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A Evolução do Conceito de Homem Na História e na Filosofia Até o capitalismo Uma visão antropológica
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Introdução Primum vivere, deinde philosophare1. Este adágio latino é repetido por muitos estudantes “ad nauseam” quando filósofos e autores humanistas lhes parecem desencarnados da realidade, perdidos em especulações metafísicas, históricas ou sociais que pouco ou nada parecem contribuir para a realidade onde se vive. Essa percepção é equivocada. Em primeiro lugar, nossa vida não se divide no pensar especulativo e em atitudes práticas. O ser humano é uma unidade e como tal age. Suas dimensões psíquico-físicas interagem continuamente num agir único. Nossas ações nascem de concepções que temos da vida e do universo, havendo profunda relação entre o que pensamos e vivemos, pois, o pensado e o vivido interagem constantemente, ora o pensado dirigindo o nosso agir, ora nossa ação criando bases para um pensamento teórico que a justifique. Há, portanto, estreita relação entre Filosofia, Educação e Vida. Todo filosofo, ao elaborar uma explicação da realidade, procura partilhá-la com discípulos para que não só a conheçam, mas a reproduzam e ampliem. Toda ação educativa terá como ponto de partida o conceito que se tem de homem, pois, é a partir dele que iremos elaborar nossas práticas educacionais que terão reflexo imediato na sociedade em todas as suas dimensões, do lazer ao trabalho. O objeto deste ensaio é o homem concebido filosoficamente, pois a elaboração desta concepção definirá como será conduzida sua educação dentro de bases e valores coerentes com os princípios que estão contidos na mente de seus educadores. Na Grécia antiga os filósofos associavam o homem perfeito ao cidadão. Na era cristã ele é concebido como pessoa. No século XIII, especialmente na Universidade de Paris sob o influxo do pensamento aristotélico, a racionalidade será o atributo que mais plenifica o ser humano. O Iluminismo e o Positivismo elevarão a racionalidade a uma quase veneração. Na Revolução Industrial o homem será coisificado como mera engrenagem na cadeia produtiva. O liberalismo, e, posteriormente o neoliberalismo, terão no lucro e no acúmulo de riqueza o elemento propulsor da organização social em detrimento do homem. Estas várias visões terão reflexos imediatos na prática da educação de cada época que procurará adequar e enquadrar o ser humano a estas visões de mundo. Este ensaio apresenta uma panorâmica geral da evolução de algumas matrizes filosóficas que formaram concepções de homem ao longo da História, impactando não só na educação, mas também na própria organização da sociedade.
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- primeiro viver, depois filosofar.
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Preâmbulo As interpretações filosóficas da realidade nascem do momento histórico2 em que se vive. Esta afirmação causa furor nos filósofos metafísicos que cunharam o conceito de Filosofia Pura, como se a reflexão pudesse existir desencarnada das realidades históricomaterial que nos circundam. O Filosofo é produto do seu meio e do seu tempo. No inicio deste ensaio procuraremos sinalizar, sumariamente, como alguns expoentes da filosofia estiveram conectados com o momento histórico em que viviam dando uma “explicação lógica” do mundo no qual estavam imersos. Dois elementos são perseguidos pelo pensamento filosófico: o bem pessoal e o bem comum. No primeiro busca-se a auto-realização e no segundo o mesmo bem na coletividade. Há um trinômio que perpassa o pensamento filosófico. O primeiro é quando se explica de forma unitária o universo. O segundo é a busca da realização pessoal com princípios e valores. E, finalmente, o terceiro está ligado à vida social que busca a felicidade pessoal numa comunidade. Toda elaboração filosófica só sobrevive se compartilhada e reproduzida na educação. Os pré-sócraticos já buscavam partilhar suas visões de mundo confrontando-as na praça pública. Na Idade Média na disputatio buscava-se socializar os próprios pontos de vista. Uma visão de mundo e de vida não sobrevive se está atrelada a reflexivos filósofos ensimesmados em seus pensamentos, mas, ganham vida ao fluírem para todas as instâncias sociais: romances, filmes, novelas, músicas, relacionamentos sociais. Nem sempre o pensar filosófico nasce de um único homem, mas é “capturado” por intérpretes que apreendem o sentir social e o verbalizam em escritos esta filosofia já vivenciada. No século XXI temos, por exemplo, uma sociedade hedonista, que se educa no cotidiano, sendo o prazer apresentado como sentido de vida nas famílias, nos meios de comunicação, na escola, nas canções, nas novelas, nos filmes... Renúncia, sacrifício, gratuidade são posturas de vida cada vez mais estranhas a esta sociedade onde o bem estar material sem sofrimento é um modo de vida desejado e procurado. Aplica-se, assim, a esta sociedade o rótulo de pragmática, hedonista e materialista sendo este modo de vida induzido por filósofos ou apreendido da vida. A Educação3 faz que novas gerações assumam determinada mundividência que se reflete no seu modo de viver e agir. Nas grandes cidades as “tribos urbanas4” buscam uma determinada identidade na pluralidade caótica onde não mais existe uma visão unitária. Essa busca de identidade “exótica” contrasta hoje com duas grandes visões de vida elaboradas por dois sistemas político-econômicos que foram a base da organização da sociedade ocidental: o capitalismo e o comunismo. O primeiro nasceu do acúmulo do capital comercial fortalecendo-se com a industrialização O segundo, como resposta à opressão do operariado pelo capitalismo industrial. Essas duas correntes elaboraram as bases sociais, políticas e econômicas de nossa sociedade, e, a partir destas concepções,
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- Nesta análise assumo o princípio de Marx que a infra-estrutura econômica determina a superestrutura social, reflexo no seu modo de produzir riquezas. 3 - entendida neste contexto em sentido amplo. 4 - alguns exemplos: Punks, Skinheads, Baladeiros, Emos, Góticos, Nerds, Geeks, Trekkers, Otakus... Prof. Dr. Dílson Passos Júnior –
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4 um modelo de Educação. Sebastião Salgado5 intitulou um de seus ensaios fotográficos como “arqueologia do mundo do trabalho”. O termo “arqueologia” pretendia mostrar um modelo de produção superado. A mentalidade capitalista, porém, tem sobrevivido “às ruínas” deste modelo de mundo industrial clássico. Para enquadrarmos o conceito de homem dentro da ótica neoliberal, meta de nosso estudo, é necessário que, em breves pinceladas, percebamos a evolução do conceito de homem a partir da Filosofia, pois, o neoliberalismo, é a negação histórica de várias concepções elaboradas a partir do pensamento racional ao longo da história do ocidente.
O Homem cidadão Os primeiros filósofos buscaram um conhecimento objetivo da realidade, e, com esta atitude dos pré-socráticos estava se formando as bases da ciência. Nestes primórdios o pensamento foi, efetivamente, teórico e desencarnado da realidade. A partir de Sócrates6 o pensamento filosófico irá interagir profundamente com a vida, contextualizado numa Atenas em guerra contra Esparta, induzida que fora pelos discursos dos sofistas que, com suas argumentações, haviam conseguido a aprovação da guerra. Frente ao perigo da ruína da polis, Sócrates percebe que o que estava comprometido, mais que a segurança, era os valores morais da cidade. Por trás de seu aspecto aparentemente sereno em sua alma se debate a tristeza de ver a corrupção da juventude ateniense por uma pseudo-educação dada pelos sofistas que, desprezando os princípios morais, haviam dado à juventude uma formação relativista e utilitarista. Sócrates, enamorado de su cidad natal, presencia su decadencia y la disolución de sus fuerzas más vitales frente a su rival Esparta. Reflexionando sobre las causas de su ruina, que em povos años la habían precipitado desde la cumbre del esplendor político y militar hasta la amargura de la derrota, le aparecían en primer plano la influencia disolvente de los filósofos y de los sofistas. Unos y otros, con su escepticismo, minaban la fe en la religión tradicional; con su cosmopolitismo y su desarraigo de la metrópoli debilitaban el respecto a las leyes, a las costumbres y a las instituciones básicas de la ciudad, y con sus nuevos procedimientos educativos contribuían a corromper las virtudes ancestrales del alma griega7.
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Sebastião Ribeiro Salgado (Aimorés, 8 de fevereiro de 1944) é um fotógrafo brasileiro reconhecido mundialmente por seu estilo único de fotografar.Nascido em Minas Gerais, é um dos mais respeitados fotojornalistas da atualidade. Nomeado como representante especial do UNICEF em 3 de abril de 2001, dedicou-se a fazer crônicas sobre a vida das pessoas excluídas, trabalho que resultou na publicação de dez livros e realização de várias exposições, tendo recebido vários prêmios e homenagens na Europa e no continente americano. Cf. pt.wikipedia.org/wiki/Sebastião_Salgado 6
- não levaremos em conta a discussão se o pensamento socrático seria de Platão seu discípulo. Não importando a autoria, este pensamento está descrito no texto “A Defesa de Sócrates” e que nos importará aqui – independente da autoria – é o pensamento descrito. 7 Guillermo FRAILE. Historia de la Filosofia I – Grecia e Roma. Madrid, BAC, 1965. p. 240 Prof. Dr. Dílson Passos Júnior –
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5 Sócrates entendia que seria com a força moral de homens bem formados que se poderia reabilitar uma sociedade moralmente corrompida. A preocupação com a cidadania estará presente também no pensamento de Platão8 que estabelecerá conceitos sobre o bem comum e o bem individual e organizará a sociedade em ordens naturais9 onde os guardiões superiores, auxiliados pelos guardiões inferiores zelarão pelo bem do povo. A obra platônica nasce do ideal de uma sociedade perfeita. Aristóteles, não sendo cidadão ateniense, estabelece no seu livro A Política10 princípios universais que deveriam reger uma cidade justa e feliz. Estes autores, citados como exemplo, elaboram a partir da experiência da polis grega, especificamente Atenas, princípios político-morais que deveriam reger a vida dos cidadãos. Essas propostas éticas e políticas se projetaram para além do período clássico sendo referencial de muitos Estados modernos. O Pensamento Platônico, assumido por Santo Agostinho, iluminará a organização social da a Idade Média e o de Aristóteles, reassumido na Universidade de Paris pelos “filósofos racionais11”, se projetará pela idade moderna. Neste contexto o homem possui uma identidade bem clara: ser dotado de razão.
O homem pessoa O cristianismo não é uma filosofia, mas, uma religião. A verdade construída nestes dois espaços se diferencia profundamente. A Verdade Filosófica nasce a partir da Razão e a religiosa se impõe como um ato de fé num livro Sagrado. O cristianismo não deveria, portanto, ser objeto desta nossa reflexão filosófica por sua própria natureza de revelação12. Acontece, porém, que na era cristã o pensamento filosófico13 se organizou sob forte influência desta mundividência nos períodos patrístico e escolástico14. O cristianismo foi inovador ao estabelecer o conceito desconhecido até então, de pessoa. Daqui resulta uma conseqüência revolucionária, especialmente para a sociedade antiga: a condenação de qualquer forma de absolutismo entendido como subordinação integral dum indivíduo a um fim a ele extrínseco, quer seja o estado ou a família: estatolatria, escravatura. A luta pela reivindicação da personalidade humana, que há de claro sentido mais profundo à história política e civil depois da vinda de Jesus Cristo, tem sua raiz nesta nova concepção do homem. A personalidade exprime-se tipicamente na liberdade e interioridade. [...] o cristianismo apresenta-se indiscutivelmente como uma
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- Especialmente no livro a Republica. - Cf. Platão. A republica. Porto. 1996, pp. 53-100 10 - Cf. Aristóteles. A Política. São Paulo, Atena Editora, 1955. pp. 143-187 11 - entre eles seu principal interprete, Santo Tomás de Aquino. 12 - Este princípio aplica-se a todas as religiões que possuem livros entendidos por seus crentes como revelado. 13 - deve-se rejeitar radicalmente o conceito de “Filosofia Cristã”. Deve-se adotar o conceito de “cristãos que fazem Filosofia”, pois o pensar filosófico não pode possuir, por sua própria natureza, nenhum princípio advindo de “revelações” que não se submetem à critica racional. 141414 - Etienne Gilson, reconhecido estudioso da Idade Média, afirma que “Toda Filosofia da Idade Média pressupõe a decisão de abstrair essa filosofia do meio teológico onde ela nasceu e do qual não pode ser separada sem violentar a realidade histórica. (...) não admitimosnenhuma linha de demarcação rigorosa entre filosofia e história da teologia, não apenas na época patrística, mas também na Idade Média”. Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média, São Paulo, Martins Fontes, 1995. pp. XII 9
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6 reivindicação da importância da vontade, em relação à inteligência, do amor defronte da sabedoria15. Se antes na Grécia e Roma o que conferia a alguém dignidade era o ser cidadão, no cristianismo a dignidade de cada pessoa está no ser concebida como imagem e semelhança de Deus o que torna todas as pessoas irmãs16 e ao mesmo tempo iguais17. Estes conceitos expostos nas periferias de Roma e do Império desestabilizam os conceitos de cidadania tornando o cristianismo revolucionário e libertário ao criar e fortalecer no homem respeito por si, por sua dignidade pessoal, e, na mesma medida, pelo do próximo.
O Homem Político As Universidades do século XIII e o êxito da burguesia comercial são ingredientes que marcam a concepção de homem na Idade Moderna. Há, a partir do século XV, uma valorização da razão prática, em contraposição à razão especulativa e metafísica. Já na Idade Média a Escola de Chartres manifestara claras inclinações empiristas. O homem do Estado Moderno possui autoconfiança na sua racionalidade prática e procura organizar o nascente Estado burguês à luz de suas elaborações mentais e não mais sob a influência teocêntrica da Igreja. É neste contexto que se passa, paulatinamente, de um conceito de Estado absolutista para o de um Estado liberal. A Filosofia Moderna estará, pois, apoiada na racionalidade do homem que elabora um modelo de Estado Racional. Maquiavel defende um Estado pragmático diferente dos valores morais que haviam regido o mundo medieval. Hobbes, frente ao crescimento do poder burguês desejoso de maior liberdade, elabora uma teoria que dá a raison d`être do Estado a um consenso da sociedade que não seria capaz de conter suas paixões, entregando, por causa disto, de forma incondicional seus direito de decidir a um Estado Absolutista, o Leviatã. Locke, dentro de um lastro liberal, defende a institucionalização de um poder central contra o qual o homem pode se insurgir quando quem recebeu a delegação de governar não corresponde aos seus interesses. Montesquieu, ainda no lastro liberal, estabelece a defesa de três poderes que se controlam mutuamente impedindo posturas de centralização. Rousseau traz profunda colaboração enquanto salienta que o “beau sauvage” sendo desvirtuado pela vida social constituiu um poder que se mantém apenas enquanto assume e é fiel à vontade geral. Hegel vê no Estado a síntese mais perfeita que supera as contradições entre o privado e o publico. Em todos estes filósofos prevalece um pensamento humanista que pela sua racionalidade constrói princípios para o Estado Moderno.
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- Franco AMÉRIO. História da Filosofia – I Antiga e Medieval. Coimbra, Casa do Castelo Editora. 1960. p. 147 16 - “Talvez Onésimo foi afastado de ti por algum tempo, precisamente para que o recebas de volta para sempre: não mais como escravo, mas muito mais do que isto, como irmão querido”. Fl 1,15s 17 - “Na vossa reunião entram duas pessoas, uma com anel de ouro no dedo e bem vestido, e outra, pobre, com roupa surrada”. Ao que está bem vestido dais atenção dizendo-lhe: vem sentar-te aqui à vontade. Mas ao pobre dizeis: Ficai de pé, ou, Senta-te aqui no chão aos meus pés. Não será isso um caso de descriminação entre vós? Será que não julgastes com critérios que não convêm? [...] mas se fazeis acepção de pessoas, cometeis pecado e a lei vos acusa como transgressores. Tg 2, 3s, 9 Prof. Dr. Dílson Passos Júnior –
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O Homem industrial A Revolução industrial deu ao homem burguês a consciência de que era capaz de interferir de forma organizada na matéria. Cresce o individualismo, aliado à autoconfiança das classes burguesas na busca de seus interesses e bem estar. O operariado, de outro lado, toma consciência que é explorado. O marxismo erige-se, então, no grande critico do sistema capitalista, denunciando a alienação onde o homem vende não só a força do seu trabalho como também de sua própria pessoa. Marx fala do fetichismo da mercadoria e reificação do trabalhador que fazem com que a matéria se torne mais importante que o homem reduzido-o à condição de coisa18, uma mera engrenagem no processo produtivo, idéias essas fortalecidas pelo conceito da máxima produtividade pelo fordismo com a linha de montagem e pelo o taylorismo19 que busca a máxima eficiência com o mínimo de movimentos, passando a produção a ser uma meta em si. Incentiva-se o consumo que tem por objetivo, não atender a necessidades, mas, o acúmulo de capital. Torna-se necessário o adestramento do operário aos horários e aos serviços repetitivos. Este sistema, porém, não realiza e não permite realizar uma critica de si. Ao contrário, no campo da Educação os livros didáticos apresentam uma sociedade harmônica e equilibrada desenvolvendo atividades rotineiras de uma fábrica com satisfação, escondendo20 os conflitos existentes na sociedade e no mundo do trabalho. No campo ideológico o liberalismo na Constituição de vários países define a idéia de uma sociedade livre onde todos têm direitos iguais, o que de fato não exprime a verdade frente a uma classe operária oprimida e sem oportunidades. De outro lado o marxismo realiza a critica do capitalismo instaurando o princípio da permanente luta de classes. Alguns elementos teóricos e práticos fazem parte da essência do capitalismo. Seu ponto de partida é o materialismo que tem na matéria única realidade e sustentáculo de todas as coisas21. Não existem valores e princípios transcendentes. Na organização econômica social do capitalismo o acúmulo de capital é um objetivo em si que busca o lucro máximo, mesmo se pela exploração do operário22, coisificado na linha de produção23. Finalmente, ainda, o capitalismo fomenta o individualismo. Há uma lógica própria, que coloca como objetivo primeiro o benefício do individuo e da sociedade burguesa através da exploração da mão de obra, não se importando com a formação de populações 18
- res em latim. - As idéias de Taylor estão no livro Princípios da Administração Científica. 20 - Texto didáticos de primeiro grau: “O operário mostra suas mãos cheias de calo: durante toda vida tocaram a terra, os fogos, os metais. Estão Vazias de riquezas, estão negras, cansadas, pesadas. Diz o senhor: Assim são aos mãos dos santos”. [...] “Piero vai visitar o avô na fundição”... (O avó diz para o netinho - Eu também, Piero, entrei por curiosidade na fundição quando era menino). E me pareceu tudo tão bonito... que aqui fiquei. É belo amar o trabalho que a gente faz. Estou velho e ao bom Deus só peço uma coisa: quero ficar aqui, na fundição, até o último dia dos meus dias. E vovô levantou os olhos para o céu, em direção às estrelas. Maria de Lourdes NOSELLA. As Belas Mentiras, São Paulo, Ed. Moraes. 1981. 21 - esta afirmação pode parecer radical, pois que se afirma materialista é o marxismo. Ainda que muitos teóricos capitalistas usem o conceito de Deus, efetivamente, porém, a pratica capitalista se constitui numa ação nascida e apoiada sobre a matéria como fundamento da realidade. No capitalismo a prática religiosa esta associada a algo de privado não assumido pelo sistema que, eventualmente, poderá até se utilizar de práticas religiosas como ferramenta de favorecimento de aumento do capital enquanto gere uma postura conformista. 22 - Marx definirá isto como a mais-valia. 23 - É antológico o filme de Charles Chaplin, “Tempos Modernos” que retrata de forma este processo de coisificação do operário. 19
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8 marginais ao sistema e considerando a competitividade como desdobramento “normal” do sistema, isto sob a miragem de igualdade de oportunidades para todos. As idéias liberais de Adam Smith estiveram presentes nos Estados unidos até 1929 quando a quebra da bolsa de Nova York comprometeu seriamente o sistema. A Defesa do Estado de Bem Estar social, praticado então, foi apenas um antítodoto que visava, primeiramente, não salvaguardar a situação de penúria dos operários atingidos pela crise, mas preservar este sistema com algumas perdas calculadas. Muitas das “ações altruístas” foram apenas molas que aliviavam o impacto da crise sobre o sistema capitalista. Após a Segunda Guerra Mundial o capitalismo foi perdendo seu lastro nacional para uma dimensão internacional e supranacional. Quanto menos se tornava radical a Guerra Fria mais se ampliava a globalização da economia apoiada no capital internacional, fluido, volátil, interesseiro, sem Deus, sem pátria e sem amor. Esta grande massa de capital pairando sobre a economia mundial representou o campo fértil para o surgimento e fortalecimento do neoliberalismo.
O Homem Global O Embasamento teórico24 do neoliberalismo se consolida em idéias claras elaboradas após a segunda guerra mundial nos Estados Unidos e nos paises capitalistas da Europa, sendo uma reação teórica e política contra o Estado Intervencionista de Bem Estar Social surgido após a crise de 1929, sendo então contra toda e qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado. Hayek25 argumentava que a desigualdade era um valor positivo – na realidade, imprescindível – como elemento fundamental das sociedades ocidentais. Em 1974 funda a sociedade Mont Pélerin26 cuja finalidade era promover os ideais liberais já que desde 1973 o mundo capitalista começara a viver recessão com baixas taxas de crescimento e com altas taxas de inflação. Este crise acirra os ânimos dos grupos neoliberais. No pensamento de Hayek As raízes da crise estão localizadas no poder excessivo e nefasto dos sindicatos e, de maneira geral, no movimento operário, que havia corroído as bases da acumulação capitalista com suas pressões reivindicatórias sobre os salários e
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- Os três primeiros parágrafos desta parte foram elaborados por mim no trabalho de Teorias do Estado e Educação e transcritos aqui porque o conteúdo seria basicamente o mesmo. 25 Autor do livro O Caminho da Servidão 26
- The Mont Pelerin Society is an international organization composed of economists, intellectuals, business leaders, and others who favour classical liberalism; the society advocates free market economic policies and the political values of an open society. The Mont Pelerin Society was created on 10 April 1947 at a conference organized by Friedrich Hayek. Originally, it was to be named the Acton-Tocqueville Society. After Frank Knight protested against naming the group after two “Roman Catholic aristocrats” and Ludwig von Mises expressed concern that the mistakes made by Acton and Tocqueville would be connected with the society, the name of the Swiss resort where it convened was used instead. en.wikipedia.org/wiki/Mont_Pelerin_Society
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9 com sua pressão parasitária para que o Estado aumentasse cada vez mais os gastos sociais27. Estes processos destruíram os lucros das empresas desencadeando inflação exigindo do Estado maior gastos sociais. A lógica de Hayek é simples e prioriza o capital e as classes detentoras do poder econômico, representando a cartilha do neoliberalismo. Defende um Estado forte contra os sindicatos, assumindo um firme controle social e impedindo que possa tomar corpo todas as manifestações que coloquem em risco a economia. Deve existir uma contenção com os gastos de Bem Estar Social com redução dos recursos para gastos sociais. Considera oportuna a existência de um “exército de reserva” de mão de obra para conter os sindicatos que negociariam então, não mais direitos, mas a empregabilidade. E, finalmente, defende uma reforma fiscal com taxas menores para as maiores riquezas. Haveria assim uma nova e saudável desigualdade para dinamizar as economias avançadas28. As idéias de Hayek têm como ponto de partida uma das idéias fundamentais do liberalismo tradicional29 que é a noção de um organismo eficiente que corrige automaticamente os distúrbios de funcionamento, sendo boa a Instituição que é capaz de funcionar satisfatoriamente independente de salvadores da pátria. A partir deste conceito de eficiência orgânica e sistêmica, Hayek desenvolve três proposições: A primeira afirma que os preços devem flutuar livremente dentro dos impulsos naturais do mercado sem burocratas que interfiram na economia. A segunda defende que o Estado Democrático deve ser simples, pois os que são eleitos democraticamente nem sempre estão aptos a votar temas tecnicamente complexos e cruciais para a eficiência do Estado. E, finalmente, o excesso de intervencionismo estatal acaba por violentar Estado de Direito. Estas posturas passam, porém por críticas mesmo dentro do capitalismo por sua radicalidade. Os sociais liberais combatem este Estado Minimalista defendido pelos neoliberais acreditando que o Estado possui funções sociais a realizar. Argumentam que os neoliberais se esqueceram de que a doutrina política não deve apenas tentar conciliar os desejos humanos de liberdade e vida em comum, mas, também levar em conta o sentimento natural de solidariedade que justifica a assistência do Estado aos desamparados, e, preventivamente, a conpulsoriedade das contribuições para a Previdência Social ou a proibição de drogas. Os neoliberais passam por cima de uma questão que é muito importante: boa parte do destino de um indivíduo depende do que lhe é fornecido em matéria de educação, saúde, nutrição durante a infância e adolescência, período em que ele é juridicamente incapaz e, portanto, não tem como tomar decisões responsáveis. Caso isto não seja realizado este mesmo individuo, além de não ser produtivo para o sistema, poderá onerá-lo como cidadão marginal doente, improdutivo ou criminoso.
O homem coisificado A educação capitalista tem por meta primeira a justificativa e implantação deste sistema ao qual se atribui liberdade individual à iniciativa privada, escondendo que o homem fica coisificado, pois sua importância fica subordinada ao seu valor de mercado, 27
- www.lutadospovos.hpg.com.br/neoliberalismo.htm - www.socialismo.org.br/portal/filosofia/155-artigo/302-balanco-do-neoliberalismo29 - laissez faire, laissez passé... 28
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10 enquanto produtor de riquezas e consumidor de bens. O capitalismo gera, como resultados de suas práticas econômicas, excluídos porque não produtivos ou porque não contribuem para o fortalecimento do sistema. Os idosos, por exemplo, são vistos como problema porque não produtivos, assim como são problema os bairros periféricos da mão de obra sub-remunerada ou desempregada e países pobres à margem do sistema. A educação neste sistema incentiva à competitividade e ignora a questão social com a diminuição do significado da pessoa humana. Recentemente foi lançado livro intitulado “Homens invisíveis” escrito pelo Fernando Braga Costa30. Durante oito anos, durante dois ou três dias, trabalhou como gari no Campus da USP realizando uma pesquisa de Campo para saber como era o universo desses homens e mulheres. Como gari, senti na pele o que é um trabalho degradante. “Vivi situações que me impulsionaram a entender melhor o nosso meio psicossocial, explica ele, que desenvolveu a tese sobre a “invisibilidade pública”, isto é, profissionais como faxineiros, ascensoristas, empacotadores e garis não são “vistos” pela sociedade, que enxerga a função, não a pessoa. Uma das situações experimentadas por Fernando foi atravessar os corredores da faculdade uniformizado. Ninguém nem sequer olhou para ele ou o cumprimentou. “A invisibilidade e a humilhação repercutem até na maneira como você anda, fala, olha. Eles não conseguem nos olhar de frente e, quando olham, piscam rapidamente. O modo de andar lembra movimentos de robô31.
O que mais o choca, e é o núcleo deste seu livro, no qual que esses limpadores de ambientes não eram vistos e nem considerados pelos membros de uma Universidade que forma as elites intelectuais e lideranças de nosso país e que, certamente, reproduzirão esta marginalização do homem nos lugares de comando e decisões de nossa pátria. Estes trabalhadores “não existiam”, sequer fisicamente, para todos os intelectuais que os circundavam, considerados como obstáculos a serem contornados nos corredores da universidade. Aqui temos uma realidade já indicada por Marx que é a coisificação da pessoa que perde sua identidade para ser função ou elemento de produção. Esta é uma das piores conseqüências do capitalismo: a busca desenfreada pelo lucro acaba por anular a dignidade do rico e do pobre. Todos são, neste sistema, qualificados pelo seu entorno financeiro e, mesmo as classes burguesas, são aliciadas com atenções especiais não por serem pessoas, mas por serem possuidores de dinheiro e poder. E o sistema não terá duvidas de colocá-las na sarjeta no momento que venham perder a salvaguarda dos seus bens. O mundo capitalista coloca o lucro acima de tudo. Não existe pessoa...
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Fernando Braga da Costa nasceu em 1975 em Votuporanga, no interior de São Paulo. Mudou-se para a capital paulista aos três anos de idade. Em 1993, ingressou na graduação no Instituto de Psicologia da SP. Atualmente, faz doutorado no mesmo instituto, focando seus estudos na relação do pesquisador com s garis. Homens Invisíveis é seu primeiro livro. 31
- www.terra.com.br/istoegente/261/diversao_arte/livros_foco_homens_invisiveis.htm
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Concluindo... Desde que os primeiros filósofos ocidentais tentaram dar um sentido racional à realidade houve um longo itinerário de descoberta do homem, de sua racionalidade, de sua dignidade, enfim. Foram caminhos e descaminhos. Aos poucos, porém, esta conquista foi se realizando ao longo da história onde se fundiram reflexões e ações. Ela nasceu da consciência cidadã dos gregos, passou pelo conceito de pessoa do cristianismo, chegou à valorização da racionalidade nas universidades, deslumbrou-se com a capacidade humana no Iluminismo e, mesmo no Positivismo, ao valorizar a ciência, o fez enquanto ação humana. O capitalismo industrial gerou uma aceleração de produção que exigiu de imediato a configuração de novos mercados para atender à demanda da produção. Seus princípios, porém, foram empalidecendo a dignidade e a humanidade do trabalhador. Este sistema na sua prática perdeu a sensibilidade pelo homem. O neoliberalismo tem maior truculência que o próprio liberalismo. Este nasceu e se configurou numa certa formação “natural” em que a produção foi aos poucos se sobrepondo ao homem. Aquele, porém, é truculento porque nasce com princípios elaborados, não só econômicos, mas, sobretudo, no tratar conscientemente o homem como coisa. O liberalismo primitivo só sofreu uma elaboração à posteriori de sua existência. O neoliberalismo criou um conjunto de princípios a priori como manual a ser seguido. A Educação tem por finalidade passar ao homem princípios e valores oriundos de uma cosmovisão que dê sentido e explique o mundo. O ser humano será educado a partir da elaboração filosófica da sociedade em que vive. No capitalismo o homem se dilui enquanto pessoa frente ao imperativo da produção. O operariado, antes de tomar consciência de que era uma classe, foi sacrificado sem escrúpulos em vista do lucro máximo. Ainda que as conquistas sociais posteriormente tenham sido significativas, formou-se uma mentalidade de individualismo como referencial de vida que atinge mesmo as classes populares que vão aos poucos perdendo a solidariedade. A educação no mundo capitalista como instrumento de ascensão social e de status não é democrática. As classes privilegiadas financiam para si uma educação particular que lhes permita se perpetuar no seu status social enquanto que a educação oferecida às classes populares tem apenas a função instrumental de qualificar mão de obra para atividades produtivas sem, porém, ter condições de ascender socialmente. O sistema capitalista tenderá a educar as pessoas para a competição e o consumo. Essas idéias são veiculadas nos meios de comunicação social, na educação formal e nas políticas sociais. Princípios éticos e de cidadania são escandalosamente deixados de lado pela classe política que procura garantir seus proventos oficiais e não oficiais, gerando um significativo patrimônio, muitas vezes em prejuízo das classes desfavorecidas condenadas a vagar pelos corredores dos SUS sem esperança de saúde e a se iludirem que se preparam para a vida em escola sucateadas. O Capitalismo cria e sustenta uma sociedade dual onde tudo é feito em dose dupla: polícia, saúde, justiça, educação, bairros e tudo o mais para ricos e para pobres... O neoliberalismo intrumentalizou de forma consciente e planejada o ser humano. Qualquer “educação” que nasça deste sistema, não será jamais altruísta e humana, pois, terá no lucro e na mais-valia a base de toda sua ação. Neste processo realiza-se o Prof. Dr. Dílson Passos Júnior –
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12 fetichismo da mercadoria. O homem é por opção apenas uma peça na engrenagem da produção. Para o sistema, deixa de ser homem para ser matéria, ser coisa... Apesar de tudo isto o sistema capitalista em si, filosófica e economicamente, não é injusto, é apenas lógico: O Capitalismo jamais foi humanista. Seu fundamento único é a matéria que se multiplica, o capital. Ele apenas educa de forma coerente com seus princípios, valores e pressupostos... com sua cosmovisão, enfim...
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Prof. Dr. Dílson Passos Júnior –
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