O conceito da temporalidade nas dinâmicas socioculturais contemporâneas: a narrativa do game The Legend of Zelda: Majora\'s Mask

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ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING (ESPM-SP) GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL COM ÊNFASE EM PUBLICIDADE E PROPAGANDA

PEDRO ERNESTO GANDINE TANCINI

O CONCEITO DA TEMPORALIDADE NAS DINÂMICAS SOCIOCULTURAIS CONTEMPORÂNEAS: a narrativa do game The Legend of Zelda: Majora’s Mask

SÃO PAULO 2014 1

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PEDRO ERNESTO GANDINE TANCINI

O CONCEITO DA TEMPORALIDADE NAS DINÂMICAS SOCIOCULTURAIS CONTEMPORÂNEAS: a narrativa do game The Legend of Zelda: Majora’s Mask

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito para obtenção do título e Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda pela Escola Superior de Propaganda e Marketing. Orientador: Prof. Walfredo Ribeiro de Campos Junior.

São Paulo 2014 4

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AGRADECIMENTOS

Obrigado, Rosi, pela ajuda nos primeiros passos, ainda na escolha do tema. Obrigado, Mauro e Caio, pela ajuda nos passos seguintes, com novos olhares. Obrigado, Matuck e Mari, pelo constante interesse em meu caminho acadêmico. Obrigado, Muneratti, pelo olhar infalível para erros ortográficos e de concordância. Obrigado, Lucilla, Hector, Godoy, pelas filosóficas conversas sobre o tempo e Zelda. Obrigado, funcionários da biblioteca, pela devotada atenção, prontidão e dedicação. Obrigado, todos os autores, pelas novas e críticas visões sobre o tempo e o mundo. Obrigado, Tânia, pela inspiração, zelo, confiança, por ser minha primeira mestra. Obrigado, Walfredo, por ler, ouvir, comentar, debater, corrigir, pensar, orientar. Obrigado, mãe, por ser apoio em tudo aquilo que é vida: por ser minha mãe. Obrigado.

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O tempo não é, minha amiga, aquilo que você pensou As festas, as fotos antigas, as coisas que você guardou Os trastes, os móveis, as tranças, os vinhos, os velhos cristais E a gente ficou de mãos cheias com coisas que não valem mais E fica um gosto de usado naquilo que nem se provou A gente dormiu acordado e o tempo depressa passou. Reginaldo Bessa

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RESUMO

Essa monografia versa sobre o tempo como instrumento de colocação do homem em relação ao mundo e a si mesmo, considerando as manifestações culturais que ressignificam o caráter do tempo da contemporaneidade. Desse modo, o objetivo dessa pesquisa é estabelecer pontes reflexivas sobre como o conceito do tempo se desenvolve na narrativa do game The Legend of Zelda: Majora´s Mask, um produto cultural que explora o tema de forma abrangente e profunda. Para isso, propomos inicialmente um estudo interpretativo de como os elementos do game expressam seus sentidos em torno do tempo, e, posteriormente, uma análise discursiva que pretende compreender como esses sentidos são efetivamente articulados na trama, de acordo com o contexto de tempo contemporâneo no qual o game está inserido. Com base em tais análises, compreendemos que o tempo é expresso no game por meio de um conflito entre um tempo “urbano” e um tempo “natural”. O tempo “natural”, cíclico, perene e pontual; lida com o tempo “urbano”, marcado, coercitivo e contínuo; tornando possível um tempo contemporâneo da fluidez, das instantaneidades, e dos ciclos desaquisitivos. Assim, enaltece o valor das lembranças (resgate do passado) e da ciclicidade ritualística (afirmação da perenidade), para garantir a perspectiva de futuro em um cenário contemporâneo que exige a capacidade de lidar com a instabilidade e o descarte.

Palavras-chave: tempo, ritual, narrativa, discurso, games.

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ABSTRACT

This monograph turns on the time as an instrument of placing the man in relation to the world and himself, considering the cultural manifestations that re-signify the nature of the contemporary time. Thus, the objective of this research is to establish reflective bridges about how the concept of time is developed into the narrative of the game The Legend of Zelda: Majora's Mask, a cultural product that explores the theme in a broad and profound way. For this, first we propose an interpretive study of how the elements of the game express their meanings around time, and later, a discursive analysis that intends to understand how these meanings are effectively articulated in the plot, according to the context of contemporary time in which the game is inserted. Based on these analyzes, we understand that time is expressed in the game through a conflict between an "urban" time and a "natural" time. The "natural" time, cyclical, perennial and punctual; deals with the "urban" time, marked, coercive and continuous; making possible a contemporary time of fluidity, of instants, and of desacquisitive cycles. Thus, it extols the value of the memories (rescue from the past) and the ritualistic ciclicity (affirmation of continuity), to ensure the perspective of future in a contemporary setting that requires the ability to deal with the instability and disposal.

Keywords: time, ritual, narrative, discourse, games.

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LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Caixa do game The Legend of Zelda: Majora’s Mask ........................................... 78 Figura 2 – Pôster da Operação Queda da Lua ......................................................................... 80 Figura 3 – A marcação na tela ................................................................................................. 87 Figura 4 – A Torre do Relógio ................................................................................................ 89 Figura 5 – A Torre do Relógio na véspera do Festival do Tempo .......................................... 90 Figura 6 – O Caderno dos Bombers ........................................................................................ 93 Figura 7 – A estátua de coruja ................................................................................................. 94 Figura 8 – A Ocarina do Tempo .............................................................................................. 96 Figura 9 – Talt pede ajuda ..................................................................................................... 101 Figura 10 – O Festival do Tempo ......................................................................................... 103 Figura 11 – O interior da Torre do Relógio .......................................................................... 108 Figura 12 – A lua .................................................................................................................. 110 Figura 13 – A queda da lua................................................................................................... 111 Figura 14 – O interior da lua ................................................................................................ 114 Figura 15 – As crianças da lua ............................................................................................. 114 Figura 16 – A criança da Máscara Majora ........................................................................... 115 Figura 17 – Skull Kid rouba a Ocarina do Tempo ............................................................... 126 Figura 18 – O corredor que gira ........................................................................................... 127 Figura 19 – O Vendedor de Máscaras Feliz ......................................................................... 128 Figura 20 – Amanhecer do Primeiro Dia ............................................................................. 129 Figura 21 – O guarda da Cidade do Relógio ........................................................................ 131 Figura 22 – A gangue dos Bombers ..................................................................................... 132 Figura 23 – Deku Link na Cidade do Relógio ...................................................................... 133 Figura 24 – Lembrança de Zelda .......................................................................................... 134 Figura 25 – Canção da Cura ................................................................................................. 136 Figura 26 – O fantasma de Darmani III................................................................................ 137 Figura 27 – O moribundo Mikau ........................................................................................... 137 Figura 28 – O esqueleto de Capitão Keeta ........................................................................... 138 Figura 29 – Todas as máscaras ............................................................................................. 140 Figura 30 – Epona ................................................................................................................ 141 Figura 31 – Gigantes impedem a queda da lua..................................................................... 142

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Figura 32 – A fala da lua ...................................................................................................... 143 Figura 33 – A Máscara Majora ............................................................................................. 144 Figura 34 – A Ira de Majora ................................................................................................. 145 Figura 35 – Amanhecer de um Novo Dia ............................................................................. 146 Figura 36 – Skull Kid pede desculpas .................................................................................. 147 Figura 37 – Vendedor de Máscaras Feliz parte .................................................................... 148 Figura 38 – O fim ................................................................................................................. 148 Figura 39 – Anju ................................................................................................................... 149 Figura 40 – Kafei .................................................................................................................. 149 Figura 41 – O Pingente das Memórias ................................................................................. 150 Figura 42 – A conversa entre Anju e sua mãe ...................................................................... 151 Figura 43 – Kafei recupera a Máscara do Sol ...................................................................... 151 Figura 44 – Kafei e Anju reunidos ....................................................................................... 153 Figura 45 – Kafei e Anju prontos para saudar o amanhecer ................................................ 154 Figura 46 – O Carteiro .......................................................................................................... 155 Figura 47 – O conflito do Carteiro ....................................................................................... 157 Figura 48 – O Carteiro e Madame Aroma ............................................................................ 158 Figura 49 – O Carteiro dá o Chapéu do Carteiro antes de partir .......................................... 160

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 14 1.1 CONTEXTUALIZAÇÃO ................................................................................................. 14 1.2 OBJETO ............................................................................................................................ 18 1.3 PROBLEMA ..................................................................................................................... 21 1.4 OBJETIVO GERAL .......................................................................................................... 21 1.5 OBJETIVOS ESPECÍFICOS ............................................................................................ 21 1.6 METODOLOGIA .............................................................................................................. 22 1.7 QUADRO REFERENCIAL TEÓRICO ............................................................................ 23 2 DEFINIÇÃO DO TEMPO ................................................................................................. 24 2.1 MISTÉRIO DA NATUREZA E DO HOMEM ................................................................ 24 2.2 MISTÉRIO DE DEFINIÇÕES .......................................................................................... 29 3 HISTÓRIA DO TEMPO .................................................................................................... 40 3.1 O TEMPO AO LONGO DO TEMPO ............................................................................... 40 3.2 O TEMPO EM NOSSOS TEMPOS .................................................................................. 44 4 NARRATIVA, GAMES E GAMEPLAYS ....................................................................... 59 4.1 TEMPO E NARRATIVA .................................................................................................. 59 4.2 GAME E GAMEPLAYS ................................................................................................... 62 4.3 METODOLOGIA .............................................................................................................. 68 5 ANÁLISE ............................................................................................................................ 78 5.1 THE LEGEND OF ZELDA: MAJORA’S MASK ............................................................ 78 5.2 ANÁLISE DE CONTEÚDO ............................................................................................. 86 5.2.1 O tempo da Torre do Relógio ......................................................................................... 87 5.2.1.1 A marcação da tela .......................................................................................... 87 5.2.1.2 O exterior da Torre do Relógio ........................................................................ 89 5.2.1.2 As músicas da Cidade do Relógio ................................................................... 94 5.2.2 O tempo da Deusa do Tempo ......................................................................................... 96 5.2.2.1 A Ocarina do Tempo ....................................................................................... 96 5.2.2.2 A Deusa do Tempo ........................................................................................ 100 5.2.2.3 O Festival do Tempo ..................................................................................... 103 5.2.3 O tempo da lua .............................................................................................................. 106 12

5.2.3.1 O interior da Torre do Relógio ...................................................................... 107 5.2.3.2 A lua .............................................................................................................. 110 5.2.3.3 O interior da lua .............................................................................................. 113 5.2.4 Os três tempos .............................................................................................................. 116 5.3 ANÁLISE DO DISCURSO ............................................................................................. 125 5.3.1 A narrativa de Link ....................................................................................................... 125 5.3.1.1 A chegada de Link em Termina .................................................................... 126 5.3.1.2 O primeiro ciclo de três dias .......................................................................... 129 5.3.1.3 O fim do primeiro ciclo de três dias e a busca pelos guardiões ..................... 133 5.3.1.4 A batalha final ............................................................................................... 142 5.3.1.5 A resolução .................................................................................................... 146 5.3.2 A narrativa de Anju e Kafei .......................................................................................... 149 5.3.3 A narrativa do Carteiro ................................................................................................. 155 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 161 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 167 APÊNDICES ........................................................................................................................ 170

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1 INTRODUÇÃO

1.1 CONTEXTUALIZAÇÃO “We're fine with this. We're going to greet the morning, together” Anju (The Legend of Zelda: Majora’s Mask) O conceito da temporalidade é, acima de qualquer definição, um conceito abrangente que mobiliza diversas áreas de estudo. Tais áreas são de natureza interdisciplinar, e portanto, para compormos as compreensões que o tempo invoca nas esferas culturais e comunicacionais da contemporaneidade, vale primeiramente investigar sua definição nas ciências exatas, que estudam os fenômenos naturais. Na física clássica, tempo é definido como: a grandeza física diretamente associada ao correto sequenciamento, mediante ordem de ocorrência, dos eventos naturais; estabelecido segundo coincidências simultaneamente espaciais e temporais entre tais eventos e as indicações de um ou mais relógios adequadamente posicionados, sincronizados e atrelados de forma adequada à origem e aos eixos coordenados do referencial para o qual define-se o tempo (EINSTEIN, 2013, p. 34).

Considerando tal definição, o tempo configura-se como uma grandeza física, passível de ser medida por meio da comparação entre duas ou mais sequências de eventos no espaço. Contudo, para que essa medição seja possível, tais sequências devem ocorrer simultaneamente, tendo pelo menos uma delas a função de referencial fixo, relógio. Para que a compreensão dessa definição seja plena, propomos uma situação hipotética para fins de exemplo. Em tal situação, pretendemos medir o tempo necessário para que um corpo se desloque do ponto A ao ponto B, utilizando para isso, um cronômetro analógico. Determinamos o instante 0 como o exato momento em que o cronômetro é ativado, quando o ponteiro coloca-se apontado para a marcação de 0 segundo. No instante 0, o corpo encontra-se no ponto A, quando ainda não percorreu nenhuma distância. Em seguida, determinamos o instante 1 como o exato momento em que o ponteiro coloca-se apontado para a marcação de 1 segundo. No instante 1, o corpo está na metade da distância entre A e B. Por fim, determinamos o instante 2 como o exato momento em que o ponteiro coloca-se apontado para a marcação de 2 segundos. No instante 2, o corpo acaba de atingir o ponto B. Paramos o cronômetro, e facilmente resolvemos nosso problema inicial: o corpo demora exatos 2 segundos para deslocar de A a B. A resposta é 2 segundos. Porém, vale aprofundar-se nessa reposta e entender o que significa a unidade de tempo denominada como segundo. Segundo é uma divisão do minuto, que por sua vez é a divisão da 14

hora, dia, mês, ano; sendo este último a quantidade de tempo necessária para que a Terra realize uma rotação completa em torno do sol. Portanto, em 1 segundo, a Terra se desloca aproximadamente 0,000003% do seu eixo em torno do sol, ou, para termos de melhor didática, 1 “pedacinho” do eixo. Podemos, com esses dados, montar a tabela que compara essa definição e o marcado na situação descrita inicialmente.

Tabela 1 - Comparação entre sequências de eventos simultâneos

Instante 0

Instante 1

Instante 2

Sequência de eventos 1

Sequência

de

eventos

2

Sequência de eventos 3

(Terra)

(Cronômetro)

(Corpo)

A Terra percorreu

O ponteiro aponta para a

O corpo está no ponto A

0 “pedacinhos” do eixo

marcação de 0 segundo

A Terra percorreu

O ponteiro aponta para a

O corpo está na metade da

1 “pedacinho” do eixo

marcação de 1 segundo

distância entre A e B

A Terra percorreu

O ponteiro aponta para a

O corpo está no ponto B

2 “pedacinhos” do eixo

marcação de 2 segundos

Dessa forma, entendemos a comparação implícita em toda percepção de tempo. O tempo é a grandeza que deriva da comparação entre duas ou mais sequências de eventos (Sequência 1, 2 e 3) coincidentes (os instantes são os mesmos para as sequências), sendo uma delas um referencial fixo, ou relógio (o relógio comum deriva da sequência de eventos que ocorre quando a Terra rota em torno do sol: são os segundos, minutos, horas, etc.). Nesse ponto, a definição apresentada sobre o tempo pode parecer incompleta ou restrita aos objetivos específicos da física, já que não contempla outras experiências relacionadas ao tempo nas vidas cotidianas. O tempo parece transcender a noção de deslocamento espacial, visto que pode revelar a mais variada sorte de acontecimentos (os minutos de um discurso eleitoral, as horas que um carro fica estacionado, os anos de vida de um ancião). Entretanto, em uma análise aprofundada sobre todas as observações relacionadas ao tempo, entende-se que são variações de um mesmo denominador comum que é a relação entre sequências espaciais. Por exemplo, ao medir o tempo de um discurso eleitoral, relativizamos a sequência espacial inserida no deslocamento dos ponteiros do relógio analógico ou na oscilação do cristal do relógio digital, com a sequência de eventos inseridos na gama de ações que por nós é caracterizada como um discurso (movimento corporal, emissão de ondas sonoras, transmissão de energia). Por sua vez, ao revelarmos a idade de alguém, relativizamos os deslocamentos da Terra em torno do Sol, com o vasto conjunto de geração e degeneração celular de um corpo. Por fim, até mesmo quando marcamos o tempo em que um carro está estacionado, relativizamos a sequência 15

inserida no deslocamento dos marcadores de um relógio com outra sequência que, aparentemente de eventos indistintos (o carro continua em repouso por todo o tempo), não está em repouso em relação à primeira. Assim, notamos duas coisas. A primeira é que o tempo é, essencialmente, uma noção atrelada à diferença de posições no espaço; e, amplamente, uma noção atrelada à sequência de eventos. A segunda é que o tempo, assim como o espaço, é uma grandeza referencial, que é sustentada apenas por meio de comparação. Tendo isso em mente, é possível, então, abrir o leque das outras significações atribuídas ao tempo nas diferentes áreas de estudo. O tempo, culturalmente, pode ser visto como as formas como os indivíduos se relacionam com as velocidades das sequências de acontecimentos em suas vidas em sociedade, e como a sociedade compõe tais velocidades tendo em vista seus recursos tecnológicos de produção e comunicação e as concepções culturais que cultivam. Zygmunt Bauman reflexiona muito bem sobre como o tempo é significado na sociedade de consumo contemporânea, ou, em seus termos, sociedade líquido-moderna: No mundo passado, onde o tempo caminhava bem mais lentamente e resistia à aceleração, as pessoas tentavam fechar o torturante fosso entre a pobreza de uma vida curta e mortal e a riqueza infinita do universo eterno com esperanças de reencarnação ou ressurreição. Em nosso mundo, que não conhece nem admite limites à aceleração, tais esperanças podem muito bem ser descartadas. Se alguém se move com rapidez suficiente e não se detém para olhar para trás e contar os ganhos e perdas, pode continuar comprimindo um número cada vez maior de vidas no tempo de duração da existência mortal, talvez tantas quantas a eternidade permitir (BAUMAN, 2009, pág. 15).

Já psicologicamente, o comportamento do indivíduo contemporâneo frente ao tempo relaciona-se diretamente com a presença do desejo como força-motriz dos processos de consumo. Pedro de Santi (2005), propõe a correlação entre a formação do desejo no indivíduo, de acordo com a psicanálise; e o surgimento da chamada cultura do narcisismo, que, conceituada por Christopher Lasch, é uma cultura que se alimenta dos prazeres imediatos e gradualmente mais intensos. Nas palavras de Lasch: Ele [o homem americano] vivia para o futuro, evitando a auto-indulgência em favor de uma acumulação paciente, diligente; e na medida em que a perspectiva coletiva via o todo com tanto fulgor, ele encontrava no adiamento da gratificação não só sua gratificação pessoal, mas também uma fonte abundante de lucro [...]. A inflação corrói os investimentos e as poupanças. A propaganda solapa o horror ao endividamento, exortando o consumidor a comprar agora e a pagar mais tarde. À medida que o futuro se torna ameaçador e incerto, só os tolos deixam para o dia seguinte o prazer que podem ter hoje [...]. A autopreservação substituiu o autocrescimento como o objetivo da existência [...]. Esperam não tanto prosperar, mas simplesmente sobreviver, embora a própria sobrevivência necessite cada vez mais de ganhos maiores (LASCH, 1983, pág. 79 apud SANTI, 2005, pág. 177).

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Ainda assim, o tempo pode ser visto pela ótica filosófica. Milton Pelegrini (2002) ordena as teorias filosóficas de Vilém Flusser (1963) sobre a temporalidade, e tece interessantes reflexões sobre o novo tempo da contemporaneidade. Flusser afirma que o tempo é a entidade que separa o objeto (a realidade objetiva) do signo, e portanto das significações por quais conhecemos e recriamos o mundo. Ele refere-se ao mundo “real” como o “de tudo diferente”, primeiramente inacessível ao pensar humano. Então, propõe que a necessidade de construir os signos para criar a ponte entre o “de tudo diferente” e a significação legível deriva da impossibilidade de capturar o “de tudo diferente” no tempo (o objeto real não faz sentido a cada vez que o percebemos, pois a cada vez que o percebemos, ele já não está mais ali presente: sua presença já é passada e inexistente). Dessa forma, o próprio tempo é o espaço intransponível entre o signo e o objeto, e, dedutivamente, a ausência de tempo, ou a eternidade, seria o acesso não-mediado entre o objeto e quem o percebe. Nas palavras de Pelegrini, citando Flusser: “O tempo, é portanto, a forma pela qual o espírito humano se afasta de suas origens, o tempo é o abismo que separa o espírito do de tudo diferente, e é por isso que ele é quase insuportável” Talvez seja por isso que seguiremos construindo novas imagens para esse Tempo, mesmo sabendo que estas imagens servirão apenas como mediadores simbólicos, e como símbolos nos projetarão em sentido contrário da entropia, em direção ao ralo formado por um outro tipo de silêncio inautêntico, “o de tudo igual”, o absolutamente articulável, que de resto deve representar o tempo da eternidade, o Tempo como valor absoluto (PELEGRINI, 2002, p. 6 e 7).

Vistas tais colocações, podemos notar como o tempo é alvo de reflexões em diversas esferas de estudo. Em conseguinte, o tempo é um tema que figura em manifestações culturais de variadas naturezas. O conceito da temporalidade, da sequência de acontecimentos que instauram as mudanças e as diferenças, compõe todas as manifestações culturais que se propõem a contar estórias, ou seja, tecer roteiros sequenciais de ações (estão inclusas literatura, artes plásticas, cinema, teatro, música, dança, televisão, publicidade, jornalismo etc.). Porém, está presente ainda mais explicitamente em manifestações culturais que tratam do tema de forma direta nas suas narrativas. Uma manifestação que trata do tema da temporalidade, tanto no conteúdo como na forma de sua narrativa, é o game The Legend of Zelda: Majora’s Mask. O game The Legend of Zelda: Majora’s Mask, abreviado aqui para Majora’s Mask é um game lançado pela Nintendo para o console Nintendo 64, no ano de 2000. Ele faz parte da extensa série de games The Legend of Zelda, que tem a tradição de tratar do tema do tempo em seus enredos (como exemplo mais claro, aqueles que apresentam o tema do tempo no próprio nome: The Legend of Zelda: Ocarina of Time, The Legend of Zelda: a Link to the Past, The Legend of Zelda: Oracle of Ages). Porém, Majora’s Mask traz conceituações ainda mais marcantes sobre a temporalidade do que os outros títulos da série, como se torna evidente, por 17

exemplo, na presença inédita de uma marcação que determina o horário “dentro do game”, ou a presença de um antagonista que pretende invocar o “fim dos tempos”, pela queda da lua em exatos três dias. Tomando a temporalidade como um tema relevante a ser estudado cultural, psicológica, e filosoficamente, entender como ela tem seus sentidos representados em uma manifestação cultural como o game Majora´s Mask viabiliza uma compreensão analítica de um tempo contextualizado, ou seja, que se constrói e se ressignifica em uma cultura de valores contemporâneos específicos. Esses valores específicos revelam-se nas manifestações culturais por meio de relações de negociação, ou, em outras palavras, por processos de permanência e/ou deslocamentos de sentidos. Dessa maneira, objetivamos estabelecer pontes em como o tema constrói seus sentidos na composição da narrativa do game e como é articulado nas relações socioculturais da contemporaneidade, e, assim, entender como essas permanências e deslocamentos de sentidos efetivamente dizem sobre o caráter de nosso tempo.

1.2 OBJETO

O conceito da temporalidade, como já explicitado, é um tema presente nas manifestações culturais contemporâneas, tanto na construção das narrativas envolvidas, como nas significações diretas do discurso que propõem, refletindo e refratando a cultura de onde se originam (ORLANDI, 2008.) O game The Legend of Zelda Majora’s Mask é uma manifestação que tem como um dos centros da composição de seu enredo a questão da temporalidade, e por isso, trata-se de um material rico para análise. Portanto, a pesquisa orienta-se para valorizar esse game como instrumento difusor de estudo que permite uma análise narrativa e do discurso relacionado ao tema da temporalidade. O game The Legend of Zelda: Majora’s Mask foi lançado em 2000, pela empresa japonesa Nintendo, para o console Nintendo 64. Majora’s Mask faz parte da série de títulos The Legend of Zelda, e é o sucessor de The Legend of Zelda: Ocarina of Time, o game que tornou a franquia famosa mundialmente. Esses dois títulos, os primeiros a serem desenvolvidos na tecnologia 3D do Nintendo 64, fizeram sucesso principalmente junto às gerações nascidas na década de 90, que estavam na infância na primeira década do século XXI. Entretanto, Majora´s Mask ainda cativa muitos dos seus fãs que jogaram o game nessa época, pois, especial aos outros títulos da franquia, apresenta uma atmosfera única em sua obscuridade e profundidade dramática.

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O game propõe ao jogador viver a história de Link, o herói protagonista de todos os títulos da série. Link, à procura de uma amiga que o acompanhou na sua última aventura, é atacado por um menino mascarado e tem sua égua roubada. Perseguindo o ladrão, Link acaba entrando em Termina, um mundo paralelo que, em exatos três dias, será destruído pela queda da lua. Assim que chega, conhece o Vendedor de Máscaras Feliz, que revela que o responsável pela iminente tragédia e por vários outros atos de crueldade é o mesmo ser que roubou Link: Skull Kid (Menino da Caveira). Porém, o verdadeiro vilão é a máscara que está o possuindo, um artefato que aprisiona a alma de um demônio maligno: a Máscara de Majora. Link, para impedir a tragédia, consegue um poderoso instrumento mágico que permite que volte no tempo, antes do fim dos três dias, e da queda da lua sobre Termina. Tendo esse item em mãos, o herói revive os ciclos de 72 horas acumulando itens mágicos e libertando os quatro deuses guardiões, entidades que poderão ajudá-lo. Na batalha final, os quatro guardiões impedem a queda da lua, e Link destrói o demônio Majora, para que assim todos possam viver o próximo dia em Termina. Majora’s Mask se diferencia principalmente pela sua atmosfera de jogo. Como colocado no site enciclopédia colaborativa do universo The Legend of Zelda: Majora’s Mask é geralmente tido como o título mais sombrio da franquia Zelda. O enredo do game contém temas muito mais densos que os vistos nos games anteriores da série, com melodias melancólicas e uma imensidade de situações trágicas. O jogador se depara com a informação de que o mundo de Termina será destruído dentro de três dias, e que o único meio de impedir isso de acontecer é tocando a Ocarina do Tempo e recomeçando tudo do amanhecer do Primeiro Dia. Majora’s Mask vai ainda mais além, se aprofundando nos estados emocionais e psicológicos dos cidadãos de Termina, cada um respondendo à inevitável ruína de uma forma idiossincrática, mas realista. Link e os cidadãos de Termina são continuamente confrontados com elementos de morte, perda e abandono, de novo e de novo na contínua repetição do ciclo de três dias. A atmosfera agourenta da destruição do mundo está sempre presente em Majora´s Mask, presente na trilha sonora e arte do jogo. Mesmo o nome “Termina” é derivado da expressão latina “terminus”, originalmente atribuída ao deus romano da marcação das fronteiras, que se traduz livremente em “fronteira, limite, fim”. (ZELDA WIKI, 2014)

Outro elemento interessante presente no game Majora´s Mask é a inédita implementação de um sistema de marcação de tempo. O sistema de tempo marca o instante dentro do período de três dias até a destruição do mundo. Na parte inferior da tela, um relógio informa o horário e o dia no game. Dessa forma, diversos eventos que ocorrem no game (geralmente envolvendo objetivos secundários) variam de acordo com o horário na narrativa. Além disso, o game apresenta as máscaras como elemento integrante de sua jogabilidade e enredo. As máscaras permitem transformações em Link, garantindo novos poderes e 19

habilidades, além de vantagens e desvantagens específicas. Por fim, Majora´s Mask apresenta a maior quantidade das chamadas sidequests, aventuras com objetivos secundários que não devem ser necessariamente cumpridas para que o game seja “vencido”. Nas sidequests é que são explorados os profundos conflitos internos das personagens frente ao fim. Notamos, entretanto, que eleger diretamente o game Majora’s Mask como o objeto de estudo da pesquisa exigiria certa abrangência reflexiva sobre as especificidades de como o game constrói sua comunicação. Um game interativo, diferente de uma leitura linear como na literatura ou no cinema, possibilita diversas narrativas pessoais que cada receptor constrói em sua experiência no ato jogar. Em outras palavras, o game apenas se constrói no jogar, e a narrativa é consolidada pelas escolhas e caminhos do jogador dentro do conjunto de elementos codificados ali presentes. Assim, para que fosse selecionada uma narrativa já construída pelo jogar, elegemos como objeto um produto cultural paralelo aos games: os gameplays. Gameplays são produções audiovisuais que ilustram a trajetória de um jogador no game em questão, e são postados na Internet geralmente com o intuito de guiar possíveis jogadores que não conseguem prosseguir em certos pontos do game. Os gameplays, assim como todas as produções paralelas aos games, apresentam ricas significações, assim como o próprio produto do qual derivam. De acordo com James Newman: Esse material [games] é, sem dúvidas, importante, mas conta apenas parte da história e há uma riqueza de outros valiosos, analíticos, interpretativos textos disponíveis. O gameplay é o principal entre esses e revela alguns dos melhores insights na análise do game e discursos investigativos ali disponíveis (NEWMAN, 2011, pág. 14, tradução nossa1).

O material que irá compor o objeto da pesquisa limita-se em um gameplay do game Majora’s Mask, presente no portal de vídeos Youtube (Let’s Play). Serão consideradas para a análise os trechos que melhor contribuam para a construção da narrativa relacionada ao tema do tempo.

1.3 PROBLEMA

Constatada a importância do tema da temporalidade nos tempos contemporâneos, assim como sua presença marcante no game The Legend of Zelda: Majora’s Mask, uma manifestação cultural que constrói significações relacionadas aos contextos culturais da sociedade da qual 1

This material is undoubtedly important, but it tells only part of the story and there is a wealth of other rich, analytical, interpretative texts available. The player-produced walkthrough is chief among these and gives rise to some of the most insightful game analysis and investigative discourse presently available. 20

origina, propomos o problema que nos guiará no levantamento teórico e na posterior análise do objeto. Dessa forma, o problema da pesquisa pauta-se na seguinte questão: De que formas e com que nuances o conceito de temporalidade tem seus sentidos representados na narrativa do game The Legend of Zelda: Majora’s Mask e como eles se relacionam com a colocação do indivíduo contemporâneo a tais questões?

1.4 OBJETIVO GERAL

A colocação do problema de pesquisa nos revela o objetivo geral do trabalho, que se resume em estabelecer pontes reflexivas sobre como o conceito do tempo se desenvolve na narrativa do game The Legend of Zelda: Majora´s Mask, e como é significado no cenário contemporâneo, tendo em vista as reflexões de diversos autores sobre o assunto.

1.5 OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Propomos a decupação do objetivo geral em três objetivos específicos que nortearão o processo da pesquisa. São eles: - Tecer reflexões teóricas acerca do conceito do tempo, nos seus termos gerais, assim como na sua colocação no contexto contemporâneo; - Investigar como o conceito do tempo está presente na narrativa do game The Legend of Zelda: Majora’s Mask; - Propor reflexões comparativas em torno do tempo como é colocado no game, e do tempo como é significado no contexto contemporâneo de sociedades de consumo.

1.6 METODOLOGIA

O processo de pesquisa é dividida em duas etapas principais. A primeira etapa visa contemplar o primeiro objetivo específico, ou seja, pretende tecer uma investigação acerca do tempo, tanto em sua dimensão estrutural e conceitual, como em sua colocação sócio-histórica na contemporaneidade. Assim, a metodologia dessa primeira etapa pauta-se em uma pesquisa bibliográfica, no sentido de que fundamenta a investigação do tema do tempo na bibliografia de autores que estudam sobre o assunto. Inicialmente, articulamos autores que estudam

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diretamente a questão da temporalidade, e atentam para suas questões estruturais, como atentando para as questões estruturais do tempo, como Albert Einstein, Vilém Flusser e Martin Heidegger. Posteriormente, articulamos autores que entendem a questão da temporalidade dissolvida nas questões socioculturais que envolvem o sequenciamento de eventos e as relações do indivíduo contemporâneo com temas como duração, instantaneidade, fluidez, ciclicidade, entre outros. São alguns: Norbert Elias, Zigmunt Bauman, Colin Campbell, Pedro de Santi, e Roy Rappaport. A segunda etapa tem como função esclarecer os dois últimos objetivos específicos, e, assim, entender como o tema do tempo é expresso pelo game Majora’s Mask de acordo com a sua colocação no contexto sociocultural contemporâneo. Para essa etapa de análise, mobilizamos dois dispositivos metodológicos. O primeiro deles relaciona-se com uma análise de conteúdo, proposta por Manuela Penafria, e tem como objetivo tecer um olhar interpretativo de como os sentidos em torno do tempo são construidos nos elementos do game. O segundo deles envolve uma análise do discurso, proposta por Eni Orlandi, e tem como objetivo relativizar os sentidos acerca do tempo de acordo com as formas como são articulados na narrativa proposta pelo game. Essas formas relacionam-se com as ideologias que compõe o contexto do tempo na contemporaneidade.

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1.7 QUADRO REFERENCIAL TEÓRICO

Tempo

EINSTEIN, Relativity: the special and general theory. EDDINGTON, The nature of the physical world. MINKOWSKI, Space and time. HEIDEGGER, Ser e tempo. ELIAS, Sobre o tempo. FLUSSER, Do tempo e como ele acabará. PELEGRINI, As nossas imagens do tempo e como ele começou. BAUMAN, Modernidade líquida. BAUMAN, Vida líquida. CAMPBELL, Cultura, consumo e identidade. CAMPBELL, A ética romântica e o espírito do consumismo moderno. RAPPAPORT, Ritual, time, and eternity. SANTI, Consumo e desejo na cultura do narcisismo. LASCH, A cultura do narcisismo.

Análises da narrativa, audiovisual e do discurso

RICOEUR, Tempo e narrativa (tomo 1). METZ, A análise das imagens. METZ, Cinema, estudos de semiótica. WHITE, The content of the form: narrative, discourse and historian representation. PENAFRIA, Análise de filmes – conceitos e metodologia(s). ORLANDI, Análise de discurso: princípios e procedimentos

Games e The Legend of Zelda : Majora’s Mask

MCGONIGAL, Reality Is Broken: Why Games Make Us Better and How They Can Change the World FRASCA, Play the message: play, game and videogame rethoric. FRASCA, Simulation versus Narrative. AARSETH, Cybertext: perspectives on ergodic literature. NEWMAN, (Not) Playing Games: Player-Produced Walkthroughs as Archival Documents of Digital Gameplay

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2 DEFINIÇÃO DO TEMPO “Qual é o mistério do tempo?”. Esse questionamento pode resumir uma vasta confluência de inquietações acerca do conceito da temporalidade, tão presente em nossos cotidianos e indagações existenciais, e motivo de vastos estudos em diversas áreas do conhecimento, como a física e a filosofia. Porém, vale refletir sobre o que torna essa questão tão inquietante. Por quê nos incomoda, ou, no mínimo, nos invoca curiosidade? Talvez porque tenhamos elegido o tempo como o responsável por nosso envelhecimento e infalível morte; talvez porque seja em seu fluxo que fantasiamos sobre a tentadora possibilidade de visitar eventos que já nos ocorreram, ou de vislumbrar eventos que ainda estão para ocorrer; talvez porque nos apareça como uma força invisível, onipresente e elementar, assim como um deus em que temos fé. Nesse capítulo, temos como objetivo propor reflexões gerais e conceituais acerca do tempo, e, para isso, nos compete descortinar sensos comuns sobre o que imaginamos (ou sentirmos) sê-lo, articulando autores que o estudaram crítica e profundamente. Primeiramente, serão levantados os principais conceitos comuns e pressupostos assumidos pela física e filosofia sobre o tempo e suas definições. Posteriormente, proporemos a desconstrução de tais pressupostos, com base em uma análise crítica do tempo, proposta por Norbert Elias.

2.1 MISTÉRIO DA NATUREZA E DO HOMEM

Para dar início às reflexões em torno do tempo, é importante entendermos como ele é conceituado na física e na filosofia, já que muitas dessas conceituações dialogam diretamente com os muitos sensos comuns que cultivamos. Primeiramente, vale investigar como o tempo é definido no campo de conhecimento relacionado ao estudo da natureza, competente à física. Na introdução, traçamos um breve quadro conceitual em torno do tempo, no qual ele se configura como uma comparação entre duas ou mais sequências ordenadas e simultâneas de eventos espaciais. Uma conclusão importante nos é revelada com base nessas constatações. Como o conceito do tempo, essencialmente, revela uma sequência ordenada de eventos, na qual podem ser determinadas posições temporais, os “quandos”, com base em outra sequência referencial de eventos; ele não existiria na imobilidade total, ou em uma sequência única de eventos. Em um hipotético universo monódromo (que, de acordo com a Teoria do Big Bang, seria o momento “antes” da explosão), sem parâmetros de movimento, o “quando” inexistiria.

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O tempo é, invariavelmente, uma relação na qual está marcado o que é de diferente: o que vem “antes” comparado ao que vem “depois”. Como nosso universo está em constante movimento, tudo é passível ao tempo (ELIAS: 1998). Sem dúvidas o tempo guarda uma íntima relação com o espaço. Isaac Newton considerava que esta correlação tempo-espaço era invariável em qualquer situação. O tempo correria da mesma forma em qualquer lugar, em quaisquer circunstâncias. Coube a Albert Einstein, com a teoria geral da relatividade, provar que o tempo poderia variar seu ritmo para condições de velocidade e perspectivas diferentes. Se o tempo era considerado um inúmero sequenciamento de instantes, nos quais o universo se configurava em simultaneidades únicas, Einstein propôs que os instantes e as simultaneidades eram distintos para referenciais em velocidades diferentes. Einstein constata: Todo corpo-referência (sistema coordenado) tem seu próprio tempo particular; a menos que saibamos a qual corpo-referência a constatação do tempo se refere, não há nenhum sentido na constatação do tempo de um evento. Antes do advento da teoria da relatividade, sempre foi assumido na física a constatação de que o tempo tinha um significado absoluto, que é independente da velocidade do corpo de referência (EINSTEIN, 1920, p. 9, tradução nossa2).

Como exemplo hipotético, em um determinado instante, um homem joga uma pipoca para uma pomba em um parque. Longe dali, no mesmo instante, uma moça pede um café em uma cafeteria. Podemos assumir que os dois eventos citados são simultâneos e pertencem à mesma configuração do universo naquele momento. Porém, se ao invés de o homem estar jogando pipoca para as pombas, estivesse andando de bicicleta, ou seja, em movimento em relação à mulher, ele não estaria mais simultâneo ao instante em que ela pede o café, mas um momento “antes” ou “depois” (dependendo do sentido do deslocamento). Não percebemos esses fenômenos em nosso cotidiano, pois são consideráveis apenas em distâncias cósmicas e velocidades próximas a da luz. O importante é notar que o tempo, após Einstein, tomou um caráter relativo e permitiu uma nova visão acerca das comparações espaciais. Atualmente, os físicos consideram que o espectro tempo-espaço se configura em quatro coordenadas, ou dimensões. As três primeiras são as coordenadas espaciais que determinam o posicionamento espacial. A quarta indica a posição no fluxo do tempo. Essas quatro referências viabilizariam a determinação da posição de qualquer ponto no universo. (MINKOWSKI, 2012). 2

Now before the advent of the theory of relativity it had always tacitly been assumed in physics that the statement of time had an absolute significance, i.e. that it is independent of the state of motion of the body of reference.

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Ainda assim, muitos problemas são revelados em torno do fluxo do tempo. Sentimos tal fluxo como unidirecional, vindo do passado, em direção ao futuro; os fenômenos do universo desenrolam-se de acordo com a causa e efeito. Porém, as fórmulas físicas não expressam nenhuma restrição para o sentido em que os eventos acontecem (por exemplo, não é difícil ver uma taça de vinho cair no chão e se espatifar em pedacinhos de vidro, mas nunca vemos cacos de vidro unindo-se e formando uma taça de vinho inteira, mesmo que, tecnicamente, seja possível, caso todas as forças envolvidas mudassem de sentido). As teorias a respeito supõem que não observamos os processos naturais “ao contrário”, pois a possibilidade de que ocorram é ínfima, já que o universo se desloca para um estado cada vez mais entrópico e aleatório (talvez pelo sentido que o Big Bang impôs em sua “explosão”). Essa teoria de que o tempo movimenta o universo em um sentido de maior entropia, foi nomeada de flecha do tempo: Vamos desenhar uma flecha arbitrariamente. Se, enquanto seguirmos a flecha, nós encontramos mais e mais elementos aleatórios no estado do mundo, então a flecha está apontada para o futuro; se os elementos aleatórios diminuírem, a flecha aponta para o passado. Isso é a única distinção conhecida pela física. Isso faz sentido se admitirmos que a introdução de aleatoriedade é a única coisa que não pode ser desfeita. Devo usar o termo “flecha do tempo” para expressar essa propriedade unidirecional do tempo que não encontra analogia no espaço (EDDINGTON, 1928, p. 69, tradução nossa3).

A física tenta descobrir a solução do mistério do tempo, desde a formulação da sua definição à proposição de teorias que envolvem a origem do universo. Entender como a física conceitua o tempo é importante para considerarmos os pontos de significação atribuídos à temporalidade, e geralmente reiterados pelo senso comum. Até esse ponto, o tempo foi significado de diversas maneiras que merecem ser destacadas. Primeiramente, o tempo é tido como um objeto natural, uma grandeza objetiva, como o espaço, a matéria, a energia, e a força gravitacional, podendo ser medido pelos instrumentos adequados. Em segundo, o tempo é comumente expresso como um fluxo, que corre como um rio, do passado ao futuro. Finalmente, o tempo é pautado como um fenômeno independente da testemunha humana, que corre alheio à nossa existência. No que se refere ao tempo pela ótica filosófica, destacamos um autor que problematiza a questão de forma abrangente, partindo de uma contextualizando existencial. Martin Heidegger

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Let us draw an arrow arbitrarily. If as we follow the arrow we find more and more of the random element in the state of the world, then the arrow is pointing towards the future; if the random element decreases the arrow points towards the past. That is the only distinction known to physics. This follows at once if our fundamental contention is admitted that the introduction of randomness is the only thing which cannot be undone. I shall use the phrase ‘time's arrow’ to express this one-way property of time which has no analogue in space. 26

(2005) propõe uma teoria da temporalidade que a eleva como fenômeno central do processo de existência do ser. Para compreender plenamente suas colocações, vale a apresentação dos conceitos por quais toma base na articulação de suas ideias. Primeiramente, Heidegger conceitua a presença. A presença refere-se ao ser colocado no mundo, o ente por ele tematizado. Assim, toda a estrutura da existência essencial da presença inserida no mundo é denominada de cura. A existência da presença afirma-se no seu “poder-ser”, ou seja, na sua projeção frente às possibilidades de ser que se abrem enquanto inserida na totalidade da cura. Dessa forma, ela define o seu ser no seu não ser (que pode ser), ou seja, afirma-se na sua incompletude, na possibilidade de ser o que ainda não é, na potência de ser o que é pendente. Heidegger denomina essa projeção da presença para o seu “poder-ser” como a dinâmica existencial do ser-para-amorte. A morte, por sua vez, é a possibilidade mais própria, irremissível e insuperável do poder ser: ela é a possibilidade que expressa a impossibilidade de existência. Quando a presença não precede-a-si-mesma no espectro de sua projeção para o “poder-ser” próprio, não mais é presença. Portanto, o fenômeno do constante preceder-a-si-mesmo, possibilita a presença como o ser-para-o-fim. A existência pauta-se no “poder-ser” da morte. Heidegger, então, destaca que a diferença entre o ser presente e o ser simplesmente dado (que não se entende com base no “eu existo”) é expressa pela qualidade que a presença tem de estar lançada no “poder-ser” de sua existência, ou seja, de existir como ente que é o que pode ser. Assim, diferentemente do ser simplesmente dado, a presença configura-se fundamentalmente no nulo, já que, frente às possibilidades que pode potencialmente ser, não é nada. Nesse nada fundamental, a presença expressa a sua liberdade na estrutura da cura. Selecionamos um trecho em que o autor resume e complementa tais ideias: Existindo, a pre-sença é seu fundamento, ou seja, é de tal modo que ela se compreende a partir de possibilidades e, assim se compreendendo, é o ente lançado. Isso implica, no entanto, que: podendo-ser, ela está sempre numa ou noutra possibilidade, ela continuamente não é uma ou outra e, no projeto existenciário, recusa uma ou outra. Enquanto lançado, o projeto não se de termina apenas pelo nada de ser-fundamento. Enquanto projeto ele é em si mesmo essencialmente um nada. Todavia, essa determinacão não significa, de modo algum, a qualidade ôntica do que não tem "sucesso" ou "valor", mas um constitutivo existencial da estrutura ontológica do projetar-se. O nada mencionado pertence à pre-sença enquanto o ser-livre para suas possibilidades existenciárias. A liberdade, porém, apenas se dá na escolha de uma possibilidade, ou seja, implica suportar não ter escolhido e não poder escolher outras (HEIDEGGER, 2005, p. 72 e 73).

Como a presença constitui-se pelo nada, enquanto se encontra na indefinição do seu “poder-ser”, assim que é lançada para uma possibilidade específica, coloca-se em débito com

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relação às possibilidades que não foram contempladas. Portanto, Heidegger introduz o conceito de consciência, uma espécie de clamor interno ao ente presente, que se prontifica a mediar a projeção da presença ao seu “poder-ser”, em relação aos débitos envolvidos. O autor caracteriza a compreensão como a visualização das possibilidades que se abrem no “poder-ser” da presença. Os débitos, por sua vez, consistem em um fato essencial da projeção da presença para o seu “poder-ser”, pois em tal processo, há sempre uma ação de decisão exclusiva. Em palavras resumidas: De-cisão diz: deixar-se proclamar no ser e estar em débito mais próprio. O ser e estar em débito pertence ao próprio ser da pre-sença que determinamos, primariamente, como poder-ser. Dizer que a presença continuamente "é e está" em débito só pode significar que ela sempre se mantém nesse ser, existindo própria ou impropriamente. O ser e estar em débito não é apenas uma característica constante do que é sempre simplesmente dado, mas a possibilidade existenciária de ser e estar em débito de modo próprio ou impróprio. O "débito" só é num poder-ser de fato. Porque pertence ao ser da presença, deve-se conceber o ser e estar em débito como poder-ser e estar em débito. A de-cisão projeta-se para esse poder-ser, isto é, nele se compreende (HEIDEGGER, 2005, p. 98).

Em suma, a cura pode ser expressa pela seguinte fórmula existencial: preceder-a-simesmo, como ser-para-a-morte, em um mundo no qual vem de encontro ao seu “poder-ser” próprio, admitindo, por meio da consciência, o débito recorrente da decisão. Entretanto, é crucial ressaltar que a cura não resulta em um ajuntamento, mas em um processo. Esse processo que possibilita a existência da presença, teoriza Heidegger, é a temporalidade. Para entender como a temporalidade constrói os parâmetros de colocação existencial do ente no mundo, Heidegger limita três aspectos centrais do fenômeno: o “porvir”, o “vigor de ter sido” e o “instante”. A decisão da presença projetada ao seu “poder-ser” é possibilitada pelo fenômeno de preceder-a-si-mesma, suportando as possibilidades que vêm ao encontro do ente. Esse processo de deixar-vir-a-si que configura a projeção da presença é denominado por Heidegger de “porvir”. O “porvir” fundamenta o projetar-se em função de si mesmo. Entretanto, vale ressaltar que: "Porvir" não significa aqui um agora que, ainda-não tendo se tornado "real", algum dia o será. Porvir significa o advento em que a pre-sença vem a si em seu poder-ser mais próprio. É a antecipação que torna a pre-sença propriamente porvindoura, de tal maneira que a própria antecipação só é possível na medida em que a pre-sença, enquanto ente, sempre já vem a si, ou seja, em seu ser, é e está por vir (HEIDEGGER, 2005, p. 119).

Assim, no passo que o “porvir” atualiza, a compreensão consiste nas possibilidades que se abrem de forma diferente a cada vez que é atualizada. Ele, possibilitando que a presença, com base na compreensão, exista em seu “poder-ser”, transforma em atualidade o “ter sido”. O “ter sido”, por sua vez, é expresso por Heidegger como “vigor de ter sido”, já que oferece o 28

substrato de atualização da presença. Curiosamente, a atualização do “vigor de ter sido” configura-se por meio do seu constante esquecimento. É necessário esquecer o “vigor de ter sido” assim que ele é atualizado pelo “porvir”, para que se dê uma abertura de uma atualizada visualização da consciência. Apenas esquecendo, ou em palavras metafóricas, “consumindo” (no sentido de esgotar) o “vigor de ter sido” para gerar a atualização, é que, posteriormente, é possível recordá-lo. Na decisão, que constantemente recupera a atualidade das possibilidades, surge o “instante”, atrelado ao “vigor de ter sido” e o “porvir”. Ele indica as possibilidades que vêm de encontro à situação da decisão. O instante, portanto, assim como a compreensão atrelada à decisão, temporaliza-se com base na atualização pelo “porvir”. Com isso, a consistência da existência não se interrompe, mas justamente se confirma no in-stante. A consistência não é construída mediante e a partir de uma concatenação de "in-stantes". Ao contrário, estes surgem da temporalidade já es-tendida da re-petição, no porvir do vigor de ter sido (HEIDEGGER, 2005, p. 197 e 198).

De acordo com Heidegger, a temporalidade é o fenômeno expresso pela atualização do “vigor de ter sido” em instante, pelo “porvir”. Ela permite a o lançamento propriamente dito da presença em relação ao “poder-ser”, e, portanto, é o sentido essencial da cura. Entretanto, a temporalidade não pode ser, assim como a estrutura de cura, expressa como uma junção de momentos ou períodos. A temporalidade expressa o caráter do “porvir” que transforma o “vigor de ter sido” em atualidade. Ela não é um ente, ela é uma ação, ela temporaliza: impele a ação da presença de projetar-se ao seu “poder-ser”. No próximo tópico, serão investigadas e questionadas tais pré-concepções sobre o tempo. A obra de Norbert Elias guiará as investigações e questionamentos acerca das significações geralmente atribuídas ao tema, propondo novas visões acerca desse conceito tão discutido.

2.2 MISTÉRIO DE DEFINIÇÕES

Antes de iniciar a investigação em torno do tempo, Norbert Elias alerta que, primeiramente, algumas concepções que impregnam nosso olhar de estudo devem ser questionadas quanto à sua validade. O primeiro passo para estudar e compreender as questões que envolvem o tempo é encará-lo como um conceito que não pode ser comportado na divisão do mundo exclusiva a uma área científica específica. O desenvolvimento divergente das ciências sociais e das ciências físicas, em prol de um enfoque cada vez mais especializado nos

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respectivos campos de estudo, reforçou a impressão de um mundo dicotômico, dividido no que é da natureza, real, físico; e no que é do homem, cultural, social. Da mesma forma, o tempo também é visto nessa cisão: um algo de competência das ciências naturais, o tempo “físico”; e outro algo de competência das ciências humanas, o tempo “social”; criando a ilusão da existência de dois “tempos”, cada um exclusivo a seus estudos e seus estudiosos. Porém, a compreensão plena do tempo não admite ser limitada a um tempo “social” e um tempo “físico”, e nem mesmo figura no contraste entre essas duas concepções. A partir da era moderna, o desenvolvimento de instrumentos de medição do tempo cada vez mais especializados proporcionou um aparente distanciamento entre os processos físicos (nascimento e pôr do sol e as fases da lua) e os processos sociais (por exemplo, os dias e meses). Afinal, para saber que horas são, não olhamos mais para o céu, mas confiamos nos números em nossos celulares, computadores e ponteiros. Porém, a mensuração do tempo nos processos físicos sempre foi e ainda é motivada pela estrita necessidade do homem de regulação de sequenciamentos, e sua inter-relação com este último, imerso em um sistema social de linguagem, é indissociável. Se tomarmos o tempo não como um substantivo em caráter de objeto, mas como um verbo, uma ação de relativizar sequências de acontecimentos; poderemos constatar que a imbricação entre o plano social e físico é indissolúvel. “Temporar” é a própria ação, inevitavelmente humana, que define o conceito de tempo: não há tempo a ser medido, a medição é o próprio tempo. Elias resume: as pesquisas sobre o problema do tempo continuarão bloqueadas enquanto forem conduzidas pela óptica dessa oposição conceitual. O investigador fica tendo que abordar “o tempo social” e o “tempo físico” – tempo interno à sociedade e tempo interno à natureza – como se eles existissem e pudessem ser estudados independentemente um do outro. Ora, isso é impossível. Os homens, desde as primeiras providências tomadas para situar os acontecimentos no tempo, situaram-se no interior do universo físico e se portaram como elemento desse universo. Na realidade, os problemas do tempo não se deixam enquadrar nos escaninhos correspondentes à divisão das disciplinas científicas que hoje prevalece, nem na compartimentação de nosso aparelho conceitual que é uma decorrência disso (ELIAS, 1998, p. 72).

O conceito do tempo toma caráter de objeto, entidade externa ao ser humano, em grande parte por ser referenciado em sua forma substantiva. Esta tendência a conceber abstrações de relações e nexos como substantivos, dificulta uma visualização plena do caráter essencial de certos conceitos. Assim como dizer que o rio corre (o rio significa justamente a água “correndo”), ou que o vento sopra (o vento significa justamente o ar em movimento), dizer que o tempo passa (o tempo é, essencialmente a “passagem” entre eventos sequenciais) pode incitar certa confusão. “Temporar” exprime diretamente o caráter instrumental do tempo: comparar eventos entre duas ou mais sequências de acontecimentos. “Medir o tempo” pode intuir em 30

interagir com um algo transcendente que pretendemos ter um contato, já “temporar” indica o ato claro de interagir com eventos por nós sequenciados. Portanto, a primeira concepção que merece ser desconstruída é a de que o tempo é uma grandeza natural que corre inexorável, cujo único contato humano possível é por meio da sua medição, seja inscrita na experiência subjetiva de cada indivíduo, seja expressa pelos instrumentos de medição cada vez mais precisos. Nessa concepção, o tempo seria medido pelos relógios, assim como o espaço pode ser medido por uma régua. Porém, Norbert Elias (1998) propõe que, assim como os relógios são instrumentos humanos, o próprio tempo é um instrumento social, uma criação do homem com objetivo de regular sua própria existência no universo. Geralmente, o tempo é colocado como uma entidade misteriosa que domina todo o universo, submetendo todos os seres em seu fluxo infalível de mudanças inevitáveis. Aí reside seu mistério. Porém, quando pensamos que o tempo é uma ferramenta humana para se situar no universo, o mistério perde seu sentido. Tal ferramenta não é individual, mas social, e tem uma função muito bem definida: regular e orientar os processos humanos entre si e no âmago da natureza. Milton Pelegrini compartilha da visão de Elias: “Sobre essa interferência do “de todo diferente” [mundo “natural”] criamos uma realidade ordenadora, um sistema simbólico capaz de relativizar o caos e transformar a entropia numa ordem natural digerível” (PELEGRINI, 2002, pág. 223). Nós passamos a regular tão densamente nosso comportamento aos relógios e cronômetros (com seus movimentos aparentemente independentes e desvinculados de uma intenção social), que passamos a conceber o tempo com um quê de divino, como um componente misterioso da natureza que impele nossa vivência. Assim, um signo é tão largamente utilizado e aceito como regulador da vida humana, que se empresta em uma imagem de uma existência autônoma. Sobre o caráter instrumental do tempo, Elias confirma: Eles fortalecem incessantemente o mito do tempo como uma coisa de certo modo presente, existente, e, como tal, determinável e mensurável pelo homem, ainda que não se deixe perceber pelos sentidos. Sobre essa singular maneira de ser do tempo, podemos filosofar incansavelmente, e foi justamente isso o que se fez ao longo dos séculos. Em matéria de esoterismo, podemos ocupar-nos e entreter os outros, indefinidamente, com especulações sobre o mistério do tempo, embora não haja mistério nenhum. (ELIAS, 1998, p. 37 e 38).

Com uma visão plena do tempo, impossibilitada pela cisão entre mundo “natural” e mundo “social”, Elias propõe a existência de uma quinta dimensão do espectro do espaçotempo. As três primeiras dimensões referem-se ao posicionamento no espaço. A quarta refere-

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se à simultaneidade do posicionamento, ou seja, o instante do tempo em questão. Já a quinta, proposta por Elias, refere-se à indelével presença do espectador, ou seja, o elemento humano que imprime sentido ao tempo. Nas palavras do autor: “teremos de incluir no conceito de natureza a capacidade que ela tem de produzir, no curso de processos cegos, não apenas reatores de hélio ou desertos lunares, mas também seres humanos” (1998, p. 12). É impossível dissociar as propriedades físicas e as noções simbólicas do tempo. Ele existe referencialmente, e esta referência apenas pode ser concebida por um ser pensante, capaz de produzir informações por meio da experiência, ou seja, capaz de assimilar em sua consciência um instante que já “passou” ou que “está” por vir. Além disso, esse ser pensante deve ser capaz de organizar tal conjunto de dados do universo em uma ordenação, ou seja, emprestar um caráter de sequenciamento a elas, já que o tempo, invariavelmente, deriva da relação entre duas ou mais sequências de eventos no espaço. Heidegger, em sua obra, tece reflexões interessantes referentes à investigação da temporalidade como processo que possibilita a colocação do ente presente no mundo. Em seus termos, parece compartilhar da percepção de Elias sobre a temporalidade como fenômeno indissociável do ser presente: Na medida em que a pre-sença se temporaliza, também se dá um mundo. Com referência a seu ser que se temporaliza como temporalidade, a presença é e está, essencialmente, "em um mundo", com base na constituição ekstática e horizontal da temporalidade. O mundo não é algo à mão e nem algo simplesmente dado. O mundo se temporaliza na temporalidade. [...] Se não existir pre-sença alguma, então também nenhum mundo se faz "pre"-sente (HEIDEGGER, 2005, p. 167).

Imaginemos um menino, que pega uma pedra às margens de um riacho e a arremessa na margem oposta. A partir do momento em que a pedra atinge o seu alvo, o menino, e qualquer espectador que assistiu à cena, pode contar o que houve: “antes” de estar ali, a pedra estava na outra margem. Entretanto, para afirmar isso, é preciso ter a informação de que a pedra estava “antes” na outra margem. Essa informação pode advir da observação (ver a pedra deslocandose), ou de outros meios (deduzir que foi lançada, ouvir alguém falar que foi lançada), mas é necessária para que seja possível relacionar os dois eventos (a pedra “antes” e a pedra “depois”). Além disso, é necessário saber sequenciar os eventos (a pedra “antes” vem “antes” da pedra “depois”). Ou seja, extrair o conceito de tempo depende da capacidade de conceber a informação (primeiramente pela capacidade de memória do ser humano) de que um evento foi presente, mesmo não sendo presente; e organizar esses eventos de forma ordinal. Um instante presente não guarda relações inatas com um instante passado, pois, tecnicamente, um instante passado, em suas simultaneidades, não existe objetivamente, mas apenas como informação na 32

consciência de um observador, na memória das impressões que causou quando era real. A mesma analogia pode ser expressa para instantes que, como ainda não ocorreram, são construídos apenas como expectativa do ser observador. Portanto, a quinta dimensão refere-se à existência de um ente capaz de gerar informações acerca do universo do qual integra, um ente capaz de sequenciar projeções de instantes que apenas se configuram por meio da memória das impressões passadas, ou a expectativa de impressões futuras. O tempo sugere necessariamente a presença de três conjuntos: o sujeito observador capaz de relacionar e sequenciar; e os dois conjuntos de eventos passíveis de serem relacionados temporalmente pelo sujeito (considerados simultâneos ou não pela codificação do sujeito), sendo um deles um relógio referencial. Nas palavras de Elias: De fato, uma das chaves essenciais para resolver os problemas suscitados pelo tempo e por sua determinação é a capacidade, característica da espécie humana, de aprender num relance e, por isso mesmo, ligar numa mesma sequência contínua de acontecimentos aquilo que sucede “mais cedo” e o que sucede “mais tarde”, o “antes” e o “depois”. A memória desempenha um papel decisivo nesse tipo de representação, que enxerga em conjunto aquilo que não se produz num mesmo momento. Ao falar dessa maneira numa capacidade de síntese, pretendo referir-me, em particular, àquela capacidade, característica do homem, de presentificar para si o que de fato não está presente hic et nunc. Essa, evidentemente, é apenas uma das manifestações do poder humano de efetuar sínteses, mas desempenha um papel essencial em todas as modalidades de determinação do tempo. Mais exatamente, seria inútil dizer que agora são quatro horas, se não estivéssemos simultaneamente cônscios de que antes era duas horas e, depois, serão seis. “Antes e “depois” traduzem, aqui, a capacidade humana de abarcar numa só representação acontecimentos que não ocorrem ao mesmo tempo, e que tampouco são experimentados como simultâneos (ELIAS, 1998, p. 61 e 62).

Por meio da quinta dimensão, que indica propriamente a presença do ser capaz da síntese sucessiva, o homem se localiza espacial e temporalmente no universo. O tempo e o espaço são instrumentos de orientação do homem, e têm o sentido de organizar os eventos que experiencia em relação a si próprio. Dessa forma, vale entender o significado desses instantes que se configuram baseados apenas da experiência ou na expectativa. O tempo é caracterizado necessariamente, pelas noções de “antes” e “depois”. Os conjuntos de eventos inseridos no universo e transformados pelo homem em informações sequenciais apresentam perspectivas de ordenação que estabelecem eventos necessariamente não simultâneos, ou seja, uns ocorrendo “antes”, e outros ocorrendo “depois”. Não obstante, a capacidade humana de organizar o fluxo de acontecimentos do universo chegou a um nível de síntese tão elevado, que foram criados conceitos complementares ao conceito geral do tempo. Tais conceitos poderiam unir em um mesmo olhar eventos que estão acontecendo, que já aconteceram ou que poderiam potencialmente acontecer: o presente, o 33

passado e o futuro, respectivamente. As significações que envolvem os conceitos de presente, passado e futuro são matéria de muita discussão e numerosos desentendimentos. A definição de presente, passado e futuro raramente varia do discurso: presente é o que é, passado é o que foi, e futuro é o que será. Porém, para entendermos com profundidade tais conceitos, devemos atentar para uma característica elementar que os constitui. O presente, passado e futuro são noções variáveis e cambiáveis entre si: o presente de hoje é o passado de amanhã, e o futuro de hoje é o presente de amanhã. Têm esse caráter não-fixo, pois dependem necessariamente do referencial vivo e existente que os caracteriza, ou sejam, só se fazem consistentes com base em um ente inserido no mundo, que os experimenta em sua existência. Heidegger confirma, em seus termos: Nesta sequência de vivências, só é "propriamente" "real" a vivência simplesmente dada "em cada agora". As vivências passadas e futuras já não são mais ou ainda não são "reais". A presença atravessa o espaço de tempo que lhe é concedido entre os dois limites de tal maneira que, apenas sendo "real" cada agora, ela, por assim dizer, salta por cima da sequência dos agora de seu "tempo". É por isso que se diz que a pre-sença é "temporal" (HEIDEGGER, 2005, p. 178).

Assim, só podemos considerar o ano de 1945 como passado porque nossa experiência de existência se inscreve agora, em 2014. Da mesma forma, 2033 ainda é um ano cheio de incógnitas, e pode ser considerado futuro, porque invariavelmente existimos e referenciamos a partir de 2014, nosso presente. O passado, presente e futuro englobam significações além de uma síntese de acontecimentos (como seria com “ano”, “mês”, ou “hora”); eles: expressam a relação que se estabelece entre uma série de mudanças e a experiência que uma pessoa (ou um grupo) tem dela. Um determinado instante no interior de um fluxo contínuo só adquire aspecto de presente em relação a um ser humano que o esteja vivendo, enquanto outros assumem um aspecto de passado ou de futuro. Em sua qualidade de simbolizações de períodos vividos, essas três expressões representam não apenas uma sucessão, como “ano” ou o par “causa-efeito”, mas também a presença simultânea dessas três dimensões do tempo na experiência humana. Poderíamos dizer que “passado”, “presente” e “futuro” constituem, embora se trate de três palavras diferente, um único e mesmo conceito (ELIAS, 1998, p. 63).

Em contrapartida, existem conceitos temporais que não constituem uma síntese que inclui a experiência do ser humano no universo: os conceitos de “mais cedo” e “mais tarde”. Esses últimos, assim como o presente, passado e futuro, podem ser aplicados a qualquer sequência temporal, mas detêm significações distintas. Ao classificarmos eventos como “anteriores” ou “posteriores”, dispensamos qualquer referência externa à própria sequência temporal em questão. Em outras palavras, um evento que ocorre “mais tarde” que outro será posterior a ele em qualquer circunstância referencial. Por outro lado, um evento que ocorre no futuro, porque é referenciado por um ser humano que existe no presente, ou seja, um ser humano 34

que existe em um momento “mais cedo”. Assim, se esse evento futuro for referenciado por outro ser humano que existe em um instante “mais tarde” ao evento, será visto como passado. Consideremos um exemplo. Imaginemos que somos um químico que pretende tabelar as numerações estequiométricas de uma reação química. Para isso, separamos a devida quantidade de cada componente e damos início à reação. Enquanto acompanhamos cada variação observável no processo, vamos à caneta e papel e fazemos nossas anotações. Anotamos que o componente que “antes” era transparente, “depois” da reação, apresenta-se em outro componente, rosa. Tomamos nota, também, que o volume dos produtos “depois” da reação é o dobro dos componentes “antes” da reação. Se outro químico, um físico, ou até alguém que não entenda nada de ciência ler nossas anotações, vai entender igualmente que algo aconteceu “mais cedo” e outro algo “mais tarde”. Porém, para nós, os eventos acontecem no presente, enquanto acompanhamos ao vivo. Para aqueles que lerem nossas notas posteriormente, ou até nós mesmos após o final da experiência, todos os acontecimentos serão igualmente referenciados no conceito de passado. As linhas de demarcação entre passado, presente e futuro modificam-se constantemente, porque os próprios sujeitos para quem um dado acontecimento é passado, presente ou futuro se transformam, ou são substituídos por outros. Eles se transformam individualmente, no caminho que os conduz do nascimento à morte, e coletivamente, através da sucessão das gerações (e também de muitas outras maneiras). É sempre em referência aos seres vivos do momento que os acontecimentos se revestem do caráter de passado, presente ou futuro. [...] Os conceitos do segundo tipo [presente, passado, futuro] não se aplicam ao nível físico, àquilo que chamamos de “natureza”, onde a causalidade mecânica passa, com ou sem razão, pelo modo representativo de ligação. Ou então, só se aplicam a ela na medida em que haja seres humanos que remetam a si mesmos os acontecimentos que se desenrolam nesse plano (ELIAS, 1998, p. 65).

Em suma, podemos dividir o tempo, didaticamente, em conceitos temporais “estruturais” e conceitos temporais “ligados a uma experiência”. Ambos são representações de sínteses de ordenação de eventos. Porém, os conceitos “estruturais” consistem em sínteses completas e isoladas, dentro de um determinado sistema sequencial de relações de causa e efeito. Já os conceitos “ligados a uma experiência” simbolizam sínteses conceituais referentes a relações não causais, e, essencialmente, envolvem a experiência de um referencial consciente. O entendimento do conceito do tempo em seu âmbito “estrutural”, e “ligado a uma experiência” assemelha-se à concepção de tempo objetivo e tempo subjetivo. Muitos pesquisadores investigaram a distinção entre a subjetividade e objetividade do tempo, caracterizando a primeira, como uma noção variável e imprecisa da sucessão dos acontecimentos, em oposição à ultima, como uma noção fixa e precisa. Um dos autores que se

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relaciona com esta distinção é Vilém Flusser (1962). Flusser defende que o lado subjetivo do tempo é tido com base na visão do espírito humano no processo de conhecer o mundo “natural”, enquanto o lado objetivo do tempo é tido com base no “mundo natural” no processo de efetivar a existência do homem. Essa concepção, mesmo semelhante a noção do tempo como “estrutural” ou “ligado a uma experiência”, pode ser questionada se refletirmos sobre o inerente caráter “subjetivo” de qualquer qualidade temporal, entendendo “subjetividade” como a indispensável presença do referencial humano, capaz da ordenação e memória na confecção do conceito do tempo. Assim, a validade da divisão das qualidades do tempo não se pauta exatamente na “subjetividade” ou “objetividade”, mas sim em como o papel “subjetivo” do referencial humano se comporta na formulação temporal: se ele relaciona ou não os acontecimentos em função da própria existência. O homem, historicamente, considerou a sequência de eventos cosmológicos como referência à sequência de eventos cotidianos de sua colocação no mundo. Por muito tempo, nós situamos diretamente os acontecimentos por nós experienciados na posição relativa dos astros próximos. Não há uma relação simplesmente dada entre os acontecimentos celestiais e os acontecimentos sociais. Porém, utilizamos dos primeiros, pelo seu sequenciamento espacial relativamente constante, para organizarmos os últimos. Os processos naturais periódicos, como o ritmo das marés, o nascer e pôr do sol e os batimentos do pulso foram usados como parâmetro para a regulação do comportamento do homem em sociedade, atendendo a necessidade de situar nossa presença no universo. Dessa forma, o conceito de tempo é uma abstração dos homens em nível altíssimo, com a função final de configurar sua relação entre si e com o mundo. Porém, tal abstração configurase como linguagem, e por isso, deve ser sempre considerada socialmente. Em certas maneiras, o conceito do tempo se assemelha ao conceito de abstração dos números matemáticos. Elias completa: o que caracteriza o conceito de “tempo” não é somente sua função de símbolo de uma síntese prodigiosamente vasta, de uma “abstração” realizada em nível altíssimo, mas também o fato de que as relações que ele representa simbolicamente nunca se estabelecem entre pessoas ou situações objetivas determinadas. Sob esse ponto de vista, o conceito do tempo faz parte da mesma categoria dos símbolos utilizados pelos matemáticos. É um símbolo puramente relacional (ELIAS, 1998, pág. 107).

Quando falamos que comemos duas maçãs, ou que são três horas da tarde, usamo-nos de conceitos criados e reconhecíveis socialmente, e não presentes objetivamente, para organizarmos o universo. O tempo tem a função de um meio de orientação de processos, sejam eles físicos ou sociais, e, no caso dos últimos, têm a função específica de regular a conduta e 36

sensibilidade humanas. Ele é um instrumento tão poderoso, assim como os números, pois tem a capacidade de se adequar a praticamente todo o tipo de processo. Talvez essa capacidade de se adequar a mais variável sorte de sequências possibilitou a impressão de que o tempo existe independente a qualquer referência socialmente padronizada. Descartes e Kant teciam reflexões que abordavam o tempo como uma forma de experiência inata ao ser humano. Porém, o tempo não pode ser considerado dessa última forma, pois é uma linguagem, e, assim, articulado como uma convenção de códigos comuns a um grupo de pessoas. Não cabe pensar o tempo baseando-se no indivíduo desconsiderado do contexto social em que se insere. Elias comenta sobre o caráter social do tempo: o conceito de tempo não é objeto de uma aprendizagem em sua simples qualidade de instrumento de uma reflexão destinada a encontrar seu resultado em tratados de filosofia; ao crescer, com efeito, toda criança vai-se familiarizando com o “tempo” como símbolo de uma instituição social cujo caráter coercitivo ela experimenta desde cedo. Se, no decorrer de seus primeiros dez anos de vida, ela não aprender a desenvolver um sistema de autodisciplina conforme a essa instituição, se não aprender a se portar e a modelar sua sensibilidade em função do tempo, ser-lhe-á muito difícil, se não impossível, desempenhar o papel de um adulto no seio dessa sociedade (ELIAS, 1998, p. 14).

O tempo, como instrumento do homem para colocar-se no universo, exerce tamanha coerção que deve socialmente contemplar em seu sistema de autodisciplina toda a existência do indivíduo. Esse processo transforma tal forma de “coerção externa”, nas palavras de Elias, em uma “consciência interna” de tempo, tão imbricada que instiga uma visão da temporalidade como algo independente e “natural”. O tempo nos ensina, desde nossa gradual aprendizagem social, a inserir todos os acontecimentos em seu curso. Quando se analisa um ser individualmente, dissociando a indissociável colocação dele num grupo, excluem-se todo o aprendizado e experiência originados com suas relações com outros indivíduos. Ao isolar sua razão do restante do mundo, consideramo-la como um espaço preenchido ou não, mas idêntico em todos os homens. O ser humano nutre universalmente o potencial de síntese, mas necessita da aprendizagem acumulada de gerações para aprender de fato conceitos como os números e o tempo. Assim, quando, indevidamente, isolamos um sujeito, tomamos conceitos que foram aprendidos socialmente, e que são, erroneamente interpretados, como inerentes à natureza humana. Assim como uma língua só pode exercer sua função enquanto é a língua comum de todo um grupo humano, e viria a perdê-la se cada indivíduo fabricasse para si sua própria linguagem, os relógios, exatamente, só podem exercer sua função quando as configurações cambiantes formadas por seus ponteiros móveis – portanto, numa palavra, as “horas” indicadas por eles – são comuns à totalidade de um grupo humano. Eles perderiam seu papel de instrumentos de medida do tempo se cada indivíduo confeccionasse para si

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seu próprio “tempo”. É essa uma das fontes do poder coercitivo que o “tempo” exerce sobre o indivíduo. Este é sempre obrigado a pautar seu próprio comportamento no “tempo” instituído pelo grupo a que pertence e, quanto mais se alongam e se diferenciam as cadeias de interdependência funcional que ligam os homens entre si, mais severa torna-se a ditadura dos relógios (ELIAS, 1998, pág. 97).

O hábito de isolar o indivíduo para analisá-lo, inaceitável no estudo do tempo, deriva da insistente divisão entre psicologia e psicologia social. Tal divisão cultiva uma ótica que separa os aspectos “individuais”, aspectos esses universais e alheios às significações sociais em questão; dos aspectos “sociais”, esses influenciados diretamente pela colocação do indivíduo em sociedade. Esta divisão ignora que o homem se configura como homem justamente pela sua colocação social. Os “aspectos sociais” e “aspectos individuais” são constituintes de um mesmo processo de inserção no mundo, no qual se configuram diálogos culturais de aprendizagem e experiência, apenas mediados simultaneamente por disposições naturais. Por isso é que os homens, em sua experiência pessoal, têm muitas vezes a ilusão de que, por serem independentes dos indivíduos, as realidades sociais dessa espécie independem dos seres humanos em geral. Nas sociedades urbanizadas, em especial, os relógios são produzidos e utilizados de um modo que faz lembrar a produção e utilização de máscaras em inúmeras sociedades pré-urbanas: sabe-se perfeitamente que elas são fabricadas pelos homens, mas nem por isso sua presença deixa de ser sentida como a manifestação de uma entidade não humana. As máscaras parecem encarnar espíritos. Do mesmo modo, os relógios parecem encarnar o “tempo” (ELIAS: 1998, p. 94 e 95).

Por fim, vale atentar que, o conceito do tempo, por ser tão interiorizado nas relações sociais, chega a ser aceito, muitas vezes sem dúvidas, como um fluxo absoluto. Entretanto, a ideia de tempo como um fluxo unidirecional configura-se como uma significação específica dos nossos modos culturais. Em outros contextos, o tempo não era concebido como algo que flui continuamente. Podemos atribuir essa nossa concepção ao desenvolvimento de instrumentos de medição do tempo que induzem a tal visualização: ponteiros de relógios que “correm” continuamente em um único sentido, números que se sequenciam continua e crescentemente, e calendários que exibem uma sequência linear de dias, meses e anos. Heidegger refuta o sentido de fluxo do tempo: O modo pelo qual o tempo "dado" "decorre" e a espécie de indicação em que a ocupação se dá tempo, de forma mais ou menos explícita, só podem ser explicitados fenomenalmente de maneira adequada caso, por um lado, se afaste a "representação" teórica de um fluxo contínuo de agoras e, por outro, se conceba que os modos possíveis em que a presença se dá e se deixa tempo devem ser, primordialmente, determinados de acordo com a maneira em que a presença "tem" seu tempo, em correspondência a cada existência singular (HEIDEGGER, 2005, p. 220).

Para compreender as significações atribuídas ao tempo ao longo dos diferentes tipos de sociedade que compuseram a trajetória da humanidade, propomos, no próximo capítulo, sua

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contextualização histórica, a fim de respaldar o estudo de suas significações nas sociedades contemporâneas de consumo.

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3 HISTÓRIA DO TEMPO

3.1 O TEMPO AO LONGO DO TEMPO

A história do tempo exige uma investigação voltada às origens das sociedades humanas e para como a síntese do tempo se desenvolveu nos seios sociais. O surgimento da agricultura como prática central do sustento do homem cada vez menos nômade, implicou na necessidade de eleger o tempo como um controle da vida social, a fim de situar mais precisamente as ações humanas frente aos eventos naturais que determinavam o sucesso ou não das práticas de plantio. O homem, a partir das exigências da agricultura, submeteu-se a uma organização social menos flexível, que moldava mais rigidamente as suas ações no mundo. A determinação temporal era ativa, e não mais passiva. O tempo, integrador e coordenador, era também um instrumento de poder. Nas sociedades simples, cabia aos sacerdotes ou reis o controle e a determinação do tempo. Eram eles, que, atentos aos movimentos celestes, determinavam os momentos propícios às diversas atividades agrícolas, assim como as relativas ações culturais, como festivais de colheita, e de reverência aos deuses. Posteriormente, o tempo foi um instrumento nas mãos do Estado, que por meio dos calendários, por exemplo, organizava o trabalho, a religião, e as atividades públicas em geral. Elias exemplifica: Foi certamente Carlos IX, rei da França, quem decidiu, em 1563, após alguma discussão, impor uma única data – ou seja, o dia 1° de janeiro – para o começo do ano. O edito entrou em vigor em 1566 e rompeu com uma tradição mais ou menos oficial, que associava o começo do ano com a festa de Páscoa. O ano de 1566, que começou em 14 de abril e terminou em 31 de dezembro, teve apenas oito meses e 17 dias. Os meses de setembro, outubro, novembro e dezembro, que até então haviam designado – em função do calendário romano, que fazia o ano começar em março, e como seu nome indica – o sétimo, oitavo, nono e décimo meses do ano, transformaram-se, de maneira bastante absurda, no nono, décimo, décimo primeiro e décimo segundo meses. Essa inovação deparou com viva resistência, embora, hoje em dia, mal cheguemos a notar seu caráter incongruente. Como instituições sociais, os calendários possuem uma função reguladora. Atualmente, consideramos uma evidência que o ano comece realmente em 1° de janeiro. Não percebemos com clareza que o ano possui uma função social, que por certo é ordenada de acordo com uma realidade natural, mas que se distingue dela; vemos nele, simplesmente, um elemento de ordem natural (ELIAS, 1998, p. 46 e 47).

Hoje em dia, é amplamente aceito que o tempo é um fluxo unidirecional e de curso irreversível. Pode-se dizer, entretanto, que tal noção pautou-se pela gradual assimilação de escalas reguladoras introduzidas pelas instituições sociais. O caráter irreversível do tempo deriva de uma experimentação temporal de sociedades que pretendiam preservar em um fluxo 40

contínuo a presença de unidades sociais como o Estado e a Igreja (nota-se, por exemplo, no gradual aumento dos números indicativos dos anos, de acordo com sua distância temporal em relação ao nascimento de Cristo). Em algumas sociedades mais simples, a noção de tempo como fluxo era inexistente, e os indivíduos não sabiam precisar, por exemplo, sua idade. Em tais contextos, o homem não se via como pessoa única e independente, com uma identidade impressa em seu trajeto histórico único na série de anos que não voltariam jamais. Ele via-se, geralmente, atrelado à repetição constante de sequências cíclicas, como por exemplo, as estações do ano e gerações. Dessa forma, quando um homem nessa sociedade dizia que, por exemplo, construiu uma casa, podia querer significar que o seu avô que a construiu. Da mesma forma, enquanto um homem moderno diria que se casou no ano 2003, um homem dessa sociedade poderia dizer que se casou logo antes da “grande tempestade”, tomando referência em um acontecimento pontual, em detrimento à localização em um fluxo temporal. O tempo, hoje em dia, é articulado em um altíssimo nível de síntese, que, às vezes, é despercebido fora de um mapeamento histórico das sociedades. Nas sociedades simples, o tempo, que tomamos imediatamente como um fluxo, pode não ser abstraído como um conceito que “passa”, já que o interesse primordial são problemas imediatos, como o momento exato de se plantar a semente para que ela possa germinar. Se retraçarmos em pensamento o desenvolvimento da determinação do tempo, remontando às condições de vida de sociedades agrícolas primitivas do tipo do povoado africano que mencionamos, veremos claramente porque não era possível, naquele estágio de civilização, construir calendários anuais elaborados, associados com eventos recorrentes, nem tampouco essas longas escalas temporais que são as eras, apesar de tudo isso serem condições necessárias à experiência do “tempo” como fluxo contínuo e irreversível. Os problemas que exigem um quadro de referência temporal, dividido com precisão em “meses” ou “anos”, ainda não apareciam, ou então, quando surgiam, revelavam-se quase insolúveis. Quanto aos problemas que põem em jogo dezenas ou centenas de anos, em geral eles eram percebidos através da imagem de uma série de ancestrais, ou se situavam além do horizonte de representação. Como vimos, não era relacionando os movimentos do Sol com “estrelas fixas”, mas com referenciais terrestres, que o sacerdote determinava o “momento exato”. E o determinava não relacionando as atividades de sua etnia com uma escala de calendário contínua, que abarcasse o ano inteiro, mas simplesmente associando o “momento exato” com um acontecimento particular, como a semeadura ou a celebração de uma festa em homenagem aos deuses (ELIAS: 1998, p. 48 e 49).

As sociedades simples, detentoras de um nível de abstração relativamente baixo em relação ao tempo, para determiná-lo, dependiam da presença direta de indicadores temporais, ou seja, precisavam confirmar com os próprios olhos a posição dos astros no céu. Assim, quando, por exemplo, um eclipse lunar ocorria, ocultando momentaneamente a imagem da lua, 41

os homens não tinham tanta segurança de que o astro retornaria à sua posição comum. Se, atualmente, o conceito do tempo é comumente associado a um fluxo de acontecimentos impessoais da natureza, nem sempre foi assim. Para elucidar essa diferença no nível de síntese em relação ao tempo, podemos comparálo à abstração expressa pelos números. Em sociedades antigas, poderia haver termos que indicassem “três maças” ou “três ovelhas”, mas não termos que indicassem simplesmente “três”, dissociados de elementos específicos, e por isso, aplicáveis a qualquer sorte de objeto. Assim, os números, em um nível de abstração alto, conseguem indicar o caráter relacional das contagens de qualquer objeto. O mesmo ocorreu com o tempo. A abstração da matemática permitiu a elaboração de conceitos matemáticos cada vez mais aplicáveis, que, inicialmente indiferentes a objetos específicos, poderiam, posteriormente, ser aplicados a qualquer objeto. A abstração do tempo permitiu que possamos medir a duração de qualquer coisa com nossos relógios de pulso e celulares: desde o tempo de uma viagem até a lua até o tempo de preparo de um bolo. Na Grécia Antiga, o tempo começou a tomar semelhança com o que experimentamos hoje. Ele se pautou, desde aquela época, como um instrumento que usava de estruturas de sequências físicas repetíveis como parâmetro de comparação para organizar estruturas de sequências sociais não repetíveis. Ou seja, o tempo era, em sua essência, um instrumento que, apesar de se pautar em eventos físicos, tinha objetivos estritamente sociais. Nessa época, surgiram os instrumentos de medição do tempo, como por exemplo, as ampulhetas, que, no escoar da areia, representavam metaforicamente, o “fluxo” do tempo. O homem dava seu primeiro passo a uma vida cercada de relógios, pressionado constantemente pelo tempo. talvez pela primeira vez, surgiu um deus do tempo na mitologia grega. O nome do antigo deus Cronos era também uma das expressões usadas para designar o “tempo”. Que um deus tenha dado nome a esse conceito não pode deixar de ser significativo, no desenvolvimento da determinação do tempo pelo homem. Podemos afirmar que a atividade de determinação do tempo e o conceito de tempo são inseparáveis da representação geral que os homens têm de seu universo e das condições em que vivem nele (ELIAS, 1998, pág. 141).

Na Idade Média, o tempo recebeu outras significações. A natureza era vista como uma criação divina, na qual o homem tinha um caráter privilegiado. Em relação aos outros elementos da natureza, os astros, que representavam o tempo, eram tidos como perfeitos, por estarem próximos do reino de Deus, imaculados pelas influências terrenas. Já os elementos mundanos, não eram perfeitos, quando suscetíveis às alterações humanas. Assim, a natureza era vista como um domínio exclusivo da vontade divina, e ilegítima quando interferida pela vontade humana.

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Foi Galileu Galilei que passou a investigar com maior objetividade os processos naturais. Ele colocou-se contra uma concepção de que todos os movimentos eram regidos exclusivamente por uma intenção divina, e de que havia uma distinção entre movimentos físicos naturais, pretendidos por Deus, e movimentos violentos e artificiais, realizados pelos homens. A partir disso, tentou identificar regularidades entre os processos físicos que os unissem, regularidades essas que poderiam ser representadas pela matemática, as leis da física. Nas palavras de Elias: Então, uma nova concepção de “tempo”, compreendido como um invariante quantificável e indefinitivamente reprodutível das “leis da natureza”, destacou-se de sua antiga concepção, relativamente unitária, antropocêntrica e teocêntrica, ao mesmo tempo. Como a própria “natureza”, o “tempo” foi cada vez mais matematizado. Veio inserir-se no meio de toda uma série de conceitos, tais como peso, distância, força etc., que podiam dar margens a medições isoladas, independentemente do “tempo do dia” ou do da semana, ou do mês ou do ano (ELIAS, 1998, pág. 86).

Galileu foi o pioneiro na utilização de cronômetros para medir o tempo de processos físicos, imprimindo um caráter de medição que pretendia ignorar a presença humana. Assim, o conceito de tempo foi recortado no conceito de “tempo físico”, o que foi coerente a essa inédita conceituação de natureza. A natureza, a partir de Galileu, passou a ser reconhecida como uma série de processos bem-ordenados, autônomos, e sem objetivo, que seguiam “leis” absolutas, sendo a mais abrangente delas o próprio tempo. Enquanto na Idade Média a natureza era regida pelas intenções divinas, a partir de Galileu se tornou um sistema regido por leis naturais. Esta ruptura originou a separação entre “tempo físico” e “tempo social”. Para delimitar com grande precisão os processos naturais em suas leis imutáveis e ordenadoras, o homem procurou se distanciar, como sujeitos arbitrários, de tais objetos. Nesse ponto da história, o tempo efetivamente recebeu a sua divisão qualitativa entre tempo “físico”, referente à natureza e, portanto, real, preciso, mensurável e mais relevante para possíveis estudos; e tempo “social”, referente aos homens, e, portanto, ilusório, arbitrário, impreciso, e carente de motivação acadêmica para ser estudado, mesmo que, a partir de Galileu, expressasse sua presença coercitiva nos homens de maneira cada vez mais intensa.

3.2 O TEMPO EM NOSSOS TEMPOS

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No começo desse capítulo, o tempo, colocado como instrumento social, foi apresentado de acordo com as suas significações ao longo da história do homem. Nesse ponto, cabem reflexões, lastreadas pela pesquisa até aqui, sobre como o tempo configura-se nas sociedades atuais, consideradas pós-modernas ou contemporâneas. Nas sociedades complexas, desde a Revolução Industrial e do consumo, o tempo é construído como instrumento fundamental da regulação do comportamento humano, no trabalho, nos deveres sociais, e na burocracia em geral. Em conseguinte, a regulação do tempo estende-se a muitas outras esferas de vivência do indivíduo, como o lazer, a identidade e o saber. A onipresença do tempo, por sua vez, garante sua existência objetiva presumidamente inquestionável, enublando a percepção de que o tempo poderia ser significado de outras formas em diferentes tipos de sociedade. O tempo, expresso como uma síntese de alto nível, mesmo que imperceptível pelos sentidos comuns, passa a ser inquestionavelmente apreendido na consciência humana como elemento inerente à natureza do mundo, fazendo-se assim como auto-regulador da sensibilidade do homem. Assim, “exerce uma pressão relativamente discreta, comedida, uniforme e desprovida de violência, mas que nem por isso se faz menos onipresente, e à qual é impossível escapar.” (ELIAS, 1998, p. 22). As sociedades modernas e pós-modernas afrouxaram a dependência dos processos sociais em relação aos processos naturais. A urbanização e industrialização permitiram ao homem certa autonomia de recursos em relação aos meios “naturais” (por exemplo, a industrialização permitiu a fabricação em massa e o estoque de bens, que não precisavam, até certa medida, estar imediatamente disponíveis na “natureza”; a urbanização garantiu, com a maior especialização do trabalho, a disponibilidade de uma gama muito maior de recursos e tecnologia, essa última responsável por “contornar” problemas impostos pela “natureza”). O conceito do tempo seguiu a mesma tendência: o desenvolvimento de utensílios cada vez mais especializados em indicar o tempo tornou cada vez mais indireta a relação entre sequências naturais e sociais. A evolução de tais utensílios visou à necessidade cada vez mais latente dos Estados de regular e organizar os altos graus de integração de seus povos e territórios e as imbricadas redes comerciais e industriais, monetariezando o tempo e, por meio dele, quantificando as exigências de trabalho e de dever burocrático do indivíduo na sociedade. O tempo como regulador social passou a permear quase toda a existência do indivíduo, exigindo que qualquer processo sequencial fosse inscrito em seus relógios e calendários. A própria ideia de identidade, nas sociedades modernas e pós-modernas, sofreu do caráter regulador do tempo. Ela passou a ser constituída, centralmente, a partir do conceito de história

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individual, ou seja, cada indivíduo passou a se identificar a partir do acúmulo individual de eventos ou experiências ao longo de sua vida. Porém, como colocado anteriormente, esta noção do tempo como fluxo irreversível, derivando a ideia de acúmulo de experiências, é uma construção social. A capacidade de formular tal síntese temporal como afirmação identitária (comumente expressa como o “declínio” da infância para a maturidade, para a velhice, para a morte) garantiu uma ferramenta valiosa para a colocação existencial do ser humano no universo. Elias exemplifica: “Muitos indicadores mostram que a imagem de si mesmo, o sentimento de identidade pessoal, era muito mais impreciso e menos fortemente organizado em estágios anteriores da evolução da humanidade. Ao sair de um rito de iniciação, ou após a aquisição de uma nova posição social, o homem podia ter a impressão de ser uma outra pessoa, dotada de outro nome, e de ser assim percebido pelos demais. Tanto por seu próprio ponto de vista quanto na percepção de outrem, ele podia tornar-se idêntico a seu pai, metamorfosear-se num animal, ou deter o poder de estar, ao mesmo tempo, em dois lugares diferentes.” (1998, pág. 56)

A continuidade do tempo da vida, como ferramenta de construção identitária, medida com extrema precisão, é expressa pela determinação recorrente da idade dos indivíduos. A determinação da idade de vida influencia na visão de si mesmo e dos outros, transcendendo uma simples marcação quantitativa, e indicando designações simbólicas referentes a diferenças biológicas, psicológicas e sociais. As designações identitárias relacionadas às diferenças biológicas e sociais, que no decorrer da história do saber, foram envolvidas por um sentido de processos únicos e irreversíveis, contaminam a própria concepção de tempo. Quando citamos a “passagem” do tempo, reiterando a coerção de sua qualidade irreversível, geralmente, estamos citando, na realidade, o nosso próprio envelhecimento. Assim, generalizamos que o tempo “passa”, pois em nossas concepções, o tempo invariavelmente equivale ao caráter irreversível de nossas mudanças biológicas. Esse viés que expressa a irreversibilidade do tempo complementa a constatação já apresentada que justifica essa visão. Tal constatação relacionava-se com a própria concepção comum da história como um contínuo evolutivo, que garantiu a memória indispensável à pesquisa e consolidação do conhecimento. A escala linear histórica permitiu o acesso a eventos que transcendiam a experiência individual, eventos esses que eram pertencentes ao saber humano coletivo, consolidado pelo vasto encadeamento de gerações. Outra justificação recorrente da pretendida irreversibilidade do tempo apresenta-se no acúmulo das “oportunidades perdidas”. De acordo com Vilém Flusser (1962), como a entropia do universo aumenta constantemente, o tempo revelaria sua natureza no aumento caótico das possibilidades, e, portanto, das “oportunidades perdidas”. Ele defende que a linearidade inata

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ao tempo encontra-se exatamente nessa concepção, parcialmente distorcida pela visão cíclica da temporalidade. O caminho da minha vida, isto é, o meu tempo, deixa para trás um exército gigantesco de oportunidades definitivamente perdidas. Aí reside a dramaticidade do tempo: toda escolha é irrevogável e irremediável. O consolo da segunda oportunidade, da oportunidade recorrente, é desonestidade intelectual e moral, por ser fuga inautêntica para dentro do tempo circular dos processos reversíveis (FLUSSER, 1962).

Porém, essa colocação é válida se atentarmos para o tempo como objeto de regulação social. A crescente entropia, defendida pela física, apenas torna-se coerente enquanto pensarmos que o conceito da aleatoriedade se delimita em oposição ao conceito de “ordem”, ou seja, é necessariamente dependente da capacidade ordenadora do homem. Por isso, o tempo das “oportunidades perdidas” é uma construção específica a um tipo de sociedade, e não pode ser considerado universalmente. Nas sociedades simples, o mundo era tido como uma composição de espíritos. Nas sociedades mais complexas essa concepção deixou de ser dominante e deu lugar a uma visão de mundo distanciada. Enquanto nas sociedades simples, ao presenciar um evento natural, a pergunta era: “Isso é bom ou ruim para nós?”, nas sociedades mais complexas, a pergunta tornou-se: O que esse acontecimento significa em si, independentemente de nós?”. O homem passou a se distanciar dos eventos que presenciava, e por isso, foi capaz de aumentar o seu controle e manipulação em torno desses eventos de uma forma muito precisa e utilitária. Assim foi com o tempo. Esse processo possibilitou a utilização do tempo como um grande instrumento de organização e regulação social e natural, em detrimento a uma simples determinação pontual para atender necessidades presentes. O tempo atingiu o seu nível de síntese a partir de um extenso caminho das sociedades humanas, que regiam suas significações em consideração às exigências sociais. A necessidade de exprimir o tempo muito precisamente na modernidade adveio das cadeias de funções sociais altamente especializadas e interdependentes, regidas pelo uso das máquinas como meios de produção industrial. Uma criança que cresça numa dessas sociedades nacionais do século XX, industrializadas e submetidas a uma regulação temporal muito intensa, requer sete a nove anos para “aprender a dizer as horas”, isto é, para saber ler e interpretar o complexo sistema simbólico dos relógios e do calendário, além de adaptar a ele sua sensibilidade e seu comportamento. Os membros dessas sociedades, depois de passarem por esse processo de aprendizagem, parecem esquecer que precisaram aprender o “tempo”. A regulação direta ou indireta dos dias e noites, por meio de sinais de valor temporal que se lêem neste ou naquele dos dispositivos técnicos destinados a essa função, é para eles uma evidência que está inteiramente fora de dúvida. As instâncias de autocontrole de uma pessoa às quais se dá o nome de “razão” ou “consciência”, ou que

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recebem qualquer outro nome, constituem-se como uma conseqüência disso. São poderosamente reforçadas por imposições sociais que funcionam no mesmo sentido. Nas sociedades que se encontram nesse estágio, todas as relações humanas ficariam gravemente perturbadas e, em última instância, não poderiam manter-se, se as pessoas parassem de pautar seu comportamento

num horário coletivo (ELIAS, 1998, p. 112). Zygmunt Bauman (2009) caracterizou o papel do tempo nos diferentes tipos de sociedade de acordo com o seu papel na relação com o espaço, ou seja, o tempo como ferramenta de conquista social de ocupação de territórios e processos de manipulação industrial. Na pré-modernidade, a noção de tempo era quase equivalente à noção de espaço: o tempo era o indicador de quanto esforço era preciso para cobrir uma determinada distância. Essa relação era invariável, já que se acorrentava na velocidade praticamente invariável das pernas humanas e animais. De acordo com Bauman, essa foi a era do wetware, ou seja, a era em que só havia o homem e o animal, e o tempo era incontrolável, atado a sua imutável correlação espacial. Esse quadro sofreu alterações apenas na modernidade, com o advento de sociedades industriais e de consumo: No templo das Olimpíadas gregas ninguém pensava em registrar os recordes olímpicos, e menos ainda em quebrá-los. A invenção e disponibilidade de algo além da força dos músculos humanos ou animais foi necessária para que essas ideias fossem concebidas e para a decisão de atribuir importância às diferenças entre as capacidades de movimento dos indivíduos humanos – e, assim, para que a pré-história do tempo, essa longa era da prática limitada pelo wetware, terminasse e a história do tempo começasse. A história do tempo começou com a modernidade. De fato, a modernidade é, talvez mais que qualquer coisa, a história do tempo: a modernidade é o tempo em que o tempo tem uma história (BAUMAN: 2009, p. 128 e 129).

O advento da modernidade, ou modernidade sólida, como define Bauman, foi marcado pela presença da máquina no seio das relações sociais de produção e consumo. A máquina, definida como o hardware, garantiu mobilidade à razão tempo-espaço, já que, como veículo, possibilitou que o mesmo espaço fosse percorrido em menos tempo, e como instrumento de produção, possibilitou que a mesma matéria fosse manipulada mais rapidamente. Diferente dos humanos e animais, a máquina pôde ser cada vez mais aperfeiçoada, transformando o tempo em uma variável manipulável. O controle do tempo passou a ser a ferramenta chave de dominação do inflexível espaço, e a meta passou a ser a construção de máquinas cada vez mais velozes a fim de estender ainda mais os espaços a serem conquistados (conquista essa que só teria seu valor se o uso daquele espaço capturasse o tempo, ou seja, preenchesse-o com a produtividade veloz das novas máquinas). Bauman resume: Numa declaração famosa, Benjamin Franklin disse que tempo é dinheiro; pôde dizê-lo porque antes já havia definido o homem como o “animal que faz ferramentas”. Resumindo a experiência de mais dois séculos, John Fizgerald Kennedy advertia seus concidadãos norte-americanos a usarem o “tempo

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como uma ferramenta, e não como um sofá”. O tempo se tornou dinheiro depois de se ter tornado uma ferramenta (ou arma?) voltada principalmente a vencer a resistência do espaço: encurtar distâncias, tornar exeqüível a superação de obstáculos e limites à ambição humana. Com essa arma, foi possível estabelecer a meta de conquista do espaço, e, com toda seriedade, iniciar a sua implementação (BAUMAN, 2009, p. 130).

Na modernidade sólida, o tempo passou a ser significado como um bem, um recurso, que, assim como a matéria-prima ou a energia, era impresso de valor, e não poderia ser desperdiçado. Se nas sociedades simples, o tempo era sinônimo de poder, pois garantia a capacidade de controle e organização social, nas sociedades modernas complexas, tornou-se também capital, já que pôde ser manipulado por aqueles que detinham o poder das máquinas. Assim, a sucessão de eventos sociais caracterizados pela produção industrial deveria ser cada vez mais comprimida em relação a outras sucessões de eventos, ou seja, no tempo. Da mesma forma, a sucessão de eventos que era o deslocamento no espaço deveria ser igualmente comprimida no tempo. Perder tempo era perder a possibilidade de comprimir mais eventos de produção industrial ou de deslocamento espacial: era perder dinheiro. Na modernidade, a ditadura dos relógios tornou-se o capitalismo dos relógios. A modernidade, desde seu surgimento, foi uma batalha a fim de “derreter os sólidos”, ou seja, invalidar as antigas tradições que sustentavam a ordem social e cultural daqueles tempos. Essa intenção clamava, por sua vez, pela “profanação do sagrado”: pelo repúdio e destronamento do passado, e, antes e acima de tudo, da “tradição” – isto é, o sedimento ou resíduo do passado no presente; clamava pelo esmagamento da armadura protetora forjada de crenças e lealdades que permitiam que os sólidos resistissem à “liquefação” (BAUMAN, 2001, p. 9).

Este “esmagamento da armadura protetora forjada de crenças e lealdades que permitiam que os sólidos resistissem à “liquefação””, deixou a sociedade “desprotegida” para uma atualizada ordem, agora livre dos seus antigos e tradicionais embaraços políticos, culturais e étnicos: a economia. A economia, sem precisar temer as alavancas políticas e morais que pudessem invalidá-la, passou a reger as relações sociais, criando uma nova “solidez” a partir da liquefação dos antigos moldes defeituosos. Porém, tal “solidez” sobreviveu apenas à chegada dos novos tempos, estes não mais apenas modernos, mas pós-modernos. Foi o surgimento da pós-modernidade, ou modernidade líquida, que marcou o novo conceito regulador da relação tempo-espaço: o software. A tecnologia dos computadores possibilitou que o espaço fosse acessado quase que instantaneamente e, portanto, destituiu o seu valor, se considerarmos o valor de algo como uma qualidade determinada principalmente pela dificuldade de acesso desse algo, ou seja, o custo envolvido em acessá-lo. Na era do software, o espaço pode ser atravessado pela velocidade da luz, em tempo praticamente nulo, e 48

o espaço impõe menores restrições às ações humanas, perdendo, portanto, seu valor estratégico. Assim, de acordo com Bauman, o tempo, em uma aparente contradição, potencializa seu valor na instantaneidade, a ausência de tempo (já que a instantaneidade refere-se a um evento único e isolado de uma relação sucessiva de outros eventos, ou seja, isolado do tempo): na era do software, da modernidade leve, a eficácia do tempo como meio de alcançar valor tende a aproximar-se do infinito, com o efeito paradoxal de nivelar por cima (ou, antes, por baixo) o valor de todas as unidades no campo dos objetivos potenciais. O ponto de interrogação moveu-se do lado dos meios para o lado dos fins. Se aplicado à relação tempo-espaço, isso significa que, como todas as partes do espaço podem ser atingidas no mesmo período de tempo (isto é, em “tempo nenhum”), nenhuma parte do espaço é privilegiada, nenhuma tem um “valor especial”. Se todas as partes do espaço podem ser alcançadas qualquer momento, não há razão para se preocupar em garantir o direito de acesso a qualquer uma delas (BAUMAN, 2009, p. 137).

O valor do tempo não é aniquilado, mas perde parcialmente sua tradicional força coercitiva. Tal perda pode ser justificada pela capacidade inédita dos homens de atingir a instantaneidade no acesso do espaço, assim como pela relevância decrescente em se especular eventos futuros (expectativas para que eventos se configurem presentemente), já que, em um mundo de velocidades instantâneas, o futuro é cada vez menos passível de uma especulação precisa. O valor da instantaneidade se fez válido pela valorização da ação presente, “no ato”, em contrapartida à desvalorização das consequências, das especulações e expectativas do futuro. Assim, os eventos passaram a ser cada vez menos circunscritos em relações sucessivas, e passaram a ser desagregados às dimensões temporais de simultaneidade: tornaram-se absolutos em sua atemporalidade. Concomitantemente, circunscrevendo a busca pela instantaneidade e rejeição do futuro do “longo prazo”, um novo caráter do tempo qualifica dinâmicas sociais articuladas na inconstância, na descartabilidade e na fluidez. Bauman (2011) nomeia os tempos modernos de tempos líquidos, pois pretende aludir a uma metáfora muito precisa: os fluidos, diferente dos sólidos, não têm dimensões espaciais definidas e dependem do tempo para que seja possível delimitar o seu “formato” no momento, já que estão constantemente em mutação na sua fluidez. Assim, enquanto os sólidos preservam a imutabilidade de sua forma frente ao tempo, os líquidos não se atêm a forma nenhuma, e só podem ser retratados dado o instante. Assim, uma sociedade líquida é uma sociedade em constante mudança, que inscreve um encadeamento constante de engajamentos e desengajamentos (de consumo, de relacionamento, de informação) cada vez mais veloz e fácil. Tal sociedade exibe uma sequência de acontecimentos e mudanças em um ritmo mais veloz que a capacidade de seus integrantes de acompanhá-los. Esses últimos, para viver na liquidez pós-moderna, devem cultivar a habilidade

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de desengajar-se da forma mais indolor possível, a fim de acompanhar a sucessão frenética de términos e reinícios. Na confluência desses novos papéis sociais do tempo na modernidade líquida, podemos sintetizar o conceito do tempo contemporâneo. O indivíduo contemporâneo impele sua vivência de acordo com um tempo veloz, no sentido que contempla uma sucessão frenética de engajamentos e desengajamentos, inícios e reinícios. O que torna possível a concatenação desses ciclos de aquisição e descarte é o enaltecimento da instantaneidade. A busca pela instantaneidade é a força-motriz da perseguição dos ideais de prazer imediato, que se esgota no instante da conquista. O que une a instantaneidade e a fluidez contemporâneas é a negação da duração. A fluidez permite que sejam comprimidas inúmeras experiências de instantaneidade em um período de vida, garantindo a experiência da imortalidade, que, em tempos anteriores, cabia à transcendência da morte. Nos tempos líquidos, a experiência imortal pode ser acessada pela atemporalidade das inúmeras instantaneidades. Bauman indica que cada momento (dissociado do tempo) é atribuído de capacidade ilimitada nas sensações que pode oferecer. O “longo prazo”, ainda que continue a ser mencionado, por hábito, é uma concha vazia sem significado; se o infinito, como o tempo, é instantâneo, para ser usado no ato e descartado imediatamente, então “mais tempo” adiciona pouco ao que o momento já ofereceu. Não se ganha muito com considerações de “longo prazo”. Se a modernidade sólida punha a duração eterna como principal motivo e princípio da ação, a modernidade “fluida” não tem função para a duração eterna. O “curto prazo” substituiu o “longo prazo” e fez da instantaneidade seu ideal último. Ao mesmo tempo em que promove o tempo ao posto de contêiner de capacidade infinita, a modernidade fluida dissolve – obscurece e desvaloriza – sua duração (BAUMAN, 2001, p. 145).

Em outras palavras, a eternidade é rejeitada em favor da infinitude. Isso significa que a relevância não se encontra no decorrer possivelmente inacabável do tempo, mas sim na capacidade do agora de contemplar uma vivência dissociada do “correr do tempo”, e portanto ilimitada na sua infinitude de possibilidades. Dessa forma, Com efeito, ao longo de uma vida mortal é possível extrair tudo aquilo que a eternidade poderia oferecer. Talvez não se possa eliminar a restrição temporal da vida mortal, mas podem-se remover (ou pelo menos tentar) todos os limites das satisfações a serem vividas antes que se atinja o outro limite, o irremovível. [...] Se alguém se move com rapidez suficiente e não se detém para olhar para trás e contar os ganhos e perdas, pode continuar comprimindo um número cada vez maior de vidas no tempo de duração da existência mortal, talvez tantas quantas a eternidade permitir (BAUMAN, 2009, p. 15).

A valorização da instantaneidade da atemporalidade em detrimento à durabilidade da temporalidade marca uma colocação no mundo radicalmente divergente a todos os outros estágios da humanidade. A história humana revela o esforço da humanidade em construir legados que invocassem a durabilidade e a perpetuidade além da transitoriedade das vidas e 50

esforços individuais, construindo a continuidade de uma espécie humana imortal a partir de numerosas descontinuidades de humanos mortais. Nos tempos atuais, essa colocação não é mais valorizada. É difícil conceber uma cultura indiferente à eternidade e que evita a durabilidade. Também é difícil conceber a moralidade indiferente às consequências das ações humanas e que evita a responsabilidade pelos efeitos que essas ações humanas e podem ter sobre outros. O advento da instantaneidade conduz a cultura e a ética humanas a um território nãomapeado e inexplorado, onde a maioria dos hábitos aprendidos para lidar com os afazeres da vida perdeu sua utilidade e sentido. Na famosa frase de Guy Debord, “os homens se parecem mais com seus tempos que com seus pais”. E os homens e mulheres do presente se distinguem de seus pais vivendo num presente “que quer esquecer o passado e não parece mais acreditar no futuro”. Mas a memória do passado e a confiança no futuro foram até aqui os dois pilares em que se apoiavam as pontes culturais e morais entre a transitoriedade e a durabilidade, a mortalidade humana e a imortalidade das realizações humanas, e também entre assumir a responsabilidade e viver o momento (BAUMAN, 2009, pág. 149).

As novas significações pós-modernas do conceito do tempo tornam-se evidentes nas relações de consumo caracterizadas pelas sociedades líquidas. Antes da pós-modernidade, os objetos tinham seu valor atribuído em relação à sua durabilidade, ou seja, em relação à sua associação com a imortalidade. Já na pós-modernidade, os objetos de consumo são marcados pela sua transitoriedade, ou seja, pela sua rápida obsolescência e pelo seu recorrente descarte. Antes da pós-modernidade, o acúmulo de objetos duráveis significava o acúmulo de poder da imortalidade e da infinitude. O poder estava com aqueles que monopolizavam seus bens. A partir da pós-modernidade, o acúmulo de objetos (e de vários outros tipos de “pesos”) por tempo demais torna-se indesejável. Manter os objetos além do seu prazo de “descarte”, ao invés de substituí-los por objetos “novos”, configura-se como um sintoma de privação. O poder engloba novas significações: implica na capacidade de descartar as coisas para ter acesso a mais coisas, que deverão ser consumidas instantaneamente, logo antes de serem descartadas novamente. Como Bauman sintetiza: “Uma vez que a infinitude de possibilidades esvaziou a infinitude do tempo de seu poder sedutor, a durabilidade perde sua atração e passa de um recurso a um risco” (1998, p.146). Dessa forma, a chave para a plena compreensão do tempo, como é significado atualmente, está na investigação acerca das relações dos indivíduos com os produtos que consomem. Colin Campbell (2008) nos revela que a expressão de consumo contemporânea está relacionada com significações referentes ao movimento estético do romantismo. Ele propõe que, no advento da modernidade, esteve atuante um movimento ideológico complementar ao

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puritanismo que impulsionou o capitalismo industrializado moderno. Tal movimento, que, por sua vez, justificou um modelo de consumo moderno, tomou suas bases nos ideais românticos. Assim, coexistiram dois modelos contrastantes, de tradições culturais opostas, mas que, em sua relação simbiótica, permitiram o funcionamento de uma sociedade de produção e consumo. O puritanismo, destacado na racionalidade defendida por Weber, caracterizou o esforço do trabalho que impulsionava a produção industrial. Por outro lado, o romantismo, destacado pela paixão e anseio pelo prazer, tornou-se o escape da pressão do desencantamento do mundo moderno, por meio do consumo. A tensão entre os dois caracterizou a utilidade materialista e o prazer hedonista como engrenagens desses novos tempos. Essas colocações propiciam qualidades diferentes ao tempo relacionado ao trabalho e o tempo relacionado ao consumo. Tais diferenças serão exploradas mais adiante, após uma investigação mais profunda de como se caracteriza o tempo do consumo nos termos propostos por Campbell. Campbell apresenta a teoria de que o indivíduo moderno e pós-moderno, diferente do que o senso comum poderia apontar, não é, em todos os casos, impelido ao consumo por um ideal materialista utilitário, mas por um ideal que considera o prazer como objetivo final, e não a satisfação. Assim, esse modelo de consumo, com bases no romantismo, é “assinalado por uma preocupação com “o prazer”, idealizado como uma qualidade potencial de toda experiência” (CAMPELL: 2008). Tal proposição do autor relaciona-se com a fluidez pós-moderna defendida por Bauman. O modelo de Campbell afirma que a preocupação no consumo é com a experiência sensorial e todo o prazer que se encontra no débito entre a insatisfação (expressa pelo desejo e pela expectativa de fantasia) e a potencial satisfação. O enaltecimento do prazer como objetivo final do consumo valida a satisfação como o limite para a desilusão. Dessa forma, enquanto a busca pelo prazer do desejo em relação às experiências sensoriais, garantidas pelas auras atribuídas aos produtos, impele a aquisição do produto; a desilusão provocada pela satisfação no ato de consumir, que anula o prazer gerado pela expectativa do desejo (sustentado no “querer mas ainda não ter”) garante a motivação da desaquisição, para que se procure o desejo em outro produto, em outro ciclo engajamento-desengajamento. Esse é o caráter fluido da pósmodernidade, e aí está presente a instantaneidade, que, por essa ótica, garante o prazer exponencial, no limite da satisfação, a cada ciclo de consumo. Campbell resume: O que é característico do moderno hedonismo racional e do comportamento do verdadeiro romântico é a tendência a aproveitar oportunidades para criar desejo, não meramente para satisfazê-lo, e é nisso que o adiamento da verdadeira satisfação se torna essencial. Conclui-se daí que um padrão de prática da educação das crianças que saliente a satisfação retardada serve para

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estimular os atos de devaneio e fantasia, desenvolvendo portanto, dentro do indivíduo, exatamente as habilidades necessárias a se transformar num peito na manipulação do desejo. Ele cria, também, as circunstancias sob as quais é mais provável que o indivíduo venha a reconhecer valor na satisfação “instantânea” (CAMPBELL, 2008, p. 310).

A partir dessa concepção, torna-se válido considerar o processo de consumo como um acesso ao instantâneo, motivado pelo anseio por um prazer que não se estende no tempo, mas, em sua instantaneidade, relaciona-se com um estado atemporal, ou eterno. Essa qualidade do consumo está impressa inclusive nos lugares em que ele é efetivado: O que quer que possa acontecer dentro do templo do consumo tem pouca ou nenhuma relação com o ritmo e teor da vida diária que flui “fora dos padrões”. Estar num shopping center se parece com “estar em outro lugar”. Idas aos lugares de consumo diferem dos carnavais de Bakhtin, que também envolvem a experiência de “ser transportado”: idas às compras são principalmente viagens no espaço, e apenas secundariamente viagens no tempo (BAUMAN, 2001, p. 115).

Propomos, dessa maneira, uma relação entre a temporalidade do consumo, efetivado nos tais “templos do consumo”, com a temporalidade dos rituais. Para isso, articulamos o trabalho de Roy Rappaport (1992), que estuda a temporalidade do ritual. Todo ritual engloba diversos aspectos relacionadas ao tempo, e Rappaport apresenta três dimensões temporais referentes a essa manifestação: a frequência, a duração e simultaneidade. Uma das funções do ritual é semelhante ao do próprio tempo: servir como base de interpretação das sequências de eventos naturais e traduzi-las em uma ordenação social, com um objetivo preciso. Por conseguinte, normatiza o conceito do tempo para que seja devidamente compartilhado, em seu poder coercitivo, por todo um grupo de indivíduos. Especificamente, o ritual tem a função de reafirmar a ciclicidade em uma sequência temporal, mesmo que o tempo social geralmente se apresente no conceito de “fluxo” unidirecional. O ritual reafirma eventos que, simbolicamente, mantêm-se praticamente constantes e inalterados nos retornos dos ciclos sucessivos, como, por exemplo, a chegada da primavera ou a ressurreição de Cristo; invoca o passado para o instante e entra em contraste com a concepção de tempo na sua irreversibilidade. Assim, o ritual pretende reafirmar sua doutrina para os seus integrantes por meio de sua frequência, que, portanto, é proporcional a necessidade de regular o comportamento dos indivíduos expostos às pressões e tentações do tempo cotidiano. Rappaport exemplifica: Assim, a frequência da participação no ritual por parte do clero católico romano pode estar relacionada com a austeridade de restrições sobre seu comportamento sexual, por parte dos judeus ortodoxos com a manutenção de seus laços sociais em sociedades em que são pequenas minorias e em que a assimilação tem suas tentações (RAPPAPORT, 1992, p. 18, tradução nossa4) 4

Thus, the frequency of ritual participation on the part of Roman Catholic clergy may be related to the austerity of restrictions upon their sexual behavior, that of Orthodox Jews to the 53

Não obstante, os rituais relacionam-se com o tempo como duração. Todo ritual “toma tempo”, ou seja, tem uma duração caracterizada pelo sequenciamento de ações em uma ordem concebida e partilhada pelos envolvidos. Inserida na duração, faz-se presente a simultaneidade. A simultaneidade está ligada ao ritmo, ao encadeamento de eventos que ocorrem durante o ritual. Ela concerne ao conjunto ordenado de objetos, pessoas e ações que pretende, em sua confluência de significações, comunicar algo. Rappaport expõe o exemplo do Carnaval, “durante o qual arranjos avassaladores de atos e objetos significam simultaneamente a mesma coisa: inversão (1992, p. 8, tradução nossa5)”. O ritmo envolvido na simultaneidade tem a função de unir todos os participantes do ritual sob o caráter ordenador do tempo, ou seja, por meio do compartilhamento simultâneo de um determinado ritmo, uma união se instaura entre os elementos do ritual. O ritmo dos rituais é mais acelerado que aqueles característicos à maioria das interações sociais, e tendem a condizer com os ritmos biológicos, como por exemplo, a pulsação cardíaca. O ritmo do tambor pode aproximar a velocidade dos batimentos cardíacos. Esse ritmo, além disso, pode coincidir com a respiração e pulso dos dançarinos, ou pelo menos pode ser experienciado como se coincidisse, enquanto se sincroniza com os movimentos dos membros e se unifica com as vozes em uníssono do canto ou música (1992, p. 21, tradução nossa6).

O ritmo, assemelhando-se a um tempo caracteristicamente biológico, instaura-se por meio da simultaneidade. A partir dela, cria-se um efeito de união entre todos os participantes, como se fossem as mesmas partes de um organismo maior. Esse ritmo sincronizado garante que, durante o ritual, apesar de quaisquer divergências de humor, atitude e emoção, todos os integrantes sejam harmonizados em um mesmo sistema temporal unificador, concretizado nas diferentes funções e hierarquias dos integrantes. Em uma metáfora precisa, enquanto essa união do “grupo social move-se como um conjunto coordenado no domínio temporal do orgânico,

maintenance of their social boundaries in societies in which they are small minorities and in which assimilation has its temptations. 5 during which overwhelming arrays of acts and objects simultaneously signify the same thing: inversion. 6 The rhythm of the drum may approximate the rapidity of heartbeats. That rhythm, furthermore, may entrain the breaths and pulses of the dancers, or at least may be experienced as if it does, as it synchronizes the movements of their limbs and unifies their voices into the unisons of chant or song.

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seus membros podem sentir que eles estão, especialmente, tão coesos quanto as células de um único animal (RAPPAPORT, 1992, p. 24, tradução nossa7). Rappaport, a partir dessas definições, trabalha em uma ideia interessante. Ele afirma que os rituais imprimem a eternidade enquanto duram. Isso ocorre pois apresentam uma ordem imutável no seu ritmo, que é similar ao ritmo vivo dos integrantes. Tal imutabilidade, constituída de pouquíssima entropia e pela relação íntima com o indivíduo, empresta uma sensação de atemporalidade e eternidade à experiência. Esse caráter está relacionado com a reafirmação das sequências cíclicas imutáveis, e, simbolicamente, desvinculadas a um fim. E então há um sentido mais profundo ainda do eterno, não como repetição infinita, mas como a pura duração sem sucessão da absoluta imutabilidade daquilo que repete, a duração sem sucessão daquilo que não é precedido nem sucedido, mas que sempre foi e será. No ritual, retorna-se novamente para o que nunca muda, o que é pontualmente repetido em cada performance (RAPPAPORT, 1992, p. 25, tradução nossa8).

Os rituais, assim como as dinâmicas temporais atribuídas a eles, relacionam-se de forma intensa com as dinâmicas contemporâneas de consumo. O processo de consumo líquido assemelha-se com o ritual em seu sentido de reafirmação cíclica, e em seu sentido de atemporalidade na instantaneidade. Rappaport estabelece pontes reflexivas entre o tempo do ritual e o tempo nos computadores, que são elementos chave na composição da virtualidade do software, que, como Bauman (2001) coloca, são o centro na concepção do tempo na pósmodernidade. Rappaport compara dois tipos de tempo: o tempo ordinário, mundano ou profano, que prevalece em lineariedade social; em contraste ao tempo extraordinário, sagrado, ou transcendental, que não é passível da medição característica do primeiro tipo. Ele propõe que os computadores utilizam-se de um tempo ordinário, inscrito em sua coerência de sucessão de eventos, que, no caso do computador, é o tempo para efetuar as funções às quais foi designado. Porém, nos intervalos entre os processos temporais em que o computador efetua seus cálculos, existe um tempo extraordinário, extradimensional ao tempo do computador. Esse tempo extradimensional é o tempo em que alguém insere os comandos para que o computador

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a social group moves as a coordinated whole into the temporal region of the organic, its members may sense that they are, for the nonce, bound together as tightly as the cells of a single animal. 8 And so there is a yet profounder sense of the eternal, not as endless repetition, but as the sheer successionless duration of the absolute changelessness of that which recurs, the successionless duration of that which is neither preceded nor succeeded, but which always was and will be. In ritual, one returns ever again to that which never changes, to that which is punctiliously repeated in every performance 55

modifique a função que está exercendo no momento. É um processo analógico, não contemplado pela virtualidade do computador, e, portanto, por sua temporalidade interna, mas que modifica o curso sucessivo de suas ações. Enquanto a lógica temporal da máquina é digital, ela é governada por outra espécie de tempo, analógico. Rappaport relaciona o computador e a inserção dos comandos com a sociedade e os rituais. Os rituais, em sua temporalidade extraordinária, são de uma natureza divergente e não contemplada pela temporalidade social ordinária, mas tem o poder de influenciar sua sucessão de acontecimentos. Da mesma forma, o consumo líquido e a ânsia pela instantaneidade, instigada pela capacidade igualmente instantânea do software, configuram-se como uma temporalidade extraordinária ao caráter ordenador e tradicional do tempo social. Entretanto, tais instantaneidades influenciam os modos desse tempo ordinário tido como “fluxo”. Essas influências podem ser encontradas nas relações entre trabalho e consumo, por exemplo. Podemos considerar o processo de trabalho na contemporaneidade como o sacrifício de tempo no contexto de temporalidade ordinária coercitiva; como a expressão própria da racionalidade proposta por Weber e atualizada por Campbell; como o tempo monetariezado da modernidade sólida conceituada por Bauman. Podemos considerar, também, o processo de consumo na contemporaneidade como o acesso ritualístico a eternidade ou temporalidade extraordinária; como a expressão do romantismo pós-moderno trabalhada por Campbell; como o tempo instantâneo da modernidade líquida conceituada por Bauman. Por fim, podemos encontrar na relação essas duas espécies de tempo uma síntese dos processos de significação da temporalidade para o indivíduo integrante de uma sociedade pós-moderna. Para estabelecer essa conexão e concluir as reflexões acerca do tempo nos dias atuais, valemo-nos dos pensamentos de Pedro de Santi, que, por uma ótica psicológica, analisa o indivíduo contemporâneo inserido em uma cultura do narcisismo. Santi (2005) inicia suas reflexões com base na obra de Jurandir Freire Costa (2004), que defende a ideia de que, se o homem pré-moderno compartilhava do objetivo de manipular a natureza e imprimir o seu registro de existência além de sua finitude, na pós-modernidade, não vê mais valor na fabricação de artefatos duradouros, e tem como objetivo final a felicidade, entendida como a máxima quantidade de prazer na experiência de cada instante. Esse homem que busca a felicidade dos instantes vive constantemente em insatisfação, à procura de experiências instantâneas cada vez mais estimulantes. Esse comportamento ganha expressão no consumo: A valorização aparentemente paradoxal da insatisfação teria derivado da transição de valor: em vez de buscar a satisfação, passa-se a buscar prazer. A

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diferença é grande. A satisfação implica o encontro ou reencontro de certo equilíbrio, na adequação daquilo que foi encontrado com aquilo que foi almejado. O prazer, por sua vez, é uma qualidade de experiência, ele é instantâneo e transitório por definição. O consumo cai como uma luva para esta forma de sensibilidade: cada produto é uma promessa de gozo duplo, com seu encontro e com a decepção que se pode antecipar pelo desgaste de sua possibilidade de desfrute (SANTI, 2005, p. 196).

A valorização do instantâneo em detrimento do duradouro relaciona-se com uma visão contemporânea de mundo que, pela crise da tradição, deixa de lado o passado, e não vê perspectivas no futuro. A crise da tradição marcou a modernidade com a perda das referências tradicionais medievais. Santi explica: A ciência não é o mundo das certezas, mas o do melhor que pudemos conhecer até então, sempre ante a possibilidade de que novos fenômenos e experimentos nos levem a rever tudo o que considerávamos assentado. A democracia identicamente é o reino do conflito e da alternância no poder. O sujeito não predestinado é aquele a quem se apresenta o dever de estar sempre se desenvolvendo. Tudo na Modernidade é movimento e instabilidade: ela é orientada para o futuro (SANTI, 2005, p. 200).

Santi trabalha com a ideia de cultura do narcisismo. A cultura do narcisismo refere-se à busca de refúgios sólidos frente à insuportável instabilidade de referências na contemporaneidade. Nessa cultura, o homem é extremamente individualista em sua busca pela felicidade dos instantes, e a renúncia do prazer imediato a favor do futuro é desvalorizada. Dessa forma, a ansiedade, como a qualidade de quem não se interessa pelo passado e futuro, toma o espaço da culpa. O indivíduo narcisista procura estímulos cada vez mais intensos, a fim de superar as sensações de experiências instantâneas passadas e, nesse processo, tornam-se cada vez menos sensíveis. Esta procura traduz-se na propaganda, que objetiva um apetite inesgotável de novas experiências para os consumidores. Nesse processo, resume Santi: é como se houvesse um acionamento do narcisismo por duas vias – um recuo à onipotência infantil, com a ilusão de acesso mais imediato aos prazeres que se busca, e um fechamento narcísico defensivo ante as invasões e riscos da vida contemporânea (SANTI, 2005, p. 184)

Porém, vale aqui ressaltar que, esse processo narcisista consiste em uma reação à abundância de estímulos, experiências e instantes. A cultura do narcisismo é uma cultura do trauma, da violência. Como uma das mais primitivas formas de lidar com a massa indiferenciada de estímulos oriundos do ambiente, a mente mobiliza mecanismos de dissociação, produzindo diferenças primárias e radicais (bom/mau, dentro/fora, eu/não-eu). O eu torna-se encapsulado e apático. Depois da ruidosa histeria no início do século XX, teríamos hoje a silenciosa frieza e tédio irremediável produzida pela mobilização de tais mecanismos de defesa ante o traumatismo a que estamos expostos. Embora as manifestações contemporâneas, como o consumismo, o culto ao corpo e à celebridade,

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tenham grande visibilidade, manifestações menos ruidosas e muito sofridas dizem respeito ao tédio, à depressão, à incapacidade de sentir ou manifestar afeto. Essas formas são freqüentemente mais disfarçadas sob o aspecto de uma aparente normalidade (SANTI, 2005, p. 193).

Dessa forma, podemos notar que as ponderações de Santi são paralelas e complementares às colocações de Bauman, Campbell e Rappaport. A partir dessas colocações do conceito da temporalidade no contexto contemporâneo, propomos, no capítulo seguinte, a análise de como esse tema se configura na narrativa do objeto.

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4 NARRATIVA, GAMES E GAMEPLAYS

Nos capítulos anteriores, problematizamos o tema do tempo, tanto em uma perspectiva estrutural, como em uma perspectiva sócio-histórica, considerando sua inserção no contexto da contemporaneidade. Nessa etapa da pesquisa, cabe compreendermos como o tema do tempo manifesta-se na comunicação social, tratando especificamente da narrativa do gameplay de The Legend of Zelda: Majora’s Mask. Aqui, elaboramos uma reflexão em torno da inter-relação entre tempo e narrativa; uma contextualização acerca da textualidade dos games; e, finalmente, a apresentação dos dispositivos metodológicos que guiam o olhar da análise.

4.1 TEMPO E NARRATIVA

O tempo, como um tema latente em nossas relações sociais e compreensões existenciais, projeta-se nas produções de sentido que se efetivam de acordo com os valores culturais de uma sociedade em uma época. Os modelos narrativos, especificamente, estruturam muitas das manifestações culturais de uma sociedade, e representam importante papel na produção de sentidos em torno da temporalidade. Isso ocorre pois o ato de narrar resguarda forte relação com a própria definição estrutural do tempo. Esse intercâmbio de sentidos entre tempo e narrativa é profundamente explorado por Paul Ricoeur (1984), em sua obra Tempo e Narrativa. Ricoeur defende que a construção da narrativa pauta-se na mimese, ou seja, na imitação dos eventos vivenciados no mundo (entendendo imitação como a articulação simbólica da vivência para a expressão poética, e não necessariamente como uma reprodução simbólica verossímil). Nessa construção, três aspectos se envolvem: as estruturas inteligíveis da ação e do mundo, as suas fontes simbólicas, e seu caráter temporal. Ele considera que a construção narrativa configura-se na capacidade de identificar os eventos que se presentificam na vivência (a capacidade de atentar para as estruturas inteligíveis da ação e do mundo), na capacidade de imitação dessas ações para a composição da expressão poética (a capacidade de articulação simbólica das ações estruturais), e na capacidade de inter-relacionar tais ações em uma estrutura narrativa, de narrá-las propriamente (a capacidade de temporalizar as ações articuladas simbolicamente). A partir dessas colocações, é possível entender que a narrativa temporaliza as articulações simbólicas das ações estruturais, ou seja, constrói uma trama temporal que as impõe uma relação. Tal relação é inerente à estrutura narrativa, mesmo que não haja uma

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relação causal direta entre as ações. Por exemplo, imaginamos certa trama clássica, em que duas ações estão claramente relacionadas em uma relação causa-efeito: o herói mata o monstro (ação 1), o herói salva a princesa (ação 2). Aqui, é explícita a relação: o herói mata o monstro para que possa salvar a princesa, o herói salva a princesa visto que matou o monstro. Agora imaginemos uma trama não tão clássica, mas possível poeticamente, em que duas ações não estão claramente relacionadas: o herói mata o monstro (ação 1), um meteoro cai e destrói o mundo (ação 2). Aqui, aparentemente não há relação. Porém, empregar essas suas ações em uma mesma trama é inevitavelmente um processo de relacioná-las, mesmo que o artifício de expressão poética se configure exatamente na construção de uma relação entre duas ações de aparente desconexão de sentidos. Ou seja, mesmo que a ação da queda do meteoro seja independente a do herói matar o monstro, essa independência ainda é uma forma de relação, que comunica algo. Assim, Ricoeur resume a construção narrativa como a passagem "da ordem paradigmática da ação à ordem sintagmática da narrativa" (1984, p. 91), nos quais os termos da semântica da ação adquirem atualidade e integração. Atualidade refere-se à significação efetiva das ações quando inseridas em um encadeamento sequencial narrativo, ou seja, em uma ordem sintagmática de inter-relações, e não em uma ordem paradigmática virtual pautada apenas em sua potencial capacidade de ser empregada simbolicamente. Integração refere-se às ações heterogêneas que, quando efetivamente inter-relacionadas e integradas, tecem a estrutura narrativa e possibilitam sua expressão poética. Nesse sentido, por meio da atualidade e integração, a narrativa transcende a simples enumeração de ações, e estabelece uma interrelação temporal de acontecimentos, que na totalidade estabelecida pela narrativa, efetivamente expressa uma mensagem. Nas palavras de Ricoeur: Uma história, por outro lado, deve ser mais que uma enumeração de eventos numa ordem serial, deve organizá-los numa totalidade inteligível, de tal sorte que se possa sempre indagar qual é o "tema" da história. Em resumo, a tessitura da intriga é a operação que extrai de uma simples sucessão uma configuração (1984, p. 103).

Portanto, é importante notar que se algo pode ser narrado, já está circunscrito em uma lógica de temporalização simbólica de ações. Assim, qualquer forma de narração já pressupõe que certas ações foram mediatizadas e articuladas simbolicamente em uma temporalidade, por meio da capacidade de atualizar e integrar ações distintas em encadeamentos sequenciais do tempo. Por outro lado, vimos no capítulo anterior que a definição do tempo, como ação de temporar, é propriamente a ação de relacionar duas ou mais sequências de eventos que não se presentificam simultaneamente. Por isso, enquanto narrar consiste em temporalizar

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simbolicamente as ações, temporalizar depende da capacidade de relacionar eventos nãosimultâneos simbolicamente mediados (já que o passado e o futuro não existem objetivamente, e são presentificações simbólicas de experiências que foram ou poderão ser presentes), ou seja, depende da capacidade de narrar o mundo. Assim, ambos tempo e narrativa configuram-se estruturalmente na comparação sequencial entre eventos/ações distintos, que, em sua inter-relação, constroem uma síntese (Ricoeur define narrativa como a síntese do heterogêneo, e Elias define o tempo como uma síntese de eventos distintos) com uma intenção social. Mais do que isso, o narrar é uma forma específica de temporar, que respeita suas próprias regras como expressão poética; e o temporar é uma forma de narrar, que também respeita certas funções sociais de orientação do homem no mundo. Por isso, a manipulação da estrutura sequencial da narrativa está fortemente relacionada com as significações do tempo em determinado contexto social: as formas de narrar dizem algo sobre as significações do tempo. Essa relação da estrutura narrativa com as concepções da temporalidade deriva da capacidade das narrativas de subverter a idealizada "ordem natural do tempo". Já vimos que "a ordem natural do tempo" é uma construção social, já que o tempo é invariavelmente uma ferramenta com uma intenção social. Porém, o tempo tem a intenção de colocação do homem em relação a si próprio e ao mundo, e, portanto, deve respeitar a invariabilidade dos eventos do mundo natural para garantir a organização dos eventos do mundo social. As narrativas não devem tal respeito. Não devem, pois assim, na mimese das ações estruturais, emprestam uma temporalidade livre às suas ações simbólicas, já que não tem a função social de orientação do homem, mas sim a função social de se expressar poeticamente, mesmo que essa expressão paute-se justamente na subversão da ideia de tempo de orientação do homem. Por exemplo, em uma narrativa na qual os personagens podem "voltar no tempo", ou "acelerar o tempo" há uma subversão do tempo de orientação do homem (o tempo é capaz de regular o comportamento e a colocação do homem no mundo justamente pelo seu caráter social de irreversibilidade e invariabilidade). Tal subversão narrativa, mesmo que contrária a concepção do tempo, dialoga com ele, quer dizer algo. Mesmo que a narrativa dependa da temporalização, ela é capaz, por suas livres mediações simbólicas, questionar a própria concepção comum do tempo em uma sociedade. Dessa forma, a narrativa revela-se como um instrumento que torna possível certas associações poéticas da linguagem do tempo, e por isso, mesmo tendo suas bases em seus códigos comuns, é capaz de rearranjar suas concepções

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primeiras. Ricoeur metaforiza essa relação dialética do tempo e da narrativa com a própria expressão da linguagem textual: Da mesma maneira que a gramática de uma língua regula a produção de frases bem formadas, cujo número e cujo conteúdo são imprevisíveis, uma obra de arte - poema, drama, romance - é uma produção original, uma existência nova no reino da linguagem. Mas o inverso não é menos verdadeiro: a inovação permanece uma conduta governada por regras: o trabalho da imaginação não nasce do nada (1984, p. 109).

Tal metáfora permite relacionar a narrativa com o sintagma do tempo, ou seja, a capacidade de recriá-lo, reordená-lo, e rearranjar sua função de regulador social e existencial. Isso é possível, pois a narrativa, como comunicação, parte de uma seleção sintagmática das ações simbólicas, criando um "universo controlado", no qual tudo é concordância (no sentido de que todas as ações são inter-relacionadas na totalidade narrativa). Ricoeur resume: "Da mesma maneira, direi nesta obra que o fazer narrativo ressignifica o mundo na sua dimensão temporal, na medida em que contar, recitar, é refazer a ação segundo o convite do poema (1984, p. 124)". Nesse trabalho, pretendemos estudar como o tema do tempo se expressa na narrativa do objeto de análise, considerando que a forma que a narrativa encadeia os seus acontecimentos/eventos, ou seja, a forma como temporaliza suas ações, dialoga com o tempo como ferramenta de regulação social e orientação existencial. Esse diálogo permite negociações de sentidos (aceitações e negações) que expressam algo sobre o caráter de nosso tempo, e merecem nosso estudo. Para concluir, então, esse argumento, levantamos a obra de um autor que estuda especificamente as narrativas de relatos, mas, sem desconsiderar o seu recorte de estudo, propõe um pensamento muito abrangente e interessante sobre o caráter de expressão da experiência humana frente ao tempo. Nas palavras de Leonor Arfuch: O tempo mesmo se torna humano na medida em que é articulado sobre um modo narrativo. Falar do relato, então, dessa perspectiva, não remete apenas a uma disposição de acontecimentos – históricos ou ficcionais – [...], mas à forma por excelência de estruturação da vida e, consequentemente, da identidade, à hipótese de que existe, entre a atividade de contar uma história e o caráter temporal da experiência humana, uma correlação que não é puramente acidental, mas que apresenta uma forma de necessidade 'transcultural' (2010, p. 112).

4.2 GAMES E GAMEPLAYS

Esse documento centra sua análise em um vídeo do Youtube, e, portanto, deve considerar as características narrativas e os modos de produção de sentido específicos a esse tipo de produto audiovisual. Porém, não devemos desprezar que tal objeto, como gameplay, foi 62

originado por um game, que é um outro tipo de produto cultural, com outras características narrativas e outros modos de produção de sentido. Aqui, traçamos uma contextualização acerca dos games, investigando como as dinâmicas de produção de sentido expressam-se na textualidade desses jogos digitais. Com um entendimento mais aprofundado da textualidade nos games, fundamentamos certos pontos da análise da narrativa do gameplay, que deve ser entendida não apenas como uma produção audiovisual, mas como um material que significa em conjunto com a máquina de simulação que a gerou. Games é a abreviação de videogames, um tipo de jogo desenvolvido para plataformas digitais, como computadores, consoles para televisão, consoles portáteis e celulares. Apesar da imensidão numérica dos tipos de jogos, com suas próprias dinâmicas lúdicas e universos fantásticos, muitos autores propõe definições (mesmo que, geralmente não seja difícil encontrar exemplos que não se encaixam a tais definições). Inicialmente, citamos a obra de Jane Mcgonigal (2011), que consegue propor uma definição simples e didática. Mcgonigal explica que um jogo define-se jogo quando apresenta os seguintes quatro traços: objetivo, regras, sistema de retorno, e participação voluntária. O objetivo refere-se ao desfecho que o jogador ou os jogadores se esforçam para atingir. Ele orienta a participação dos jogadores e cria senso de propósito. As regras referem-se à implementação de restrições que criam potenciais dificuldades para se atingir o objetivo, exigindo dos jogadores certas habilidades. O sistema de retorno refere-se ao sistema que avalia quanto o jogador está próximo de ganhar o jogo, e alcançar o objetivo. Isso não implica que o jogador deve estar sempre consciente de "quanto falta" para ganhar o jogo, mas implica que ele deve estar consciente do que o aproxima do objetivo (moedas, velocidade, conhecimento), mesmo que, em alguns casos, simplesmente saber qual é o objetivo já seja essa consciência. A participação voluntária refere-se à disponibilidade dos jogadores em se submeter às regras, ao objetivo e ao sistema de retorno, prevista a liberdade de sair do jogo quando quiserem. Tais definições mostram-se válidas para traçar uma visão geral sobre os jogos, mas não podem, como já apontado, ser consideradas como um contorno preciso e infalível. Por isso, articulamos as reflexões de Gonzalo Frasca (2007), que explica que os jogos são um assunto de difícil estudo pois envolvem uma grande ambiguidade entre dois aspectos: o jogo e o jogar. O jogo envolve elementos ordenados que preveem ações e resultados muito bem definidos, enquanto o jogar envolve certa liberdade de arbítrio para escolher caminhos. Ao olhar um game pela lente do jogo, não conseguimos, por exemplo, estudar o comportamento de jogadores que não se adequa perfeitamente às intenções dos game designers. Por outro lado, ao olhar um game

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pela lente do jogar, perdemos de vista que a liberdade do jogador apenas se efetiva em relação ao trabalho de estruturação do game. Assim, Frasca tenta conciliar essa ambiguidade, definindo: Jogar é para alguém [é sempre subjetivo] uma atividade de engajamento [com a possibilidade de diversos estímulos, como prazer, frustração e dor] na qual o jogador acredita que tem participação ativa, e a interpreta como algo que impele seu futuro imediato a uma gama de situações prováveis, estando disposto a aceitar qualquer uma delas [mesmo que nem todos as situações sejam previsíveis, ao se engajar no jogo, o jogador tolera os possíveis resultados de suas ações, no sentido que compreende que tais resultados poderiam ser outros se suas ações também fossem outras] (2007, p. 192, tradução nossa9).

Em conseguinte, também de acordo com Frasca, o game "é uma forma de jogar na qual os jogadores concordam com um sistema que marca status sociais para as suas performances quantificadas." (2007, p. 192, tradução nossa10). Partindo dessas definições, o autor propõe que os jogos exibem três aspectos que operam em conjunto para configurar suas produções de sentido. Tais aspectos, mesmos que indissociáveis, permitem um olhar categórico para analisar os games. Mesmo que o objeto em questão não seja diretamente um game, e sim um gameplay, entender esses aspectos permite um olhar sobre os mecanismos que originaram a narrativa do produto audiovisual, mecanismos esses que envolvem o ato de jogar de um jogador: as suas escolhas em função de um conjunto de códigos e regras estabelecidos e definidos. Primeiramente, Frasca (2007) introduz a aspecto do Mundo do Jogo. O Mundo do Jogo faz referência a todos os elementos passíveis de uma análise semiótica, ou seja, o "universo" de signos criado pelo jogo (que poderia, sem maiores diferenças, ser criado por um romance literário, ou um longa-metragem). Posteriormente, ele revela o aspecto das Mecânicas do Jogo. As Mecânicas do Jogo consistem nos sentidos que os jogadores produzem por meio do seu desempenho em relação às regras estabelecidas pelo jogo. Finalmente, considerando que, as Mecânicas do Jogo poderiam levar a uma visão determinista sobre a produção de sentidos em um game, sem considerar adequadamente a subjetividade do jogador no ato de jogar, Frasca propõem o aspecto da Playformance. A Playformance, um neologismo com play (jogar) e performance, engloba as habilidades físicas e mentais que o jogador dispõe em suas ações para efetivamente realizar o ato de jogar, e representam o seu engajamento nas Mecânicas do Jogo e no Mundo do Jogo.

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Play is to somebody an engaging activity in which the player believes to have active participation and interprets it as constraining her immediate future to a set of probable scenarios, all of which she is willing to tolerate. 10 is a form of play where players agree on a system of rules that assigns social status to their quantified performance.

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Ao elegermos um gameplay como objeto de estudo, pretendemos evidenciar o aspecto do Mundo do Jogo (projetado na narrativa do gameplay) como enfoque da análise. Porém, é imprescindível levar em consideração que as formas de construção de sentido de um game não podem ser igualadas a meios mais clássicos, visto que os sentidos do game se constroem justamente pelo ato de jogar, ou seja, também pelas regras que regulam o comportamento do jogador, e pela sua Playformance. Por isso, elementos da Mecânica do Jogo são consideradas para a análise quando influenciam as significações expressas pelo Mundo do Jogo, dada a integração e interdependência entre os três aspectos dos jogos. As diferenças entre games e narrativas são exploradas por Frasca (2003) na contraposição entre representação e simulação. Frasca explica que a representação é um dos modelos mais clássicos para entendermos e explicarmos nossa realidade (sendo que a narrativa é uma das mais recorrentes formas de estruturar tais representações), mas não é o único. Ele sugere que a simulação exista como um modelo alternativo para também explicar e fazer entender a realidade. As ciências usam dos modelos de simulação para prever o comportamento de sistemas complexos, mas como têm uma abordagem muito técnica e orientada para fins muito específicos, não produziram um estudo que possibilite a abordagem da simulação como um modelo alternativo à representação. Com isso em vista, Frasca (2007) propõe que haja um modelo de análise semiótica específica para as simulações: a simiótica. Assim, ele define: simular é modelar um sistema (fonte) por meio de um sistema diferente que mantém a alguém os meus comportamentos do sistema original." O termo chave aqui é "comportamento". Simulação não abrange simplesmente as geralmente audiovisuais - características do objeto mas também incluem um modelo de seus comportamentos. Esse modelo reage a certos estímulos (informações, botões, joysticks), de acordo com uma série de condições (2003, p. 223, Tradução nossa11).

A simulação, em contraste à representação, é um modelo que prevê um comportamento frente a uma complexa série de possibilidades capazes de modificar o próprio sistema interno da simulação. Dessa forma, possibilita a experiência, ou seja, garante que possibilidades nãosimultâneas sejam igualmente vivenciadas, sob as mesmas circunstâncias. Um modelo de simulação de um jogo confere uma dinâmica de produção de sentidos que envolve não apenas os sentidos vivenciados, mas os que poderiam ser vivenciados. Em outras palavras, enquanto um modelo de representação narrativo constrói seus sentidos nos

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to simulate is to model a (source) system through a different system which maintains (for somebody) some of the behaviors of the original system. " The key term here is "behavior." Simulation does not simply retain thegenerally audiovisual-characteristics of the object but it also includes a model of its behaviors. This model reacts to certain stimuli (input data, pushing buttons, joystick movements), according to a set of conditions.

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acontecimentos que apresenta, um modelo de simulação lúdico constrói seus sentidos na possibilidade de acontecimentos que revela de acordo com as ações de quem joga. Dessa forma, o modelo de simulação constrói seus sentidos não apenas em função dos acontecimentos que suas decisões implicam, mas dos acontecimentos que suas decisões inevitavelmente excluem. Por isso, ao analisar um produto narrativo de representação, como o gameplay, devemos considerar que ele foi originado por um sistema de simulação, ou seja, assim como os acontecimentos ali representados, as possibilidades de acontecimentos e desfechos que não foram contemplados em razão das escolhas do jogador também constroem sentidos. Frasca aponta: Para um observador externo, a sequência de signos produzida por ambos filme e simulação podem parecer exatamente a mesma. Isso é o que vários apoiadores do paradigma da narrativa falham em entender: as suas sequências semióticas podem ser idênticas, mas a simulação não pode ser entendida apenas pela sua aparência. (2003, p. 224, tradução nossa12).

Tais questões são exploradas por Espen Aarseth (1997), que introduz o conceito de cybertexto. O autor explica que o cybertexto consiste em uma organização textual que destaca o usuário (não apenas leitor) como um agente integrado ao texto, ou seja, que constrói sua performance no próprio objeto textual, e não apenas em sua mente. Assim, para construir sua sequência semiótica em um cybertexto, o usuário transcender a leitura por meio de um trabalho construtivo de escolhas e ações, que, em um texto de um livro, por exemplo, se limitaria à escolha de uma leitura de páginas ordenada ou arbitrária. Entretanto, Aarseth aponta que pode haver uma confusão de termos, sobre a questão da linearidade e não-linearidade. Todo usuário, em frente a qualquer tipo de texto, constrói sua leitura linearmente, inclusive no cybertexto. Porém, apenas no cybertexto há um substrato de leitura que é não-linear: a leitura linear é construída a partir de um trabalho de decisão em uma estrutura de sentidos não-linear. Assim: Em um cybertexto, porém, a distinção é crucial e bem diferente; quando você lê de um cybertexto, você é constantemente lembrado de estratégias inacessíveis e caminhos não tomados, vozes não ouvidas. Cada decisão fará algumas partes do texto mais, e outras menos, acessíveis, e você nunca pode nunca saber o resultado exato de suas escolhas; ou seja, exatamente o que perdeu [a não ser que jogue de novo, experimente]. Isso é muito diferente das ambiguidades de um texto linear. E inacessibilidade, deve ser apontado, não

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To an external observer, the sequence of signs produced by both the film and the simulation could look exactly the same. This is what many supporters of the narrative paradigm fail to understand: their semiotic sequences might be identical, but simulation cannot be understood just through its output.

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implica em ambiguidade mas, sim, na ausência de possibilidade, um impasse (1997, p. 3, tradução nossa13).

Dessa forma, o gameplay configura-se como uma estrutura de sentidos linear, mas implícita em um sistema de eventos não-lineares que foram mediados pelas ações e decisões de um jogador. James Newman (2011) defende que os gameplays são importantes objetos de estudo ao constituir narrativas subordinadas aos cybertextos não-lineares dos games. Como tais, gravações de partidas, produções e performances – [...] vídeos de gameplays das performances de jogadores (vídeos 'superplay'), ou coleções de textos produzidos por fãs de videogame que arquivam e exploram as potencialidades experimentais de títulos específicos (detonados) - são tratados não meramente como ferramentas efêmeras ou interpretativas para fazer mais sentido ou para contextualizar um game, mas são considerados valiosos materiais em seu próprio direito (2011, p. 110, tradução nossa14). Newman afirma que, mesmo intuindo os documentos textuais derivados dos games como materiais incapazes de contemplar todos os nuances e complexidades de um game em si, é possível que tais documentos sejam capazes de contar a história de forma igual ou mais completa do que o próprio game, consideradas as especificidades de cada tipo de documento. Assim, um gameplay audiovisual possibilita uma análise da narrativa muito mais clara e precisa, já que estruturalmente apresenta certas características fundamentais que o game em si não apresenta, como linearidade da narrativa. Além disso, um gameplay com característica de detonado, apresenta grande abrangência do universo do jogo. Os detonados são definidos por Newman: Detonados são documentos produzidos por jogadores que centram em títulos individuais de games e oferecem instruções para uma variedade de elementos do jogo. Os mais simples são gravações de potenciais gameplays em games específicos. Geralmente longos tomos que são continuamente atualizados mesmo depois de vários anos desde que os games a que se referem foram publicados, detonados expressam um desejo de continuar a explorar games. Em um nível, eles são documentos que traduzem as complexidades do modelo de simulação do game, mapeia seus espaços e explica seus quebra-cabeças. Mais intrigantemente, eles também são documentos nos quais novas oportunidades no jogar, novos desafios, e novas revelações sobre a operação do sistema de jogo são compartilhadas entre os jogadores. Nesse sentido, eles tornam-se não apenas instruções para completar os games, mas espaços

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In a cybertext, however, the distinction is crucial-and rather different; when you read from a cybertext, you are constantly reminded of inaccessible strategies and paths not taken, voices not heard. Each decision will make some parts of the text more, and others less, accessible, and you may never know the exact results of your choices; that is, exactly what you missed [a não ser que jogue de novo, experimente]. This is very different from the ambiguities of a linear text. And inaccessibility, it must be noted, does not imply ambiguity but, rather, anabsence of possibilityan aporia. 14 As such, records of play, production and performance – (...) videos of players’ gameplay performances (“superplay” videos), or collections of texts produced by videogame fans that archive and explore the experiential potentialities of specific titles (e.g. walkthroughs) – are treated not merely as ephemera or interpretative tools with which to make better sense of or to contextualise the game but are considered to be valuable materials in their own right.

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discursivos nos quais os jogos são refeitos assim que novas facetas e novas complexidades são reveladas (2011, p. 118, tradução nossa15).

Em suma, justifica-se a escolha de um gameplay como objeto desse trabalho pela sua capacidade de revelar o Mundo do Jogo do game de uma forma abrangente, em uma estrutura narrativa linear clara e passível de metodologias clássicas de análise da narrativa. Porém, devemos entender que o gameplay não se iguala totalmente a qualquer outro tipo de narrativa linear clássica, já que é construído a partir de uma estrutura não-linear de cybertexto. Assim, o gameplay também constrói seus sentidos nos acontecimentos que não estão explicitamente revelados em sua linha narrativa, mas estão implícitos nas possibilidades que o jogador se deparou ao jogar, ou seja, os elementos das Mecânicas do Jogo que influem na construção de sentidos do Mundo do Jogo.

4.3 METODOLOGIA Nessa pesquisa, pretendemos analisar como o game Majora’s Mask produz sentidos em torno do tema do tempo, e como esses sentidos dialogam com as temporalidades características à contemporaneidade. O objeto de análise, porém, não é o game em si, mas um gameplay produzido a partir do ato de jogar de um jogador. Mesmo tratando-se de uma narrativa originada de um game, o objeto final consiste em um produto audiovisual. Assim, inicialmente, a favor de introduzir a apresentação da metodologia, levantamos as reflexões de autores que estudam a análise audiovisual. Christian Metz (1974) denuncia uma cisão indevida dos signos linguísticos e nãolinguísticos, no qual um contraste manifesta-se entre esses dois tipos. Esse contraste pretende distanciar as imagens das palavras, como se elas significassem independente e isoladamente, sem pontos de contato ou relações de sentido. Nas análises audiovisuais, muitas vezes se privilegia os sentidos das imagens, em oposição aos sentidos das palavras, como se os dois fossem opostos e se anulassem. Metz propõe que a semiologia das palavras e das imagens trabalhem em conjunto, e muitas vezes, interseccionadas, já que muitas mensagens, como a 15

Walkthroughs are player-produced documents that centre on individual digital game titles and offer instruction on a variety of elements of gameplay. At their simplest, they are records of gameplay potential within specific digital games. Often lengthy tomes that are continually updated even many years after the games to which they refer have slipped onto publishers’ unsupported lists, walkthroughs speak of a desire to continue to explore digital games. On one level, they are documents that lay bare the complexities of the game’s simulation model, map its spaces, and explain its puzzles. More intriguingly, they are also documents in which new gameplay opportunities, new challenges, and new revelations about the operation of the game system are shared among players. In this way, they become not merely instructions for completing games but rather are discursive spaces in which games are remade as new facets and new complexities are revealed.

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audiovisual, são mistas e constroem seus sentidos em conjunto (como as estruturas linguísticas que são implícitas às composições imagéticas, e as figuras visuais que contribuem para a construção de sentido de mensagens verbais). Não é apenas em uma possível exterioridade que as estruturas linguísticas se manifestam em conjunto à visualidade (como em uma legenda, por exemplo). Toda expressão do visual se fundamenta por uma implícita expressão linguística que a narra, e que permite que digam sobre ela, que a interpretem e comuniquem. Em conseguinte, a análise audiovisual não pode pretender uma cisão entre o que se vê nas imagens e o que se lê nas palavras. As imagens, mesmo as que trabalham com a semelhança, estabelecem seus sentidos por códigos (o grau maior ou menor de semelhança constrói diferentes sentidos) e têm suas construções de sentido estudadas por meio da língua. Esse processo de interdependência de sentidos não se limita às imagens mas também se faz presente nos sons não-verbais. As músicas e ruídos também contribuem para a produção de sentidos do produto audiovisual, relacionando-se com as imagens e texto verbais. Assim, nesse trabalho, propomos uma análise que interprete as imagens, os sons não-verbais, e os textos linguísticos em conjunto, a fim de revelar as construções de sentido do gameplay em uma única expressão narrativa. Propomos a construção de tal expressão narrativa (por uma análise das imagens e textos em conjunto) para que as variadas construções de sentido no game sejam interpretadas verbalmente, e, portanto, em linearidade. Metz (1973) observa que a linearidade é uma característica inata à linguagem verbal, já que essa, indissociável da sua substancialidade fônica, obedece inevitavelmente a suas estruturas lineares. De acordo com Metz: a comutação e a identificação das unidades representam o caso em que o apelo ao manifestante (substância) se impõe - disso resulta, aos olhos da maioria dos linguistas, que a língua não é uma forma que se poderia realizar em qualquer substância, mas que a língua (ainda que seja por si mesma forma e não substância) seria uma fora profundamente diferente do que ela é, se ela se realizasse em uma outra substância que não a fônica (1973, pág. 36 e 37)

Assim, evidenciamos a importância da construção de uma expressão narrativa verbal capaz de traduzir as construções de sentido também não-verbais. A língua, diferente dos outros tipos de linguagem, comporta três níveis de articulação para se comunicar: a articulação do fonema (como a palavra se traduz em som), a articulação do monema (como a palavra se traduz graficamente), e a frase (como o enunciado se configura no todo de suas articulações). Dessa forma, a língua revela seu caráter abrangente na comunicação, como observa Metz: Na passagem já citada dos Prolegomena, o autor, tendo dado sua definição de língua como hierarquia de seções, procurava encontrar um critério suscetível de distinguir as línguas propriamente ditas das outras: toda sêmia nãolinguística é traduzível em linguagem verbal, dizia ele, enquanto que o inverso

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não é verdadeiro porque o próprio da linguagem verbal é tudo dizer (1973, pág. 43)

Além disso, a estrutura narrativa apresenta-se como uma forma de linguagem especialmente importante pois é capaz de configurar a experiência humana (as sequências de acontecimentos) em uma estrutura universal e inteligível. De acordo com Hayden White (1987), por mais exóticos e estranhos que sejam os assuntos tratados em um discurso, a estrutura narrativa permite que eles sejam traduzíveis a um mesmo modelo familiar se sequenciamento de eventos, um modelo que imita a própria experiência temporal humana. Dessa forma, as narrativas têm o poder de dar uma qualidade relacional subjetiva a uma sequência de eventos, mesmo que para isso, revistam-se de uma aparente objetividade (diferente dos discursos, que são expressos pela subjetividade de um "eu" que diz). White resume: É claro que esta distinção entre discurso e narrativa baseia-se exclusivamente em uma análise das características gramaticais de ambas modalidades do discurso em que a 'objetividade' de um e a 'subjetividade' de outro definem-se principalmente por uma 'ordem de critérios linguísticos'. A 'subjetividade' do discurso se dá pela presença, explícita ou implícita, de um 'eu' que pode se definir 'apenas como a pessoa que mantém o discurso'. Em contrapartida, a 'objetividade da narrativa define-se pela ausência de toda referência ao narrador'. No discurso narrador, então, podemos dizer, com Benveniste, que "na realidade não há um 'narrador'. Os acontecimentos registram-se cronologicamente à medida em que aparecem no horizonte do relato. Não se diz nada. Os acontecimentos parecem falar por si mesmos (1987, pág. 19, tradução nossa16).

Sendo assim, apresentamos um dispositivo metodológico que auxilie na análise dos componentes audiovisuais do gameplay, a fim de entender como constroem seus sentidos, e como podemos interpretá-los a favor da expressão narrativa. Em uma primeira etapa, propomos uma análise de conteúdo, a fim de tecer uma visão interpretativa dos sentidos que o game constrói em torno do tempo. Essa visão interpretativa objetiva entender como os elementos do game constroem diversas temporalidades no Mundo do Jogo. Para isso, selecionamos elementos do game que expressam essas temporalidades e entendemos como eles as expressam, amparados nas investigações e estudos levantados nos capítulos anteriores. Em seguida, levantamos um dispositivo metodológico de Análise do Discurso, para que esse texto narrativo seja visto como um material que faz significar de acordo com as ideologias

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Por supuesto, esta distinción entre discurso y narrativa se basa exclusivamente en un análisis de las características gramaticales de ambas modalidades de discurso en las que la «objetividad» de uno y la «subjetividad» del otro se definen principalmente por un «orden de criterios lingüístico». La «subjetividad» del discurso viene dada por la presencia, explícita o implícita, de un «yo» que puede definirse «sólo como la persona que mantiene el discurso». Por contrapartida, la «objetividad de la narrativa se define por la ausencia de toda referencia al narrador». En el discurso narrativizante, pues, podemos decir, con Benveniste, que «en realidad no hay ya un "narrador". Los acontecimientos se registran cronológicamente a medida que aparecen en el horizonte del relato. No habla nadie. Los acontecimientos parecen hablar por sí mismos».

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de certas formações discursivas, em um contexto sócio-histórico específico. Assim, expandimos uma interpretação fechada nos próprios sentidos, para uma interpretação que compreende os modos como esses sentidos são produzidos, e, assim, os modos como se relacionam com as temporalidades do contexto contemporâneo. Para isso, articulamos a interpretação dos elementos da etapa anterior de acordo com a construção narrativa em si: como elas se apresentam na lineariedade do gameplay. Isso nos permitirá relacionar os modos como o tempo é significado no game com a latência do tema nas próprias relações socioculturais da contemporaneidade. Manuela Penafria (2009) esclarece sinteticamente as principais questões na análise fílmica, além de revelar e explorar algumas possíveis lentes para enxergar esse tipo de documento. A autora propõe que, apesar das divergentes teorias em torno da questão, analisar um filme quase sempre envolve decompô-lo (a fim de recompô-lo, posteriormente). Ela explica que, inicialmente, deve-se decompor o filme, ou seja, por meio de um olhar apurado, entender como as partes de sentido se configuram na composição audiovisual; para que, em seguida, interprete-se as relações de sentido entre tais partes, que comunicam de acordo com suas configurações na composição inteira. Logo após definir as questões sobre a análise audiovisual, Penafria apresenta as principais metodologias para analisar esse tipo de manifestação cultural, de acordo com os objetivos envolvidos. Tendo em vista o nosso objetivo de pesquisa, optamos por adotar, em suas palavras, a análise de conteúdo. A análise de conteúdo considera o produto audiovisual como uma expressão cultural que constrói sentidos acerca de um tema específico. Assim: A aplicação deste tipo de análise implica, em primeiro lugar, identificar-se o tema do filme (o melhor modo para identificar o tema de um filme é completar a frase: Este filme é sobre . . .). Em seguida, faz-se um resumo da história e a decomposição do filme tendo em conta o que o filme diz a respeito do tema. Por exemplo, se o filme M, de Fritz Lang for visto nesta perspectiva faz-se a sua decomposição destacando ou as cenas em que o serial killer é capturado pelos ladrões, o que poderá remeter para uma discussão sobre a hierarquização da marginalidade e respectivas sanções; ou destacando a cena em que o serial killer se apresenta como uma vítima, problematizando a sua culpa e lançandoa para a sociedade em que vive (2009, pág. 6)

Propomos a divisão da análise em duas etapas principais. Primeiramente, tecemos uma análise de conteúdo, de acordo com os termos de Penafria. Sendo assim, levantamos os elementos do gameplay que, considerados no contexto do game, constroem determinados sentidos em torno do tema do tempo. Para que possamos interpretá-los de acordo com as maneiras como eles são comunicados nessa produção audiovisual, relacionamo-nos com as diversas questões estudadas na pesquisa bibliográfica dos capítulos anteriores.

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Em seguida, aliada a esta análise de conteúdo, propomos a seleção das principais narrativas propostas pelo gameplay, a fim de serem observadas à luz da Análise do Discurso. A Análise do Discurso se faz como um dispositivo metodológico importante nessa segunda etapa pois permite que esse produto cultural seja colocado além de seus próprios sentidos, e contextualizado em processos de construção de sentido que se relacionam fortemente com as próprias concepções ideológicas referentes ao tempo nas sociedades contemporâneas. Eni Orlandi (2007) constrói um dispositivo metodológico fundamentado na teoria da Análise do Discurso. Ela contextualiza a noção de discurso como a linguagem sendo articulada, ou significando, de acordo com as ideologias e projeções de sujeitos que são sociais, e que invariavelmente percebem a realidade em que vivem por meio dessas representações e interpretações. Além disso, aponta para como o olhar de um analista deve se apurar em relação ao seu objeto linguístico, dada a questão de pesquisa. A autora inicia suas reflexões colocando em cheque a ideia de que existe neutralidade e literalidade (termos completos e restritos em seu significado) na linguagem. Ela defende que todo processo de linguagem já se estabelece em processos de construção e interpretação simbólicas. Assim, introduz o discurso como a prática da linguagem fazendo sentido em um curso sócio-histórico de expressões ideológicas. Em suas palavras: A Análise do Discurso concebe a linguagem como mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social. Essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do homem e da realidade em que ele vive. O trabalho simbólico do discurso está na base da produção da existência humana (2007, pág. 15).

Portanto, a Análise do Discurso considera a exterioridade da linguagem, ou seja, as relações dos discursos com os sujeitos que os produzem, assim como os contextos em que são produzidos. Dessa forma, ela relativiza a linguagem de acordo com a colocação sócio-histórica do sujeito, que, por meio dela, expressa as ideologias que o interpelam e que se recriam (ou se repetem) na historicidade humana. Por isso, o objetivo final da Análise do Discurso não é extrair sentidos de um texto como se ele fosse transparente e completo em si mesmo, mas identificar como aquele texto produz sentido naquele lugar, naquelas palavras, naquele sujeito. Este tipo de análise, de acordo com Orlandi, pretende mostrar que qualquer relação entre linguagem, pensamento e mundo não é absoluta e fechada em si mesma, mas específica e relativa: Nos estudos discursivos, não se separam forma e conteúdo e procura-se compreender a língua não só como uma estrutura mas sobretudo como acontecimento. Reunindo estrutura e acontecimento a forma material é vista como o acontecimento do significante (língua) em um sujeito afetado pela história (2007, pág. 19).

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A linguagem não se configura como a mera transmissão de informação, mas como um complexo meio de efeito de sentido entre os homens que se expressam e interpretam (e nesses processos, significam a si próprios). Entretanto, é importante notar que, mesmo não sendo fechada em seus próprios sentidos, a linguagem não é totalmente livre, já que quem diz está sujeito a determinações históricas e condicionamentos linguísticos. Por meio de um dispositivo teórico, o analista é capaz de compreender não um suposto "sentido verdadeiro" do texto, mas esses gestos de interpretação que constituem em discurso. Enquanto entender um texto limitase a compreender a sintaxe de um enunciado, e interpretar refere-se a extrair um sentido a partir de um texto, compreender (que é o objetivo do analista) envolve "escutar" os possíveis sentidos em um texto, fundamentando um estudo das maneiras como esses sentidos são construídos. Orlandi também ressalta que a Análise do Discurso compõe um dispositivo teórico que está em função de um dispositivo analítico, ou seja, em função de uma questão de pesquisa que pode exigir a mobilização de variados conceitos, dada a especificidade do estudo. Por isso, a Análise do Discurso revela-se como uma ferramenta de análise abrangente no sentido que, ao investigar as formas como se constroem os sentidos em um texto, pode servir a qualquer domínio disciplinar que refira-se à colocação simbólica de um sujeito em uma realidade natural e social. As dinâmicas de construção de sentido em um texto estão relacionadas com o contexto de produção do discurso. Há, assim, o contexto imediato, que refere-se às circunstâncias da própria enunciação, e o contexto sócio-histórico, que refere-se às ideologias nele articuladas. No contexto sócio-histórico de produção do discurso, notamos o conceito da memória: A memória, por sua vez, tem suas características, quando pensada em relação ao discurso. E, nessa perspectiva, ela é tratada como interdiscurso. Este é definido como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente. Ou seja, é o que chamamos de memória discursiva: o saber discursivo que torna possível todo o dizer e que retorna sob a forma do pre-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada de palavra. O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada (2007, pág. 31).

Sendo assim, todo o dizer significa por meio da história e da língua, ou seja, por meio do que já foi dito. O sujeito é atravessado pelas construções de sentido do passado, que possibilitam que o seu discurso também construa seus sentidos. Portanto, a constituição de sentido de um discurso trabalha com a memória do já-dito resgatando ideologias já constituídas, e a formulação do sentido relaciona-se à atualidade que os já-ditos encarnam em um novo sujeito e contexto. Entretanto, esse sujeito não tem o controle sobre essa continuidade discursiva que possibilita, tendo a impressão que tem a propriedade das suas palavras, ou a ilusão de que

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elas, naturalmente, só podem significar daquela maneira. Isso ocorre, pois a memória discursiva que fundamenta a construção dos discursos deve ser esquecida para que, do "anonimato", faça sentido em novas palavras. Conclui-se, assim, que todo texto é interdiscursivo, pois, para as palavras fazerem sentido agora, já devem ter feito sentido em um discurso passado, mesmo que, nesse processo, tenha-se a ilusão de que elas são independentes e completas de sentido em si. Outro tipo de esquecimento também se faz presente no discurso, esse no aspecto da enunciação, e não da memória. Toda vez que escolhemos as palavras para fazerem sentido em uma determinada disposição, sempre está implícito que elas poderiam ter sido escolhidas em outra disposição. Mesmo não tendo consciência disso, a escolha da disposição de palavras e não de outras significa em nosso texto e discurso. Assim, esse esquecimento consiste na noção de que o que dizemos só pode ser dito daquela maneira, em uma relação quase natural entre mundo e palavras. Resumindo, esses dois esquecimentos, o esquecimento ideológico e o esquecimento enunciativo; referem-se, respectivamente, a impressão de que a construção de sentidos pode ser inédita e independente ao que já foi dito e significado no passado, e de que a escolha da sintaxe das palavras não afeta na construção de sentidos. Todo o discurso constitui-se pela interdiscursividade, pela memória do que já foi-dito e suas ideologias; assim como pelo nãodito, ou seja, aquilo que não está no texto, mas significa justamente por não ter sido escolhido a figurar nele. Assim, Orlandi completa: Quando nascemos os discursos já estão em processo e nós é que entramos nesse processo. Eles não se originam em nós. Isso não significa que não haja singularidade na maneira como a língua e a história nos afetam. Mas não somos o início delas. Elas se realizam em nós em sua materialidade. Essa é uma determinação necessária para que haja sentidos e sujeitos. Por isso é que dizemos que o esquecimento é estruturante. Ele é parte da constituição dos sujeitos e dos sentidos. As ilusões não são "defeitos", são uma necessidade para que a linguagem funcione nos sujeitos e na produção de sentidos. Os sujeitos "esquecem" que já foi dito - e este não é um esquecimento voluntário - para, ao se identificarem com o que dizem, se constituírem em sujeitos. É assim que suas palavras adquirem sentido, é assim que eles se significam retomando palavras já existentes como se elas se originassem neles e é assim que sentidos e sujeitos estão sempre em movimento, significando sempre de muitas e variadas maneiras. Sempre as mesmas mas, ao mesmo tempo, sempre outras (2007, pág. 35 e 36).

Esses esquecimentos permitem que o discurso seja diferente, mesmo que parta do igual. Assim, ele sempre se estabelece na tensão entre os processos parafraseáticos, que referem-se à manutenção daquilo que já foi dito por meio da memória discursiva, e os processos polissêmicos, que referem-se ao deslocamento e ruptura nas construções de sentido, possibilitada pela individualidade dos sujeitos e a atualidade da enunciação. Assim, os

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discursos, interligados, se movimentam e se ressignificam. A incompletude da linguagem permite esse movimento, e, na tensão entre paráfrase e polissemia, os indivíduos se tornam sujeitos que significam e se significam. Dessa forma, Orlandi diz sobre a produtividade e a criatividade. A produtividade é a reprodução do mesmo, sob a mesmas regras e relações de sentido. A criatividade é a intervenção do diferente, deslocando as regras e relações já estabelecidas. A autora conclui: Decorre daí a afirmação de que a paráfrase é a matriz do sentido, pois não há sentido sem repetição, sem sustentação no saber discursivo, e a polissemia é a fonte da linguagem uma vez que ela é a própria condição de existência dos discursos pois se os sentidos - e os sujeitos - não fossem múltiplos, não pudessem ser outros, não haveria a necessidade de dizer. A polissemia é justamente a simultaneidade de movimentos distintos de sentido no mesmo objeto simbólico (2007, pág. 38).

Nesse ponto, podemos estabelecer as condições de produção dos discursos, e como elas a afetam. A primeira dessas condições é a relação de sentidos, ou seja, a já explicada interdependência de um discurso com outros discursos passados e possíveis. A segunda delas é o mecanismo de antecipação, que envolve a capacidade do sujeito que diz em se colocar no papel daquele que o ouvirá, ou, entre outras palavras, regular a sua construção de sentidos de acordo com a interpretação que pretende que seu ouvinte construa. A terceira é a relação de sentidos, que figura o meio onde o sujeito diz como força constitutiva daquilo que ele diz (força estabelecida pelas relações de poder). A análise permite que entendamos como esses fatores influenciam os sujeitos em suas discursividades, e, tendo em mente como os sentidos estão sendo produzidos, compreender propriamente o que está sendo dito. Todo discurso está inserido em uma formação discursiva, que determina ideologicamente os sentidos que são construídos naquelas palavras (e que poderiam ser outros, dada uma outra formação discursiva de ideologias). As ideologias, por sua vez, naturalizam a relação entre o histórico e o simbólico, ou seja, criam a impressão da literalidade, de que as palavras só podem construir sentido daquela maneira. Assim, por meio da aparente literalidade das palavras em relação ao mundo (a impressão de que o sentido já está nas palavras), dissociadas de uma continuidade histórica de discursos; a ideologia permite que quem diz veja a si mesmo como dono independente do que diz, e, dessa forma, constitua a si mesmo como sujeito. Orlandi prossegue: Enquanto prática significante, a ideologia aparece como efeito da relação necessária do sujeito com a língua e com a história para que haja sentido. E como não há uma relação termo-a-termo entre linguagem/mundo/pensamento, essa relação torna-se possível porque a ideologia intervém com seu modo de funcionamento imaginário. São assim as imagens que permitem que as palavras "colem" com as coisas. Por outro lado, como dissemos, é também a

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ideologia que faz com que haja sujeitos. O efeito ideológico elementar é a constituição do sujeito (2007, pág. 48).

Antes de apresentar o dispositivo de Análise do Discurso, Orlandi ressalta que o objeto linguístico é formulado em função da interpretação do sujeito que fala, ou seja, ao produzir linguagem, o sujeito já tem uma interpretação intencionada para seu ouvinte; e, por isso, o analista deve colocar-se neutro no intermeio entre o sujeito e sua produção de sentidos (as formas como ele constrói sentido, por meio das ideologias e do contexto), e não na aparente literalidade do texto. Assim, é capaz de particularizar os resultados na análise em função de sua questão de pesquisa que levantou. O analista deve remeter o texto que compõe o objeto de pesquisa com o seu discurso, que é propriamente o material de análise. Ele revela a formação discursiva desse discurso, ou seja, as formulações ideológicas que possibilitam as construções de sentido ali, dado o contexto sócio-histórico em questão. Para iniciar essa decupação, deve-se encontrar evidências na materialidade do texto, no como se diz, no quem diz, nas circunstâncias em que se diz, ou, resumidamente, em como a sintaxe se configura. Sendo assim, procura-se contornar o esquecimento da enunciação, que dá a impressão de que aquilo só pode ser dito daquela maneira, por meio da comparação com outras formas discursivas possíveis. Como Orlandi coloca: Começamos por observar o modo de construção, a estruturação, o modo de circulação e os diferentes gestos de leitura que constituem os sentidos do texto submetido à análise. A partir desse momento estamos em condição de desenvolver a análise, a partir dos vestígios que aí vamos encontrando, podendo ir mais longe, na procura do que chamamos processo discursivo (2007, pág. 67).

Em suma, entendendo que para a análise, não interessa os sentidos do texto em si, mas como eles são construídos em função da colocação sócio-histórica e linguística do sujeito no mundo, o analista procura relações do discurso com as formações discursivas e suas ideologias, e assim entende como o sujeito se constitui simbolicamente no contexto sócio-histórico e linguístico no qual vive. Para isso, o analista deve primeiramente construir o objeto discursivo a partir do texto, tornando visíveis as paráfrases e polissemias, as relações entre o que é dito e o que não é dito, os mecanismos que contribuem para que as palavras signifiquem de uma determinada maneira. Seguidamente, transformar o objeto discursivo em processo discursivo, ou seja, relacionar esses processos de significação com as formações ideológicas que constituem esse modo de construir sentidos. Como já foi explicado, o processo de produção de sentidos sempre pode ser outro, e, por isso, o que não está no discurso mas poderia estar, também significa pela sua ausência

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(mesmo que se trate da mesma língua, podemos falar de formas diferentes, e falar diferente é significar diferente). Aqui se caracteriza a interdiscursividade de todo o discurso: tudo o que se diz se relaciona com o que já foi dito (igualmente ou de forma semelhante) e o que se poderia dizer de outra maneira. Assim, os deslizes, os deslocamentos de sentido de um discurso para outro podem indicar a ideologia e as forças sócio-históricas que regem as produções de sentido em questão. Esses deslizes podem se caracterizar como a relação entre o dito e o não-dito. No dizer, há sempre um não-dizer necessário, que ajuda a constitui-lo; e há não-ditos que configuram-se como memória discursiva, que também ajudam a constituí-lo. Dessa forma, Orlandi divide os não-ditos em silêncio fundador e silenciamento. O silêncio fundador é o responsável pelo sentido das palavras e representa o papel da memória discursiva na construção de sentidos em um discurso (por exemplo, em algum lugar já fazia sentido que a palavra dinossauro se referisse a répteis gigantescos, para que, hoje, entendamos essa palavra como uma referência aos tais répteis). O silenciamento pode ser silêncio constitutivo, se for justamente o não-dizer que é necessário ao dizer e contribui para o seu sentido (por exemplo, para dizer idoso, é preciso não dizer velho); ou pode ser o silêncio local, que é a censura que as relações de poder exigem no contexto onde o discurso é produzido (por exemplo, não devemos dizer gírias em um discurso acadêmico). Assim, após apresentar as noções teóricas do discurso, e propor um dispositivo de análise discursiva, Orlandi conclui: Se, ao dizer, nos significamos e significamos o próprio mundo, ao mesmo tempo, a realidade se constitui nos sentidos que, enquanto sujeitos, praticamos. É considerada dessa maneira e a linguagem é uma prática; não no sentido de efetuar atos mas porque pratica sentidos, intervém no real. Essa é a maneira mais forte de compreender a práxis simbólica. O sentido é história. O sujeito do discurso se faz (se significa) na e pela história. Assim, podemos compreender também que as palavras não estão ligadas às coisas diretamente, nem são o reflexo de uma evidência. É a ideologia que torna possível a relação palavra/coisa. Para isso têm-se as condições de base, que é a língua, e o processo, que é discursivo, onde a ideologia torna possível a relação entre o pensamento, a linguagem e o mundo. Ou, em outras palavras, reúne sujeito e sentido. Desse modo o sujeito se constitui e o mundo significa (2007, pág. 95 e 96).

Para contextualizar o game como um produto com impactos mercadológicos e culturais, iniciamos o capítulo com uma investigação acerca da sua recepção frente à crítica especializada e ao seu público geral. Em conseguinte, descrevemos brevemente a narrativa principal de Majora’s Mask e de seu antecessor Ocarina of Time, a fim de tornar clara questões de continuidade entre as narrativas dos jogos.

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5 ANÁLISE 5.1 THE LEGEND OF ZELDA: MAJORA’S MASK The Legend of Zelda: Majora’s Mask (aqui abreviado para Majora’s Mask) é o sexto videogame da série Zelda, lançado em 2000 pela empresa japonesa Nintendo, para o console Nintendo 64. Majora’s Mask é a sequência do game The Legend of Zelda: Ocarina do Tempo, lançado em 1998, para o mesmo console. Esses dois títulos marcaram uma jogabilidade inédita, já que, além de introduzir gráficos tridimensionais, construíram um universo único de arte e mecânicas de jogo, com tramas, personagens e itens característicos. O destaque de Majora’s Mask em relação ao antecessor Ocarina of Time foi a implementação de um sistema temporal de três dias que articula a jogabilidade do game. Além disso, houve a construção de uma narrativa mais sombria e dramática, e mais desvinculada dos acontecimentos e personagens clássicos da série Zelda. Assim, mesmo sendo menos extenso que seu antecessor, Majora’s Mask compartilhou seu sucesso de público, e, mais do que isso, criou um universo de jogo alternativo ao da série em geral, que, em sua peculiaridade, ganhou a atenção e o envolvimento dos seus jogadores.

Figura 1 – Caixa do game The Legend of Zelda: Majora’s Mask Fonte: http://zeldawiki.org/images/a/a8/Majora_box.jpg

O game vendeu 3,36 milhões de cópias no mundo, com 314 mil vendidas apenas na primeira semana no Japão (RPGGAMER, 2004). A maioria das críticas especializadas colocaram-se a favor do game, mesmo que o declínio de popularidade do console Nintendo 64 78

quando o game foi lançado possa ter influenciado negativamente as vendas. A IGN descreveu o game como: "O Império Contra-ataca do Nintendo 64. É da mesma franquia, mas é mais inteligente, sombrio e conta uma história muito melhor" e a GamePro colocou o game como "a prova viva de que o Nintendo 64 ainda tem sua magia" (ZELDAWIKI, 2000). A EGM classificou o game como o sétimo melhor game de todos os tempos, em uma lista de cem (GAMERS.COM, 2003). As críticas dos jogadores também tenderam a favor do game. A nota média do público chegou a 9,9 de 10 na IGN (2000), e 8,3 de 10 na Gamespot (2000), considerando aspectos como gráfico, enredo, desafio, música, jogabilidade e profundidade. Além disso, o game ganhou o prêmio de Game da Década (2000-2009) em um concurso no site GameFAQs.com (GAMEFAQS, 2010), e foi ranqueado pelo leitor da IGN como o 42ᵒ melhor game de todos os tempos (IGN, 2006). Entretanto, o game recebeu algumas críticas negativas quando comparado ao seu antecessor, que se referiam, na maioria das vezes, ao pequeno número de labirintos e as restrições do limite de tempo (THE NOISING MACHINE, 2010). Hoje em dia, Majora’s Mask ainda preserva alguns fãs que tomaram contato com o game quando crianças, na época em que foi lançado. Estes fãs, além de se interessar pelos elementos que se referem ao universo desse game, ressignificam esses elementos de diversas maneiras, como, por exemplo, produzindo artesanalmente os itens do game, recriando as cenas do game com gráficos mais aperfeiçoados, e reivindicando aos produtores do game que lancem uma nova versão para um novo console. Essa última ação tomou grande destaque nas redes sociais, desde o lançamento da versão de Ocarina of Time para o console portátil Nintendo 3DS (com gráficos aperfeiçoados, opções adicionais de jogabilidade, e novos recursos do console). Um grupo crescente de fãs criou a "Operação Queda da Lua", por onde manifestam a vontade de que a Nintendo também recrie o Majora’s Mask para o Nintendo 3DS. Eles produzem abaixo-assinados, compartilham notícias sobre o assunto, e divulgam a "Operação". Dessa forma, o game evidencia a sua ainda permanente relevância como manifestação cultural que constrói sentidos e mobiliza seus públicos.

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Figura 2 – Pôster da Operação Queda da Lua Fonte: http://4.bp.blogspot.com/sR1rjDAQLTM/UhdofMBgX0I/AAAAAAAADKU/8U7Jca580DY/s1600/moonfall_poster4.jpg

Em Majora’s Mask, o sistema de marcação do tempo (que cria horários específicos dentro do game), aliado ao sistema das máscaras de transformação (que transformam o protagonista Link em outras criaturas, com outras habilidades) tecem uma jogabilidade especial em relação aos outros títulos da série Zelda. O sistema de tempo instaura-se em um período de três dias do Mundo do Jogo, que é o prazo para a destruição do mundo pela queda da lua, e os eventos desse universo ocorrem de acordo com os horários dessa marcação. Após recuperar um instrumento mágico chamado a Ocarina do Tempo, Link torna-se capaz de voltar no tempo e reiniciar arbitrariamente o ciclo de três dias. Porém, ele e a fada que o acompanha são os únicos afetados pela viagem no tempo: os outros habitantes vivem normalmente, como se nada tivesse acontecido. Além disso, Link perde todo os seus Rupees (moeda corrente do universo), itens quantificáveis (flechas, por exemplo), itens relacionados aos labirintos (mapas e chaves, por exemplo) e a maioria das interações que realizou com os personagens do game. As máscaras são uns dos poucos itens que permanecem com o herói após cada volta no tempo. Existem vinte e quatro máscaras que Link pode conquistar, sendo três delas máscaras de transformação, ou seja, capazes de transformar Link em outros tipos de criaturas (são elas a 80

Máscara Deku, que o transforma em Deku Link, uma espécie de homem-planta; a Máscara Goron, que o transforma em Goron Link, uma espécie de homem-pedra; e a Máscara Zora, que o transforma em Zora Link, uma espécie de homem-peixe). Assim, Majora’s Mask torna-se um dos únicos games da franquia no qual o jogador pode controlar personagens diferentes do Link em sua forma humana. Cada transformação reserva habilidades necessárias para explorar o game (Deku Link é capaz de voar por alguns segundos, Goron Link tem muita força, Zora é capaz de respirar debaixo da água), e fraquezas específicas (Deku Link é vulnerável ao fogo, Goron Link é vulnerável à água, Zora Link é vulnerável ao gelo e fogo). As outras máscaras não transformam Link, mas garantem habilidades adicionais ao herói (por exemplo, o Gorro do Coelho deixa Link mais veloz, a Máscara da Pedra aumenta a furtividade de Link, a Máscara da Grande Fada atrai fadas para Link). Se Link trocar todas essas máscaras no final do game, ele consegue a Máscara Fierce Deity, que o transforma em uma forma adulta com habilidades devastadoras (permitida somente na batalha final). Outra característica do Majora’s Mask é a ênfase nas sidequests. Sidequests são objetivos secundários, paralelos à narrativa principal e que não precisam ser necessariamente cumpridos para se "vencer" o game. Muitas delas são presentes nesse game, permitindo que o jogador explore variadas narrativas menores, além da narrativa principal. Elas podem incluir desde a simplicidade em ouvir a história de um músico em uma trupe de artistas, até a complexidade em reunir um casal de noivos para que eles possam estar juntos momentos antes do fim do mundo. Em geral, são muito mais numerosas e complexas que em Ocarina of Time, e, se cumpridas, a maioria é recompensada com cenas extras nos créditos do game. Todas essas narrativas exploram a melancolia e obscuridade do fim iminente, por meio de uma gama de situações trágicas, melodias tristes e ambientes apocalípticos. O jogador se depara com a noção de que o mundo acabará em três dias, e pode conhecer como os vários habitantes de Termina reagem psicologicamente com os sentimentos de morte, perda e abandono, que são fomentados pelo desastre próximo, e revividos à toda viagem no tempo. Em suma, toda a arte e trilha sonora do game contribui para esse clima melancólico, a fim de reforçar o desespero frente ao fim, renovado a cada vez que Link recomeça o ciclo de três dias. Como os eventos que ocorrem em Majora’s Mask referem-se a uma continuação dos eventos que ocorrem em Ocarina of Time, destacamos os pontos principais da narrativa desse game antecessor. A história do Ocarina of Time desenrola-se no mundo de Hyrule, um plano de fantasia inspirado na Idade Média, com castelos e nobres, magias e monstros, raças mágicas e deuses. Link começa a sua aventura na Floresta Kokiri, uma grande área verde onde vive a

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raça Kokiri, os guardiões da floresta. Os Kokiri são muito parecidos com os Hylians (humanos de Hyrule), com a diferença de que permanecem crianças para sempre, e nunca podem sair da floresta. Cada Kokiri tem uma fada que o acompanha, exceto por Link, que, mesmo sendo supostamente da raça, nunca teve uma dessas companheiras. Um dia ele é chamado pela Árvore Deku, a guardiã espiritual do local, e pede sua ajuda para desfazer a maldição que um homem maligno invocou sobre ela. Link consegue desfazê-la, e em um último respiro, a Árvore conta a verdade sobre o menino. Na verdade, Link não é um Kokiri, e sim um Hylian que foi abandonado na floresta durante a última grande guerra, e é destinado a salvar a terra de Hyrule, que está prestes a enfrentar um grande mal. Assim, antes de morrer, a Árvore Deku finalmente dá uma fada ao menino herói, Navi, e os dois partem da floresta para encontrar Zelda, a princesa de Hyrule, e descobrir mais sobre o destino do menino. No caminho, ele é guiado pelo espírito benevolente Kaepora Gaebora, e consegue se infiltrar no castelo. Encontrando a jovem princesa Zelda, Link descobre sobre os seus sonhos sombrios envolvendo Ganondorf, um estranho homem do deserto que nos últimos tempos chegou no castelo para negociar alianças com o Rei de Hyrule. Os sonhos alertam que Ganondorf é um homem maligno que deseja invadir o Reino Sagrado e roubar a Triforce. A Triforce é um artefato sagrado muito poderoso forjado pelas próprias deusas criadoras de Hyrule. Antes do tempo começar, e antes da vida e dos espíritos existirem, o universo era apenas caos. Então, as três Deusas de Ouro desceram dos céus, e começaram a criação do mundo. Din, a deusa do poder criou o mundo material; Nayru, a deusa da sabedoria criou as leis que regeriam esse mundo; e Farore, a deusa da coragem criou todas as formas de vida que habitariam esse mundo. Antes de ascender aos céus, porém, as deusas deixaram nesse mundo um artefato sagrado que representavam parte de seu próprio poder: um conjunto de três triângulos de ouro, chamado Triforce. Quem obtivesse esse artefato seria capaz de realizar quaisquer ambições, e, por ser tão poderoso, foi selado em um ambiente chamado Reino Sagrado. De acordo com Zelda, Ganondorf está planejando usar o poder do artefato para mergulhar o mundo em trevas, e procura a Ocarina do Tempo e as três Pedras Espirituais, os únicos meios de invadir o Reino Sagrado. Zelda revela que tem a posse da Ocarina do Tempo, mas que para garantir que Ganondorf não consiga cumprir seus objetivos, pede para que Link encontrar as Pedras Espirituais antes de Ganondorf. Link explora o mundo e consegue, depois de algumas aventuras, resgatar as três pedras. Entretanto, quando retorna para o castelo, descobre que o lugar foi atacado por Ganondorf, em uma tentativa de roubar a Ocarina do Tempo de Zelda. A princesa e Impa, sua guardiã,

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encontram com Link no meio de uma tentativa de fugir do vilão, e, para que Ganondorf não consiga pôr as mãos na Ocarina, Zelda lança o item para Link. Assim, o jovem herói usa o instrumento e as Pedras para tentar chegar ao Reino Sagrado e salvar a Triforce. Então, Link encontra a Espada Mestre, e, ao empunhá-la, destranca a entrada para o Reino. Porém, ele é selado pela arma, e, Ganondorf, que suspeitava que Link tivesse a posse das chaves, invade o Reino Sagrado, agora desprotegido, e põe as mãos na Triforce. Ganondorf zomba de Link por praticamente dar a Triforce a ele, enquanto o jovem herói assiste impotente, selado pela Espada Mestre. A Triforce é um item que equilibra as três virtudes das Deusas de Ouro: poder, sabedoria e coragem. Se o coração de quem tocar a Triforce carregar as três virtudes equilibradas, esse terá a autoridade divina de governar o mundo. Porém, se essas virtudes não forem balanceadas, a Triforce será separada em três partes, e a pessoa ficará apenas com a parte da virtude que valoriza mais. Assim, para conseguir a Triforce completa, terá que roubar a posse das duas partes perdidas das outras duas pessoas que o destino escolheu para carregar tais virtudes. Ganondorf desejava poder acima de tudo, e por isso, ficou apenas com o triângulo do poder. Mesmo assim, teve poder para dominar o mundo como o Rei do Mal e imbuiu Hyrule em trevas e destruição, enquanto procurava os escolhidos que estariam com as outras partes da Triforce. Sete anos após a invasão de Ganondorf, Link desperta de seu selo, já adulto. Ele encontra Sheik, um misterioso homem mascarado, que conta sobre o reinado maligno de Ganondorf. Ele explica que Link foi selado pela Espada Mestre pois não tinha idade suficiente para empunhá-la, e, agora, após sete anos, era destinado a usá-la para salvar Hyrule. Com a Ocarina do Tempo, Link consegue viajar livremente entre dois tempos: o passado, antes do ataque de Ganondorf; e o presente, em que é adulto e o mundo está em trevas. Assim, ele se aventura pelos dois mundos para conseguir reunir os sete sábios de Hyrule, capazes de selar Ganondorf. Momentos antes da batalha final para enfraquecer o vilão e permitir que ele seja selado, Link descobre que ele é o escolhido para ter a parte da Triforce da coragem, e Sheik, que na verdade é a princesa Zelda disfarçada, é a escolhida para ter a parte da Triforce da Sabedoria. Juntos, eles enfrentam Ganondorf, conseguem derrotá-lo, e ele é selado no Reino Maligno, que era o Reino Sagrado antes da invasão corruptiva do vilão. Link fecha a Porta do Tempo, que permitia suas viagens ao passado, e volta para o tempo que era criança. Com as informações sobre Ganondorf, Link criança avisa Zelda sobre a ameaça e eles conseguem

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impedir o vilão, antes que ele ponha as mãos na Triforce. Assim, ele fica conhecido como o Herói do Tempo. Então, começam os eventos de Majora’s Mask. Link criança, com a experiência de Herói do Tempo que salvou a terra de Hyrule, perde-se de Navi, sua amiga fada que o acompanhou durante toda sua aventura, e procura por ela em uma floresta distante. Enquanto vaga pelo local com sua égua Epona, é atacado por Skull Kid e suas duas amigas fadas chamadas Talt e Tael. Skull Kid é uma criatura em forma de espantalho, que, diz a lenda, era um Kokiri que foi amaldiçoado ao se perder na Floresta dos Mistérios e nunca mais encontrar o caminho de volta. Ele aparece em alguns eventos do Ocarina of Time, mas em Majora’s Mask figura como antagonista principal, já que é possuído pela sede de poder de Majora, um antigo demônio aprisionado na Máscara Majora. Skull Kid, vestindo a Máscara Majora, e as duas fadas irmãos roubam a Ocarina do Tempo e a égua de Link. O herói tenta persegui-los para recuperar sua montaria e seu precioso item, mas acaba caindo em um buraco profundo. Lá, Skull Kid transforma-o em um Deku, uma espécie de homem-planta, e foge logo em seguida. Porém, durante a fuga, o vilão acaba deixando Talt para trás. A fada, que é a irmã mais velha de Tael decide se unir a Link para encontrar Skull Kid e se reunir com seu irmão mais novo. Ainda no buraco onde foi amaldiçoado, Link percorre por uma região cavernosa e, após passar por um estranho portal, encontra um homem que se intitula Vendedor de Máscaras Feliz. O Vendedor de Máscaras Feliz também é um personagem dos eventos de Ocarina of Time, e figurava como um simples vendedor na cidade do castelo, antes do ataque de Ganondorf. O excêntrico homem explica que Link atravessou a passagem dimensional entre Hyrule e o mundo Termina. Termina é um mundo paralelo de Hyrule, que será destruído em exato três dias, pela queda da lua. Esse iminente desastre é obra de Skull Kid, que, em uma de suas peripécias, roubou a Máscara Majora do Vendedor. O homem explica que a Máscara Majora abriga o espírito de um demônio antigo, e que quem a usa é possuído por uma ambição maligna incontrolável. Ele pede para o herói recuperar o artefato antes dos três dias antes da queda, e evitar um grande desastre. Assim, Link inicia sua aventura na Cidade do Relógio, a cidade central desse novo mundo. Como dito, Termina é uma dimensão paralela à Hyrule. Há alguns habitantes de Termina que são contrapartes dos habitantes de Hyrule, ou seja, são idênticos fisicamente, mas figuram como personagens diferentes (os únicos que são realmente de Hyrule são Link, Skull Kid e o Vendedor de Máscaras). Ela consiste em cinco grandes terras: a Cidade do Relógio (centro comercial, de entretenimento e de turismo, onde vivem os humanos), o Pântano do Sul

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(região pantanosa do sul, onde a tribo Deku pratica sua monarquia), a Montanha Cabeça de Neve (região montanhosa do norte, onde habita a tribo Goron, uma espécie de homens-pedra) e a Costa da Grande Baía (região costeira do oeste, onde vive a tribo Zora, uma espécie de homens-peixe, e as Piratas Gerudo, uma raça composta apenas por mulheres), e o Vale Ikana (região amaldiçoada do leste, outrora o lar de uma poderosa monarquia humana, no presente invadida por mortos-vivos). A Cidade do Relógio é o palco do Festival do Tempo, um ritual anual que celebra as entidades guardiãs de Termina, que vivem cada uma em uma direção cardeal (as Deusas de Ouro não são referenciadas pelos habitantes de Termina). Esse ano porém, o Festival é ameaçado pela queda da lua e fim do mundo de Termina. Link, ainda amaldiçoado como Deku, consegue encontrar Skull Kid em cima da Torre do Relógio (o monumento central da Cidade do Relógio), e consegue recuperar sua Ocarina antes do prazo de setenta e duas horas se esgotar. Ao recuperar a Ocarina, ele lembra como voltar no tempo, e retorna para o começo dos três dias, evitando por mais algum tempo o fim. Nesse momento, a fada Talt reconhece a vilania de Skull Kid, e se propõe a ajudar Link. O herói e a fada contam para o Vendedor de Máscaras sobre o poder de Skull Kid e da Ocarina, e ele desfaz a maldição de Deku sobre Link, transformando-a em uma máscara. Essa é a Máscara Deku, que pode ser vestida quando o herói precisa se transformar novamente em Deku, e retirada quando o herói precisa voltar à forma humana. Então, com o poder de voltar no tempo quando quiser, o herói e Talt partem para as regiões de Termina à procura das entidades guardiãs que talvez possam ajudar a evitar a queda da lua. Eles quebram a maldição que envenenava as águas do Pântano do Sul, e libertam o guardião do sul; quebram a maldição que trazia um frio intenso para a Montanha Cabeça de Neve, e libertam o guardião do norte; quebram a maldição que turvava as águas da Grande Baía, e libertam o guardião do oeste; e quebram a maldição que infestava o Vale Ikana de mortosvivos, e libertam o guardião do leste. Quando a lua está prestes a cair, Link invoca as quatro entidades guardiãs. Elas conseguem segurar a lua, impedindo o fim do mundo. Sendo assim, a Máscara Majora se desgarra do corpo de Skull Kid e revela-se como o grande vilão. Ela viaja para o interior da lua e usa de sua magia para forçar sua queda em Termina. Tael reencontra finalmente seu irmão, mas aceita continuar ajudando Link a salvar o mundo. Os dois seguem Majora para dentro da lua, e lá disputam a batalha final. O demônio de Majora é destruído, e, assim, Termina é abençoada com um novo dia. O Vendedor de Máscaras recupera sua máscara, e parte para mais

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uma de suas viagens. Skull Kid se arrepende de seus atos malignos, e torna-se novamente amigo das fadas. Link salva Termina e retorna para Hyrule, continuando sua busca por Navi. Aqui apresentamos brevemente a narrativa do game Majora’s Mask, mas, para um olhar mais aprofundado, sugerimos a leitura da sinopse integral do gameplay, presente dos Anexos (inclusas somente as partes do gameplay referentes à narrativa principal). Nos Anexos, também estão presente as sinopses das duas principais sidequests do game, que compõe o objeto a ser analisado. Elas foram escolhidas em função da sua relevância no game e da presença do tema da temporalidade em suas tramas. O gameplay escolhido pertence a um canal de vídeos do portal Youtube chamado Let's Play. Nesse canal, o usuário publica diversas sequências de vídeo nas quais joga diversos games. Os vídeos desse canal foram escolhidos pois, além de envolverem um grande número de visualizações, apresentam uma exploração abrangente dos games que o usuário se dispõe a jogar. O gameplay completo é composto por 55 vídeos sequenciados (referenciados como "episódios"),

e

está

disponível

no

endereço

eletrônico:

http://www.youtube.com/playlist?list=PLF41D831CF4427BE5&src_vid=bbxqVNqkT8c&fea ture=iv&annotation_id=annotation_320166.

5.2 ANÁLISE DE CONTEÚDO O tempo é um dos temas centrais na narrativa do game The Legend of Zelda: Majora’s Mask, e, marca uma abrangente nos aspectos do Mundo do Jogo. Ele manifesta-se simultaneamente em elementos de naturezas muito distintas, como, por exemplo, em um sistema inteiro de jogabilidade (a marcação das horas) e em um instrumento musical mágico que permite manipular o tempo (a Ocarina do Tempo). Portanto, para organizar o material de análise, propomos o agrupamento desses elementos de acordo com a qualidade de tempo que manifestam, assim como a forma como o manifestam no game. Assim, dividimos a presença do tema no game nos seguintes três grupos: O tempo da lua, O tempo da Torre do Relógio, e o tempo da Deusa do Tempo. Tal seleção e agrupamento toma como base as definições e problemáticas relacionadas ao caráter do tempo, que foram pesquisadas e articuladas nos capítulos anteriores. Dessa forma, os grupos não contemplam apenas os elementos aos quais seus títulos referem-se, mas a um rol de elementos que, em conjunto, constroem temporalidades de naturezas e funções sociais específicas. Assim, tais títulos não pretendem limitar os elementos, mas apenas indicar o caráter do tempo ao qual se referem. Ao fim, concluímos com uma abordagem que compara esses três 86

aspectos e explora a construção de sentidos que se dá na inter-relação entre suas presenças simultâneas no game.

5.2.1 O tempo da Torre do Relógio

Ao sair da Torre do Relógio pela primeira vez, o jogador, personificado por Link, depara-se com uma marcação de tempo que fica exibida no canto inferior da tela, e indica a proximidade do fim do mundo. Essa marcação tem uma função clara: regular quanto tempo Link ainda "tem" antes que a Lua caia e, depois de destruir a Torre do Relógio, envolva o mundo em chamas. A Torre do Relógio, por sua vez, tem um relógio que é coincidente a essa marcação, e, elevando-se no centro de Termina, impõe seu fluxo a todo aquele mundo.

5.2.1.1 A marcação da tela

O tempo é indicado para o jogador em uma marcação coincidente com o relógio da Torre do Relógio, exibida na parte inferior da tela. Ela permanece na maioria das áreas que Link explora, e é ausente em algumas poucas áreas (no caminho antes de entrar em Termina, no interior da Torre do Relógio, nas planícies do interior da lua), e em certos eventos que caracterizam o Mundo do Jogo e contribuem para a trama narrativa (nas cenas não-jogáveis do game, nas falas dos personagens, na tela de pause, após a derrota de Majora).

Figura 3 – A marcação na tela Fonte: http://smg.photobucket.com/user/CaptainGoodnight/media/v3b_3.gif.html

A marcação exibe um arco externo no qual uma figura (sol ou lua, indicando dia ou noite no game) e um número (indicando as horas no game) transitam. No centro do arco, uma pequena esfera luminosa (indicando os minutos no game) rota um losango que indica o dia presente (primeiro, segundo, terceiro).

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A função geral dessa marcação não difere da função primordial de todos os relógios: marcar o tempo. Porém, ela está relacionada com um segundo objetivo bem mais específico: marcar a proximidade do "fim do mundo" no game. Assim, em função desse objetivo, para esse relógio não interessa indicar informações como ano (referenciado a partir do evento cristão do nascimento de Cristo), mês (referenciado a partir das fases da lua), ou o dia em sua contagem mensal (apenas interessa indicar o dia em referência ao evento do "fim do mundo", que ocorrerá no fim da sequência do Primeiro Dia, Segundo Dia e Último Dia). Portanto, enquanto o objetivo dos relógios mais tradicionais é situar o ser humano em relação aos eventos naturais e regular seu comportamento social, o objetivo do relógio do game é um pouco menos abrangente: situar o jogador em relação ao evento específico do "fim do mundo" (também "fim de jogo"), e regular suas ações nesse período de três dias. Essa diferença de objetivos revela um pouco sobre a natureza instrumental do tempo. A marcação do game configura-se como um instrumento a favor do jogador, para que ele possa ter a percepção da proximidade da ameaça da queda da lua, e organizar suas ações no decorrer do game em função disso, ou não. Curiosamente, essa marcação é exibida ao lado do mapa, que orienta o jogador também em termos espaciais. Assim, podemos metaforizar que esta marcação é configurada como um mapa temporal, que não pretende ser um mapa-múndi temporal (como os relógios tradicionais), mas um mapa temporal de um tempo bem específico, em um plano de fantasia (assim como é o mapa espacial do game: de uma área bem específica, em um plano de fantasia). Porém, esta comparação com o espaço revela-se parcialmente válida quando resgatamos o entendimento de que o tempo, diferente do espaço, não pode ser colocado como uma grandeza objetiva e natural, já que se define como um instrumento social, uma ação de temporar (o tempo é a ação de marcar o tempo). Assim, o relógio do game e o exterior ao game não se tratam de relógios diferentes medindo o mesmo tempo, natural e absoluto. Há a construção de diferentes tempos "sociais" (todo o tempo têm uma intenção social a partir de eventos naturais) para solucionar uma questão de orientação do homem/jogador. Essa visão permite entender que o game não propõe apenas um relógio diferente para marcar o tempo de forma específica, mas, além disso, constrói um tempo diferente para situar o homem/jogador de uma maneira específica. A natureza desse tempo com sua forma específica de situar esse jogador revela sentidos que o game articula e comunica. Ao definir os parâmetros de seu novo tempo, o game ressignifica a própria colocação do homem no mundo, por meio da colocação do jogador no Mundo do Jogo.

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Uma dessas ressignificações revela-se pela onipresença da marcação do tempo no game (o fim do mundo impõe-se como terrivelmente "inevitável", e o jogador deve ter consciência da sua proximidade). Tal onipresença indica uma forma do homem se relacionar com o tempo como força coercitiva, e como recurso. A seguir, investigamos as construções de sentido em torno da Torre do Relógio como elemento que tangencia essas questões.

5.2.1.2 O exterior da Torre do Relógio

Figura 4 – A Torre do Relógio Fonte: http://zeldawiki.org/images/4/45/Clocktower.jpg

A Torre do Relógio é a gigantesca estrutura que marca o centro da Cidade do Relógio (e de todo o mundo de Termina) e tem um papel chave na narrativa do game. A Torre é composta por um relógio, e uma estrutura superior que projeta raios de luz às noites. Ela também apresenta em sua base uma porta que dá acesso ao seu interior. Quando Link toca a Canção do Tempo e retorna para o Amanhecer do Primeiro Dia, recomeça na frente da entrada 89

da Torre do Relógio, não importando onde esteja. O interior da Torre será abordado em outra seção, já que obedece a características temporais distintas. A Torre do Relógio é uma atração importante para o Festival do Tempo. Todo o ano, à meia noite da véspera do Festival, os mecanismos da Torre permitem que ela tombe parcialmente, e o seu relógio fica paralelo ao chão. Além disso, a Torre revela escadas que dão acesso aos cidadãos da Cidade do Relógio, e possibilitam que eles permaneçam em cima do relógio enquanto rezam e cantam para os seus deuses (esta é a única oportunidade que têm de acessar a parte superior do relógio). A Avó de Anju, uma personagem que vive na Cidade do Relógio, fala com Link sobre o assunto: A peça central do festival é a Torre do Relógio, e na véspera de todas as festividades, as portas para a sua cobertura são abertas... Do topo da cobertura da Torre do Relógio, uma cerimônia para invocar os deuses é realizada e uma música antiga é tocada.

Figura 5 – A Torre do Relógio na véspera do Festival do Tempo Fonte: http://zeldawiki.org/images/f/fc/ClockTowerOpen.jpg

Nessa ocasião de abertura da Torre do Relógio, na meia-noite do Dia Final, Link presencia importantes eventos da narrativa. O relógio da Torre é o palco de acontecimentos como a recuperação da Ocarina do Tempo (e a memória de Zelda ensinando a Canção do Tempo), o impedimento da queda da lua (quando Link toca o Juramento da Ordem), e o acesso à lua (quando a Máscara Majora mostra-se como o grande vilão e foge para o interior do astro). Além de sua função ritualística, a Torre do Relógio guarda a função geral de marcar o tempo para os cidadãos da Cidade do Relógio (diferente da marcação na tela, ela tem o objetivo primário de indicar o tempo para os cidadãos da Cidade do Relógio, e não para o jogador, ou seja, relaciona-se mais com o Mundo do Jogo do que com as Mecânicas do Jogo). O relógio que a compõe é capaz de indicar as horas e os minutos, mas não o dia. O aro externo indica os 90

minutos: a distância do marcador vermelho do indicador triangular na parte superior do relógio (onde ficaria o número 12 em um relógio tradicional) revela a contagem dos minutos. A roda interna indica as horas: a distância do marcador pintado em vermelho do indicador triangular na parte superior do relógio revela a contagem das horas. A figura oposta a esse marcador vermelho das horas, ainda na roda interna, revela se é dia ou noite (pode ser um sol ou uma lua). Por exemplo, na figura 4, seria aproximadamente nove horas e oito minutos da manhã. A Torre do Relógio exibe no game um papel de marco zero, tanto espacial (marca o centro do mundo de Termina, e é a porta te entrada para esse mundo), quanto temporal (assim que Link reinicia a contagem de tempo, retorna para a entrada da Torre, no Amanhecer do Primeiro Dia). Esse papel define a sua função de referencial de orientação no mundo de Termina, no passo que localiza e centra a civilização desse universo (ao emitir raios de luzes à noite, assemelha-se a um farol com objetivo de guiar espacialmente), e estabelece um fluxo temporal que organiza e regula os acontecimentos desse mundo (por meio de seu gigantesco relógio, e de seu papel cerimonial anual). Portanto, como marco orientador, a Torre do Relógio materializa-se como uma entidade que pretende organizar e regular os acontecimentos do mundo de Termina por meio de um tempo contínuo e coercitivo. Esse caráter é reforçado quando consideramos que o relógio da Torre estende sua presença na marcação temporal exibida constantemente na parte inferior da tela do jogador. O tempo da Torre do Relógio (quase que em todos os lugares do game) segue um fluxo muito bem marcado e rígido (desconsiderando as habilidades de Link e da Ocarina). Tal marcação e rigidez pretende criar certa inevitabilidade do "fim do mundo", e, mais do que isso, a noção de que o tempo é um recurso a ser muito bem "gerenciado e aproveitado". Assim, por meio desse tempo, o game atribui diversas responsabilidades para Link e o jogador, no sentido de que apresenta eventos que só podem ser desencadeados ou vivenciados não só no lugar certo (como na maioria dos games), mas no tempo certo. Essa dinâmica inclusive impõe eventos simultâneos, que exigem que o jogador gerencie a qual atender (e após, essa escolha, a responsabilidade de vencer esse evento da melhor forma, já que ele não poderá ser vivenciado em outro momento no período dos três dias). Portanto, o game cria um universo apocalíptico que potencializa o tempo como recurso, e impõe ao jogador a responsabilidade de regular suas ações para que possa geri-lo em seu favor. Esses caráteres temporais assemelham-se com o tempo da modernidade sólida, proposto por Bauman. Bauman (2009) argumenta que o tempo do período pré-moderno guardava uma relação muito rígida com o espaço e os processos de transformação: tempo era equivalente ao

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quanto de espaço alguém ou algum animal era capaz de percorrer, ou o montante que um artesão era capaz de produzir. Com o advento das Revoluções Industrial e do Consumo, houve a flexibilização dessa relação, e o tempo pode ser controlado por meio do advento do automóvel e da máquina de produção em alta-escala (que atingiam velocidades e capacidades de produção cada vez maiores e, essencialmente, sobre-humanas). Assim, o tempo tornou-se um medidor importante da eficiência dos processos humanos, e, em conseguinte, um recurso, ou seja, mesmo que "igual" para todos, poderia ser mais ou menos aproveitado, possibilitando destaque competitivo (produzia mais quem aproveitasse melhor o tempo, e conquistava mais territórios quem fosse mais veloz para alcançá-los primeiro). Entretanto, como recurso, era preciso gerilo constantemente, criando uma estrutura que fosse veloz, mas também perene e sustentada, capaz de não só de aproveitar o tempo esporadicamente, mas de "preenchê-lo" ao longo prazo (por meio de processos repetidos e constantes). Tempo tornou-se dinheiro e poder. Essa relação não se limitou aos processos de produção e conquista de territórios, mas fundamentou toda a estrutura de urbanização, nivelando a estrutura de deveres e direitos do cidadão (no trabalho, na cidadania, no cotidiano). Adequar-se da melhor forma ao molde inexorável do relógio era não apenas vantajoso, era necessário. "Perder tempo" era perder dinheiro, poder e oportunidades. As relações desse tempo fazem-se presentes no tempo da Torre do Relógio. Todos os eventos e acontecimentos do mundo de Termina são contemplados pela absoluta presença do tempo da Torre do Relógio, e todos os processos estão inscritos em seu fluxo marcado. Ele regula coercitiva e igualmente a vida de todos os habitantes de Termina, e Link deve preenchêlo da melhor forma possível, para que consiga ajudar o mundo e cumprir suas missões. "Perder tempo" é ter menos capacidade de se preparar contra o "fim do mundo", é ter menos "recursos" de ações. No decorrer do game, Link gradualmente adquire capacidade de gerir melhor seu tempo, como, por exemplo, quando têm acesso a sua égua Epona (que se desloca mais rápido), a certas máscaras de transformação (como a Máscara Goron, que também permite se deslocar mais rápido) ou até mesmo ao Caderno dos Bombers (que apresenta uma agenda na qual os compromissos de Link com os cidadãos da Cidade do Relógio são organizados). Dessa forma, o herói aos poucos aprende a viver no tempo da modernidade, inexorável mas menos ou mais aproveitável.

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Figura 6 – O Caderno dos Bombers Fonte: http://img2.wikia.nocookie.net/__cb20070619212547/zelda/images/4/45/Bombers'_Book_Inside.jpg

No decorrer de sua aventura, Link também potencializa a sua capacidade de deslocamento por meio da Canção do Voo, que permite um transporte instantâneo entre as estátuas de coruja espalhadas pelo mundo de Termina. No decorrer de sua aventura, Link se depara com estátuas no formato de coruja, em lugares distantes da Cidade do Relógio. Ao atingi-las com sua espada, elas "abrem" suas asas, e são ativadas, ou seja, Link é capaz de “teletransportar-se” entre elas (e, portanto, entre esses lugares distantes entre si) se tocar a Canção do Voo, que aprende com a entidade mágica Kaepora Gaebora. Tal recurso evidenciase como uma mecânica que permite ao jogador não "perder tempo" para acessar locais por quais já passou. Ela faz-se particularmente necessária nesse game, já que, nele, o tempo revela-se como um recurso importante. Assim, pode ser comparada com a dinâmica de conquista de territórios da modernidade sólida. Há um "sacrifício" de tempo para acessar novos territórios. Porém, para conquistá-los efetivamente, torna-se necessário, nas palavras de Bauman (2009) "capturar seus tempos", ou, em outras palavras, criar estruturas que marquem sua presença neles, que os qualifiquem como seus e provem a sua capacidade de acessá-los. Enquanto nas sociedades essas provas podem ser demarcações políticas e instauração de metrópoles e estruturas produtivas, no game revela-se como a ativação da estátua, que permite o acesso instantâneo, e, além disso, prova que Link já explorou e conquistou aquele local.

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Figura 7 – A estátua de coruja Fonte: http://zeldawiki.org/images/6/64/Owl_statue_activated.png

Entretanto, de alguma forma, essa força coercitiva da Torre do Relógio, potencializada pela iminência do "fim do mundo", é flexibilizada pela capacidade de Link de manipular esse tempo por meio da Ocarina do Tempo. Portanto, essa força só se faz plena no primeiro ciclo de três dias, enquanto Link, ainda transformado em Deku Link, é impelido contundentemente a aproveitar o seu tempo da melhor forma (durante o primeiro ciclo, Link deve ajudar a Grande Fada da Magia, os Bombers e o Vendedor Deku para conseguir acessar o relógio e recuperar a Ocarina do Tempo, ou assiste impotente à destruição do mundo pela queda da lua). A flexibilidade garantida pela Ocarina do Tempo é explorada a seguir, na seção sobre o tempo da Deusa do Tempo. Antes, porém, propomos um olhar sobre as músicas que preenchem a presença do jogador na Cidade do Relógio, e, mesmo paralelas à temporalidade da Torre do Relógio, complementam suas características com outros nuances.

5.2.1.3 As músicas da Cidade do Relógio

A trilha sonora do game apresenta certas músicas que são tocadas enquanto o jogador está nas áreas comuns da Cidade do Relógio. São quatro músicas diferentes, que tocam de acordo com o dia e horário no game. A música intitulada "Cidade do Relógio, Dia 1" toca no Primeiro Dia, a música "Cidade do Relógio, Dia 2" toca no Segundo Dia, a música "Cidade do Relógio, Dia 3" toca no dia final até a meia-noite, e a música "Horas Finais" toca no dia final, da meia-noite em diante. As três primeiras músicas obedecem a uma mesma melodia. Porém, de acordo com o número do dia que indicam, apresentam uma maior velocidade de compasso, transmitindo cada 94

vez mais a sensação de urgência. A música "Cidade do Relógio, Dia 1" cria uma atmosfera de novidade e tranquilidade, com tons agudos e sons de pássaros cantando; a música "Cidade do Relógio, Dia 2" cria uma atmosfera com um pouco mais de sobriedade e preocupação, com tons menos agudos, e sem efeitos sonoros; a música "Cidade do Relógio, Dia 3" cria uma atmosfera de maior obscuridade e inquietude, com tons graves e timbres mais carregados. Já a música "Horas Finais" quebra a crescente velocidade do compasso, e revela uma outra melodia, mais lenta e melancólica, recheada de timbres e tons soturnos. As três primeiras músicas têm o objetivo de caracterizar cada um dos dias com sua respectiva proximidade do "fim do mundo", por meio da sensação de urgência e obscuridade crescente que os tons mais graves e a compasso mais veloz são capazes de produzir. Essa qualificação de diferentes tempos em diferentes dias que tais músicas são capazes de produzir, de alguma forma, flexibiliza a uniformidade pretendida pelo tempo da Torre do Relógio. Portanto, o game, por meio da proximidade do "fim do mundo" que propõe, pretende, por meio das músicas, criar uma tensão coercitiva cada vez maior do tempo, que, apesar de uniforme (o tempo do Primeiro Dia é o mesmo do segundo, que é o mesmo do final), torna-se cada vez mais valioso, dada a sua crescente escassez (as músicas geram a tendência de se aproveitar mais o tempo no Dia Final do que nos primeiros). Nesse ponto, o game potencializa a necessidade de gerir o recurso do tempo, mesmo que, para isso, manipule o tempo de compasso das músicas, e aparentemente distorça a sua própria uniformidade. Porém, é importante notar que essa distorção é aparente, pois o game apenas cria um maior "preenchimento" do tempo. No dia final, com mais notas em menos tempo, o game cria a ilusão de que esse tempo está mais "preenchido", ou seja, é mais produtivo, mais frenético, e deve ser melhor aproveitado do que o tempo do Primeiro Dia, que contempla menos notas, e não exige tanto aproveitamento. Na música "Horas Finais", a quebra do compasso crescente pretende criar outro tipo de sensação. A música já não expressa inquietude e urgência em aproveitar o tempo, mas apenas projeta a calma e melancolia de uma possível "morte do tempo". Essa possibilidade comunica a Link que o "fim do mundo" está mais próximo do que nunca, e que é muito perigoso realizar mais ações que gastem mais tempo, e que não revertam diretamente essa situação (como tocar a Canção do Tempo, ou o Juramento da Ordem). Todas essas relações que essas músicas causam no Mundo do Jogo, na trajetória de Link, marcam os sentidos que o game pretende explorar e expressar em sua narrativa. A seguir, propomos um estudo acerca de outro tipo de temporalidade, representada pela figura da Deusa

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do Tempo, que, por meio da Ocarina do Tempo, permite que Link subverta a ordem do tempo da Torre do Relógio.

5.2.2 O Tempo da Deusa

Momentos antes da lua cair, ainda no primeiro ciclo de 72 horas, Link encontra com Skull Kid na parte de cima da Torre do Relógio. Com um ataque, ele consegue desestabilizar Skull Kid e recupera a Ocarina do Tempo. Logo, se lembra de Zelda ensinando a Canção do Tempo, a música em tributo à Deusa do Tempo, que permite que ele reinicie o ciclo de três dias, evitando temporariamente o fim do mundo. Com esse item, Link é capaz de tocar músicas mágicas que permitem manipular o tempo, e o ajudam a cumprir o seu objetivo primário de salvar os guardiões de Termina, e os objetivos secundários de ajudar os cidadãos da Cidade do Relógio.

5.2.2.1 A Ocarina do Tempo

A Ocarina do Tempo é um instrumento musical místico que tem um papel importante em Majora’s Mask (assim como em Ocarina of Time), pois permite que Link toque um leque de músicas com efeitos mágicos variados. Ela é uma ocarina transversa azul, com uma inscrição do símbolo da Família Real de Hyrule.

Figura 8 – A Ocarina do Tempo Fonte: http://zeldawiki.org/images/9/94/Ocarina_of_Time.png

A origem da Ocarina do tempo é desconhecida, mas ela é introduzida na franquia Zelda, no game Ocarina of Time, como um artefato místico passado pelas gerações da Família Real de Hyrule. Nesse game antecessor, ela tem o poder de abrir as portas para o Reino Sagrado, e, por isso, foi entregue a Link, permitindo que ele conjurasse uma série de canções mágicas. Uma

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dessas canções era a Canção do Tempo, que possibilitava a transição entre os tempos em que era criança e em que era adulto. Antes dos eventos em Majora’s Mask, Zelda criança dá a Ocarina do Tempo ao herói como um amuleto do tempo que passaram juntos. Ela também diz que se algo de ruim acontecer, ele deve tocar a Canção do Tempo, uma melodia que significa muito para ela. Logo depois, quando Link parte para busca de sua amiga fada, tem a Ocarina roubada por Skull Kid. Ele só consegue recuperar a Ocarina momentos antes do fim do mundo, lembrando da Canção do Tempo, e ganhando a habilidade de retornar para o começo dos três dias sempre que tocá-la. Porém, além da Canção do Tempo, diversas outras músicas tocadas na Ocarina ajudam na aventura de Link. São elas: Canção da Epona - chama Epona de qualquer lugar que esteja; Canção da Cura - cura almas atormentadas e as transforma em máscaras; Canção do Voo – “tele transporta” para um lugar onde haja uma estátua de coruja; Canção das Tempestades - invoca chuva instantaneamente; Sonata do Despertar - desperta aqueles que caíram em sono profundo; Canção de Ninar Goron - faz os seus ouvintes caírem no sono; Bossa Nova Onda - revigora vozes cantantes; Elegia do Vazio - permite que Link crie uma réplica com sua própria forma; Juramento à Ordem - invoca os Quatro Gigantes para a Cidade do Relógio momentos antes da queda da lua. Além dessas, algumas músicas permitem manipular o tempo, como variações da Canção do Tempo. São elas: Canção Invertida do Tempo - deixa a passagem de tempo mais lenta (as primeiras notas tocadas em ordem de trás para frente); Canção Dupla do Tempo - atrasa o tempo para o amanhecer ou anoitecer mais próximo (as primeiras notas tocadas em dobro). A magia do Ocarina do Tempo torna possível lidar com o mais cruel aspecto do tempo moderno e pós-moderno: a irreversibilidade. De acordo com as ciências naturais, o tempo segue um fluxo unidirecional apontado para o futuro: a chamada flecha do tempo. Assim, o universo se "desloca no tempo" para um estado cada vez mais entrópico, ou seja, mais desordenado e caótico. Esse crescimento exponencial do número de possibilidades, tornaria mínima a possibilidade única de que as coisas voltassem ao estado que eram (lembremos aqui da taça que se espatifa: os vários pedacinhos de vidro vão para direções variadas e desordenadas de acordo

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com a queda, e caso todas essas forças fossem exatamente opostas, o vidro voltaria ao seu estado; porém, essa coincidência de forças confluentes é tão improvável que pode ser considerada impossível). Essas reflexões atestam a irreversibilidade do tempo. Porém, aprofundamos essa visão quando abordamos as reflexões de Elias sobre o tempo. Assim, notamos que o aumento da desordem do universo depende da qualidade de ordem, atribuída pelo observador. Ou seja, a aparente desordem crescente reclama a presença de um observador que qualifica o estado inicial como "mais ordenado". Portanto, sendo o tempo uma síntese social na qual há a comparação entre diferentes sequências de simultaneidades, a irreversibilidade do tempo não está necessariamente na ordem e desordem, mas é construído simplesmente por meio da constante observação humana de estados de simultaneidades que não se repetem. Assim, a conclusão não é que o tempo é naturalmente irreversível. A conclusão é que o tempo que é construído a partir das sequências de eventos por nós experienciados atestam uma sensação de que os estados de simultaneidades não se repetem e nunca vão se repetir (aquela viagem de formatura nunca vai se repetir identicamente, os EUA nunca mais vão proclamar a independência da mesma maneira, os astros nunca mais estarão com os mesmos estados e distâncias entre si). Assim, se comparássemos duas simultaneidades idênticas, o tempo poderia estabelecer-se como reversível (o "depois" repetiu o "antes"), porém, como em nossas existências não experienciamos tais simultaneidades idênticas, assumimos que o tempo é naturalmente irreversível. Essa sensação de estados de simultaneidade que não se repetem é fundamentada principalmente em nossas mudanças biológicas. Quem é adulto nunca mais será criança, quem é velho nunca mais será jovem, quem morreu nunca mais vai estar vivo. Em conseguinte, a transitoriedade da vida e o processo de crescimento marcam de forma tão contundente uma possível irreversibilidade inata do tempo (esquecendo que o tempo não é objetivo, que é uma comparação entre informações ou expectativas de estados de simultaneidades), que ele é assumido socialmente como uma grandeza naturalmente irreversível, e mais do que isso, como a própria entidade "culpada" pela angústia da finitude e das mudanças desenfreadas. Enquanto, na experiência empírica, a irreversibilidade marca nossa transitoriedade, na narrativa fantástica, essa irreversibilidade pode ser revertida. Dessa maneira, reverter a suposta irreversibilidade natural do tempo estende-se para reverter a própria finitude, reverter as mudanças, reverter a vida. Quebra poeticamente a corrente coercitiva do tempo que nos impõe

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que o que viveu nunca mais será vivido, e as escolhas feitas nunca poderão ser refeitas sob as mesmas circunstâncias. A Ocarina do Tempo representa esse respiro de reversibilidade ao suposto tempo inexorável imposto pela Torre do Relógio. Ela permite que Link tente de novo, refaça suas decisões, tenha outras vivências, multiplique o recurso de tempo que antes era escasso. Por meio dela, esses três dias antes do fim do mundo se transformam em um ambiente de simultaneidades controlado, no qual o único agente de mudança é o próprio Link, ou seja, tornase um espaço de simulação onde Link pode experimentar fazer diferentes escolhas sob as mesmas circunstâncias, sob as mesmas simultaneidades. Tal reversibilidade afeta todo o mundo de Termina, mas não afeta o próprio Link e Talt, já que eles não perdem suas memórias e alguns itens que carregam. Com essa consciência, Link pode agir de diferentes maneiras a cada ciclo, e, assim, explorar as diversas possibilidades que aquele mundo permite, tanto espaciais (ele tem quanto tempo quiser para chegar em lugares distantes), quanto temporais (ele pode estar em dois lugares ao mesmo tempo, em diferentes ciclos). Enquanto Termina e todos os seus habitantes voltam para um estado inicial de simultaneidades, Link acumula em sua trajetória a experiência de diversos acontecimentos. Tais experiências são explicitadas pela permanência das máscaras. As máscaras de Link são como amuletos que provam que Link cumpriu determinado objetivo, ou ajudou determinado habitante de Termina. Por exemplo, ter a Máscara do Casal significa que Link já conseguiu reunir o casal Anju e Kafei em algum ciclo de três dias. A permanência dessas máscaras marcam a disruptiva trajetória pessoal de Link pelo mundo que repetiria os mesmos acontecimentos se não fosse por suas ações extratemporais, e marcam a noção de tempo como acúmulo pessoal de história, como identidade. Elias (1998) defende que a noção de irreversibilidade do tempo impeliu a visão da história como o acúmulo de experiências únicas (e permanentes na irreversibilidade do passado), e portanto, pessoalmente, como marca identitária. Assim, o tempo como trajetória de vida (não apenas de vida, já que esses sentidos podem se estender a objetos, como por exemplo, no valor que um relógio do meu avô ganha pelo fato de ter pertencido ao meu avô), trabalha como uma importante qualidade social. A idade, assim como as experiências individuais, produz sentidos essenciais nas dinâmicas sociais de nossos tempos. O game reforça esses sentidos quando se dispõe a marcar a trajetória de Link por meio das máscaras que provam os seus feitos. Elas tornam-se uma ferramenta para demarcar as atuais qualidades do herói, medindo quantos objetivos e quantas pessoas ele conseguiu ajudar no seu

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tempo pessoal. Assim, mesmo que a Ocarina do Tempo se proponha a tornar reversível o tempo infalível, o game não permite que essa reversibilidade destrua o importante papel que o tempo tem como história pessoal identitária. Em alguns pontos do game, há a referência do game a uma entidade chamada Deusa do Tempo. Aparentemente, ela é a responsável pela magia da Canção do Tempo, e permanece como uma figura importante para as crenças religiosas dos habitantes de Termina. A seguir, propomos um olhar sobre a Deusa do Tempo, no que se refere às qualidades de tempo que ela constrói em conjunto com a Ocarina.

5.2.2.2 A Deusa do Tempo Apesar da Deusa do Tempo não ser apresentada fisicamente, ela se faz presente como a entidade mágica responsável pelas habilidades de voltar no tempo de Link. Tocando a Canção do Tempo na Ocarina do Tempo, o herói inova o poder da Deusa e retorna para o Amanhecer do Primeiro Dia. Ela é mencionada pela primeira vez pela Princesa Zelda, momentos antes de Link partir à procura de sua companheira fada Navi. Esse encontro é recordado pelo menino quando ele recupera a Ocarina do Tempo de Skull Kid, momentos antes da queda da lua, na véspera do Festival do Tempo. Zelda garante que a Deusa do Tempo está o protegendo e que, se ele tocar a Canção do Tempo, ela o abençoará com seus poderes divinos assim que ele precisar. Enquanto em Hyrule, os cidadãos reverenciam as três Deusas de Ouro, em Termina, elas não são mencionadas. A Deusa do Tempo, porém, coloca-se como uma entidade importante para esse mundo paralelo, já que é mencionada por alguns de seus habitantes, que geralmente clamam pela sua ajuda quando precisam de seus poderes de proteção. São esses habitantes: Talt, a fada companheira de Link que implora por mais tempo para que consigam evitar o fim do mundo; um homem que pede pela proteção da Deusa enquanto procura abrigo para o iminente apocalipse; e a própria princesa Zelda, que apesar de não ser de Termina, cita a entidade como a responsável pela magia da Ocarina do Tempo. São essas citações da Deusa: "Alguém! Qualquer um!!! Deusa do Tempo, ajude-nos por favor! Nós precisamos de mais tempo!" (Talt), " Só um pouco mais de dois dias restantes... Oh, Deusa do Tempo, por favor me salve... (homem que procura abrigo), "A Deusa do Tempo está protegendo você. Se tocar a Canção do Tempo, ele virá em seu auxílio..." (princesa Zelda).

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Figura 9 – Talt pede ajuda Fonte: http://zeldawiki.org/images/b/b7/Goddess_of_Time.png

Ao longo das diversas eras da humanidade, o tempo foi um domínio tão importante na realidade do homem, que muitas vezes ganhava seus próprios deuses, ou, em crenças monoteístas, figurava como uma manifestação latente dos poderes de mudança do divino. Assim, era possível personificar uma noção que é abstrata e relacional, já que o tempo é justamente a síntese derivada de uma comparação entre sequências simultâneas de eventos. Entretanto, como síntese, o tempo é especialmente atribuível a uma figura divina pois envolve a impressão de que é uma força externa ao homem, universal e natural (diferente de outros tipos de síntese, como por exemplo, a dos números, que parecem "servir" inteiramente ao homem). O próprio tempo como é concebido hoje se reveste de um caráter místico, no qual se apresenta como uma força invisível, mas onipresente e absoluto em seu manto de mudanças irreversíveis. O tempo tornou-se um aspecto importante para a sobrevivência humana quando a agricultura tomou um papel importante na vida social. As técnicas exigidas para o cultivo de um bom plantio estavam muitas vezes relacionadas com noções como as de estações do ano, estações lunares, e dia/noite. Nesse momento da humanidade, o tempo efetivamente tornou-se uma ferramenta social com a função de orientar o homem e a sociedade em relação à natureza (por exemplo, plantando, colhendo e estocando nas estações certas), assim como regular as suas próprias ações. Não obstante, como essa ferramenta social expressava sua materialidade no domínio natural, alheio e incontrolável ao homem (as posições dos astros, a temperatura das estações, a mudança no meio-ambiente), e ainda não se sustentava em si mesmo, na sua própria empiria, foi relacionada à crença espiritual. Assim, nas primeiras sociedades, mesmo que não houvesse divindades diretamente relacionadas ao tempo, os eventos naturais que orientavam as ações do homem eram atribuídos 101

a divindades, pois, assim como uma tempestade que destruía um vilarejo ou a presença de um animal que servia de alimento, essas "ações da natureza", apesar de externas, influenciavam diretamente a vida social dos homens. O tempo, ou melhor, os eventos naturais que orientavam o homem, não eram um domínio próprio (como seria a chuva, o sol), mas apenas um leque de manifestações atribuídas a diferentes deuses, manifestações que eram regulares mas não tinham sua crença sustentada nessa regularidade (se um eclipse ocultasse a lua, não era certo para os homens que ela retornasse aos céus). Dessa forma, o tempo ainda não era tido como uma síntese mais "independente" (ressaltamos aqui que os nossos relógios, por mais complexos que sejam, ainda dependem da regularidade de eventos naturais, e portanto, nunca são independentes), pois era sustentado diretamente pela sua materialidade natural, e, por isso, não cabia um relógio ou um calendário, mas alguém que olhasse para os céus e soubesse o que os deuses queriam dizer. O papel dos sacerdotes era traduzir esses eventos que eram capazes de orientar as ações do homem, mas que ainda não eram tidos como uma síntese estruturada. Dessa forma, o tempo ativo, regulado, da agricultura, tornou-se um meio para os sacerdotes expressarem seu poder social. Dependia deles identificar as manifestações dos deuses, e assim garantir bons cultivos e a sobrevivência das comunidades. Em contrapartida, também dependia deles identificar desestabilidades nos domínios divinos, quando, por exemplo, ocorria um inverno mais longo ou um eclipse solar. No game, a existência da Deusa e como ela é referenciada indicam muito sobre esse caráter de tempo. A Deusa do Tempo não mostra-se como a entidade que regula coercitivamente as ações dos homens (como a Torre do Relógio), mas como um ser benevolente que protege os homens da iminência dos eventos desastrosos (como o fim do mundo). Assim, mesmo personificando o próprio tempo, a Deusa não se relaciona com o caráter de um tempo contínuo e "independente" que se impõe, mas com um tempo mágico das sociedades simples, nas quais os eventos naturais periódicos eram manifestações divinas para guiá-los em sua sobrevivência. Assim, da mesma forma que essas sociedades podiam temer que os deuses não se manifestassem e, portanto, garantissem uma boa colheita, em Termina, os cidadãos oram para que sua Deusa se manifeste e evite a sua desgraça. Assim como os deuses protegiam as comunidades indicando quando se deve plantar, colher, ou estocar; a Deusa do Tempo protege Termina indicando formas de evitar o desastre anunciado pela Torre do Relógio e personificado pela lua cadente. O manifestante mais poderoso da Deusa do Tempo é o próprio Link, capaz de invocar seus poderes por meio da Ocarina do Tempo. Ele (e Talt) são os únicos conscientes do poder

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da Deusa, e, assim, são capazes de canalizar seus poderes a fim de usá-los para evitar o apocalipse. O herói assemelha-se com a figura do sacerdote, que, representando os desígnios dos deuses, é capaz de usá-los a favor dos homens. Em conseguinte, o poder que o herói tem de manipular o tempo pode ser comparado com o poder social dos sacerdotes, que, detendo a capacidade de traduzir as manifestações divinas e como elas influenciam na comunidade, se revestem de grande importância como figuras sociais de orientação e sobrevivência. A Deusa e o seu tempo também se manifestam em outro tipo de elemento no game. Esse se coloca como um festival que é comemorado anualmente em sua reverência, o Festival do Tempo. O Festival do Tempo revela certas características temporais relacionadas aos rituais em geral, que são complementares ao tempo da reversibilidade e da vontade divina, apresentados até aqui.

5.2.2.3 O Festival do Tempo

O Festival do tempo é um evento anual que ocorre na Cidade do Relógio. Pessoas de toda Termina vão à cidade para pedir uma boa colheita durante o ano, e é feito para celebrar a harmonia entre "natureza e tempo", representando o alinhamento entre o sol e a lua. No game, o evento ocorre no quarto dia após a chegada de Link, portanto, só pode ser presenciado se o fim do mundo for evitado.

Figura 10 – O Festival do Tempo Fonte: http://zeldawiki.org/images/2/2c/Carnival_of_Time_Story.png

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No passado do Mundo do Jogo, a tradição era vestir máscaras que lembrassem a imagem dos quatro deuses guardiões do mundo de Termina no Festival, mas depois de anos tornou-se comum que cada um usasse uma máscara feita por si próprio. A atração principal do evento é o acesso ao topo da Torre do Relógio, que só abre nessa época do ano. Os cidadãos de Termina esperam ansiosamente pela meia-noite da véspera do Festival, quando o relógio da Torre tomba e fica horizontal ao chão, permitindo que eles subam no objeto e façam suas orações por boas colheitas e canções cerimoniais aos deuses. De acordo com a Avó de Anju, uma das cidadãs da Cidade do Relógio: Prestando homenagem ao modo como a natureza e o tempo estão incansavelmente no caminho do progresso... O Festival do Tempo é quando as pessoas dos quatro mundos celebram a harmonia e pedem fertilidade para o ano (Tradução nossa17).

Além dessa importância cerimonial, o Festival também resguarda grande importância econômica e cultural, já que mobiliza muita atividade turística na Cidade do Relógio. Durante a presença de Link em Termina, a banda Indigo-gos é convidada para tocar no evento, as estalagens estão todas lotadas com reservas antecipadas, e está sendo construída um palanque em frente a Torre do Relógio para apreciar os fogos de artifício. O Festival do Tempo configura-se como uma forma de prestar tributo ao tempo como divindade, que garante que os homens se adequem aos processos naturais, e tenham, por exemplo, boas colheitas. Dessa forma, ele tem a função de reverenciar essa orientação, além de desejar que a prosperidade se mantenha pelo futuro. O Festival efetivamente marca o tempo da Deusa, por meio de sua presença ritualística. As reflexões sobre a temporalidade dos rituais tornam-se importante para entender como o Festival do Tempo constrói seus sentidos acerca do tempo. De acordo com as reflexões de Rappaport (1992), os rituais têm a função de normatizar o conceito do tempo para um grupo de indivíduos, e, assim, servir como uma ferramenta que os orienta em sua temporalidade. Em sociedades em que o tempo é tido como um fluxo contínuo universal, o ritual tem a função de marcar a ciclicidade em tal fluxo. Em outras sociedades em que o tempo não é tido como esse fluxo, o ritual figura como a principal expressão temporal para organizar as ações humanas frente a periodicidade dos eventos naturais. O ritual marca acontecimentos que aparentemente se repetem em sua ciclicidade e, assim, invoca o passado para o presente, ao reencarnar eventos periodicamente.

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Paying homage to the way that both nature and time are tirelessly in the process of progressing... The Carnival of Time is when the peoples of the four worlds celebrate that harmony and request fruitfulness for the year.

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Em sociedades simples, é grande a importância do ritual, já que é ausente um tempo de síntese elevada (ou seja, mais "independente" dos eventos naturais) como nas sociedades modernas. Assim, os eventos ritualísticos são necessários para marcar diretamente os eventos naturais que regulam as ações dos homens (por exemplo, hoje em dia, podemos contar apenas com o calendário para garantir que o ano acabou, enquanto em sociedades passadas, a única forma de garantir o fim de um ciclo anual era por meio de um ritual específico em reverência à natureza/deuses). Entretanto, em sociedades com um tempo de síntese elevada, a presença dos rituais ainda é importante, pois, ao marcar ciclicidades e invocar eventos passados ao presente, é capaz de flexibilizar a suposta irreversibilidade do tempo. Em Majora’s Mask, o Festival do Tempo, ao apresentar-se como o momento anual de reverência aos deuses e pedidos de boa colheita, e como o momento em que o tempo e a natureza são celebrados; revela sua função ritualística de marcar a ciclicidade do tempo e orientar as ações dos cidadãos perante a periodicidade dos eventos naturais. Ele pretende criar momentos demarcatórios, de repetição, de reverência à dádiva dos deuses que é orientar os homens na natureza por meio do tempo. Como em uma sociedade simples, ele revela-se essencial para invocar a presença dos deuses como os guardiões dos eventos naturais periódicos que possibilitam a sua orientação no mundo. Não obstante, como em uma sociedade onde o tempo é tido como um fluxo irreversível, o Festival do Tempo flexibiliza simbolicamente a sua irreversibilidade. Mais do que isso, empresta um sentido, um "respiro benevolente" à inexorável marcação da Torre do Relógio, que se apresenta coercitiva e reguladora. Assim, complementa o caráter de tempo da Deusa do Tempo e da Ocarina do Tempo. A frequência, portanto, é uma característica temporal essencial nos rituais. Entretanto, além dela, os rituais apresentam dois aspectos temporais que os envolvem: a duração e a simultaneidade. A duração refere-se ao quanto o ritual toma de tempo. Esse aspecto não é destacado no game, já que o Festival do Tempo ocorre efetivamente após o período dos três dias, ou seja, quando o jogador não participa mais ativamente no game. Porém, o aspecto da simultaneidade, que se insere na duração, faz-se presente no game. A simultaneidade refere-se à confluência de elementos ritualísticos e ao ritmo constante de ações na duração do ritual. Ela engloba o conjunto ordenado de objetos, pessoas e ações que significam em conjunto, e, em sua simultaneidade, comunicam uma mensagem. O ritmo referese a união dos participantes do ritual por um manto temporal ordenador, uma sucessão repetitiva compartilhada por todos os integrantes, e que os une sob uma mesma pulsação. Esse ritmo é

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geralmente mais veloz que os ritmos dos eventos sociais, e se aproxima aos ritmos biológicos, como o dos batimentos cardíacos. Para que a simultaneidade instaure essa coesão entre os participantes do ritual, o ritmo e os objetos devem ser uníssonos e harmonizar todas as ações, estados e funções sob um único sistema temporal de unificação que empreste a sensação de que todas as partes integram um só organismo, de diferentes hierarquias, mas coeso. No Festival do Tempo, essa função unificadora do ritual pode ser evidenciada pela forte presença das máscaras. As máscaras têm o poder não só de prestar tributo aos deuses (máscaras semelhantes aos deuses guardiões), mas de efetivamente unir os cidadãos de Termina em uma mesma sintonia ritualística, sobrepondose a estados individuais que não condigam com o estado geral do ritual. Historicamente, as máscaras resguardam grande potencial ritualístico, pela sua capacidade de esconder as expressões faciais e, ao mesmo tempo, canalizar e potencializar as encarnações de entidades e estados transcendentes. Também entende-se o ritual como um meio pelo qual se cria a ilusão da eternidade em seus participantes. A simultaneidade e o ritmo garantem uma ordem repetitiva e imutável que gera uma sensação de atemporalidade e eternidade (se não há duas sequências de eventos diferentes a se comparar, não há tempo). Assim, a reafirmação constante dessas sequências monótonas do ritmo destitui simbolicamente as noções de passado, futuro e fim. Essa atemporalidade vislumbrada pelo ritual é explorada em certos elementos do game. A seguir, propomos reflexões sobre um terceiro tipo de temporalidade, que não é propriamente tempo pois constrói seus sentidos em torno da atemporalidade, ou seja, da ausência de tempo, de sua destruição.

5.2.3 O tempo da lua A jogabilidade de Majora’s Mask é marcada pela constante presença de um fluxo temporal, que indica quanto tempo o jogador “tem” até a destruição do mundo. Existem situações porém, em que esse tempo não "passa", e o marcador do relógio não é mostrado. Isso acontece no início do game, antes de Link chegar ao mundo de Termina; enquanto ele está no interior da Torre do Relógio; no fim do game, quando o herói viaja até o interior da lua; no "menu de pause"; e nas cutscenes (cenas em que o jogador não tem controle) e textos em geral. Essas situações em que o tempo não é marcado também expressam uma temporalidade específica, nesse caso, significada pela sua ausência, pela atemporalidade.

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5.2.3.1 O interior da Torre do Relógio

Link chega ao mundo de Termina através de um portal dimensional. Isso ocorre depois da perseguição de Skull Kid por um buraco profundo em uma floresta de Hyrule. Enquanto percorre esse caminho floresta-buraco-portal, o tempo não é marcado (o sistema temporal de jogabilidade, e tampouco a iminência do fim do mundo são introduzidos à narrativa). Quando atravessa o portal, encontra-se no interior da Torre do Relógio, onde o tempo ainda não é marcado. O tempo apenas inicia sua contagem quando Link sai da Torre do Relógio, e efetivamente chega na Cidade do Relógio (após ser introduzido ao contexto apocalíptico pelo Vendedor de Máscaras Feliz). Contudo, a área do interior da Torre do Relógio é especial, pois, diferente das áreas floresta-buraco-portal, é um lugar em que o tempo não "passa", e ainda assim é acessível a qualquer momento. O interior da Torre é acessado, no início do game, pelo portal dimensional (passagem que é lacrada por uma porta de metal que se fecha logo após a chegada de Link); e, durante o game, por uma porta dupla no sul da Cidade do Relógio. Esse é um lugar de grande importância no game, já que é onde está a passagem entre Termina-Hyrule (mesmo que inacessível durante o game), além de ser um ambiente que não está inscrito na marcação dos três dias e pode ser acessado em qualquer momento do game. Esse local consiste em dois andares conectados por uma longa rampa, e o andar inferior comporta um moinho impulsionado por um pequeno riacho. Esse mecanismo possibilita o funcionamento da Torre do Relógio, provendo energia para o relógio e para as luzes que se acendem à noite.

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Figura 11 – O interior da Torre do Relógio Fonte: http://zeldawiki.org/images/0/08/InnerClockTower.jpg

Como explicado, o interior da Torre do Relógio é o primeiro acesso de Link a Termina, e, ali, ele encontra o Vendedor de Máscaras Feliz pela primeira vez. Nesse lugar, o herói é encarregado de resgatar a Máscara Majora e impedir a destruição do mundo. O Vendedor permanece nesse local durante toda a jornada de Link, esperando pelo cumprimento da promessa do jovem herói. Curiosamente, a música que é tocada no interior da Torre do Relógio é uma versão da Canção da Cura, a melodia mágica que permite que almas atormentadas encontrem a paz e redenção. Essa atemporalidade expressa pelo interior da Torre do Relógio pode ser entendida no contraste com a temporalidade do mundo exterior à Torre. Esse local onde o tempo não "corre" ironicamente está no interior do mais forte representante de um tempo coercitivo e regulador em Termina. A Torre do Relógio representa o "marco zero" espacial e temporal, e, como um relógio e como um farol, guia e organiza as ações dos habitantes de Termina. Dessa forma, seu interior trabalha como uma dimensão "antes" do "marco zero", como um santuário alheio (anterior) às questões de coerção e de tempo como recurso da Torre externa. Esse é o cenário no qual os problemas do mundo de Termina causados pela iminente queda da lua, assim como a temporalidade exigida por essa ameaça ainda não se fazem presentes e necessários. Aqui, o herói ainda é introduzido a essas problemáticas, enquanto o Vendedor de Máscaras explica sobre o sombrio destino dessa terra. A atemporalidade do que ainda é anterior e alheio à uma temporalidade estrita e um fim do mundo ameaçador relaciona-se com os sentidos do início do game. Link inicia sua aventura 108

ainda em Hyrule, mais precisamente em uma floresta. Essa floresta, onde o tempo também não é marcado, é um ambiente natural recorrente do game anterior, Ocarina of Time. Nesse game, a passagem do tempo se limita pelas mudanças no céu (dia e noite), mas não por uma marcação instrumental como em Majora’s Mask. Em Hyrule, os ambientes em geral são mais "naturais" e "selvagens", e os poucos aglomerados humanos desse mundo não são tão desenvolvidos tecnologicamente como em Termina, além de suportarem um modelo político de monarquia (mais antigo historicamente quando comparado com a Cidade do Relógio, que é governada por um prefeito). Em suma, o mundo de Hyrule, evidenciado pela floresta por onde Link vaga no início do game, relaciona-se com um tempo "natural". Vimos anteriormente que o tempo não pode ser dividido em "natural" ou "social", já que todo tempo parte de uma regularidade "natural" para um intuito "social". Porém, em diferentes sociedades, o tempo foi uma síntese mais ou menos afastada do "natural", ou seja, menos coercitivo enquanto mede-se o tempo apenas pelo dia e pela noite, e mais coercitivo enquanto mede-se por relógios com horas, minutos e segundos. Assim, enquanto na Grécia Antiga, o tempo tornava-se um instrumento de observação do universo, ainda na Idade Média ele era tido como uma representação imaculada de Deus na natureza. Nesse último período, o tempo era menos ativo e mais "natural" (de síntese menos elevada), e assemelha-se ao tempo experimentado por Link nas florestas de Hyrule. Aqui, não há a "manipulação" do tempo pelo homem, e tampouco a necessidade de medi-lo constantemente, interferindo em seu fluxo "natural" e "sagrado". Todavia, quando Link adentra passa para o mundo de Termina e adentra a Torre do Relógio, o cenário se modifica. Essa aparente atemporalidade de um tempo que não precisa ser constantemente medido não está mais sobre o manto "natural" das florestas de Hyrule. Nesse momento, há máquinas trabalhando em um ambiente construído pelos homens, em uma cidade. Aqui, a força "natural" do rio é transformada em força mecânica da máquina e do relógio. Enquanto Galileu elevou o tempo a lei, quando propôs que o universo funcionava por meio de "leis naturais", criou-se a ideia de que havia um tempo "natural" (manipulável, mas previsível e ordenado) e um tempo "social" (também manipulável, mas imprevisível e arbitrário). Assim, no ingresso de Link ao interior da Torre do Relógio, o tempo "natural" (de síntese menos elevada) representado pela não-marcação do tempo enfrenta-se com o tempo "social" (de síntese mais elevado), no qual torna-se necessário marcar o tempo ativamente, para organizar a vida urbana. Na trajetória de Link, o tempo "natural" da floresta de Hyrule logo torna-se o marco zero de um tempo "social" do ambiente urbano de Termina. O ambiente

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urbano de Termina exige que esse tempo se transforme, assim como, na história humana, a necessidade de que a memória das instituições fosse preservada impeliu os Estados a utilizarem do tempo como instrumento de poder e coerção. Entretanto, essa passagem é catalisada pelo evento que envolve todo o conflito da narrativa do game: a destruição do mundo. A queda da lua refere-se a uma destruição total de todo o espaço e tempo. Ao mesmo tempo que também representa o decorrer do tempo para a morte, representa a própria morte do tempo, uma interrupção abrupta do fluxo iniciado em Hyrule e potencializado em Termina. A seguir, exploramos a temporalidade expressa pela figura da lua que paira assustadoramente nos céus de Termina.

5.2.3.2 A lua

A lua é o gigantesco astro que ameaça destruir o mundo de Termina com sua queda catastrófica. Os poderes da Máscara Majora fizeram com que ela fosse desviada de sua órbita para que se chocasse diretamente com o mundo, aniquilando todos os seus habitantes. Ela paira nos céus de Termina durante toda a aventura de Link (seja dia ou noite), e, se não é impedida, no fim do Dia Final, choca-se diretamente com a Torre do Relógio, mergulhando o mundo em chamas. Sua figura consiste em uma esfera de textura marrom árida, com um enorme rosto que encara Termina com uma expressão ameaçadora, de olhos vermelhos e dentes à mostra.

Figura 12 – A lua Fonte: http://zeldawiki.org/images/4/47/Moon.png

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A Máscara Majora, usando Skull Kid de marionete, manipulou o curso da lua para que o mundo fosse destruído. Quando Link chega para tentar evitar esse destino, três dias são o prazo para esse fim apocalíptico. Usando do poder da Ocarina do Tempo para manipular o tempo, ele consegue a ajuda dos quatro guardiões de Termina, que são chamados e impedem a lua de continuar seu trajeto destruidor. Majora intensifica seu poder manipulador para que a lua transponha as entidades guardiãs, e Link segue o vilão para o interior da lua, onde o enfrenta em uma batalha decisiva. Ao vencer Majora, a lua desaparece dos céus de Termina, deixando apenas um arco-íris como rastro. A queda da lua representa o conflito principal do game. Ela marca o fim dos três dias, que representa não só o fim de Termina, mas o "fim de jogo". Sua constante presença contribui muito para o clima sombrio do game, e ela destaca-se como um símbolo chave para sua divulgação, tanto em materiais promocionais aos fãs, como peças de publicidade para a televisão. Sua expressão comunica um misto de ameaça e agonia, mas não fica claro se ela é apresentada como um ser consciente ou não. Aparentemente, ela diz uma única frase, nas partes finais do game. Essas são: "... Eu devo consumir. Consumir... Consumir tudo."

Figura 13 – A queda da lua Fonte: http://zeldawiki.org/images/0/06/Moon_crashing.jpg

A lua é a representante maior de uma falta de perspectiva de futuro. Ao mesmo tempo que a sua iminente queda possibilita que o tempo dos três dias seja potencializado como recurso, também representa uma interrupção desastrosa nesse fluxo temporal, impedindo o acontecimento do Novo Dia. Assim, instaura uma impossibilidade de continuidade, um apagamento do futuro. Essa falta de perspectiva expressa por meio do “fim dos tempos” relaciona-se com as dinâmicas temporais da contemporaneidade. 111

No capítulo anterior, apresentamos as reflexões de Bauman (2009) acerca do tempo pósmoderno, que ele caracteriza como tempo líquido, ou da pós-modernidade. O autor aponta que o tempo da pré-modernidade mantinha uma relação invariável com o espaço, e na modernidade tornou-se uma variável nessa relação, e portanto um recurso a ser aproveitado. Na pósmodernidade, esse tempo sofreu uma desvalorização da duração e uma valorização da atemporalidade do instantâneo. Com o advento da tecnologia dos computadores, o espaço e a informação puderam ser acessados quase que instantaneamente, destituindo parcialmente o valor do tempo como recurso para conquistar espaço. Concomitantemente, as virtualidades possibilitadas por essa tecnologia impeliram o surgimento da produção e consumo de um grande número de vidas alternativas. Essas possibilidades atestaram a desvalorização do desejo pela eternidade, já que esses instantes virtuais, por meio de sua ilimitada capacidade de sensações e prazeres, atenuaram a angústia de “perder tempo”. A destruição apocalíptica que se materializa na lua, assim como o tempo ritualístico da Deusa, nega a continuidade do tempo moderno da Torre do Relógio. Porém, diferente do tempo da Deusa, a lua constrói tal negação no embate entre a instantaneidade atemporal e a duração temporal, já que eleva o instante absoluto do fim como o escape final da marcação do relógio. Além disso, a sua própria presença ameaçadora impõe tanta escassez ao tempo recurso da Torre do Relógio, que os instantes antes do fim são valorizados de tal forma que se tornam desejados justamente pela sua atemporalidade (como por exemplo, o instante em que Anju e Kafei se reconciliam e ficam em paz apenas em admirar juntos o amanhecer logo antes de suas mortes). Assim, da mesma forma que na pós-modernidade, a valorização das instantaneidades como vivências atemporais, dissociadas do tempo, entra em choque com a noção do tempo como recurso valioso a ser administrado em sua duração; a aniquilação do tempo pela lua, que enaltece a atemporalidade do instante apocalíptico e valoriza os instantes antes de sua queda, entra em choque com o tempo marcado, contínuo e regulador da Torre do Relógio. Dessa forma, mesmo que o game coloque a instantaneidade da queda da lua como algo desastroso que deve ser impedido (já que destrói a continuidade do tempo), essa ameaça permite justamente que as instantaneidades antes desse evento se configurem como alternativas atemporais não tão desastrosas. Na contemporaneidade, a instantaneidade permite que um leque quase infinito de sensações e vivências instantâneas sejam comprimidas em uma única vivência, e não se deseja apenas “viver além da morte”, mas “viver o agora como se não houvesse amanhã”. No game, esse “amanhã” realmente não existe. Mas, ao mesmo tempo, luta-se por ele.

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Esse “amanhã” que não existe no game representa uma falta de perspectiva de futuro que é recorrente no mundo contemporâneo. A fluidez dos acontecimentos, a curta-duração dos processos de aquisição-desaquisição, e a instabilidade e imprevisibilidade, criaram uma sensação de descrença no futuro, e a duração que era investimento transformou-se em risco. Assim, o refúgio para essas mudanças frenéticas surgiu como a atemporalidade das sensações ilimitadas dos instantes. Essa falta de perspectiva de futuro característica da contemporaneidade é colocada poeticamente no game como a impossibilidade de um novo dia. Bauman diz sobre a valorização da instantaneidade atuando na desvalorização da duração, quando aponta para a liquidez da contemporaneidade. A liquidez é uma metáfora que coloca o mundo contemporâneo em um estado fluido, ou seja, de forma não-constante e imprevisível, desvinculada de estados duradouros. Assim, as sociedades líquidas estão inscritas uma lógica de sequenciamento de cada vez mais frenéticos ciclos de engajamentodesengajamento, ou seja, todas as relações contemporâneas (de consumo, amorosas, de trabalho) tornam-se facilmente quebráveis e reconstituíveis. Dessa forma, a imprevisibilidade perene do mundo contemporâneo enalteceu a habilidade de lidar com essa liquidez (com descartes mais rápidos, recursos mais virtuais, e fins menos dolorosos). Assim, apesar da lua ainda ser colocada como um fim doloroso, ela favorece, em sua ameaça, a transformação do longo prazo em risco. Concomitantemente, incentiva a curta duração dos cada vez mais frenéticos ciclos de engajamento-desengajamento, e torna as relações muito frágeis e líquidas. Até aqui, podemos identificar que há uma contradição na figura da lua, já que, por um lado incentiva a instantaneidade e a fluidez, e por outro lado, se impõe como uma instantaneidade absoluta e vil que ameaça a longa duração do tempo. Essa contradição pode ser melhor entendida se atentarmos para outro elemento do game que compõe a sua atemporalidade: o seu interior.

5.2.3.3 O interior da lua

Quando Link invoca os quatro gigantes no Dia Final, e eles impedem temporariamente a queda da lua, a Máscara Majora interrompe a possessão de Skull Kid e revela ser o vilão por trás da tentativa de destruir Termina. Então, ela foge para o interior da lua, e logo é perseguida por Link e Talt. O interior da lua tem uma atmosfera bem contrastante à sua aparência externa. É um ambiente que inspira paz, quietude e certa nostalgia. Entretanto, é ali que o herói trava a sua batalha final contra o demônio de Majora.

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Figura 14 – O interior da lua Fonte: http://zeldawiki.org/images/6/6d/Mooninside.png

O interior da lua consiste em uma planície aberta e verdejante que se estende sem fim pelo horizonte. O céu é azul, límpido e exibe um sol brilhante. A única coisa que se destaca no ambiente é uma única árvore, grande e com muitas folhas, no meio da planície. Quatro crianças brincam e correm em torno da árvore, enquanto uma quinta senta-se apoiada em seu tronco. Cada criança usa uma das máscaras que representam os quatro demônios que prendiam os quatro guardiões de Termina, enquanto a quinta máscara é a própria Máscara Majora.

Figura 15 – As crianças da lua Fonte: http://zeldawiki.org/images/a/a9/MM_Moon_Scene.jpg

Ao falar com cada criança que corre em torno da árvore, Link é convidado para brincar. Quando aceita, é transportado para pequenos labirintos que relembram os templos onde Link enfrentou cada um dos quatro demônios. Ao chegar no final deles, cada criança aparece e pega algumas de suas máscaras. Link entrega todas as máscaras que conquistou durante sua aventura 114

(exceto as de transformação), e, assim, todas as crianças desaparecem e resta apenas aquela que veste a Máscara Majora. Quando Link fala com ela, ela o convida para um jogo diferente: mocinho contra bandido, mencionando que Link é o bandido; e dá a Máscara Fierce Deity, que transforma Link em uma versão adulta e poderosa de si mesmo. Link é imediatamente transportado para um ambiente que se assemelha a um playground macabro onde trava sua batalha com o demônio Majora.

Figura 16 – A criança da Máscara Majora Fonte: http://zeldawiki.org/images/0/07/MM_LunarChild_Majora.png

Apesar de pacífica e quieta, o ambiente do interior da lua é alvo de constantes tremores, que parecem lembrar da iminência do fim do mundo. Nesse lugar, assim como no interior do relógio, o tempo não é marcado, e o jogador pode “gastá-lo” à vontade. Esse ambiente atesta o caráter de negação da continuidade e regulação do tempo da Torre do Relógio pela instantaneidade e atemporalidade da lua, que, externamente, é um instante atemporal desastroso e terrível representado por uma face em fúria e agonia, e, internamente, é um instante atemporal pacífico e confortável representado por uma planície onde crianças brincam. Em consonância com Bauman, Campbell (2008) evidencia um aspecto interessante acerca das relações de consumo da pós-modernidade. Em termos gerais, ele coloca que o consumo trabalha de acordo com ciclos de aquisição-desaquisição que são motivados pelo desejo por todas as sensações que a instantaneidade do consumo pode oferecer. Entretanto, essa instantaneidade logo esgota-se em tais sensações e dá lugar a outro desejo de consumo. Assim, o propulsor do consumo não seria exatamente o materialismo daquilo que se consome, mas o desejo do ter, sustentado pelo não ter, ou seja, pela potencialidade de acessar a instantaneidade 115

do consumir, momento esse capaz de invocar intensos prazeres e sensações. Essa eleição do desejo e não diretamente a posse como força motriz do consumo permite que esses ciclos de aquisição-desaquisição se renovem e o consumo mantenha sua demanda constante. Portanto, nesses processos, ao mesmo tempo que a instantaneidade das sensações e prazeres é valorizada, a potencialidade do desejo que permite o encadeamento desses ciclos de busca de novos instantes de consumo, ou seja, a duração fluida, mesmo que cada vez mais frenética, permite a valorização do instantâneo. Dessa forma, podemos entender melhor a temporalidade expressa pelo interior da lua. A atemporalidade do interior da lua propõe uma liberdade e alívio subversivos à marcação controlada da Torre do Relógio. Nesse mundo, que só poderia ser possível com a destruição do tempo, a árvore central do tempo “natural” substitui a Torre também central do tempo “social”. A infância é celebrada e não há preocupações além de se divertir em uma planície verdejante debaixo do céu azul. Pela primeira vez após a saída da Torre do Relógio, o jogador encontra um ambiente onde o tempo não passa. Nessa instantaneidade, o tempo não é limite, assim como o instante almejado pelas relações de consumo da contemporaneidade. Porém, esse ambiente não se sustenta, ameaçada pelos tremores externos que alertam sobre a iminência das mudanças. Esse acesso ao instantâneo é logo destituído, para dar lugar a uma nova continuidade, um novo ciclo de desejo (ou um novo ciclo de dias). Enquanto a lua pretende preservar essa instantaneidade, esse mundo pacífico e atemporal do seu interior revela-se aos poucos como o terror do fim dos tempos. O fim mostra-se insustentável como enaltecimento da instantaneidade, já que essa apenas se renova por meio de outros desejos, que, por sua vez, são possibilitados pela duração, pela continuidade. Dessa forma, propomos que o game constrói certos sentidos que se relacionam em uma composição de diversas temporalidades. Essa composição de sentidos está relacionada com o próprio papel do tempo nas sociedades contemporâneas, e, a seguir, propomos um estudo que compare as relações de sentidos entre as temporalidades do game com as formas como o tempo se faz presente na contemporaneidade.

5.2.4 Os três tempos O game Majora’s Mask cria um Mundo do Jogo no qual o tempo é explorado profundamente, e constrói sua rede de sentidos por meio de temporalidades com naturezas e funções diversas. As formas como essas temporalidades se inter-relacionam no mundo fantástico do game dizem sobre os diálogos entre as temporalidades do meio contemporâneo.

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Ou seja, essas construções de sentido em torno do tema no game significam de acordo com as nossas próprias vivências temporais (contextualizadas socioculturalmente), constituindo relações de negociação de sentidos do game com a sociedade, sejam essas de aceitação, negação, ou parcial aceitação/negação. Até esse ponto, traçamos uma análise do conteúdo a fim de interpretar como os elementos relacionados ao tema do tempo constroem seus sentidos dentro do texto que é o game, e como esses sentidos estão relacionados com as questões gerais acerca do tempo, e com as temporalidades de natureza específica. A partir daqui, propomos uma articulação dessas interpretações a fim de estabelecer efetivamente um mapa reflexivo acerca das negociações de sentidos entre o tema na produção do game e o tema na sociedade contemporânea. Pretendemos, assim, marcar a construção de sentidos do game além de si mesma: contextualizada em um tempo específico de questões específicas. Mesmo que essa noção seja aprofundada na etapa em que utilizaremos a Análise do Discurso, ela nos auxilia inicialmente na maior compreensão em como o tempo se dá nas relações socioculturais dos nossos tempos contemporâneos. O game Majora’s Mask introduz uma temporalidade divergente àquela apresentada em seu antecessor Ocarina of Time. O sistema de marcação temporal (tanto no Mundo do Jogo quanto nas Mecânicas de Jogo) instaura um tempo contínuo e coercitivo, relacionado às necessidades de uma sociedade urbana e industrial. O relógio e a agenda são muito importantes para esse tempo, pois é por meio deles que os cidadãos e o herói são capazes de ordenar suas ações a fim de aproveitá-lo como recurso. Assim, da mesma forma que a Revolução Industrial e do consumo (paralelas à urbanização) exigiram um tempo capaz de regular com precisão os papéis sociais e os processos de produção, no game, esse tempo moderno instaura-se como um guia regulador necessário frente a ameaça da lua. Assim, o game expressa uma ruptura de uma temporalidade "natural" por uma temporalidade "social" e "urbana". Em Ocarina of Time e nas primeiras cenas de Majora’s Mask, o tempo se faz "natural", no sentido que sua precisão limitase a presença do sol e lua nos céus, expressando uma síntese menos elevada (já que está diretamente relacionado aos astros) e uma capacidade coercitiva reduzida (já que não se instaura como um fluxo estritamente regulado e marcado). Já na Cidade do Relógio, o tempo se faz "social", no sentido que se torna uma ferramenta poderosa e quase onipresente na figura da Torre do Relógio, expressando uma síntese mais elevada (já que é intermediado pelos instrumentos de marcação do relógio) e uma capacidade coercitiva intensa (já que é exibido como um fluxo temporal com a função de abranger e organizar todos os eventos dentro daquele mundo).

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Entretanto, enquanto a passagem do tempo de Ocarina of Time para o tempo de Majora’s Mask seja semelhante à ruptura da temporalidade pré-moderna para a moderna, o motivo para a instauração de um tempo recurso no game é marcado por um elemento fantástico chave para o conflito principal da trama: a queda da lua. Dessa forma, a simples existência de uma metrópole como a Cidade do Relógio (com as necessidades de ordenação de um tempo coercitivo) não é suficiente para justificar um tempo como a da Torre do Relógio. O que transforma efetivamente o tempo em recurso é a iminente destruição do mundo: a ameaça do fim é a carta final para a construção de um ambiente no qual "não há tempo a perder". Enquanto nas sociedades modernas, não perdemos tempo porque "tempo é dinheiro", no ambiente lúdico do game, é preciso criar outra equivalência, como, por exemplo, que o "tempo é o que se pode fazer antes do mundo acabar". Em conseguinte, esse tempo da lua diz sobre o tempo pósmoderno, que veio a causar uma ruptura no tempo moderno por meio da instantaneidade e a fluidez do tempo. A ameaça da queda catastrófica da lua torna o tempo recurso tão escasso que permite que as instantaneidades sejam valorizadas. O conflito principal do game constitui na destruição da continuidade coercitiva do tempo da Torre do Relógio. Da mesma forma, essa descontinuidade abrupta possibilita que o valor atemporal da instantaneidade coexista com a contagem regressiva desesperadora da Torre do Relógio. Essas dinâmicas dizem muito sobre o tempo pós-moderno. A instantaneidade possibilitada pelas capacidades tecnológicas e novas relações de produção-consumo instaurou-se como uma alternativa atemporal àquele tempo moderno de coerção, no qual a duração deveria ser constantemente "preenchida". Essa atemporalidade tornou-se valiosa frente à imprevisibilidade dos tempos pós-modernos, e possibilidade de destacar-se efetivamente como um escape ao tempo escasso da modernidade, que antes era apenas prometido pela eternidade religiosa dos paraísos e vidas além da morte. Assim, o game constrói seus sentidos em torno da noção de que as instantaneidades elevam-se como poderosos amparos existenciais frente a uma possível decadência desse tempo contínuo intensamente controlador da Torre do Relógio, frente a destruição de uma perspectiva de futuro. Desse modo, o game instaura um conflito característico da temporalidade das sociedades contemporâneas. Enquanto sobrepõe um tempo pré-moderno pontual e pouco coercitivo com um tempo moderno da duração, coerção e regulação; ele propõe um conflito entre esse último com a valorização da atemporalidade pós-moderna. Esse conflito do "investir seu tempo em algo" e "viver intensamente o momento" presentifica-se na contemporaneidade e, nesse sentido, o game cria um mundo alternativo para potencializar essa questão da

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coexistência conflituosa entre a duração (que é ameaçada pelo fim e pela imprevisibilidade) e a instantaneidade (que não se sustenta inteiramente em uma sociedade na qual o tempo é investimento, produção, trabalho, e, consequentemente dinheiro). Em conseguinte, enquanto perdura esse conflito entre a duração que é escassa e insuficiente, e os instantes que não aliviam totalmente o terror pelo fim, cabe ao herói lutar pela continuidade do tempo. Tal continuidade promete ser liberta da ameaça desastrosa, e permite que o tempo não seja tão coercitivo e as instantaneidades não tão necessárias. A maneira de lutar por isso é por meio do tempo ritualístico da Deusa. A jogabilidade de Majora’s Mask é articulada na capacidade de Link reiniciar o ciclo de três dias antes da queda da lua. Esse poder é concedido pela Deusa do Tempo por meio da Ocarina no Tempo e da Canção do Tempo. Nesse processo, há uma flexibilização da irreversibilidade do tempo moderno da Torre do Relógio, possibilitando que a escassez do tempo como recurso seja relativizada pela capacidade de refazer e experimentar escolhas e presenciar eventos simultâneos. A Deusa do Tempo é referenciada como uma entidade que capaz de aliviar o conflito entre a irreversibilidade do tempo da Torre do Relógio e a destruição da continuidade pelo tempo da lua, já que os cidadãos de Termina e Zelda a reverenciam em seu poder benevolente e protetor. Paralela à sua figura divina, está a presença do Festival do Tempo, que apresenta-se como um momento de reverência aos deuses e ao tempo "natural". Dessa forma, o poder do tempo ritualístico e atribuído aos "deuses" é expressado como a maior ferramenta para transpor o conflito principal do game. Os rituais surgiram nas sociedades simples como uma forma de reverenciar as intervenções divinas no mundo natural que influenciavam a vida social (como uma boa colheita, ou uma tempestade avassaladora). Esse tempo apresentava-se em uma síntese pouco elevada e em um caráter pouco coercitivo. Assim, ainda não era estruturado como um fluxo ou em um conceito unificado, mas dependente direto das intervenções da natureza (atribuídas aos deuses), que indicavam como deveriam ser as ações humanas. O ritual era uma ferramenta que marcava a periodicidade dessas intervenções e inspirava a reverência àquelas forças capazes de organizar as ações humanas. Nas sociedades modernas, o tempo tomou a forma de fluxo, e como conceito de síntese mais elevada, unificou-se como uma força "independente", com suas próprias leis. Esse tempo como fluxo era irreversível, absoluto e sempre apontado para o futuro (que trazia possibilidades crescentes). Nesse contexto, o ritual tornou-se uma ferramenta de afirmação de ciclicidades, e de retorno ao passado, frente a uma irreversibilidade coercitiva. Ele estendeu a reverência às forças dos deuses e suas ações naturais que guiavam as ações humanas para uma

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reverência à própria ciclicidade, ou seja, a manutenção de um sentido de constância que não era necessariamente das ações dos deuses, mas de eventos passados que por algum motivo deveriam ser revividos. Nesse sentido, o ritual tornou-se um momento em que o passado era revivido e reatualizado, a fim de manter uma memória e uma dedicação por algum ideal. No game, esse ritual revela-se no Festival do Tempo como uma ferramenta de reverência "à união entre o tempo e a natureza". Dessa forma, pretende reviver um momento de lembrança dos deuses e agradecimento à prosperidade do ano, e dar um sentido cíclico à Torre do Relógio: dar um sentido de tempo "natural" a um tempo urbano. O tempo da Deusa, por meio do poder ritualístico de flexibilizar o Tempo da Torre, torna-se efetivamente a alternativa para enfrentar o embate desastroso entre a continuidade e a descontinuidade. O game destaca os rituais e o tempo "natural" como forças capazes de aliviar a tensão pós-moderna entre o tempo recurso e a instantaneidade, por meio principalmente da capacidade do herói de manipular o fluxo temporal. Entretanto, essa reversibilidade obedece a certas regras construídas pelo game. Uma delas é que a memória de Link se mantém a cada retorno, assim como a posse das máscaras coletadas até o momento. Essas "exceções" na reversibilidade do tempo constroem sentidos acerca dessa temporalidade. O tempo como fluxo tornou-se não apenas uma ferramenta de regulação precisa, mas uma ferramenta de afirmação identitária. Sendo assim, a continuidade do passado, marcado por eventos e vivências, tem o poder de constituir sentidos em torno do indivíduo. Esse poder é marcado efetivamente pelo próprio caráter de irreversibilidade desse tempo fluxo (os eventos que foram não se repetirão, e portanto, são únicos). Assim, mesmo que o game pretenda utilizar da magia do tempo "natural" para reverter o tempo que antes era irreversível, ele preserva parte dessa irreversibilidade, enquanto mantém os sentidos de identidade que essa continuidade irreversível provê. Dessa forma, enquanto o mundo de Termina retorna para o seu estado inicial toda vez que a Canção do Tempo é tocada, Link há de construir um caminho dissociado ao tempo de Termina, no qual é preciso que a permanência das máscaras prove que ele conseguiu cumprir seus objetivos. Esse sentido de permanência e acúmulo de itens com "história" concorre com outro aspecto dos tempos contemporâneos possibilitados pela valorização da instantaneidade: a fluidez. Bauman (2009) afirma que a contemporaneidade é marcada pela sua fluidez, ou seja, pelo sequenciamento cada vez mais frenético de ciclos de aquisição-desaquisição. Esses ciclos fazem-se presentes nos processos de consumo, que, de acordo com Campbell, são motivados

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pelo desejo romântico, ou seja, o potencial acesso à instantaneidade de sensações que o consumo promete. No game, esses ciclos configuram-se no próprio ato de voltar no tempo, atrelado ao "descarte" da maioria de itens coletados e modificações realizadas no mundo (exceto a permanência da marca identitária das memórias e das máscaras). Dessa forma, o game expressa essa capacidade dos ciclos de aquisição-desaquisição como uma forma não apenas de um alívio ao fluxo da Torre do Relógio (como garante o tempo ritualístico), mas uma forma de combater a finitude do tempo da lua, que impera como uma instantaneidade destrutiva e insustentável. Investigando o tempo da lua, deparamo-nos com o contraste entre a atmosfera de seu exterior e interior. Enquanto o exterior da lua exibe uma face de terror e aniquilação, o interior apresenta um ambiente de paz e tranquilidade. Esse ambiente pacifico é relacionado à natureza e à infância, e o tempo não é marcado como no restante de Termina. Entretanto, esse mundo natural é constantemente ameaçado por tremores externos, e as crianças que ali habitam logo vão partindo. A única criança que fica transforma aquele local em um ambiente distorcido de terror e batalha. Dessa forma, o game expressa que a tentativa de sustentar a atemporalidade da instantaneidade, ou seja, de não realizar a desaquisição inscrita na lógica contemporânea de ciclos fluidos de aquisição-desaquisição, é danosa frente ao tempo fluxo da Torre do Relógio. Para entender com maior profundidade esse quadro, resgatamos as reflexões de Santi (2005), que defende a ideia de que o homem contemporâneo tem como objetivo final o prazer em detrimento à satisfação ou a produção de artefatos duradouros. Assim, eleva-se a vivência máxima do instante atemporal (como aquele mundo atemporal da lua), e não se vê mais tanto valor no que é duradouro (como o monumento da Torre do Relógio). O transitório e os instantes que guiam tal transitoriedade regem a contemporaneidade em meio a uma busca incessante a momentos de estímulos cada vez mais intensos. Essa busca, porém, gera a insatisfação, que surge no desgaste daquela vivência instantânea e transitória. Por outro lado, é ela que impulsiona outra busca por outra promessa de estímulos. Essas dinâmicas estabeleceram-se em um ambiente no qual a crise da tradição destronava a estabilidade do passado e tornava o futuro imprevisível, móvel. Então, Santi sugere a noção de cultura do narcisismo, que se refere à busca de refúgios estáveis e constantes frente à instabilidade das referências do passado e futuro. Assim, o indivíduo contemporâneo busca tal refúgio na atemporalidade do instante, e reinam o desinteresse no tempo como fluxo. Nessa jornada incessante por refúgios que se esgotam pela sua fluidez, os indivíduos tornam-se cada vez mais insensíveis aos estímulos que procuram. O

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indivíduo narcisista fecha-se em um casulo atemporal (com recuo à onipotência infantil) para proteger-se das invasões e riscos do tempo contínuo das mudanças cada vez mais frenéticas. Assim, o game expressa uma tentativa da manutenção desse casulo atemporal da onipotência infantil, no qual o mundo é verdejante, nostálgico e liberto da marcação temporal. Entretanto, tal manutenção é falha no momento em que é ameaçada justamente pela fluidez e continuidade do tempo da Torre do Relógio e do tempo da Deusa. Esse casulo sofre ataques do mundo externo, até tornar-se um cenário de terror e renúncia. Os prazeres do ambiente do interior da lua não se sustentam na sua transitoriedade, e são destituídos pela insatisfação do tempo "corrente". Nesse ponto, podemos propor um mapa de como o tempo constrói seus sentidos no game Majora’s Mask. No início do game, há uma passagem de um tempo "natural" para um tempo "social". Link transita entre a floresta de Hyrule, onde o tempo é pontual e relacionado diretamente aos eventos naturais; para a Cidade do Relógio, onde o tempo é continuamente marcado, para fins urbanos. Assim, o game instaura no início da trama uma ambiência que rompe com um tempo "natural", e demarca um tempo que deve ser gerenciado como recurso, introduz uma ambiência temporal moderna. Logo, o game introduz o conflito principal da narrativa: a iminente queda da lua. Esse evento ameaça a continuidade do tempo da Torre do Relógio, que é o marco zero espacial e temporal do mundo de Termina. Assim, ameaça a própria ordem daquele mundo, pois ao cair diretamente na Torre do Relógio, destitui qualquer orientação, e mergulha o mundo em caos e chamas. No primeiro ciclo de três dias, o tempo da Torre torna-se um recurso tão valioso, pois está em constante risco de ser destruído pelo caos da atemporalidade, que Link deve gerenciá-lo com grande perícia. Nesse momento, a ambiência de tempo moderno afirma-se justamente pela ameaça da atemporalidade, e instaura-se um conflito característico do tempo pós-moderno: a duração contra o instante. Após o primeiro ciclo, Link tem acesso a Ocarina do Tempo, e por meio da Canção do Tempo, invoca os poderes benevolentes da Deusa do Tempo e retorna para o início do prazo de três dias. Assim, ele adquire uma arma contra o conflito desastroso do tempo contemporâneo, entre a continuidade do tempo da Torre do Relógio, e atemporalidade do tempo da lua. Essa arma que é a Ocarina e a Deusa expressa seus sentidos em torno daquele tempo "natural" da pontualidade e da crença no tempo como força natural dos deuses. Também relaciona-se com o tempo do ritual, que tem a função de invocar o passado e marcar uma constância atemporal na continuidade entropia do tempo como fluxo. O ritual nos tempos contemporâneos marca sua importância nas relações de consumo, e a atemporalidade dos prazeres do consumo relaciona-

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se com as funções do ritual de criar uma ambiência dissociada da continuidade do tempo, sendo cíclica e frequente. Dessa forma, o game expressa esse tempo ritualístico (que hoje se faz nos ciclos de consumo) como uma forma de combater o conflito entre os tempos da Torre do Relógio e da lua. Da mesma forma, assim que Link torna-se capaz de reiniciar os ciclos à vontade, o game constrói sentidos em torno de um tempo fluido. O reinício do ciclo de três dias, que exige que todas os itens e interações de Link sejam apagadas faz um paralelo com o sequenciamento frenético de ciclos de aquisição-descarte da contemporaneidade. Assim, do mesmo modo a arma do herói contra o fim do mundo está no tempo ritualístico da Deusa do Tempo, está também no tempo fluido da pós-modernidade. O desafio do herói torna-se não apenas regular o seu tempo de três dias, mas gerir os recursos que deverão ser descartados a cada reinício de tempo. O game expressa o caráter da fluidez e do poder ritualístico do tempo pós-moderno como a principal força contra a ameaça daquele tempo moderno introduzido na chegada à Cidade do Relógio. Em conseguinte, tece um paralelo com a própria modernidade, na qual o tempo fluido e ritualístico do consumo apresenta-se como uma alternativa a decadência do tempo moderno, que encontra-se com a imprevisibilidade caótica da atemporalidade, da nãoduração. Entretanto, esses ciclos de aquisição-desaquisição garantidos pela Ocarina não configuram desaquisições "totais". As memórias as máscaras de Link são mantidas, para que ele possa ser um agente naquele mundo, munido de provas de seus objetivos cumpridos. Essa manutenção de memórias e amuletos duradouros imbuídos de uma história de conquista referese à importância do tempo contínuo como marcador identitário. O game, apesar de colocar a fluidez temporal como a arma principal do herói, também preserva o valor da história, do duradouro, que traz um sentido imóvel ao indivíduo contemporâneo. Não à toa, são as máscaras, os instrumentos que marcam a sincronia ritualística do Festival do Tempo, que marcam tal constância durável. Em suma, o game constrói sentidos em torno da noção de que o tempo fluido e ritualístico não deve ser dissociado de uma parte imóvel que louva o passado e a durabilidade. Mais adiante no game, o herói consegue impedir a queda da lua por alguns momentos, e, perseguindo o verdadeiro vilão Majora, viaja ao interior da lua. Lá, é construída uma ambiência contrastante ao terror do exterior da lua. Esse ambiente é tranquilo, natural, e com crianças brincando. O tempo não é marcado, mas tremores externos marcam uma ameaça à liberdade desse mundo. Nesse ponto, o game constrói mais sentidos em torno da atemporalidade

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trazida pela lua. Mesmo que destrutiva externamente, internamente essa atemporalidade reveste-se como um santuário sem preocupações, onde as crianças podem brincar livremente. Entretanto, enquanto a maioria das crianças logo vai embora, uma delas (vestindo a Máscara Majora) pretende preservar esse paraíso. Entretanto, essa tentativa torna o local em um pesadelo, e a criança torna-se um demônio. Aqui, o game revela o conflito pós-moderno entre a duração e a atemporalidade como a não aceitação da transitoriedade do instante atemporal. O tempo do interior da lua nega-se à insatisfação e a desaquisição necessária para um novo fluxo fluido de ciclos de desaquisição. Essa insistência em fazer um instante durar em um ambiente não-durável gera o conflito principal do game. De um lado, Link com a arma da fluidez e ciclicidade combate Majora, que se refugia em uma atemporalidade pretensiosamente absoluta. Desse modo, o game constrói sentidos que reafirmam o caráter transitório da pós-modernidade: ele coloca a fluidez (a capacidade de se desengajar) como a solução para a agonia da insatisfação, a agonia de ter que deixar os estímulos atemporais do instante em função de uma continuidade temporal iniciada no tempo da modernidade. Após a vitória de Link perante o demônio Majora, a lua desaparece e um novo dia amanhece em Termina. Os moradores que Link ajudou realizam seus planos e o Festival do Tempo acontece. O herói continua sua viagem em busca de sua amiga fada e volta a Hyrule. Nesse momento, o embate destrutivo entre a duração e a instantaneidade cessa, e o tempo regulador da Torre do Relógio permanece, mesmo que com menor poder coercitivo (já que não há mais a ameaça do fim). Os ciclos de aquisição-desaquisição das viagens do tempo não se fazem mais necessários diante da continuidade do tempo e do acontecimento do ritual do Festival do Tempo. O tema do tempo apresenta-se em Majora’s Mask como os conflitos entre a duração, a transitoriedade e a instantaneidade, no que se refere ao tempo característico da contemporaneidade. A trajetória de Link, assim como dos antagonistas Skull Kid e Majora, percorre essas questões temporais. Ao entender como os sentidos em torno do tempo se fazem presentes no texto, entendemos o contexto no qual a narrativa do gameplay se desenrola. A seguir, propomos uma análise específica a narrativa em torno desses dois personagens, a fim de compreender os sentidos que são construídos no texto que compõe a trama que os une. Posteriormente, selecionamos duas sidequests (narrativas secundárias) que tangenciam questões importantes acerca das temporalidades dos games. Essas análises terão como objetivo relacionar as reflexões referentes a essa primeira análise de conteúdo com a própria construção das narrativas do gameplay, para que assim, possamos entender como as maneiras pelas quais

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os sentidos são construídos estão em função do contexto sócio-histórico contemporâneo em questão.

5.3 ANÁLISE DO DISCURSO

5.3.1 A narrativa de Link

Nessa etapa da análise, utilizaremos os dispositivos da Análise do Discurso para investigar as construções de sentido na narrativa principal e em duas narrativas secundárias do game. Para isso, objetivamos compreender as interpretações levantadas na análise de conteúdo, de acordo com as formas como são articuladas na narrativa do gameplay, ou seja, como as diferentes temporalidades efetivamente constroem seus sentidos na lineariedade do texto do gameplay. E outras palavras, enquanto na etapa anterior mapeamos os sentidos do tempo nos elementos gerais do game, cabe aqui entender como esses elementos fazem-se presentes na trajetória do herói e dos personagens com quem ele se relaciona: como a trama inter-relaciona tais elementos e efetivamente constrói os sentidos na narrativa dessa produção. Assim, podemos investigar o texto em ação, ou seja, o tema do tempo articulado como discurso, que se posiciona de acordo com o contexto em que é produzido. Atentaremos para os ditos e não-ditos, e a partir daí, as relações polissêmicas e parafraseáticas que o texto do game compõe em relação ao nosso contexto sócio-histórico contemporâneo. Para isso, propomos a decupação da narrativa principal do gameplay em cinco momentos. Essas divisões pretendem agrupar e organizar a série de acontecimentos emblemáticos que estruturam a linha narrativa sobre o tempo, ou seja, que constroem sentidos cruciais para o desdobramento do tema do tempo na trajetória dos personagens. São esses momentos: A chegada de Link em Termina, O primeiro ciclo de três dias, A busca de Link pelos guardiões, A batalha final, e O Amanhecer de um Novo Dia. Para pontuar as reflexões em torno do nosso objeto, trazemos textos extraídos diretamente do gameplay, assim como textos que não são íntegros do objeto, mas, produzidos por nós, traduzem as ações das cenas imagéticas que muitas vezes não se explicitam nos diálogos e legendas.

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5.3.1.1 A chegada de Link em Termina

Essa parte compreende desde o início do gameplay, até a parte em que Link sai da Torre do Relógio pela primeira vez (Episódio 1 do gameplay, parcialmente). Um letreiro introduz a história, como se pronunciado por um narrador externo. Esse texto contextualiza a trajetória de Link até aquele ponto (referente aos eventos do Ocarina of Time), e anuncia o início de uma nova jornada. Nessas primeiras palavras, o passado de Link é referenciado pela palavra "lenda". Esse emprego da palavra "lenda" pretende emprestar a ela o sentido de “história”, como a série de eventos que ocorreram no passado de Link. Dessa forma, dizer "lenda" e não dizer “história” (não-dito) revela um processo polissêmico, um deslocamento na construção de sentidos. Enquanto dizer história em referência ao passado de alguém constitui a noção de um tempo contínuo, irreversível, e marcado em "fatos" (historicidade), dizer "lenda" com referência ao passado de alguém imbui aquela trajetória com um valor mítico e onírico, na qual não há necessariamente "fatos", e, por isso, eles não devem estar necessariamente inscritos em um uma escala temporal marcada. Assim, ao resgatar os sentidos do discurso das fábulas e contos fantásticos (ecoa uma lenda, diz a lenda, reza a lenda), o discurso inicial relaciona o passado de Link em Hyrule com as características de um tempo “natural”. Esse tempo “natural” não exige uma história linear, marcada em “fatos”, de acordo com a continuidade do tempo das metrópoles urbanas. Esse tempo “natural”, em que se passam “lendas”, é livre para o misticismo e para a imprecisão temporal, ou seja, para a pontualidade de um tempo que não se sustenta na própria sínese, mas está atrelado diretamente à magia dos eventos naturais.

Figura 17 – Skull Kid rouba a Ocarina do Tempo Fonte: http://zeldawiki.org/images/8/89/MM_Opening_large.png

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Ao prosseguir em sua jornada pela floresta de Hyrule, Link é roubado por Skull Kid, Talt e Tael, e, perseguindo-os, acaba caindo em um buraco. Nesse buraco, há uma passagem muito semelhante a outros textos, como Alice no País das Maravilhas e O Mágico de Oz. Nas duas obras, o protagonista encontra-se em uma perseguição de algum ser (Coelho Branco, cachorro Totó) que os guia a um evento que de alguma forma desestabiliza a ordem daquele mundo (uma queda, um tornado), e os leva a um mundo onírico e mágico (País das Maravilhas, Mundo de Oz). No game, a primeira passagem (o buraco que Link cai) assemelha-se a passagem de Alice no País das Maravilhas (o buraco que Alice cai), enquanto a segunda passagem (o corredor que gira enquanto Link passa) assemelha-se à passagem de O Mágico de Oz (o tornado que carrega Dorothy). Aqui, há uma relação interdiscursiva com esses dois textos, tecendo uma relação de sentidos parafraseática. Porém, há uma relação polissêmica, ou seja, de deslocamento de sentidos, quando notamos que Link não realiza a passagem entre um mundo lúcido e restrito para um mundo onírico e mágico, mas justamente o contrário: a passagem de um mundo onírico e mágico do tempo "natural" para um mundo lúcido e restrito do tempo "social”.

Figura 18 – O corredor que gira Fonte: http://i51.tinypic.com/1tstbk.png

Ao adentrar no interior Torre do Relógio, o tempo "natural" logo transforma-se no tempo "social", que serve à máquina e ao relógio. O ambiente não é mais natural, mas construído pelo homem, e a atmosfera urbana instaura-se enquanto a energia do rio é transformada em energia mecânica para a Torre do Relógio. Nessa transição, Link encontra o Vendedor de Máscaras Feliz. O excêntrico homem profere um discurso, e atribui uma missão para Link, em troca da reversão da maldição que o transformou em um Deku.

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Algumas expressões de não-ditos revelam-se no discurso do Vendedor. Ele inicia seu texto lamentando o "terrível destino" de Link. Ao utilizar a expressão "destino", não diz (nãodito) "acaso", "coincidência", ou "fatalidade". Dessa forma, configura uma construção parafraseática relacionada a uma certa inevitabilidade e passividade frente aos acontecimentos que levaram Link até ali. Essa colocação destaca que a passagem para esse mundo de tempo "social" (onde Link foi amaldiçoado, e perdeu seu item e companheira) não se deve necessariamente aos caminhos escolhidos do herói, mas constitui-se como uma imposição externa, alheia às suas vontades, uma força incontrolável com que Link deve lidar. Esse caráter relaciona-se com a noção do tempo como uma força coercitiva externa, como uma entidade alheia que impõe um molde de ações reguladas e organizadas; é um valor referente ao tempo "social" da modernidade, representado pela Torre do Relógio.

Figura 19 – O Vendedor de Máscaras Feliz Fonte: http://zeldawiki.org/images/7/74/Happy_Mask_Salesman_MM.png

Em seguida, o Vendedor pede para Link resgatar a máscara em três dias (já que tem que deixar Termina), antes que seu tempo "acabe". Ao dizer a palavra "acabar", no sentido de esgotar, ele não diz (não-dito) "antes que chegue a hora", "antes de eu partir", ou até "o quanto antes". Ao utilizar a expressão "acabar", o discurso constitui um processo parafraseático que relaciona o tempo a uma ideologia que o vê como recurso. Entre outras palavras, essa construção destaca o tempo como algo que pode "acabar", ou seja, como algo que deve ser cuidado e gerenciado.

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Finalmente, ao atribuir uma missão de tempo limitado com a justificativa de "deixar esse lugar em três dias", ele constrói um não-dito do motivo maior para essa limitação temporal (que se torna evidente ao longo do game): a queda da lua. Essa ocultação que sobrepõe uma missão (resgatar a Máscara Majora antes do Vendedor partir) a uma descontinuidade catastrófica (viver antes do mundo ser destruído), impele o herói com uma motivação inicial para adentrar esse mundo e a lidar com o tempo como recurso. Dessa forma, o game comunica que os três dias que se iniciam após a saída da Torre do Relógio não podem ser evitados ou desfrutados sem propósito, mas precisamente gerenciados para que se cumpra a missão. Isso enaltece o tempo da Torre do Relógio, que é instaurado integralmente, no momento posterior da narrativa.

5.3.1.2 O primeiro ciclo de três dias

Esse momento da narrativa engloba desde a primeira vez em que Link sai da Torre do Relógio, até o momento em que recupera a Ocarina (Episódio 1, parcialmente; Episódios 2 completo; Episódio 3 parcialmente).

Figura 20 – Amanhecer do Primeiro Dia Fonte: http://i0.kym-cdn.com/photos/images/newsfeed/000/499/738/bbe.png

Assim que Link sai da Torre do Relógio, um letreiro é exibido em uma tela preta: "Amanhecer do Primeiro Dia. 72 horas restantes". Ao dizer "amanhecer do Primeiro Dia", o letreiro não diz (não-dito) "amanhecer desse dia", ou simplesmente "amanhecer". Dessa forma, ao utilizar da forma ordinal "primeiro" para qualificar o dia a que se refere, empresta um sentido de ordenação sucessiva a tal. Sendo assim, deixa subentendido que, se esse é o primeiro dia, não interessa os que vieram antes dele, mas apenas os que virão depois (segundo, terceiro, etc.): 129

ele está inscrito em uma ordem cronológica que se rompe o passado e segue para o futuro. Reafirmando o sentido ordinal que qualifica os dias, esse não-dito é repetido em letreiros semelhantes, que surgem de acordo com a passagem do tempo na Cidade do Relógio, como "Anoitecer do Primeiro Dia. 60 horas restantes", "Amanhecer do Segundo Dia. 48 horas restantes", "Anoitecer do Segundo Dia. 36 horas restantes", Amanhecer do Dia Final. 24 horas restantes, e "Anoitecer do Dia Final. 12 horas restantes". Já o dizer "72 horas" (e "60 horas", "48 horas", etc.) constrói uma ordem sucessiva decrescente, ou seja, no sentido oposto da ordenação dos dias. Enquanto na ordem dos dias não importa o que veio antes do Primeiro Dia, na contagem das horas não importa o que virá depois que o número de horas chegar a zero. Dessa forma, o dizer dos dias e o dizer das horas constroem dois sentidos cruciais para a construção dessa temporalidade: não interessa nem o antes e nem o depois, apenas interessa o período dos três dias. Assim, esse discurso contribui para que haja um sentido de limitação nesse período temporal. Em conseguinte, os números no dizer "72 horas" (e "60 horas", "48 horas", etc.) emprestam um sentido de precisão matemática ao tempo, que torna-se contado, quantificável. Em razão disso, há uma construção parafraseática que se relaciona com o tempo marcado no relógio e do calendário, já que o tempo como fluxo é colocado no calendário por meio de números ordinais dos dias (Primeiro de Abril, ou Terceiro aniversário de casamento), e é colocado no relógio por meio de número cardinais das horas (3 horas da tarde, 1 hora da manhã). Em suma, essa formação expressiva que coloca os dias em uma ordenação crescente, e as horas em uma ordenação decrescente (utilizando números precisos), contribui na construção de uma temporalidade com algumas características específicas: limitada (no sentido que não contempla o que veio antes, nem o que virá depois, mas apenas o período entre o Amanhecer do Primeiro Dia, e o momento em que não restarão mais horas), corrente (no sentido de que segue uma ordenação crescente e decrescente, ou seja, segue um fluxo ordenado), e precisa (no sentido de que o emprego dos números emprestam um sentido matemático de quantificação). Essa temporalidade relaciona-se muito com o tempo referente aos calendários e relógios (já que esses textos parafraseiam formações discursivas relacionadas à utilização desses instrumentos). Em conseguinte, o dizer "restantes", por sua vez, constrói sentidos que relacionam constantemente esse período de três dias com o momento final, no qual o prazo se esgota. Sendo assim, destaca o decrescimento dos números, como se eles representassem um recurso que se esvai, e que "resta" cada vez menos. Dessa maneira, o texto constrói sentidos em torno de um tempo limitado, corrente, e preciso, mas também comparado a um recurso que deve ser gerido

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antes que acabe, que chegue ao seu limite. Essa temporalidade expressa pelos ditos e não-ditos desses letreiros relacionam-se com o tempo da Torre do Relógio. O tempo da Torre passa a agir sobre as ações de Link, que é impelido a enxergá-lo como um molde ordenador que regula as suas ações, e deve ser gerenciado precisamente como um recurso. Assim, enquanto os letreiros significam esse tempo do relógio e do calendário como limitado, corrente, quantificável, e como recurso, é no discurso de Talt que ele se revela, assim como o tempo da modernidade da Torre do Relógio, como uma força coercitiva. Ao chegar na Cidade do Relógio, a fada Talt diz: "Mas três dias? Mesmo se não dormirmos nunca, isso ainda nos deixa com meras 72 horas! Quanta pressão! Bem, não fique parado aí!". O dizer "nos deixa com", que não diz (não-dito) "há 72 horas", expressa uma relação parafraseática com um discurso de posse, ou seja, coloca as horas no sentido de recurso. Já o dizer "Quanta pressão!" empresta um significado de coerção para esse tempo, como se ele fosse um algo externo que aplicasse uma força modificadora em Link. Esse tempo da Torre do Relógio, que existia por causa do prazo da partida do Vendedor de Máscaras é substituído por um outro prazo: a queda da lua. A ameaça de destruição do mundo que torna aquele período limitado se sobrepõe ao objetivo do Vendedor de Máscaras, e empresta uma gravidade maior à missão de Link. Dessa forma, a lua é colocada como uma ausência de perspectiva de futuro além daquele período: ela o limita. Esse limite e ausência de perspectiva é significado não apenas temporalmente, mas espacialmente e emocionalmente. Enquanto a Torre do Relógio coloca-se como o marco zero que domina toda a Cidade do Relógio com o tempo da modernidade, Link fica preso na cidade, e dentro da sua maldição Deku. Assim, a força do Relógio, unida a limitação catastrófica da lua, criam um sentido de coerção, enclausuramento e desajuste.

Figura 21 – O guarda da Cidade do Relógio Fonte: http://img4.wikia.nocookie.net/__cb20091217223139/zelda/images/5/57/Clock_Town_Soldier.png

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Quando Link, amaldiçoado na forma de Deku, tenta sair da Cidade do Relógio, o guarda impede sua passagem, alegando que é perigoso uma criança sair sozinha além dos muros da cidade: "Espere um momento, Deku Scrub! É perigoso além dos muros da cidade, então eu não posso permitir que uma criança como você saia sozinha". Ao dizer "criança" e "sozinha", esse discurso parafraseia a formação discursiva que coloca a "criança" "desacompanhada de um adulto responsável", como indefesa e desprotegida. Quando Link tenta entrar na Gangue dos Bombers, ele é impedido de se tornar um membro de verdade por ser um Deku: "Você é bom para um Deku Scrub! Se você fosse humano... Então eu poderia dar um Caderno dos Bombers original e fazê-lo um membro". Ao dizer "você é bom para um Deku Scrub", e não dizer (nãodito) "você é um bom Deku Scrub", ou "você é bom, Deku Scrub", ou simplesmente, "você é bom"; é construída uma paráfrase com a expressão "você é bom para... (algo que deveria ser ruim)", equivalente nesse contexto a "você é bom, apesar de ser... (presumidamente ruim)", ou seja, de desmerecimento.

Figura 22 – A gangue dos Bombers Fonte: http://zeldawiki.org/images/9/94/Bombers.jpg

Esse desajuste social, motivado por discursos que colocam Link na incapacidade de uma "criança sozinha", e em uma raça "presumida mente ruim", significa em paralelo com o desajuste temporal. A falta de perspectiva causada pela lua, que torna o tempo limitado e coercitivo; une-se à falta de perspectiva espacial, que não consegue ver o que há além dos muros da cidade; e une-se à falta de perspectiva social, que não permite que Link participe do grupo dos Bombers. O próprio discurso da maldição de Link complementa tais sentidos. O texto

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narrativo do gameplay, ao dizer que Link se transforma em um homem-planta feito de madeira, constrói uma relação interdiscursiva com a fábula Pinóquio. Nessa interdiscursividade, a relação parafraseática configura-se no compartilhamento do desajuste entre o Pinóquio e Deku Link. Enquanto Pinóquio deseja transformar-se em um menino "real" para se adequar ao mundo do seu criador, a presença de Deku Link na Cidade do Relógio não se adequa aos humanos que ali habitam, e ser um menino de madeira restringe suas interações com aquele mundo. Porém, há uma relação de polissemia, ou seja, de deslocamento de sentidos, quando entendemos que o menino de madeira que é Deku Link, é uma versão "natural" preso em um ambiente "urbano", enquanto o Pinóquio é uma versão fabricada por um "humano" que não se adequa ao "natural" da carne e osso. Dessa forma, a maldição de se tornar um homem-planta se relaciona com esse desajuste na cidade: é como um ser da floresta viver num ambiente totalmente urbano.

Figura 23 – Deku Link na Cidade do Relógio Fonte: http://www.piranhazone.com/graphics/zelda/mm/gc/0003_1.jpg

Depois de lidar com o tempo e conseguir abrir a porta que leva para o topo da Torre do Relógio, Link encontra novamente com Skull Kid, que ameaça destruir Termina com a queda da lua. O herói ataca o antagonista e consegue recuperar a Ocarina do Tempo.

5.3.1.3 O fim do primeiro ciclo de três dias e a busca pelos guardiões

Esse momento compreende desde o ponto em que Link recupera a Ocarina, até o instante em que toca o Juramento do Ordem, e os quatro gigantes chegam para ajudá-lo 133

(Episódio 3, parcialmente; Episódio 4, 5, 6, 7, 10, 11, 12, 13, 16, 20, 21, 23, 26, 30, 32, 35, 36, 37, 39, 46 completos). Assim que Link recupera a Ocarina, é mostrado o seu encontro com Zelda, em um fundo branco de pouca visibilidade, como uma lembrança do herói. Em seu discurso, a princesa diz "parece que eu o conheço desde sempre", apesar de ter se aventurado com Link por pouco tempo. Assim, não-diz "parece que já o conhecia" ou "parece que já éramos amigos". A palavra "sempre" constitui sentidos de uma formação discursiva de ideologia contrastante à temporalidade da Torre do Relógio. Essa ideologia do dito “sempre” não expressa diretamente a atemporalidade, mas significa de acordo com uma visão de perenidade do tempo. Assim, flexibiliza a limitação temporal (do “antes” e “depois”) do tempo contínuo da Torre do Relógio, imposta pela falta de perspectiva de futuro da queda da lua. O "sempre” resgata a noção de que há um tempo antes, e consequentemente, pode haver um tempo depois.

Figura 24 – Lembrança de Zelda Fonte: http://zeldawiki.org/images/4/4e/MM_Zelda_Memory.png

Em conseguinte, a princesa Zelda cita em seu discurso palavras relacionadas ao universo religioso, como "estou rezando", "Deusa do Tempo" e "dar sua bênção". Esses ditos são uma extensão dos sentidos dos discursos religiosos, e carregam suas ideologias. Nesse processo, contribuem para a construção de um tempo característico dos rituais religiosos, ou seja, colocam a passagem do tempo como uma manifestação divina. Assim como o tempo da Torre do Relógio, esse tempo é tido como uma força maior e externa, mas diferente desse, não é referenciado como um recurso que deve ser aproveitado ao máximo, e sim como um fluxo benevolente que permite organizar as ações humanas e as mudanças naturais do mundo. Sendo

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assim, esse tempo da Deusa contribui para uma flexibilização da limitação do tempo da Torre do Relógio, e na construção de uma perspectiva de futuro além da queda da lua. Quando a cena retorna para o momento presente, Talt profere um discurso em que pergunta o que Link está fazendo "perdido em suas memórias". Ao dizer "perdido", e não (nãodito) "absorto", "concentrado", ou apenas "recordando", ela invoca sentidos de desorientação para esse tempo do passado. Todo o tempo que é anterior a imposição temporal da Torre do Relógio é colocado pela sua falta de referência, ou seja, como um desperdício de tempo como recurso, um tempo sem orientação e objetivo. Por outro lado, a fada pede ajuda para a Deusa: "Deusa do Tempo, nos ajude, por favor! Precisamos de mais tempo!" Essa formação empresta um sentido de benevolência para esse tempo ritualístico da perenidade. Além disso, estabelece uma relação polissêmica (de deslocamento de sentidos) quando relaciona os sentidos desse tempo perene da Deusa com os sentidos do tempo limitado e como recurso do tempo da Torre do Relógio. Essa relação polissêmica pauta-se na prece que pede algo quantificável (tempo recurso) para uma entidade que não quantifica esse algo (tempo perene). Dessa forma, implora que a perenidade do tempo da Deusa flexibilize a dureza da escassez da Torre do Relógio, ou seja, atualiza o tempo “natural” da Deusa para uma necessidade do tempo “social” Ao tocar a Canção do Tempo, Link e Talt retornam para o Amanhecer do Primeiro Dia. O herói passa a utilizar o poder de voltar no tempo para conseguir cumprir a missão de resgatar os quatro guardiões que foram amaldiçoados por Skull Kid. Com tal poder, ele consegue expandir o tempo que tem, para, assim, ser capaz de concluir suas jornadas. Porém, deve lidar com um efeito colateral de tais viagens: a perda de quase todos os itens que possui e o apagamento das interações que realizou. Assim, além de lidar com o tempo como recurso (mais flexibilizado pelo uso da Ocarina), Link deve lidar com as perdas que o reinício no tempo acarreta. Essa série de ciclos marcados por inícios e reinícios, e a capacidade de lidar com a desaquisição e o descarte que possibilitam essa sucessão de reinícios, estão relacionados com a liquidez do tempo característica da contemporaneidade. Dessa forma, enquanto no momento anterior, o herói precisa gerir um tempo recurso semelhante ao tempo da modernidade, nesse momento ele adquire uma ferramenta (a Ocarina) que flexibiliza essa primeira necessidade, mas instaura outra: ser capaz de gerenciar as perdas que as viagens no tempo implicam. Esses sentidos da temporalidade líquida pós-moderna são reforçados na trajetória de Link por Termina. Assim que o herói e a fada encontram com o Vendedor de Máscaras novamente, ele ensina a Canção da Cura, que liberta Link da maldição, e a transforma na Máscara Deku. Ele diz que a Canção "é uma melodia que cura magia maligna e espíritos

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atormentados", e não diz (não-dito) "que alivia", ou "que salva" ou que "liberta" espíritos atormentados. Assim, constrói um discurso que relaciona os tormentos desses espíritos com uma possível doença, uma aflição interna originada por um fator de que não se tem controle, mas que pode ser combatido por uma "cura". Além disso, o Vendedor diz que dá a Máscara Deku a Link "em comemoração a esse dia". Em seu dizer "comemoração", o seu discurso relaciona a “cura” da maldição como um evento especial, que deve ser lembrado na materialidade Máscara, ou seja, que deve tornar-se duradouro em uma continuidade temporal.

Figura 25 – Canção da Cura Fonte: http://zeldawiki.org/images/d/d9/Song_of_Healing_MM.png

Enquanto a trama prossegue, a Canção da Cura é usada em algumas cenas chaves do game. Durante a aventura de Link pelas Montanhas do Norte, o herói encontra com o fantasma de Darmani III. Darmani era um renomado herói que morreu enquanto tentava chegar no templo onde vivia o demônio que amaldiçoava sua terra com um frio extremo. Quando morreu, tornouse um fantasma que, de acordo com seu discurso, pode "apenas assistir enquanto a Vila Goron é enterrada por gelo... Eu posso ter morrido, mas eu não consigo descansar". O dito "não consigo descansar" atrelado ao dito da morte, resgatam sentidos que expressam o ato de morrer como um acontecimento que deveria aliviar um estado de cansaço, mas não o faz. Desse modo, a Canção da Cura é colocada como uma alternativa de descanso mais eficaz que a própria morte, ou seja, passa a ser a solução definitiva de uma doença referente ao cansaço, à fadiga de permanecer em um estado de vida (ou semivida) que dura excessivamente, além do que deveria. Assim, enquanto a morte que não se comporta como um fim definitivo (já que Darmani permanece como um fantasma), cabe à Canção da Cura esse papel de liquidar a duração

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excessiva da existência. O único resquício que permanece além desse fim definitivo é a Máscara Goron, que representa a alma de Darmani e o desejo heroico de salvar sua terra.

Figura 26 – O fantasma de Darmani III Fonte: http://zeldawiki.org/images/7/7c/MM_Darmani.png

Durante a aventura de Link pela Grande Baía, o herói encontra com o guitarrista Mikau, à beira da morte. Mikau tentava resgatar os ovos da sua parceira Lulu, mas foi atacado pelas piratas Gerudo e fracassou em sua missão. Antes de morrer, ele implora para que Link salve os ovos, e diz: "mesmo se eu morrer... Eu não ficarei em paz...". Mais uma vez, o dito da morte tem seus sentidos relacionados com um sentido de paz. Porém, ainda é colocada como insuficiente nessa garantia de paz, e a Canção da Cura figurava novamente como um alívio mais eficiente. Ela torna-se a morte definitiva, que cura a "doença" que perturba a “paz” da vida, ou seja, que cura a impotência de um moribundo perante um objetivo inatingido. Entretanto, mais uma vez, um resquício permanece alheio ao fim proporcionado pela Canção da Cura, já que quando a alma de Mikau é libertada, transforma-se na Máscara Zora.

Figura 27 – O moribundo Mikau Fonte: http://zeldawiki.org/images/e/ec/MM_MikauBeached%28LikeAWhale%29.png

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Esse processo repete-se na aventura de Link pelo Vale de Ikana. Assim que o herói chega no local, é interceptado pelo misterioso Colecionador de Fantasmas, que diz que Ikana "é um lugar onde os espíritos com problemas e arrependimentos rastejantes vagam". Ao dizer "arrependimentos rastejantes", o discurso compara as angústias dos espíritos com um deslocamento moroso e vagaroso, e, em conseguinte, deixa implícito que o estado em que não há essa angústia é um estado de movimento veloz e livre das forças do passado (livre do “peso” desacelerador que os arrependimentos implicam). Da mesma forma, a "libertação" dessas almas resulta na aparição de uma máscara, como no caso do Capitão Keeta. Capitão Keeta é o falecido capitão do exército de Ikana que, após ser derrotado por Link, pede para que, por meio da Máscara do Capitão, transmita as "palavras a meus homens" e "diga a eles que a guerra acabou". Concordando com os exemplos anteriores, a duração excessiva da “guerra” é colocada como a angústia, e a "paz" como o alívio de um fim definitivo.

Figura 28 – O esqueleto de Capitão Keeta Fonte: http://zeldawiki.org/images/8/83/MM_SkullKeeta%28Battle%29.png

Nesses três exemplos, existe alguma aflição que é representada nos ditos como um estado de cansaço (Darmani não consegue descansar), tormenta (Mikau não consegue ficar em paz), ou de guerra (os subordinados de Capitão Keeta ainda vivem em guerra). A angústia desses estados é potencializada pela sua duração excessiva, pela sua vagarosidade e restrição (Darmani assiste impotente ao congelamento de sua terra, Mikau assiste impotente ao sequestro dos ovos de Lulu, Capitão Keeta assiste impotente a insistência de seus soldados). A morte,

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presumidamente, figuraria como o fim para essa duração excessiva e impotente. Entretanto, não se revela suficiente no alívio desse estado, possibilitando um estado decadente de semivida (Darmani torna-se fantasma, Mikau torna-se um moribundo, Capitão Keeta torna-se um esqueleto). A Canção da Cura, por sua vez, sobrepõe-se à morte, e coloca-se como um fim definitivo à existência, capaz de aliviar essa continuidade perniciosa que a morte não foi capaz de extinguir. Assim, Link evidencia-se como o portador da cura de uma doença recorrente: a impotência de um estado de semivida, que insiste em durar além do que deveria. Porém, em todos os casos, uma evidência física surge desse fim definitivo: as máscaras. As máscaras permitem que parte desse estado de duração angustiante permaneça além do fim proporcionado pela Canção da Cura. Assim, ela funciona como um amuleto que lembra constantemente da promessa de Link em resolver os problemas que afligiam os seres que curou (Darmani pede que Link salve sua terra, Mikau pede que Link resgate os ovos, Capitão Keeta pede que Link avise seus soldados que a guerra acabou). Apenas por meio da garantia de resolução que as máscaras representam (ou seja, por meio da permanência de algo durável, que transcenda o fim definitivo da Canção da Cura), os espíritos permitem-se cessar sua existência. Esses processos têm seus sentidos relacionados à fluidez dos tempos contemporâneos, já que atestam o valor de uma libertação desaquisitiva, do descarte. Dessa forma, a duração excessiva é colocada como um estado doente de semivida, e a cura para esse estado é orientada para uma fluidez que não se prende aos arrependimentos do passado (capaz de se “desprender”, de descartar tais arrependimentos). Porém, essa capacidade fluida de desprendimento e libertação deve estar ancorada na confiança de que Link resolverá os arrependimentos do passado. Essa confiança materializa-se na durabilidade das máscaras, que, alheias à morte dos seres angustiados, fazem permanecer as vontades de solucionar os arrependimentos. Assim, mesmo que haja a valorização da capacidade de desaquisição, há também a valorização de algo que permaneça e sobreviva além dessa desaquisição. Curiosamente, essas máscaras permitem que Link se transforme nos seres que libertou quando quiser, e portanto, o herói é capaz de controlar as durações em que é Darmani, Mikau, ou Capitão Keeta. Com esse controle, não se prende a uma duração excessiva: usa elas ao seu favor. Esses sentidos se reafirmam quando notamos que as máscaras são um dos poucos itens que se mantém constantes nas viagens de Link pelos ciclos temporais de três dias. Ao mesmo tempo que os ditos do game desvalorizam os sentidos de vagarosidade e duração excessiva (tanto nos conflitos de Darmani, Mikau e Keeta, como na iminente queda da lua), e colocam a necessidade da fluidez do tempo (na Canção da Cura e nas viagens do tempo); eles também

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marcam a importância de artefatos duradouros que carreguem uma promessa ou missão cumprida, ou seja, que permitam que uma certa durabilidade sobreviva aos fins. Curiosamente, as máscaras, que representam essa durabilidade, também referem-se aos sentidos dos rituais, já que figuram como seus instrumentos de simultaneidade. Assim, elas também inspiram a durabilidade por meio do poder ritualístico de marcar a ciclicidade e o retorno ao passado. Em suma, o tempo pós-moderno da fluidez é reforçado pelo tempo ritualístico das máscaras, que permitem uma desaquisição parcial, pois, apesar de inscrita em uma sucessão de ciclos que exigem o descarte, deve serviço a um objetivo constante e duradouro. Portanto, as máscaras revelam-se como a benevolência da perenidade do tempo da Deusa na lógica do tempo fluido e desaquisitivo.

Figura 29 – Todas as máscaras Fonte: http://www.zeldadungeon.net/wp-content/uploads/2014/06/masks.jpg

A presença do tempo ritualístico da Deusa também tem seus sentidos expressos na importância que as lembranças figuram nessas missões que Link enfrenta. A lembrança revela sua importância no momento em que Link se recorda de Zelda ensinando-lhe a Canção do Tempo, no momento em que o Goron Ancião e seu filho se recordam da Canção de Ninar Goron, no momento em que o Rei de Ikana se recorda do sentimento que tinham de perdoar o fracasso e ensina a Elegia do Vazio. Essa importância é expressa diretamente no discurso de Lulu: "essa canção que você tocou para mim... Minha mãe costumava tocar para mim... Há muito tempo... Aqueles ovos foram botados para me lembrar disso”. Esses ditos geram relações de paráfrase com sentidos ideológicos da perenidade do tempo da Deusa. A recordação de

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tempos antes da limitação do tempo da Torre do Relógio é colocada como mais uma arma para lidar com a falta de perspectiva de futuro que a lua impõe. No que se refere a essa falta de perspectiva, durante esse momento do game, o herói gradativamente expande as perspectivas espaciais que o limitavam no momento em que era amaldiçoado a ser um Deku. Enquanto os guardas impediam a saída de Link da Cidade do Relógio, alegando que ele era uma "criança", nesse momento eles proferem um discurso que nega esse sentido em Link: "não deveria tratá-lo como uma criança". Dessa forma, ele é capaz de avançar por Termina, e alivia o sentido de enclausuramento e desajuste. Durante a aventura, essa abertura de perspectiva espacial é potencializada, já que as transformações (em Goron Link e Zora Link), e o reencontro com Epona, permitem que sua capacidade de velocidade aumente gradativamente. Quando Link encontra com Kaepora Gaebora, ela ensina-lhe a Canção do Voo, capaz de transportá-lo instantaneamente para os lugares que já passou. Essa capacidade, além de aumentar a perspectiva espacial ainda mais, relaciona-se com a instantaneidade de acesso espacial, característico do tempo pós-moderno. As transformações de Link, que permitem que o herói viva múltiplas vidas, também relacionam-se com esse tempo pós-moderno. Eles figuram como uma arma que é comparável às múltiplas vivências que a virtualidade instantânea permite no mundo contemporâneo. Através dessas vivências, é possível lidar com a angústia da limitação temporal do tempo moderno.

Figura 30 – Epona Fonte: http://zeldawiki.org/images/0/0e/MM_Epona2.png

Em suma, o herói torna-se um representante da perenidade do tempo ritualístico da Deusa, que apenas se faz como alternativa para o tempo limitado da Torre do Relógio por meio 141

do tempo pós-moderno da fluidez e da capacidade desaquisitva. Essa alternativa constitui-se na capacidade de voltar no tempo (lidando com o descarte dos itens e interações feitas), e na capacidade de libertar os espíritos acorrentados a durações excessivas (lidando com a necessidade de solucionar os problemas que os atormentam). Porém, esse tempo fluido ainda deve serviço a perenidade do tempo da Deusa, que se afirma na presença das máscaras (constantes nas viagens no tempo, e representantes duradouras das promessas feitas aos espíritos angustiados). Dessa forma, a limitação do tempo da Torre do Relógio é gradativamente flexibilizada, e, da mesma forma que a perspectiva espacial se expande, a perspectiva de futuro parece se sobrepor cada vez mais a presença destrutiva da lua. No fim, Link encontra Skull Kid e Majora, e a batalha final ocorre.

5.3.1.4 A batalha final

Esse momento compreende desde o ponto em que Link toca o Juramento à Ordem e invoca os quatro gigantes guardiões de Termina até o ponto em que derrota o demônio Majora (Episódio 52 completo; Episódio Finale - Parte 1 completo; Episódio Finale - Parte 2, parcialmente).

Figura 31 – Gigantes impedem a queda da lua Fonte: http://zeldawiki.org/images/3/30/Four_Giants.jpg

Link encontra novamente com Skull Kid, no topo da Torre do Relógio, e toca o Juramento à Ordem. Nesse momento, os gigantes guardiões de Termina aparecem e evitam a queda da lua com todas as suas forças. O dito "Juramento da Ordem", resgata sentidos que colocam a canção como uma manifestação que pretende gerar a resistência de uma ordenação. Essa ordenação é ameaçada por um desordenação, expressa pela iminente queda da lua. A lua é colocada como a representante maior dessa desordem, e é o algo que a inovação dos gigantes pretende impedir. Ela expressa o caos de mergulhar o mundo em chamas, a falta de perspectiva 142

de futuro, a destruição do tempo ordenado (em sua queda, choca-se diretamente com a Torre do Relógio). A Torre do Relógio, por sua vez, é colocada como a ordem que deve ser protegida, representante maior da Cidade do Relógio e da orientação que seu tempo pode garantir. Em suma, o estado de falta de perspectiva da queda da lua é reafirmado pelo caos e falta de orientação que pode provocar destruindo o mundo previsível e orientado pela Torre do Relógio. Quando Majora revela ser o verdadeiro vilão e força a queda da lua, o astro pronuncia o discurso: "Eu... Eu devo consumir. Consumir... Consumir tudo." O dito "consumir", e o nãodito "destruir", "aniquilar", "devastar", invoca uma formação discursiva que relaciona a queda da lua com o processo de utilizar um recurso até esgotá-lo, consumi-lo. Em conseguinte, esse "consumo" está relacionado com a fluidez da pós-modernidade, e os ciclos de consumo defendidos por Campbell e Santi (consumo esse que não refere-se diretamente ao esgotamento, mas também está relacionado com seus sentidos). Esses sentidos são explorados na entrada de Link ao mundo do interior da lua.

Figura 32 – A fala da lua Fonte: http://bulk2.destructoid.com/ul/user/3/3282-198358-moonfacejpg-620x.jpg

Quando Link é projetado para o interior da lua, ele se encontra em um espaço de natureza onde o tempo não é marcado. Essa natureza é um dito que forma uma relação parafraseática desse espaço com o momento do início do game, em que havia o tempo “natural”, anterior à imposição do tempo da Torre do Relógio. O dito da árvore central constrói uma relação polissêmica com a Torre do Relógio, ou seja, de deslocamentos de sentido, pois, enquanto a Torre do Relógio é posta como um monumento central, altivo, urbano, orientador, e coercitivo; a árvore, que também é central e altiva, é colocada como natural e liberta do tempo marcado. Assim, como uma recordação a um tempo “natural”, anterior à limitação dos três dias marcados, os sentidos desse mundo do interior da lua relacionam-se com o tempo perene da

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Deusa. Esse tempo da Deusa é marcado pelos sentidos da lembrança (contra a limitação do tempo da Torre), e pelos sentidos da natureza (contra a coerção urbana da Torre), flexibilizando o tempo recurso e marcado que Link teve que lidar. Entretanto, outras questões são trazidas pelas crianças que habitam esse mundo. Todas elas utilizam máscaras, invocando os sentidos ritualísticos que esses artefatos representam. Dessa forma, reiteram os sentidos de durabilidade e perenidade do tempo da Deusa, que também é ritualístico. Porém, de acordo com as interações com Link, as crianças partem, e apenas fica a criança vestindo a Máscara Majora. Ela diz que "todo mundo foi embora", e propõe que Link brinque com ela de "mocinhos contra vilões", sendo que Link é o vilão, e "quando você é o vilão, você apenas corre". Quando diz que "todo mundo foi embora", esse discurso relaciona a partida das outras crianças com os fins que a Canção da Cura proporcionou às almas encontradas pela jornada de Link (Darmani III, Mikau, Capitão Keeta). Entretanto, no discurso da criança, esses sentidos de partida não são valorizados, mas desvalorizados. Essa desvalorização daqueles que vão “embora” é reforçado quando a criança diz que Link, por ser o vilão, "apenas corre". Nesse dito, ela coloca o sentido de deslocamento veloz como algo de baixo valor, mesmo que, durante a aventura, seja a duração excessiva (o “rastejar”, o prenderse aos arrependimentos do passado) a angústia que deve ser “curada”. Dessa forma, a criança parece ir contra a lógica de que a melhor alternativa seja ir "embora", ou "correr", para, assim, evitar que um estado contínuo de permanência e vagarosidade se estenda além do que deveria.

Figura 33 – A Máscara Majora Fonte: http://zeldawiki.org/images/1/16/MajoraMask.png

Quando Link enfrenta Majora, ele enfrenta um representante de um tempo "natural", anterior à Torre do Relógio. Isso é reafirmado no dito do Vendedor de Máscaras sobre a Máscara Majora: ela é de uma "tribo antiga". Esse dito empresta sentidos contrários à 144

urbanização inscrita na lógica do tempo da Torre do Relógio, colocando-a efetivamente como a representante de um tempo “natural”. Porém, esse tempo "natural" de Majora revela-se discordante ao tempo da Deusa, pois, diferente dessa, não se estabelece nos sentidos de tempo fluido da pós-modernidade. O tempo de Majora é um tempo "natural" que não aceita os ciclos desaquisitivos e a fluidez do tempo contemporâneo, e insiste na permanência de um estado excessivamente duradouro. Essa duração excessiva, como colocada durante as várias missões de Link, torna-se uma "doença", uma falta de perspectiva que revela-se, finalmente, como o terror da queda da lua.

Figura 34 – A Ira de Majora Fonte: http://zeldawiki.org/images/5/51/Majora%27s_Wrath_2.png

Assim, ocorre a batalha final. Majora coloca-se como o representante do tempo “natural” que não se adequa ao tempo “urbano” da Torre do Relógio, e, assim, defende a resistência de um refúgio atemporal, no qual não há continuidade e marcação coercitiva. Essa resistência não pretende lidar com a continuidade do tempo (ou seja, com as mudanças que ele implica), e, assim, gera uma aniquilação destrutiva da perspectiva de futuro, mergulhando o mundo em um estado desordenado, onde não há tempo. Link, por sua vez, é o representante do tempo da Deusa, que também é “natural” e contrastante à coerção da Torre do Relógio. Entretanto, o herói permite-se lidar com o tempo da Torre do Relógio, por meio de um tempo ritualístico, que imprime ciclicidade e perenidade a esse tempo urbano contínuo e limitado. Assim, durante sua aventura, o tempo ritualístico da Deusa é capaz de transformar o tempo da Torre do Relógio em um templo fluido, em que os fins e reinícios estão inscritos em uma

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capacidade de aceitá-los. Majora não aceita nem a coerção da Torre do Relógio, nem a capacidade desaquisitiva que a forma ritualística de lidar com ela exige e permite. A alternativa de Majora é a destruição da continuidade, e a durabilidade de um estado que não se sustenta mais em um mundo onde o que dura demais torna-se “doença”. No fim, enquanto Majora defende o tempo “natural” como a destruição da continuidade e manutenção de um instante atemporal insustentável, Link defende o tempo “natural” como o poder ritualístico que transforma a coerção da Torre do Relógio em uma fluidez pós-moderna, garantindo ciclicidade, capacidade de desaquisição, e perenidade a esse tempo contínuo.

5.3.1.5 A resolução

Esse momento compreende desde a vitória de Link sobre o demônio Majora até o fim do game (Episódio Finale - Parte 2, parcialmente).

Figura 35 – Amanhecer de um Novo Dia Fonte: https://31.media.tumblr.com/tumblr_m3xmp3tfpd1rsw35fo4_1280.png

Assim que o herói vence o vilão, um letreiro muito semelhante aos de contagem de dias e horas aparece. Assim, ocorre uma relação parafraseática, pois há semelhança com os formatos dos letreiros de contagem anteriores; mas ocorre também uma relação polissêmica, pois a tela é apresentada na cor branca, e consta apenas o dito "Amanhecer de um Novo Dia" (com o nãodito do número de horas restantes, e o número do dia). Esses não-ditos exploram que o tempo da Torre Relógio foi definitivamente flexibilizado, e a perspectiva de futuro da perenidade do tempo da Deusa permitiu um "depois", além do limite dos três dias. Assim, o dizer "um novo dia" faz subentender que havia um "velho dia", ou seja, marca a existência de um passado, que

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não havia no dito "Primeiro Dia". Além disso, o não-dito das horas restantes marcam a existência de um futuro: o futuro não é limitado ao fim do tempo como recurso. A lua desaparece, e Skull Kid, arrependido, pede desculpas aos guardiões de Termina. Em seu discurso, ele diz: "Eles não se esqueceram de mim". Ao dizer esquecer, ele coloca os sentidos da lembrança não só como a arma contra a limitação do tempo da Torre do Relógio e falta de perspectiva do tempo da lua, mas como a forma de lidar com a inconstância do tempo fluido que permitiu a continuidade. Sendo assim, reconhece o valor que a lembrança de seus amigos tem, aliviando a ideia de que eles se "esqueceram", ou seja, o temor de que, nesses processos de desaquisições fluidas, a constância das lembranças se perdesse.

Figura 36 – Skull Kid pede desculpas Fonte: http://img4.wikia.nocookie.net/__cb20090811184933/zelda/images/6/64/Skull_Kid_(without_mask).png

O Vendedor de Máscaras recupera a Máscara Majora e parte para uma nova viagem. Em seu discurso de despedida, diz, sobre as partidas e encontros: "essa partida não precisa durar para sempre... Se uma partida vai durar para sempre ou por um curto período de tempo... Isso depende de você". Nesse dito, ele reafirma o valor da fluidez como ciclos de "encontros" e "partidas", mas defendendo que a "partida" não seja uma desaquisição total, que não dure "para sempre". Ou seja, reafirma a importância da constância e da perenidade do tempo da Deusa na fluidez do tempo.

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Figura 37 – Vendedor de Máscaras Feliz parte Fonte: http://www.zeldainformer.com/images/articles/398357-208_super.jpg

Finalmente, Talt lembra a Link do Festival do Tempo, que finalmente ocorrerá. Esse último dito marca a vitória de Link perante a falta de perspectiva do tempo da Torre do Relógio por meio da perenidade do tempo da Deusa. Ressalta que, a perenidade do tempo deve estar aliada a fluidez do tempo pós-moderno, mas deve serviço a uma certa perenidade e durabilidade, que, nesse caso discursivo, é representado pelo poder de invocação do passado e ciclicidade do tempo garantida pelo ritual. A última cena mostra um entalhe em um tronco de árvore representando Link, Skull Kid, e as duas fadas. Como um amuleto duradouro, esse desenho expressa seus sentidos de capturar a transitoriedade de um evento passado, ou seja de um encontro que inevitavelmente tornou-se partida. Assim, marca novamente a durabilidade da lembrança e não do arrependimento. É uma durabilidade fluida, que vê perspectiva de futuro, que não o sabota.

Figura 38 – O fim Fonte: http://zeldawiki.org/images/0/04/MM_End_Credits.jpg

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5.3.2 A narrativa de Anju e Kafei

Essa sidequest envolve a união dos noivos Anju e Kafei. Anju é a dona da estalagem Stock Pot e Kafei é o filho do prefeito e da primeira-dama, e os dois pretendem casar-se no dia do Festival do Tempo, para garantir boa sorte e prosperidade ao matrimônio. Entretanto, dias antes do Festival, Kafei é amaldiçoado por Skull Kid e transforma-se em uma criança. À procura de ajuda, ele tem a Máscara do Sol roubada pelo ladrão Sakon. Essa máscara é um item cerimonial que deveria ser trocado com a Máscara da Lua, de Anju, de acordo com uma antiga promessa do casal. Como Kafei prometeu que essa troca de máscaras ocorreria, ele esconde-se em um lugar onde pode espionar a loja que o ladrão vende seus itens roubados, e, assim, encontrar seu esconderijo. Enquanto isso, entrega o Pingente das Memórias para Anju, para que ela permaneça confiando em sua promessa e não fuja da Cidade do Relógio. Com algumas horas antes da queda da lua, Kafei recupera o item cerimonial, encontra com Anju em sua estalagem, e os dois finalmente trocam as máscaras. No fim, formam um casal, prontos para saudar o novo amanhecer. Essa sidequest contempla desde o momento em que Link consegue a Máscara do Kafei, até o momento em que o casal se reúne, e, na troca da Máscara do Sol e da Máscara da Lua, formam a Máscara do Casal (Episódios 49 e 50, parciais).

Figura 39 – Anju Fonte: http://zeldawiki.org/images/c/cc/Anjumm.png Figura 40 – Kafei Fonte: http://zeldawiki.org/images/6/61/Kafei4.png

Kafei refugia-se em seu esconderijo para que possa espionar a loja que o ladrão que o roubou frequenta, podendo assim cumprir a promessa de trocar as máscaras cerimoniais com 149

Anju. Entretanto, sem informações e ameaçada pela queda da lua, Anju é impelida a fugir da Cidade do Relógio, acreditando na a hipótese de que Kafei a abandonou. Por isso, Kafei, para garantir que ela permaneça, entrega o Pingente da Memórias, reforçando a lembrança e confiança de Anju na promessa de seu amado. Ao dizer "memórias" para se referir a esse item, o discurso do game constrói os sentidos de lembrança de um passado que é anterior ao limite dos três dias. Essa lembrança, que é o acesso a esse momento “antes”, é colocada como um poder capaz de subverter as ações que se fariam necessárias em um tempo limitado e escasso como o da Torre do Relógio. Dessa forma, enquanto o tempo cada vez mais limitado por uma falta de perspectiva de futuro e passado exige que ações sejam tomadas rapidamente e de acordo com a iminência desse fim apocalíptico; o Pingente das Memórias exige ações que considerem a perspectiva do passado (da promessa) e a perspectiva de futuro (da confiança de que a promessa será cumprida). Assim, o Pingente das Memórias possibilita que a escassez desesperadora do tempo da Torre do Relógio seja enfrentada, pois garante a perenidade do tempo: garante que ele se faça presente além do limite coercitivo dos três dias.

Figura 41 – O Pingente das Memórias Fonte: http://zeldawiki.org/images/4/4d/MM_PendantOfMemories.png

Se Link não entrega o Pingente das Memórias para Anju, ela tem uma conversa com a mãe, na qual é dito por essa última: "Voltar para quê?? Essa cidade não será destruída pela lua na manhã de depois de amanhã? Esqueça a carta. Por agora, tente sobreviver". Ao dizer "esqueça", esse discurso reforça os sentidos do tempo da Torre do Relógio, já que se opõe à "lembrança" capaz de enfrentá-lo. Dessa forma, o "esquecer" desse discurso reforça a limitação temporal da Torre do Relógio, e destaca a coerção que esses limites impõe (desvalorizando a perenidade de um tempo que não é recurso). Assim, impõe o "esquecer" ao "lembrar", e colocase contra a possibilidade de um tempo de resgate do passado (promessas) e de expectativas de futuro (promessas a serem cumpridas). O único momento a ser valorizado é aquele que está 150

entre os três dias, o agora. A mãe de Anju também diz "por agora", e esse dizer ressalta tal importância em gerir as suas ações imediatamente (sem perspectiva de passado e futuro) a fim de não gastar tempo e geri-lo como recurso.

Figura 42 – A conversa entre Anju e sua mãe Fonte: http://www.zeldaeternity.com/majoras-mask/images/mm-anju&kafei-optional3.jpg

Quando Kafei recupera a Máscara do Sol do ladrão Sakon, ele apressa-se para reencontrar com Anju e realizar a troca de máscaras antes que a lua caia. Assim, Kafei diz que: "Ainda há tempo!" e "Eu preciso voltar para a cidade!". Em seu discurso, ressalta-se o poder coercitivo do tempo como recurso escasso, frente a uma ausência de perspectiva de futuro. Assim, para conseguir cumprir o evento que prometeu, um evento que depende da perenidade do tempo (das lembranças do "antes" e da expectativa do "depois"), ele deve saber lidar com esse tempo da Torre do Relógio, que não é perene e está prestes a se esgotar. Mesmo lutando pela perenidade, deve lidar com a escassez do tempo.

Figura 43 – Kafei recupera a Máscara do Sol Fonte: http://www.zeldadungeon.net/Zelda06/Anju&Kafei/Event10b.jpg

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Anju está esperando em sua estalagem, enfrentando o tempo que se esgota frente uma falta de perspectiva de futuro. A força para enfrentá-lo está na confiança de uma promessa marcada na lembrança de um passado anterior a esses três dias. Quando Kafei chega e cumpre sua promessa, esse passado é celebrado, e a falta de perspectiva de futuro da queda da lua perde sua força perante a atemporalidade daquele instante de união. A celebração desse passado tem seus sentidos expressos no discurso de Anju, que diz: "Eu... Eu o conheci antes. Que aroma familiar. Há muito, muito tempo... Sim. Nós ainda éramos jovens. Nós fizemos uma promessa... Não é?". Ao dizer "antes", esse texto constrói uma relação polissêmica, de deslocamento de sentidos, com a noção de ordenação crescente construída pelos letreiros que anunciam o dia e as horas restantes. O dizer "antes" marca o resgate de um tempo anterior aos três dias contados, o tempo das lembranças. Esse tempo também é significado no período do jogo no qual o jogador ainda não chegou na Cidade do Relógio, e não foi exposto ao conflito principal. Nesse momento "antes", o tempo revela seus sentidos próximos a um certo tempo "natural", que não exige marcações, limites, e exigência de geri-lo. Da mesma forma, ao dizer que "há muito, muito tempo", o discurso compõe uma indeterminação numérica que também constrói uma relação polissêmica com os sentidos do tempo escasso da Torre do Relógio. A marcação na tela do game e os discursos dos letreiros (que avisam o dia e as horas restantes) representam uma precisão matemática que resgata uma ideologia de tempo como algo quantificável, que precisa ser quantificável para ser gerido como recurso ameaçado pela escassez. Assim, ao dizer "há muito, muito tempo", e não-dizer "há 3 anos", ou "há 4 festivais", os sentidos de exatidão matemática são desvalorizados, reforçando os sentidos de um tempo que não é um recurso, e, portanto, não necessariamente deve serviço a uma exatidão contábil.

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Figura 44 – Kafei e Anju reunidos Fonte: http://zeldawiki.org/images/4/4a/Kafeianjureunited.png

Curiosamente, o casal prometeu que realizaria a troca das Máscaras do Sol e da Lua no dia do Festival do Tempo. A simultaneidade entre esses dois eventos constrói uma relação de sentidos entre o casamento de Anju e Kafei e o caráter ritualístico do Festival. A união de Anju e Kafei é colocada de acordo com a temporalidade característica dos rituais, e, portanto, com a perenidade do tempo da Deusa. Assim, configura-se como uma alternativa à coerção do tempo da Torre do Relógio. Dessa forma, Anju e Kafei apoiam a resistência de sua promessa por meio de uma temporalidade, que, construindo a revisita ao passado e a promessa do acesso à eternidade por meio da ciclicidade dos rituais, alivia a ausência de perspectiva de futuro e a coerção do escasso tempo da Torre do Relógio. Nesse sentido, dialoga com as relações temporais da narrativa principal, já que essas colocam a perenidade do tempo ritualístico da Deusa como a forma de lidar com a coerção do tempo da Torre do Relógio. Anju e Kafei complementam, na troca de máscaras, os sentidos do Festival do Tempo como resistência a falta de perspectiva da queda da lua. No discurso final, Anju e Kafei pedem para Link procurar abrigo e afirmam que ficarão ali, para que possam "saudar o amanhecer... Juntos". Essas últimas palavras marcam o fim da sidequest e a disposição final para enfrentar a ameaçadora falta de perspectiva de futuro. Dessa forma, elevam a atemporalidade da sua união (que, simultânea ao Festival do Tempo, relacionase com os sentidos de eternidade e ciclicidade dos rituais) como uma força capaz de enfrentar a coerção do tempo que corre para o fim, para o limite.

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Entretanto, dessa vez, essa última decisão marca a perenidade do tempo da Deusa pela valorização da atemporalidade do instante. Como Santi investiga, a força dessa atemporalidade pauta-se justamente pela capacidade quase ilimitada de sensações que ela pode provir. Sendo assim, esses acontecimentos relacionam-se com a temporalidade pós-moderna, na qual a falta de perspectiva e imprevisibilidade de futuro exigem que os instantes sejam valorizados como redutos absolutos (já que são atemporais) em seus estímulos cada vez mais intensos. A união entre Kafei e Anju, marcada pela possibilidade de "saudar o amanhecer... Juntos" revela-se como um desses instantes, que em sua capacidade de sensações (o amor entre os dois), colocase como uma alternativa à instabilidade do tempo que corre (a queda da lua). Porém, diferente de Majora, o casal não impõe uma resistência contra o fim desse estado atemporal. Ancorados em seu instante de união, aceitam o fim, e o referenciam não como um desastre, mas como "o amanhecer", que deve ser admirado, e não temido. O dizer "saudar o amanhecer" constrói relações de sentido com o tempo "natural". O tempo "natural" (ressaltando que o tempo não é "natural" por definição, já que está inscrito em intenções sociais) representa um nível de síntese menos elevado, já que depende da manifestação direta das forças regulares da natureza. Assim, ao dizer "amanhecer", ou seja, ao tomar como referência um evento natural e não uma marcação em um relógio, por exemplo, há um resgate ao tempo da Deusa, que não deve serviço à marcação precisa do tempo da Torre do Relógio. Em suma, nessa última sentença, são reforçados os sentidos de um tempo anterior aos limites dos três dias, em que o "amanhecer" é valorizado como uma regularidade natural insubordinável à imprevisibilidade de um tempo escasso e uma ausente perspectiva de futuro.

Figura 45 – Kafei e Anju prontos para saudar o amanhecer Fonte: http://zeldawiki.org/images/e/ed/Anjukafei.png

O tema da temporalidade está na sidequest de forma semelhante ao modo como está na narrativa principal. O conflito dessa narrativa secundária é colocado como a escassez do tempo da Torre do Relógio frente à necessidade de cumprir uma promessa. Essa promessa relaciona-

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se com o tempo da Deusa, que garante a perenidade e a ciclicidade. Por meio da lembrança, o tempo da Deusa torna possível enfrentar o tempo da Torre do Relógio, e, finalmente, torna possível um instante atemporal de união e amor, que, expressando as características de um tempo pós-moderno, alivia a dor do fim. 5.3.3 A narrativa do Carteiro

Essa sidequest envolve o conflito do Carteiro, o homem responsável pela entrega de correspondências na Cidade do Relógio. Nas últimas horas antes da queda da lua, o Carteiro vê-se apavorado pelo iminente apocalipse, mas sente-se impedido de fugir porque tem que cumprir a programação de entregas (Episódio 50, parcial).

Figura 46 – O Carteiro Fonte: http://zeldawiki.org/images/e/ed/Anjukafei.png

O Carteiro é um homem que respeita fielmente a sua programação de trabalho, contando com uma gama de instrumentos de medição temporal como relógios e calendários. Ele adequa às suas ações do dia-a-dia de acordo com a temporalidade da Torre do Relógio, para que assim possa organizar toda a sua jornada de trabalho de acordo com as relações sociais que envolvem os correios. O tempo da Torre do Relógio permite que seu trabalho seja estritamente regulado e organizado, e funcione como um meio de comunicação eficiente no contexto urbano da Cidade do Relógio. Os ditos dos calendários e dos relógios resgatam sentidos da temporalidade moderna, característica do tempo da Torre do Relógio. Nesse sentido, esses instrumentos de medição

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convocam uma impressão de tempo como fluxo, e expressam uma necessidade de marcar numérica e precisamente essa "passagem". A função desse tempo é ser efetivamente capaz de regular e organizar as ações sociais em um ambiente de industrialização e urbanização. O Carteiro, submetendo toda o seu cotidiano a esse tempo, é o representante maior dessas dinâmicas. O conflito ocorre quando a continuidade desse tempo é interrompida pela falta de perspectiva de futuro trazida pela potencial queda da lua. O Carteiro, confrontado pelo fim desastroso, quer fugir, mas a obrigação de regular suas ações de acordo com o tempo da Torre do Relógio se sobrepõe a esse desejo. Ele diz: "Ohhh... Eu quero fugir! M-mas, não está escrito na programação. P-para mim, a programação de entregas... É a m-mais alta prioridade." Ao dizer que o seu desejo de fugir não está "escrito" na programação, o game compara esse instrumento de medição temporal com um código de linguagem (no caso, da escrita, das palavras). Assim, coloca esse código de linguagem como um instrumento (programação) que manifesta o tempo marcado, e respeitar esse código torna-se respeitar a esse tempo ordenador. Dessa forma, qualquer coisa que não esteja inscrita nessa linguagem, ou seja, escrita nessa ordem, não é válida para a função social do tempo da Torre do Relógio. Nos capítulos anteriores, compreendemos que o tempo é uma linguagem, no sentido que envolve um código de signos que é compartilhado e comunicado entre um coletivo de pessoas. Porém, essa linguagem do game refere-se a um tempo de natureza específica, já que essa programação obedece a função social de um agente social que é O Carteiro. A impossibilidade de fuga do Carteiro está relacionada com a não-inserção na programação, e, por conseguinte, na não-adequação dessa ação com o tempo de ordenação social, e com a sua própria figura social de Carteiro. A função social do Carteiro é sustentada apenas quando segue precisamente a programação da Torre do Relógio, ou seja, quando regula suas ações precisamente em relação à ordem que ela estabelece.

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Figura 47 – O conflito do Carteiro Fonte: http://www.zeldauniverse.net/wp-content/uploads/2010/06/Postman-dilemma.jpg

Quando ele recebe a Correspondência de Alta Prioridade de Link, O Carteiro encontrase com Madame Aroma. Em seu discurso, Madame Aroma destaca a força destrutiva da iminente queda da lua, sobrepondo essa ameaça à regulação exigida pelo tempo da Torre do Relógio. Assim, a falta de perspectiva de futuro finalmente se impõe como uma descontinuidade do tempo. Madame Aroma pergunta ao Carteiro: "Você ainda está aqui?". Ao dizer "ainda", Madame Aroma referência o tempo de acordo com o evento do fim, ou seja, constrói sentidos que expressam o tempo em função do evento apocalíptico que trará sua descontinuidade, e não de acordo com a programação do Carteiro, que em sua continuidade, impõe uma força alheia à ausência de perspectiva de futuro trazida pela lua. Quando Madame Aroma pergunta ao Carteiro: "Você viu o céu? É terrível!", ela invoca os sentidos de um tempo "natural", que depende da presença literal das forças do mundo natural. Assim, mesmo que a queda da lua não esteja na programação, a própria presença do astro no céu impõe a sua ação destrutiva. Enquanto o tempo "urbano" da programação contínua pretende seguir confiante nas suas marcações numéricas (uma síntese muito elevada), o tempo "natural" força a sua presença pela própria materialidade da lua (uma síntese pouco elevada).

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Figura 48 – O Carteiro e Madame Aroma Fonte: http://i.imgur.com/QSIjR.jpg

Finalmente, o Carteiro é dispensado e foge da Cidade do Relógio. Porém, antes de fugir, entrega o seu chapéu para Link. Nesse momento, dispensa o título do Carteiro, e, em conseguinte, a responsabilidade em adequar todas as suas ações de acordo com o tempo da Torre do Relógio. Ele diz: "Agora eu sou livre! Eu posso fazer a minha própria programação!". Ao dizer "livre", o discurso empresta o sentido de restrição, de força aprisionadora a esse tempo que exige que todas as ações sejam inscritas e organizadas em sua continuidade. Dessa forma, compara a programação a uma espécie de "prisão temporal", na qual os limites não são muros, mas uma exigida simultaneidade com os ponteiros do relógio. A ameaça da queda da lua intensifica essa restrição, já que cria uma necessidade contundente de conter e organizar suas ações nesse período de três dias. Entretanto, quando algumas horas restam para o fim do mundo, e essa prisão fica insuportável, o Carteiro sente impelido a escapar e ser "livre". A falta de perspectiva de futuro incitada pela queda da lua se sobrepõe à necessidade social de se colocar no tempo da Torre do Relógio. Ou seja, de tanto forçar a limitação da ordem temporal que guia os acontecimentos urbanos, motiva a negação dessa ordem, a libertação. Em seguida, O Carteiro diz: "posso fazer minha própria programação", e, assim, confirma que não nega a programação em si, mas a necessidade de seguir uma programação a favor exclusivo do tempo da Torre do Relógio, de função social alheia à falta de perspectiva de futuro. No fim, mesmo não fugindo da queda da lua, foge de todo o cenário urbano, tanto espacial quanto temporal. Não há uma negação da limitação dos três dias, mas da impossibilidade de usar o relógio como marcador móvel, que respeita as mudanças de um tempo imprevisível, sem perspectiva de futuro (e as ações que essas mudanças acarretam). Essas dinâmicas relacionam-se com os

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estudos de Campbell (2006) em torno das relações identitárias características da contemporaneidade. Campbell defende que, nos tempos modernos, a identidade ancorava-se nos papéis sociais, que eram estáveis e relacionados à função social do trabalho. Já nos tempos contemporâneos, a identidade passou a ser móvel, pautada nas relações de consumo, e nos gostos e sensações que elas provocam. Essa transição relacionou-se com a própria mudança da forma de se relacionar com o tempo, já que a identidade não era definida mais pela durabilidade e estabilidade do trabalho, mas pela fluidez e mobilidade dos ciclos de consumo. Nessas construções identitárias contemporâneas, torna-se necessária a experimentação de múltiplas e diversas dinâmicas de consumo para que as sensações que elas provocam componham e recomponham o quadro identitário que define o indivíduo. Assim, a construção identitária depende do acesso ao instantâneo (do instante de consumo, ilimitado em sua capacidade de sensações), e da fluidez que permite que esses acessos cíclicos continuem a se sequenciar (possibilitada pelo desejo). A trama do Carteiro relaciona-se com tais dinâmicas. Inicialmente, ele é uma figura inscrita na lógica da Torre do Relógio, e é apresentado como um indivíduo que define sua identidade de acordo com seu trabalho e a função social que ele envolve. O dito “Carteiro” que oculta o não-dito do seu nome, sobrenome, ou apelido, constrói sentidos em torno de uma identidade que é determinada exclusivamente pelo trabalho que exerce. Entretanto, no decorrer da trama, essa identidade profissional enfraquece, já que o tempo moderno da Torre do Relógio é ameaçado. Portanto, há a injeção de características contemporâneas a esse tempo pósmoderno, como a valorização das instantaneidades e a falta de perspectiva de futuro. Assim, quando o tempo torna-se instável, e a função social da Torre do Relógio torna-se impotente frente a iminente destruição do mundo, O Carteiro renuncia a sua identidade profissional. Dessa forma, deixa de ser Carteiro, e engloba uma nova dinâmica de construção identitária, volúvel aos seus desejos, móvel. Essa mobilidade constrói seus sentidos em um novo tipo de programação, que não é única, mas personalizada e pessoal. Em suma, a falta de perspectiva futura da contemporaneidade transformou o longo prazo de investimento a risco. Assim, essa nova descrença no futuro exigiu que o tempo fosse gerenciado de forma mais fluida, mais adaptável a imprevisibilidade. Quando o Carteiro se torna "livre" e capaz de fazer sua "própria programação", constrói sentidos que reafirmam essa necessidade de liquidez, ou seja, de adaptar a regulação temporal continuamente, de acordo com as novas exigências de uma falta de perspectiva de futuro. Dessa forma, valoriza as instantaneidades e respeita os desejos e a mobilidade identitária.

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Figura 49 – O Carteiro dá o Chapéu do Carteiro antes de partir Fonte: http://www.zeldadungeon.net/Zelda06/Masks/PostmansHat.jpg

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse trabalho monográfico teve como objetivo geral: estabelecer pontes reflexivas sobre como o conceito do tempo se desenvolve na narrativa do game The Legend of Zelda: Majora´s Mask, e como é significado no cenário contemporâneo, tendo em vista as reflexões de diversos autores sobre o assunto. Para guiar o processo de pesquisa, subdividimos esse objetivo geral em três objetivos específicos. O primeiro deles consistia em: tecer reflexões teóricas acerca do conceito do tempo, nos seus termos gerais, assim como na sua colocação no contexto contemporâneo. No segundo capítulo, tratamos de compor um mapa teórico que desconstruísse as noções comuns sobre o tempo, e contribuísse para um olhar crítico em torno do tema. Dessa forma, procuramos atentar para a primeira parte desse objetivo específico, tecendo as reflexões teóricas acerca do tema nos seus termos gerais. Inicialmente, introduzimos a definição do tempo como a comparação entre duas ou mais sequências de eventos simultâneos: uma síntese em que se comparam dois estados de simultaneidades diferentes. Assim, com base em Elias (1998), propomos que o tempo não pode ser dividido em "físico" e "social", já que é sempre "físico", no sentido de que se baseia nas sequências de eventos "naturais", e é sempre "social", no sentido de que consiste em uma síntese "humana". Prosseguimos na ideia de que o tempo, como síntese humana baseada nos eventos naturais, é um instrumento social. Sendo assim, o tempo não é uma grandeza física objetiva que procuramos medir, mas justamente a ação de relacionar diferentes estados espaciais de simultaneidades (tempo é a ação de temporar, o tempo é sua própria medição). O tempo não é uma grandeza objetiva, pois depende de um espectador com capacidade de memória, expectativa, e ordenação, ou seja, alguém capaz de perceber um instante que não existe mais como passado, um instante que ainda há de existir como futuro, e relacioná-los em "antes" e "depois". Entretanto, o que transforma o tempo em um instrumento social é a sua capacidade de expressar-se como uma linguagem, de função social bem definida: localizar o ser humano no universo. Assim, o tempo figura como um ordenador da colocação e das ações do homem, em relação à natureza e a si próprio. Em seguida, investigamos a questão da "subjetividade" e "objetividade" do tempo. Como explicamos, todo o tempo é "subjetivo" no sentido que depende de um sujeito e sua capacidade de síntese, porém, pode ser mais ou menos dependente da existência objetiva do observador que o referencia. O tempo pode ser expresso por "presente", "passado", e "futuro", dependendo assim da existência do observador, que marca o "presente", e portanto define o "passado" e o "futuro" (assim, é chamado de "ligado

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a uma experiência"). Entretanto, também pode ser expresso por "antes" e "depois", dependendo apenas da sua inter-relação, sem necessariamente relacionar-se com o "presente" em que o observador vive (assim, é chamado de "estrutural"). Após traçar o contorno geral acerca do tempo, procuramos tratar da segunda parte do primeiro objetivo específico, e investigar como o tempo revela-se no contexto da contemporaneidade. Sendo assim, no terceiro capítulo, investigamos o conceito do tempo ao longo da história, até a sua colocação na atualidade. De acordo com os estudos de Elias, propomos que o tempo ativo (como regulador social), nasceu como uma necessidade para se lidar com a agricultura. O tempo tornou-se um instrumento de poder, já que permitia traduzir a regularidade dos eventos naturais nas ações que deveriam ser tomadas. Porém, esse tempo ainda era uma síntese pouco elevada, ou seja, dependente direto dos eventos naturais, e ainda não se constituía uma síntese sustentada na própria regularidade. O tempo como fluxo contínuo, mais independente dos eventos naturais, surgiu com a necessidade do Estado de preservar a memória das instituições sociais. Na Grécia Antiga, o tempo já era uma síntese mais elevada, capaz de situar a colocação dos homens e da natureza em seu fluxo. Porém, ainda na Idade Média, o tempo não era tido como um instrumento científico, capaz de precisar os processos naturais e sociais. Foi na época de Galileu que o tempo tornou-se uma lei para se observar o universo precisamente, e, em consequência, houve uma divisão entre aquele tempo "físico" da precisão, e aquele tempo "social" da arbitrariedade. Na urbanização e industrialização, o tempo "social" exigiu uma regulação mais coercitiva, já que a complexidade e especialização dos processos humanos era crescente. Assim, ele marcou-se efetivamente como um fluxo coercitivo, ordenador em sua irreversibilidade. Por outro, essa irreversibilidade do tempo emprestou sentidos de identidade a ele, já que a história de cada um era marcada por oportunidades "aproveitadas" e "perdidas". Adentramos então nos estudos de Bauman (2009), que divide as temporalidades em três épocas: a pré-modernidade, a modernidade, e a pós-modernidade. A pré-modernidade refere-se a um tempo equivalente a espaço. A modernidade refere-se a um tempo que ainda depende do espaço, mas com essa dependência manipulada pela velocidade variável das máquinas e automóveis. A pós-modernidade refere-se a um tempo fluido, no qual as curtas durações encadeiam ciclos de aquisição e descarte, e as instantaneidades são valorizadas como uma alternativa à longa-duração. Campbell (2008), Rappaport (1998) e Santi (2005), reforçam e complementam os estudos sobre esse tempo, em seus respectivos campos. Campbell coloca o desejo como força-motriz para o acesso aos prazeres instantâneos de consumo, que logo se esgotam em insatisfação e dão lugar a um novo desejo e um novo ciclo

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de consumo. Rappaport coloca o ritual como uma forma de acesso a estados atemporais que garantem ciclicidade a um tempo unidirecional. Santi coloca a imprevisibilidade e a falta de perspectiva de futuro como a violência que motiva o indivíduo a valorizar a curta-duração e os estados atemporais, virtualmente ilimitados em sua capacidade de sensações. Em seguida, no capítulo 4, contextualizamos como a narrativa pode expressar o caráter do tempo, já que define a sua poética justamente pela "temporalização" de seus acontecimentos. Investigamos, também, como os games compõe a sua textualidade, e concluímos que, mesmo tratando-se da análise de gameplay linear, era preciso atentar para as construções de sentido que se formavam no cybertexto do game que o produziu. Ou seja, era preciso atentar não só para os sentidos dos acontecimentos do gameplay, mas para os sentidos dos acontecimentos que não figuraram diretamente no gameplay, mas eram possíveis de acontecer no game. Finalmente, apresentamos os dispositivos metodológicos que guiariam a análise. A análise foi dividida em uma análise de conteúdo, que teve como objetivo um tratamento interpretativo dos sentidos do gameplay, no que se referiu aos elementos e as temporalidades que construíam; e uma análise do discurso, que teve como objetivo articular esses sentidos na composição narrativa do game, investigando os ditos, e não-ditos, e as relações parafraseáticas e polissêmicas. No capítulo 5, na primeira etapa da análise de conteúdo, abarcamos o segundo objetivo específico: Investigar como o conceito do tempo está presente na narrativa do game The Legend of Zelda: Majora’s Mask. Nesse estudo interpretativo, selecionamos três conjuntos de elementos que expressavam três temporalidades de características específicas. Compreendemos que Link inicia sua aventura em um ambiente com temporalidade "natural", em que o tempo não é tido como um fluxo marcado por instrumentos de medição como relógios e calendários. Assim, esse tempo é pontual, indicado apenas pela presença dos eventos naturais, e, por isso, expressa pouco poder coercitivo. Essa temporalidade é construída por fatores como a ausência de uma marcação corrente na tela, e a ambientação de floresta, em um mundo medieval. Posteriormente, Link chega ao interior da Torre do Relógio, onde o tempo ainda não é marcado na tela, mas é introduzido um cenário de máquinas, que transformam a energia da natureza em energia mecânica. Quando sai da Torre do Relógio, é introduzido a um tempo coercitivo, que deve ser gerido como recurso. Esse tempo é estritamente marcado pelo relógio na tela, assim como pela Torre do Relógio, que figura como um marco zero do mundo de Termina, guiando os seus habitantes tanto espacial quanto temporalmente. A potencialização da coerção desse tempo como recurso se dá pela ameaça da queda da lua, e o game cria sentidos de urgência que

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impelem o jogador a administrar as suas ações no tempo da forma mais eficiente possível. Um desse sentidos de urgência está nas músicas que tocam na Cidade do Relógio, que, cada vez mais frenéticas, criam uma sensação de "preenchimento" do tempo, de que ele deve ser aproveitado ao máximo. Então, Link obtém a Ocarina do Tempo, e toma contato com os poderes da Deusa do Tempo. A Deusa do Tempo garante a flexibilização da irreversibilidade do tempo da Torre do Relógio, e como uma entidade benevolente representante do tempo "natural", oferece as armas para enfrentar a limitação do tempo coercitivo da cidade. A Deusa e a Ocarina constroem sentidos paralelos ao Festival do Tempo, e, assim, concebem um tempo ritualístico, relacionado ao tempo "natural", mas contextualizado no cenário urbano. Assim, esse tempo ritualístico é capaz de garantir ciclicidade ao tempo unidirecional, permitindo que os eventos passados sejam revividos. Entretanto, tal reversibilidade não é total, já que nas viagens do tempo, as máscaras permanecem com Link, atestando o caráter identitário do tempo, que, como história, prova que determinadas ações foram tomadas ou não. A flexibilização garantida pelo tempo ritualística da Deusa toma na figura da lua a forma de uma destruição absoluta da continuidade do tempo da Torre do Relógio. A lua, ao mesmo tempo que enaltece a atemporalidade dos instantes como alternativas ao terror do fim, pretende destruir a duração, e instaurar um ambiente no qual o tempo não é mais um recurso coercitivo. O interior da lua representa um mundo atemporal, muito semelhante ao tempo "natural" do início do game. Porém, esse mundo atemporal pretende se estender além da continuidade do tempo, e não se adequa à fluidez cíclica do tempo. Assim, há um embate entre a atemporalidade do instante que nega destrutivamente a coerção do tempo contínuo, e a atemporalidade do ritual que lida com o tempo contínuo por meio da ciclicidade fluida. Na segunda etapa do quinto capítulo, atentamos para o último objetivo específico: Propor reflexões comparativas em torno do tempo como é colocado no game, e do tempo como é significado no contexto contemporâneo de sociedades de consumo. Por meio da análise do discurso, investigamos os sentidos sobre o tempo articulados na trama narrativa, revelando, assim, como as temporalidades contemporâneas são ressignificadas no discurso do game. Compreendemos que de acordo com os ditos do letreiro inicial, o passado do herói Link é referenciado como uma "lenda", ou seja, de acordo com um tempo "natural" e pontual, que não comporta a noção de uma continuidade histórica, marcada e organizada. Em seguida, entendemos que a passagem do herói pelo portal dimensional que divide Hyrule e Termina tece relações parafraseáticas com obras como Alice no País nas Maravilhas e O Mágico de Oz, nas quais a protagonista avança de um mundo mais restrito e pragmático, para um mundo mais livre

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e mágico. Entretanto, notamos que essa passagem ocorre no sentido inverso, já que Link adentra um universo mais urbano, em que suas ações são mais restritas à temporalidade inscrita na marcação da Torre do Relógio. Investigamos os ditos dos letreiros que são exibidos quando Link já está na Cidade do Relógio, e concluímos que eles contribuem para os sentidos de um tempo limitado (anulando o "antes" e "depois" dos três dias), que deve ser gerido como um recurso, de forma matematicamente precisa. Quando Link relembra de quando recebeu a Ocarina do Tempo, investigamos os ditos relacionados ao "perder-se nas lembranças". Esses ditos atribuem uma perenidade temporal ao tempo da Deusa, ou seja, permitem o acesso a um tempo "antes" dos três dias, e, portanto, alheio a sua lógica de marcação estrita e recurso a ser gerido. Durante a aventura de Link à procura dos guardiões, identificamos um padrão nos conflitos que o herói é impelido a solucionar. Nesses conflitos, há um ser que enfrenta angústias em que não consegue pôr um fim. Os ditos resgatam sentidos de vagarosidade e excesso de duração a essas angústias, e colocam o alívio disso como uma "cura", que trabalha como um fim mais efetivo que a própria morte. Assim, o game invoca sentidos de um tempo fluido, em que é valorizada a capacidade de desaquisição, de se livrar de um estado angustiante de duração excessiva. Entretanto, mesmo que coloque a desaquisição e o fim como a "cura", apresenta os sentidos de durabilidade nas máscaras que surgem após a "libertação" das almas angustiadas. Essa durabilidade das máscaras funciona como um amuleto que lembra constantemente do evento que libertou essas almas, e, mais importante, das promessas que Link assumiu. Os ditos das máscaras resgatam os sentidos dos rituais, e, assim, aliam a força ritualística da ciclicidade e da durabilidade, ao tempo fluido da desaquisição e a curta-duração. Na batalha final, os ditos em torno do interior da lua e da Máscara Majora trazem sentidos de vilania a uma tentativa de negar a fluidez do tempo, ou seja, o esforço em manter um tempo "natural" que não se adequa ao tempo da Torre do Relógio. Esse tempo "natural", diferente do tempo da Deusa, não se alia a fluidez do tempo, e pretende destruir totalmente a continuidade do tempo, instaurando um estado atemporal eterno. Após a destruição de Majora, os ditos de um novo letreiro constroem sentidos de um tempo que não é mais limitado, em que há passado e há futuro. O discurso do Vendedor de Máscaras e de Skull Kid evidenciam o valor das "lembranças", ou seja, da perenidade do tempo, e marcam que a fluidez do tempo não necessariamente deve ser inserida em uma lógica de desaquisição total. O acontecimento do Festival do Tempo marca que a celebração ritualística ao tempo pode garantir a durabilidade, a ciclicidade e o resgate ao passado. Assim, permite-se a o tempo contínuo, que aponta para o futuro, mas também permitese um tempo cíclico, que se ancora no passado.

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Esse trabalho estudou as construções de sentido em um produto relacionado ao universo cybertextual dos jogos. Como pretendemos estudar os sentidos evidenciados, principalmente, pelo Mundo Jogo, escolhemos a lineariedade textual que um gameplay poderia garantir. Assim, não investigamos com profundidade o aspecto das Mecânicas do Jogo, e como elas se relacionam com as Playformances dos jogadores. Portanto, abrimos a possibilidade de estudos que investiguem propriamente o caráter de recepção do game. Esse enfoque na recepção, e não na produção do game, permite que o olhar seja direcionado para os múltiplos textos que podem ser criados de acordo com a experiência de cada ato de jogar. Sendo assim, é possível estudar não apenas como as temporalidades estão expressas no game, mas como o ato de jogar (e as formas de se jogar) articula uma experiência de tempo especial. Essas experiências não apenas revelam as dinâmicas lúdicas da contemporaneidade, mas o próprio caráter do tempo dos nossos tempos.

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