências nos advertem que detrás do rápido funcionamento da nossa visão se estende uma inteligência tão vasta que ocupa quase a metade do nosso córtex cerebral, e que, por sua vez, coloca em movimento as zonas do nosso cérebro associadas à afetividade, à memória e à imaginação (Hoffmann, 2000, p. 12-13). Ver não é apenas uma questão de recepção passiva, mas um processo que põe em jogo toda a nossa inteligência. Agora, boa parte das operações que dão lugar à visão têm lugar em geral de modo inconsciente. Isso significa que, em teoria, conhecendo os modos em que tende a responder um cérebro médio, em circunstâncias normais ou normalizadas, seria possível propiciar (sobredeterminar) certo número de reações psicofísicas, e inclusive emocionais (algo similar já afirmavam os psicólogos da Gestalt). Na prática, por outra parte, constatamos que parece perfeitamente possível, através do agenciamento estratégico das imagens, manipular, com propósitos artísticos ou políticos, ideológicos ou comerciais, o modo em que se comporta o nosso olhar e vemos o mundo, induzindo expectativas perceptivas, associações mecânicas, reações afetivas, etc.49 Mas também é possível, assim como nos mostra a ciência, através de experimentos pensados especialmente para identificar os automatismos aos que em geral se encontra preso o nosso olhar, suscitar o nosso estranhamento enquanto espectadores através do reagenciamento das propriedades estéticas das imagens, obrigando-nos a pôr em variação e, através disso, a pôr em questão, o que significa ver e dar a ver, olhar e resignificar, contemplar e fazer sentido. As nossas mentes não se prestam passivamente à manipulação, como temia Platão e muitas vezes continua a temer a filosofia. As nossas mentes não são como a cera. Porém, sem a desnaturalização do olhar à qual dá lugar a experiência estética, seriam muito mais vulneráveis ao constante bombardeamento de publicitários e ideólogos.

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O próprio Einsenstein considerava que “o estudo da conduta do homem (…) e dos seus métodos de percepção da realidade e formação de imagens, seria sempre determinante [para os cineastas]” (Eisenstein, 2006, p. 54). E, como assinalávamos antes, alguns grandes cineastas foram verdadeiros especialistas no cálculo das respostas prováveis dos espectadores às imagens, e utilizaram estrategicamente esse saber probabilístico para lhe armar ciladas, criar e frustrar expectativas, ou condicionar as suas reações psicofísicas (com mais ou menos sucesso).

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UMA APRENDIZAGEM NAS IMAGENS Além das lições sobre o olhar que possa dar-nos através das suas histórias, e das experiências que possa oferecer-nos para que problematizemos os modos habituais de pôr em imagem, o cinema também pode ser ocasião para o livre exercício das nossas faculdades, sem ideias preconcebidas de um objeto ou um fim a alcançar50. Isto é assim porque não existe sintaxe das imagens. Se as imagens, em si mesmas, pensam, o fazem sob a forma de uma espécie de parataxe. A priori, entre uma imagem e outra, não existem nexos de nenhum tipo. As imagens têm isso: cintilam. E não se trata apenas de uma singularidade atribuível à precariedade técnica dos começos do cinema: se trata de uma característica essencial51. Por isso mesmo, também, a experiência que nos propõe o cinema é sempre maior e menor que as histórias que nos conta. É um convite para que estabeleçamos por conta própria as conexões que consideramos pertinentes ou insólitas, interessantes ou graciosas, críticas ou paradoxais, a partir das justaposições de imagens que nos propõem os seus filmes. Isso quer dizer que podemos aprender do cinema mais do que o cinema nos ensina. Ao fim e ao cabo, mesmo quando o cinema se proponha oferecer-nos lições sobre o que significa ver e interpretar, não está livre de recair em lugares comuns, nem de funcionar de modo preceptivo. Spellbound (1945) é um filme desse tipo: falho, pelo menos do ponto de vista do que quer ensinar-nos sobre a interpretação. Como é habitual em Hitchcock, a história abunda em grandes observadores, mas os seus olhares não se dirigem desta vez às coisas mesmas, mas repousam todas sobre um saber autorizado (a psicanálise, que funciona como uma espécie de código) e uma série de preconceitos fortemente enraizados (começando por um machismo exasperante). Não é que a intenção de 50

Sartre dizia que, de forma geral, a arte nos apresenta o mundo, não como uma totalidade fechada, historicamente sobredeterminada, mas como um processo, um devir, sempre em jogo, ao contrário do que acontece na realidade cotidiana, onde “o mundo aparece como o horizonte da nossa situação, como a distância infinita que nos separa de nós mesmos, como a totalidade sintética do dado, como o conjunto indiferenciado dos obstáculos e dos utensílios – mas jamais como uma exigência dirigida à nossa liberdade” (Sartre, 2004, p. 49). 51 Mesmo quando se encontrem incorporadas numa intriga, mesmo quando possam estar articuladas por uma narração, as imagens são paratáxicas. Imaginemos um exemplo limite, em que as imagens se sucedam separadas por placas com conectores lógicos. Inclusive nesse caso, a conexão entre as imagens (incluídas as imagens dos conectores lógicos) não é uma propriedade do que aparece, mas depende sempre das relações que estabelece cada espectador. As imagens não são apofânticas, não são proposições nem enunciados; são uma condensação que excede qualquer figura do sentido. As imagens proliferam, mesmo a contrapelo da sucessão temporal na que se encontram inscritas (por exemplo, uma imagem modifica retrospectivamente o sentido das anteriores).

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introduzir a teoria dos deslocamentos do inconsciente a partir de certos artifícios do surrealismo careça de qualquer interesse. A questão é que as imagens transbordam constantemente a moldura conceitual na qual pretende enquadrá-las a perspectiva de interpretação adotada. Seja a cena do beijo. Com a escusa de discutir um livro, Constance (Ingrid Bergman) irrompe em meio da noite no quarto de Edwardes (Gregory Peck) – de quem alega ser o Dr. Edwardes, pelo menos (em realidade, John Ballantyne). No momento em que ambos deixam cair as máscaras e se aproximam um do outro, a câmara vai encurtando os planos em rápida sucessão, suspendendo a história num instante extático. Os olhos chegam a ocupar todo o quadro. Por fim, os dela se fecham para o beijo. Então a imagem se funde na de uma série de portas abrindo-se, uma detrás da outra, dando lugar a um corredor que se perde numa espécie de bruma branca. Evidentemente, se trata de uma metáfora, de uma bastante óbvia, inclusive, pelo menos da perspectiva de análise que propõe o filme, que deixa pouca margem para a sua interpretação. E, contudo, na sua simplicidade, essa imagem nos desvia, por excesso e por defeito, daquilo do que pretende ser metáfora, suscitando o livre devaneio da nossa imaginação. As imagens não se traduzem umas às outras. As imagens ressoam entre si, não apenas as que se sucedem na trama, mas em geral, em nós. Assim como na cena do beijo, ou perante a imagem estática da árvore outonal da abertura, o que vemos nos afeta sempre, em parte, à margem de qualquer rede estabelecida de sentido, de qualquer quadro de interpretação. Não independentemente de tudo isso, mas numa tensão constante, sem resolução evidente52. Nesse sentido, o mais interessante do filme de Hitchcock é que, além das suas apostas ostensivas, das suas intenções e dos seus artifícios, nos oferece uma experiência intensa dessa dimensão do funcionamento das imagens, da qual quiçá não haja lição alguma a extrair, mas da qual talvez possamos apreender muito. Quando a história seja retomada, nos submergiremos nela novamente, com mais ou menos interesse, mas é improvável que voltemos a aderir completamente ao argumento que rege a intriga, que sejamos fascinados por ele, agora em plena consciência de que as imagens não são apenas uma pista a ser decifrada e de que o olhar

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A música também pode contrariar a fábula cinematográfica. Em Lisbon story (1994), de Wim Wenders, há um longo momento musical, quando Winter (Rüdiger Vogler) descobre o ensaio de Madredeus, que nos arranca totalmente do filme. Como o protagonista, fechamos os olhos, ou, mantendo-os abertos, perdemos a vista num ponto qualquer, como numa sala de concertos, e viajamos com a música. O cinema também nos depara coisas assim: verdadeiros momentos de arrebatamento.

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é algo mais do que um mero instrumento de exame. Pelo menos esse feitiço já não pesa sobre nós. Sem lugar a dúvidas, as imagens cumprem diversas funções no cinema: ilustram a intriga, pontuam a trama, enfatizam os momentos dramáticos, materializam o estado de ânimo das personagens, etc. Mas a sua singular natureza faz com que, independentemente dos serviços que possam vir a prestar, acabem sempre por fraturar a intriga, contrariar a fábula, exceder o drama, despersonalizar as personagens, etc. Nesses momentos, que são indissociáveis do seu caráter sensível, as imagens nos oferecem a oportunidade de exercitar-nos em algo mais do que na moral das histórias que nos conta o cinema. Isso não quer dizer que o cinema não possa contar histórias, nem que as histórias careçam em si mesmas de interesse. Pelo contrário. Porém, a partir do momento em que certas imagens perturbam o decoro do seu desenvolvimento argumental, escorregam, indo ao encontro de outras imagens, de intuições e de ideias, desencadeando uma miríade de histórias possíveis, assim como dando lugar a experiências que não traduzem bem as figuras da narração. O cinema nunca deixou de contar histórias, e hoje, na época que é a nossa, quiçá privilegiemos a sua forma de fazê-lo sobre qualquer outra. A questão é que o cinema não conta nunca apenas uma história, ou não se limita nunca a contar histórias. A sua intimidade com as imagens lhe impede isso. Entre a história que resume o argumento e as operações que, numa dialética complexa, se articulam no entrelaçamento do argumento e as imagens dos filmes, por um lado, e a memória e a imaginação dos espectadores, por outro, as aventuras da percepção e do sentido proliferam sem controlo. Isso é assim inclusive nos filmes que se inscrevem no cinema de gênero, no sistema de estudos ou na indústria do entretenimento53. Em The player (1992), Robert Altman, que nunca ignorou a abertura das imagens às quais dá lugar o cinema, e que em certa medida deixava sempre o corte final em mãos do espectador54, faz a crítica mais 53

Nisto guardo uma dívida impagável para com as aulas de Mário Jorge Torres, com quem aprendi tudo o que entra em jogo quando vemos um filme. 54 Robert Altman acostumava filmar os seus filmes utilizando várias câmaras, que exploravam cenas múltiplas, nas que tinham lugar muitas coisas ao mesmo tempo. Essa estranha forma de filmar tinha um propósito. Altman dizia que estava à procura de um momento especial, de um momento verdadeiro. Mas o reconhecimento da verdade é algo que deixava em última instância em mãos do espectador. Para multiplicar ainda mais as aberturas, nos anos setenta começa a utilizar uma gravadora de oito canais, que lhe permitia gravar a voz dos atores individualmente, para depois, na mesa de edição, misturá-las de tal forma que duas ou mais conversas tivessem lugar ao mesmo tempo, como em The long goodbye (1973) –

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corrosiva desse cinema que se propõe filmar “The Graduate – Part II”, ou “a cynical, psychic, political, thriller comedy with a heart”. Mas Altman não deixa de filmar por isso. Sabe que, inclusive sendo obrigado a negociar, o cinema sempre acaba por se vingar desse sistema, transgredindo as suas leis, transbordando a lógica do plot. De um ponto de vista filosófico, quiçá seria mais apropriado falar de um excesso do real sobre a representação. A consciência histórica que temos desse excesso, modifica as formas pelas que fazemos, vemos e pensamos a arte. E, no caso do cinema, nos é difícil imaginar como poderíamos fazê-lo, vê-lo ou pensá-lo de outra maneira (seja porque o cinema contribui para a emergência dessa consciência, seja porque ganha consistência em virtude dessa consciência emergente55). O certo é que, para os homens que somos, as suas imagens jamais chegam a identificar-se completamente com a representação, e, além de funcionar como ilustração ou pontuação das representações das que formam parte, põem a trabalhar o excesso da sua realidade contra as próprias figuras da representação às quais dão corpo. Mais uma vez, isso não significa que, perante as imagens do cinema, devamos evitar qualquer representação, que não possamos acompanhar a intriga ou contar-nos histórias que divergem mais ou menos da intriga. No fundo, como diria Bergson, qualquer representação é particular, artificial, e em certa medida arbitrária, mas o fato de nos fazer representações é universal, natural, e em certa medida, também, necessário (e essa distinção é quiçá outra forma de definir o princípio da emancipação). Mais simplesmente, digamos que o cinema não se esgota nas histórias que conta, nos argumentos que encena, mas que se encontra essencialmente aberto a uma articulação do que os seus filmes nos propõem com tudo aquilo que somos capazes de pôr da nossa parte.

é o espectador que deve decidir a que conversa prestar atenção, dado que não é possível escutar todas ao mesmo tempo. 55 Sabemos que Deleuze lia a desconexão entre a intriga e as imagens a partir do que denominava a ruptura do laço sensório-motor, que atribuía, por outra parte, aos acontecimentos traumáticos da Segunda Guerra Mundial, retomando, de alguma maneira, a ideia adorniana de que não é possível continuar a escrever poesia depois dos campos. Da mesma forma, já não seria possível continuar a fazer filmes como se faziam até então, algo grande demais teria acontecido, algo que invalidaria inevitavelmente as formas de inscrever as imagens numa trama. A pertinência desse recorte, em todo o caso, se presta à polêmica. Walter Benjamin identifica esse momento decisivo nas próprias origens do cinema; John Berger nos primeiros anos do cubismo; Jacques Ranciére, na literatura francesa do século XIX. Quiçá o que se encontra em jogo exceda qualquer tentativa de atribuir um acontecimento desencadeante à mudança operada no que respeita aos modos em que fazemos, vemos e pensamos as imagens (Pellejero, 2013). O certo é que constatamos uma mudança na nossa consciência histórica, para a qual “o passado já não cabe na história” (Rojas, 2015), assim como a realidade não cabe na representação.

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CINEMA E EMANCIPAÇÃO Os exemplos expostos não têm nenhum valor especial, não constituem um modelo nem propõem um método. A aprendizagem à que nos convida o cinema, em virtude da distância que assegura o exercício livre das nossas faculdades em relação ao espetáculo56, é inevitavelmente um processo sempre individual, que ninguém pode poupar-nos, e necessariamente devemos conduzir nós próprios. Evidentemente, as imagens que interrompem as suas intrigas e contrariam as suas fábulas podem ser, e muitas vezes são produto das obsessões de um realizador (por exemplo, homens pendurados na borda de um abismo em Hitchcock), ou uma marca de gênero (como quando nos filmes de terror a câmara se aproxima, da praia ou do mato, à janela de uma cabana no meio da noite), ou inclusive efeito da aura de um ator ou de uma atriz (os olhos de Greta Garbo). Mas também, de forma mais geral, essas imagens podem ganhar a sua força suspensória dos investimentos do nosso olhar – com o qual qualquer imagem poderia, em princípio, ser arrancada de um filme, arrancando pela sua vez o filme do seu progresso intrínseco, para inscrever-se num jogo livre de associações e dissociações, de invenção e de crítica. O cinema é capaz de lições magistrais, assim como de uma potência crítica imponderável, mas, sobretudo, é ocasião de aventuras afetivas e intelectuais. Se nos entregamos a elas com paixão, lucidez e perseverança, podemos chegar a apreender muito sobre nós, sobre a profundidade da nossa sensibilidade e a espontaneidade da nossa inteligência, sobre a persistência da nossa memória e a rebeldia da nossa imaginação. No seu espaço57, ao fim e ao cabo, não só tem lugar a suspensão da incredulidade que exigem as suas fábulas, mas também – e isso é menos evidente, mas muito mais importante – a das formas habituais de relacionarmo-nos com o sensível, com o que se dá e aparece. Em última instância, o cinema não é um espelho da natureza nem do homem. A ideia de que a arte levanta um espelho no qual se contemplam o homem e a natureza, dizia John Berger (2002, p. 155) é uma maneira de subestimar a realidade em lugar de interpretá-la. O cinema é, antes, um lugar de experimentação – não sempre para os diretores, os atores ou os estúdios, mas seguramente sempre para nós – onde as imagens forçam as nossas faculdades a duvidar e especular, a interrogar e propor hipóteses, 56

“A distância não é um mal a abolir, é antes a condição normal de toda a comunicação.” (Rancière, 2010, p. 19) 57 Não me refiro apenas à escuridão das salas onde tradicionalmente teve lugar, mas também à luz com que emana das telas de qualquer tipo.

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abrindo gretas que podem chegar a comover os cimentos da nossa percepção e os modos que habitualmente damos por descontados para a sua interpretação. Nisso, as aventuras do cinema guardam certa semelhança com as da observação científica. Num como noutro caso, do que se trata é de “ligar o que se sabe com o que se ignora” (Rancière, 2010, p. 27), mesmo quando “o ato de olhar uma imagem seja muito menos concentrado e a imagem atraia uma gama mais ampla e variada das experiências do espectador” (Berger, 2002, p. 179). Resta que, no caso do cinema, ao contrário que no caso da ciência, o saber do qual partimos não exige nenhum prestígio particular. Desde as suas origens nas feiras, o cinema sempre foi fiel ao seu ascendente popular, sobretudo quando os seus artifícios formais aspiram a assombrar o olhar do espectador comum. O singular exercício da liberdade que nos propõe se dirige a todos e cada um de nós, não importa quem, na espera de que assumamos o nosso papel de intérpretes ativos, capazes de fazer das suas histórias a nossa própria história (Rancière, 2010, p. 27). Já em 1935, Walter Benjamin celebrava essa abertura democrática do cinema, que conjugava, de forma nunca antes vista, as distrações do povo e as provocações da vanguarda, e que, sob a forma de uma experiência lúdica, propiciava a emancipação intelectual dos seus espectadores. Com o tempo, tornou-se comum fazer pouco do seu otimismo, reduzindo as suas teses a uma definição da essência das suas imagens. Mas o que estava em jogo para Benjamin, e continua a estar em jogo para nós, era a possibilidade de uma relação. Com frequência esquecemos que qualquer homem é capaz de interrogar criticamente o que vê a partir do visto e do pensado, do vivido e do imaginado, quando é dessa potência comum que depende a sobrevivência do sonho benjaminiano de uma arte de massas que seja ao mesmo tempo promessa de aventuras espirituais58. À margem das apostas da indústria cinematográfica, e dos filmes – bons ou maus – que continuam a fazer-se, o cinema continua a ser um convite para que a exercitemos em liberdade.

Referências bibliográficas: BERGER, John. El sentido de la vista. Madrid: Alianza, 2002 EISENSTEIN, Sergei. El sentido del cine. México: Siglo XXI, 2006. HOFFMANN, Donald. Inteligencia visual. Barcelona: Paidos, 2000.

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Cf. Sontang, Susan. “Um século de cinema”. Em: Questão de ênfase. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

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PELLEJERO, Eduardo. Eikasía: A consciência nas sombras do cinema. Em: Paralaxe, nº especial. São Paulo: PUC-SP, 2014 PELLEJERO, Eduardo. Modos de fazer / Modos de ver / modos de pensar (Arte sem superstições). Em: Multitão: experimentações, limites, disjunções, artes e ciências. Feira de Santana: UEFS Editora, 2012 RANCIÈRE, Jacques, O destino das imagens. Lisboa: Orfeu Negro, 2011. RANCIÈRE, Jacques. La fable cinematographique. Paris: Seuil, 2001. RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Lisboa: Orfeu Negro, 2010. ROJAS, Sergio. El pasado no cabe en la historia. Conferencia oferecida na Universidad Complutense de Madrid no dia 5 de Junho de 2015. Madrid: UCM, 2015 (sem publicar). SARTRE, Jean-Paul, Que é a literatura? São Paulo: Editora Ática, 2004. SONTANG, Susan. “Um século de cinema”. Em: Questão de ênfase. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

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- Artigos em Periódicos SOBRENOME, Iniciais dos primeiros nomes. Título. In: Título do Periódico. Cidade, volume, número, período e ano, páginas. - Coletâneas e capítulos de livros SOBRENOME, Iniciais dos primeiros nomes (do autor). Título. In: SOBRENOME(S) e NOME(S) ABREVIADO(S) DO(S) ORGANIZADOR(ES). Título do Livro. Cidade: Editora, Ano da edição utilizada, páginas.

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ÍNDICE DE IMAGENS Foto de capa: (Rear Window) Janela indiscreta de Alfred Hitchcock. Foto em Crítica – Depois da chuva: Depois da chuva de Cláudio Marques e Marília Hughes. Foto em O cinema em Merleau-Ponty - em um caminho da saturação do imaginário: (Roma città aperta) Roma, cidade Aberta de Roberto Rossellini. Foto em Percepção e cinema – um olhar ontologicamente cinematográfico: (La strada) A estrada da vida de Federico Fellini. Foto em O personagem-espectador e o colapso do esquema sensório-motor no cinema: (Dial M for Murder) Disque M para matar de Alfred Hitchcock. Foto em O cinema e o tempo criado – esboço de ensaio: (A torinói ló) O cavalo de Turim de Béla Tarr. Foto em Matéria e linguagem: modelos de produção de sentidos no filme: (The Birth of a Nation) O nascimento de uma nação de D. W. Griffith. Foto em Sessões não numeradas: algumas notas sobre o cinema e a emancipação do olhar: Blow-up de Michelangelo Antonioni.

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