O conceito de Identidade Narrativa e de Alteridade na obra de P. Ricoeur: aproximações

July 15, 2017 | Autor: Marcos Lisboa | Categoria: Hermeneutics and Narrative, Fenomenologia, Filosofía francesa contemporanea
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O conceito de identidade narrativa e a alteridade na obra de Paul Ricoeur: aproximações The concept of narrative identity and otherness in Paul Ricoeur’ work: approaches Resumo O presente artigo examina os conceitos de identidade narrativa e de alteridade na obra de Paul Ricoeur. A questão da identidade narrativa é abordada ele, inicialmente, em Tempo e narrativa e é retomada em Si-mesmo como outro. É a resposta à questão “quem é você?” e implica, necessariamente, a narrativa da vida porque “a pessoa é o que ela fez e o que ela sofreu”, e é na tarefa de complexificação da noção de sujeito que está, de modo decisivo, a compreensão da alteridade ou do outro. O outro, no entanto, na tradição metafísica é recusado e esquecido da Antiguidade à Contemporaneidade. Por essa razão, o presente texto objetiva examinar a questão da narrativa e da identidade pessoal, em Ricoeur, no quadro de uma meditação sobre a alteridade à luz de uma análise hermenêutico-fenomenológica ricoeuriana nas obras Tempo e narrativa, O si-mesmo como um outro e Do texto à ação. Palavras-chave ética, hermenêutica, si-mesmo, alteridade. Abstract This paper discusses the concept of Narrative Identity and Otherness in the work of Paul Ricoeur. The concept of narrative identity is initially approached by Ricoeur in Time and narrative and then reviewed in Oneself as another. It is the answer to the question: “Who are you?”. The answer to such question necessarily implies the narrative of life since “the person is what he/she did and suffered”. The effort to deepen the notion of subject is absolutely decisive to a proper understanding of the “Other” and of “Otherness” itself. The Other, however, in the metaphysical tradition, is rejected and forgotten from ancient to contemporary philosophy. Therefore, this paper aims to examine this question of narrative and personal identity in Ricoeur´s thought, as part of a meditation on otherness guided by Ricoeur hermeneutic phenomenological analysis in his books Time and Narrative, Oneself as Another and From the text to action. Keywords ethics, hermeneutics, oneself, otherness.

Marcos José Alves Lisboa Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) marcoslisboa@puc-campinas. edu.br

Introdução

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ada a densidade e complexidade do projeto filosófico ricoeuriano, esta reflexão objetiva, de modo sucinto, examina o conceito de identidade narrativa e sua relação com o de alteridade nas obras de Ricoeur, Tempo e narrativa, O si-mesmo como um outro e Do texto à ação. Assim, a estrutura desta análise limita-se a estes conceitos, suas vinculações e implicações éticas. O termo “identidade” é aqui tomado no sentido de uma categoria da prática, isto é, ética. Dizer a identidade de um indivíduo ou de uma comunidade é responder à questão “quem fez tal ação?”, ou, “quem é o seu agente, o seu autor?” Essa questão é respondida, primeiro, nomeando-se alguém, isto é, designando-o por um nome próprio. Mas qual é o suporte da permanência do nome próprio? O que justifica considerar o sujeito da ação, assim designado por seu nome, como o mesmo ao longo de toda uma vida e que se estende do nascimento à morte? A resposta só pode ser narrativa. “A identidade do quem é apenas, portanto, uma identidade narrativa” (RICOEUR, 1997, p. 425). O conceito de identidade narrativa passa, obrigatoriamente, pela discussão da relação entre identidade idem e identidade ipse na obra Soi-Même comme un autre (RICOEUR, 1990). A discussão inicial acerca da noção do si-mesmo, em Ricoeur, isto é, a proposição de uma solução ao problema do cogito cartesiano e do anticogito nietzshiano, aponta para a necessidade imperativa de reconhecer a importância do outro de si-mesmo nesse processo de complexificação da noção de sujeito. Este reconhecimento está circunscrito à especificidade do ramo da ética, uma vez que implica mediação por elementos que sugerem a presença do outro, a saber: os símbolos da cultura, a história narrativa de si ou de ficção, pelas representações, pelas ações, pela linguagem, as relações interpessoais ou institucionais, ou pelo desejo. No entanto, a tradição metafísica tem recusado a noção de alteridade nos termos do idealismo, da pós-fenomenologia ou do estru-

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turalismo. O outro sucumbe às contribuições filosóficas de Descartes e Nietzsche, implicando uma cisão, separação, um vazio entre os termos o mesmo e o outro. Deste modo, como já dissemos anteriormente, a presente reflexão objetiva examinar os conceitos de identidade, em especial, a identidade narrativa na constituição de uma identidade ética vinculada à alteridade.

Identidade narrativa e identidade ética

Por identidade, Aristóteles afirma na Metafísica: com efeito, aquelas coisas cuja matéria é uma, ou em espécie ou em número, são chamadas de idênticas, e também aquelas cuja substância é uma. Por conseguinte, é evidente que a identidade é, de qualquer modo, uma unidade, seja porque esta se refira a uma única coisa considerada duas, por exemplo, quando se diz que a coisa é idêntica a si mesma, visto que se toma uma coisa como duas. (ARISTÓTELES, 2005, p. 217-219).

Esta definição é importante para o desenvolvimento do projeto ético-filosófico empreendido por Ricoeur, que, em suas obras Temps et récit (RICOEUR, 1985)1 e Soi-même comme um autre (RICOEUR, 1990)2 pretende conferir um significado forte para o conceito de identidade. Segundo Dartigues, em Ricoeur, “a identidade narrativa implica a narração de uma vida que indica o contexto das ações e situações a partir do qual podemos identificar a pessoa. A pessoa é o que ela faz e o que

Para a realização deste trabalho recorremos à tradução em português de Roberto Leal Ferreira (RICOEUR, 1997). 2 Para a realização deste trabalho recorremos à tradução para o português de Lucy Moreira César (RICOEUR, 1994). 1

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sofreu” (DARTIGUES, 1997, p.19).3 Podemos, pois, caracterizar, em primeiro lugar, a identidade pessoal como aquilo que nos faz reconhecer o indivíduo como sendo ele próprio a partir de um conjunto de traços que o individualizam, isto é, por meio de características físicas, psicológicas ou, ainda, por seu caráter, sua índole, sua disposição interior (vontade), suas virtudes, motivos, intenções e por suas ações num determinado contexto histórico-cultural. No entanto, esta é uma caracterização prévia do conceito de identidade que padece da falta de articulação entre o caráter descritivo, prescritivo e histórico da identidade e que o presente trabalho pretende examinar. A problemática da identificação pessoal ou coletiva implica uma questão de fundo que orientará este trabalho, a saber: o pronome relativo quem. Desvendar este quem acarreta, necessariamente, o exame da importância dos conceitos de ascripção e de imputação, de que trataremos adiante. A primeira referência à noção de identificação, realizada por Ricoeur nos primeiros estudos de Soi-même comme un autre, aparece quando ele percorre o itinerário da filosofia analítica. Em outras palavras, o pensador francês aborda as aporias da linguagem no processo de identificação dos indivíduos. Ricoeur afirma que “a linguagem comporta montagens específicas que nos orientam para designar indivíduos” (RICOEUR, 1994a, p.40). Esta abordagem é denominada descritiva. A segunda aproximação relativa ao tema que nos propusemos estudar, a identidade, é de cunho prescritivo. Isto quer dizer que não basta tratar o problema da identidade somente no plano lógico e epistemológico da análise do discurso e da ação. É de fundamental importância, portanto, relacionar o autor e a ação. Diz Ricoeur que “a alguém é prescrito agir em conformidade com esta ou aquela regra de ação” (ibid., p.121). “implique le récit de la vie qui indique le contexte des actions et situations à partir duquel nous pouvons identifiier la persone. La persone est ce qu’elle fait et ce qu’elle a subi”. Tradução de Constança Marcondes César.

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Na busca da identidade pessoal, a narrativa constitui objeto de reflexão no quinto e no sexto estudo de Soi-même comme un autre (A identidade pessoal e a identidade narrativa; O si e a identidade narrativa). No curso desta análise, é retomada a discussão da dimensão temporal, tanto do sujeito quanto de sua ação, que já estava implicada em Temps et Récit. Diz Ricoeur sobre o exame da importância do conceito de identidade: abordagens indiretas da reflexão proposta pela filosofia analítica, pelo exame da primeira determinação da ipseidade através do confronto com a mesmidade e da segunda determinação da ipseidade pela dialética com a alteridade. (ibid., p.347).

Em outras palavras, as três problemáticas que compõem a obra Soi-même comme un autre fundamentam a hermenêutica do si. A identidade narrativa elabora uma resposta às questões “quem é você?” e “quem sou eu?”. Para Ricoeur, este é um aspecto importante do problema hermenêutico e de sua circunscrição no debate ético contemporâneo que neste artigo será apenas sugerido. No exame do conceito de identidade, deparamos-nos, segundo Ricoeur, com seus dois usos4 na língua latina: idem e ipse. O termo idem, no caso, nominativo masculino, é o pronome demonstrativo que se traduz por mesmo. Por sua vez, o termo ipse é empregado para reforçar o pronome demonstrativo no caso acima. Em outras palavras, idem serve para identificar, para dizer que é igual, ao passo que ipse é reforçativo; por exemplo: idem rex (mesmo rei e não outro) e ipse rex (o próprio rei).5 A identidade como mesmidade, em latim é idem; inglês: sameness; alemão: Gleichheit. A identidade como ipseidade, por sua vez, em latim é ipse; em inglês: selfhood; alemão: Selbstheit (cf. RICOEUR, 1994, p. 140). 5 Cabe ressaltar que o pronome de terceira pessoa não possui nominativo, na gramática latina. Neste caso, o pronome demonstrativo exerce esta função. Cf. NAPOLEÃO M. DE ALMEIDA. Gramática Latina, p. 163. 4

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Colocando de lado as questões referentes à semântica dos termos, a identidade idem significa, ao mesmo tempo, unicidade e similitude, que representam valor numérico e qualitativo. Ambos os termos não implicam, diretamente, a derrelição do tempo e, consequentemente, são critérios pouco consistentes para reidentificar a coisa ou a pessoa. A fragilidade deste critério de similitude sugere uma terceira noção e, concomitantemente, outro critério de identidade: a continuidade ininterrupta. Este terceiro sentido do conceito de identidade caracteriza-se como o itinerário de um ser do nascimento à inelutável condição de sua existência, a morte, e, por introduzir a diferença, o distanciamento e, também, o quarto significado da identidade mesmidade: a permanência no tempo. O quarto sentido da identidade idem, a permanência no tempo, afirma Ricoeur, revela uma descontinuidade em relação às determinações anteriores (unidade, similitude, numérica) porque estas não implicam a questão do tempo. A identidade, para nosso autor, é um princípio de permanência no tempo. Esta permanência, porém, deixa-se ligar à noção de “substância”,6 substrato imutável. Diz Ricoeur: a ideia de estrutura, oposta à de acontecimento, responde a esse critério de identidade, por mais forte que possa ser administrado; ela confirma o caráter relacional da identidade que não aparecia na antiga fórmula da substância mas que Kant restabelece, classificando a substância entre as categorias de relação, como condição de possibilidade de pensar a mudança como chegando a alguma coisa que não muda. (RICOEUR, 1994, p. 142.). 6

Ricoeur examina a contribuição filosófica de Kant sobre a formulação do conceito de substância (Beharrlichkeit) como categoria de relação. cf. RICOEUR, 1994, p. 142.

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A partir desta determinação surgem os verdadeiros obstáculos à compreensão do conceito de identidade porque “a ipseidade, o si, parece recobrir o mesmo espaço de sentido”7 (RICOEUR, 1988d, p. 297). Além disso, esta noção não é a mesma da mesmidade porque seu desenvolvimento passa, necessariamente, pela resposta do si à questão “quem?”, citada anteriormente, no plano da ação: “Quem fez isto?” “Quem fez aquilo?” “Quem é o autor desta ou daquela ação?” À atribuição de uma ação a um agente ou a seu autor, Ricoeur denomina ascripção.8 Este termo sugere outro conceito caro à obra ricoeuriana, como bem examinou Olivier Mongin (cf. DANESE, 1993, p. 32 et seq.): atestação, que pode receber a significação moral de imputação. O verbo imputar é derivado dos termos latinos putare e imputatio, e significa, segundo nosso autor em O justo (1995e), que “imputar uma ação a alguém é atribuí-la como sendo o seu verdadeiro autor, colocá-la, por assim dizer, na sua conta, e tornar esse alguém responsável por ela” (RICOEUR, 1995e, p. 38). Assim, visto que o mesmo ou a mesmidade se sobrepõe ao si ou ipseidade, insistimos, não somente sobre a distinção gramatical, epistemológica e lógica do conceito de identidade que decorrem da análise da obra do nosso autor, mas, principalmente, ontológica que separa idem de ipse. Desta forma, Ricoeur concorda com Heidegger: por dizer que a questão da Selbstheit pertence à esfera de problemas relevantes, assim, da entidade que ele denomina Dasein e que se caracteriza pela capacidade de se interrogar sobre seu próprio modo de ser e, assim sendo, se reportar ao ser enquanto ser.9 (RICOEUR, 1988d, p. 298). Do original: “[...] l’ipséité, le soi, paraît couvrir le même espace de sens.” (tradução nossa) 8 O termo ascripção Ricoeur toma emprestado de Hart (1948). 9 Do original: “[...] pour dire que la question de la Selbstheit appartient à la sphére de problèmes relevant de la sorte d’entité qu’il appelle Dasein et qu’il caractérise par la capacité de s’interroger sur son propre mode d’être et ainsi de se rapporter á lêtre em tant qu’être.” (Tradução nossa) 7

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Por Dasein também podemos entender o ser que existe compreendendo. A Selbstheit, ou ipseidade, então, coincide com o ser que existe compreendendo, o Dasein, assim como as categorias, no sentido kantiano, devem ser pensadas em relação das Vorhanden e Zurhanden, ou a mesmidade. Segundo Ricoeur, o exame destes conceitos heideggerianos revela a distinção entre idem e ipse. O ponto de interseção entre o si e o mesmo está na permanência no tempo. Nesta região, do lado ascripção prevalece o conceito de caráter, e, do outro, o da imputação, cuja primazia é da noção de fidelidade a si, ou a expressão Selbständigkeit10, de Heidegger. Reconhecemos a dificuldade da questão, mas, para elucidá-la, a análise ricoeuriana apresenta dois modelos de permanência no tempo que devem ser compreendidos quando nos referimos a nós mesmos: o caráter e a palavra dada. O que Ricoeur entende por caráter? Para nosso autor, o caráter é outro modelo de permanência no tempo, no qual as identidades idem e ipse não se distinguem uma da outra. Na filosofia moral de Aristóteles, o termo ethos designa o caráter como disposição adquirida (ecsis=echein) pelo hábito. Este conceito, por sua vez, implica a dimensão do tempo e coloca em questão a imutabilidade do “caráter”.(RICOEUR, 1990, p. 150). Deste modo, para Aristóteles, o hábito confere uma significação histórica ao caráter porque transforma a conduta do homem por meio da continuidade de outras ações praticadas no “horizonte de uma vida inteira” (RICOEUR, 1994a, passim). No entanto, a inovação promovida pelo hábito é abolida quando sedimentada, isto é, quando se torna capacidade adquirida (durável). É nesta relação dialética, entre inovação e sedimentação no processo de formação do caráter, que a identidade idem recobre a identidade ipse. Assim, “meu caráter sou eu, eu O conceito de Selbständigkeit como fidelidade a si mesmo encontra-se em Temps et Récit (RICOEUR, 1988.).

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mesmo, ipse; mas que se anuncia como idem” (RICOEUR, 1994a, p.146). Ricoeur, portanto, entende o caráter como estabilidade, como “o signo distintivo com o que reconhecemos uma pessoa, identificamo-la como a mesma” (1994a, p.146-147). Por essa razão, no caráter convergem todas as noções da mesmidade que abordamos anteriormente, a saber: identidade numérica, identidade qualitativa, continuidade ininterrupta e permanência no tempo. O outro problema abordado em Soi-même comme un autre é o da dissociação de idem e ipse por meio de outra noção de permanência no tempo: a manutenção de si. Este conceito estará implicado na relação dialética entre o si e a alteridade, o outro de si, à medida que este si permanecer fiel às suas promessas, à palavra dada. Então, é possível consolidar uma relação dialética entre a identidade narrativa representada pelo sujeito na busca de si e identidade ética como ponto de referência.

A hermenêutica do si e a alteridade

Para Ricoeur há, portanto, duas problemáticas pertinentes à noção de identidade: a equivocidade das duas interpretações de permanência no tempo, ou seja, a coincidência entre idem e ipse, ou ainda, o quem recoberto pelo quê e o ipse dissociado do idem; e a noção de identidade narrativa como resolução das aporias da identidade pessoal que, a partir de agora, explicitaremos. A problemática da identidade pessoal, segundo Ricoeur, passa, obrigatoriamente, pela consideração da “articulação da dimensão temporal da existência humana” (1994a, p.146.), ou seja, pela consideração do contexto histórico no qual está inserido o sujeito da ação, da linguagem, da responsabilidade e da narração. A importância da teoria narrativa adotada por nosso autor consiste em equidistar o ato de descrever e o de prescrever e, consequentemente, em ampliar o conceito de identidade pessoal pela mediação da identidade narrativa. Ricoeur diz:

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A teoria narrativa não poderia exercer essa mediação, isto é, ser mais que um segmento intercalado na sucessão discreta de nossos estudos, se não pudesse ser mostrado, de um lado, que o campo prático coberto pela teoria narrativa é mais vasto que o campo coberto pela semântica e pela pragmática das frases de ação, por outro lado, que as ações organizadas em narrativa apresentam traços que só podem ser elaborados tematicamente no quadro conceitual de uma ética. (1994a, p. 139).11

Além da distinção entre idem e ipse, nosso autor insiste sobre a necessidade de passar pela abordagem da filosofia analítica, sem a qual não poderia sustentar seu apelo ontológico do conceito de identidade pessoal. Tal exigência está nas reflexões acerca dos critérios elaborados, principalmente por Derek Parfit e seus predecessores (Hume e Locke) quanto à objetividade e a substancialidade do “eu”. Parfit entende a identidade como mesmidade “com a exclusão expressa de toda a distinção entre mesmidade e ipseidade, e, portanto, de toda a dialética narrativa ou outra entre mesmidade e ipseidade” (1994a, p.156). Em Reasons and persons (1986, p. 210), Parfit defende que “nossa identidade não é o que importa”.(PARFIT apud RICOEUR, 1994a, p156.) Em outras palavras, a concepção de identidade é uma ilusão porque existem apenas padrões de atividades neurais, ou, como diz o autor, “a existência de uma pessoa consiste exatamente na existência de um cérebro “La théorie narrative ne saurait exercer cette méditation, c’est-à-dire être plus qu’un segment intercalé dans la suite discrète de nos études, s’il ne pouvait être montré, d’une part, que le champ pratique couvert par la théorie narrative est plus vast que celui couvert par la sémantique et la pragmatique des phrases d’actions, d’autre part, que les actions organisées en récit présentent des traits qui ne peuvent être élaborés thématiquement que dans le cadre d’une éthique.”

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e de um corpo e na ocorrência de uma série de acontecimentos físicos e mentais ligados entre eles” (PARFIT apud RICOEUR, 1994a. P. 157). Ou seja, este autor adota uma posição comum ao empirismo clássico comprometendo a qualidade de mediação da identidade narrativa entre identidade idem e ipse, que é a de encontrar uma substância estável do conceito. Segundo Ricoeur, podemos nos aproximar desta noção de substância a partir das contribuições filosóficas de Aristóteles sobre a Tragédia e, principalmente, do conceito de enredo. O enredo, na narrativa, sintetiza os acontecimentos. Esta síntese, nosso autor a define como “conflito do heterogêneo” (RICOEUR, 1994, passim). O enredo tem um caráter de trama, tessitura na qual a história de uma vida está marcada por diversos e constantes eventos. A propósito do enredo, Dartigues diz que “consiste em estabelecer uma concordância entre dois acontecimentos discordantes, a fazer entrar numa configuração única delimitada por um começo e um fim os acontecimentos que são golpes teatrais ou inversão de situações” (DARTIGUES, 1997, p. 24). Consequentemente, nesta dialética entre discordância e concordância, revela-se o caráter essencialmente ético da narração, referindo-se às pessoas como agentes históricos. […] partilha do regime da identidade dinâmica própria da história narrada. A narrativa constrói a identidade da personagem, que se pode chamar de sua identidade narrativa, construindo a da história narrada. È a identidade da história que constitui a unidade da personagem. (RICOEUR, 1994a, p.176 ).

Podemos dizer que a configuração deste caráter durável da personagem dá-se por uma dinâmica própria ao enredo. A narração dos acontecimentos, na qual estão as pessoas, põe em relação dialética identidades idem e ipse. De um lado está o caráter, representado pela mesmidade, sinô-

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nimo de estabilidade, constância, imutabilidade; de outro, a ipseidade, como livre manutenção de si, ou fidelidade a si, inovação, imprevisibilidade, decisão ética. O locus privilegiado da identidade narrativa aparece, então, como a articulação entre o caráter (mesmidade) e a livre manutenção de si (ipseidade). Esta articulação assinala a circunscrição da identidade narrativa no debate ético. A propósito da tragédia, Aristóteles examina a importância da relação entre a ação, o agente e a narrativa. Diz o Estagirita: A tragédia é representação (mímesis) de uma ação e se executa mediante personagens que agem e que diversamente se apresentam, conforme o próprio caráter e pensamento (porque é segundo estas diferenças de caráter e pensamento que qualificamos as ações), daí vem por conseqüência serem duas as causas naturais que determinam as ações: pensamento e caráter; e é por suas ações que são felizes ou não. (ARISTOTELES, ano 1991, p.251)

O caráter constitutivo da identidade confere um valor moral às ações. Estas, por sua vez, refratam em si a livre manutenção de si e sedimentam-se no caráter. Assim, nesta dialética, o caráter, de um lado, e a decisão ética, de outro, renovam-se e atualizam-se, recíproca e permanentemente, tal como o processo de constituição do hábito que Aristóteles atribui à virtude. A identidade narrativa tem a função de mediar a relação entre duas classes de narrativa: história e ficção literária. Reconhece-se, então, a coesão de uma vida12 (Zusammenhang des Lebens) quando narrada. A configuração narrativa tem ressonância em um contexto mais amplo: o da vida concreta e cotidiana. Diz Ricoeur que “o trajeto da aplicação da literatura à vida, o qual Ricoeur toma emprestado este termo de Dilthey.

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nos transportamos e transpomos na exegese de nós mesmos, é esta dialética entre idem e ipse”13 (RICOEUR, 1988d, p. 303). Portanto, a tarefa vital da hermenêutica do si é articular a narração fictícia ou histórica na qual nos identificamos como reflexos do que nós próprios somos e fazemos. Como diz Proust, em À la recherche du temps perdu: Não serão, acho, meus leitores, mas os próprios leitores de si mesmos, sendo meu livro uma espécie dessas lentes de aumento, como aquelas que o óptico de Combray oferecia a um comprador; meu livro, graças ao qual eu lhes fornecerei o meio de lerem a si mesmos. (PROUST apud DARTIGUES, 1997, p. 30).14

A narração é um processo de identificação do indivíduo e da comunidade, e aqui insistimos sobre seu vínculo com a identidade ética, porque não é uma identidade acabada, isto é, o “si” que se descobre por meio da narração deve tomar uma decisão ética, não pode apoiar-se apenas em si mesmo. Esta decisão ética corresponde ao termo que Aristóteles denominava escolha (proáiresis). Define o Estagirita a noção de escolha como “um desejo deliberado que se refere a coisas que dependem de nós.” (ARISTÓTELES, 1973, III, 5, 1113a 10). Para Ricoeur, a vida verdadeira, caracterizada como o resultado da busca de sentido, unidade e coerência das ações individuais por meio da narrativa, deve se desdobrar em direção à intersubjetividade e para as relações sociais: “Visar à vida boa com e para o outro em instituições justas” (RICOEUR, 1994a, p.211). Voltaremos ao assunto adiante. Do original: “ Sur le trajet da l’application de la littérature á la vie, ce que nous transportons et transposon dans l’exégèse de nous-même, c’est cette dialectique de l’ipse et de l’idem.” (Tradução nossa) 14 “Ils ne seraint pas, selon moi, mes lecteurs, mais les propres lecteurs d’eux-mêmes, mon livre n’étant qu’une sorte de ces verres grossissants comme ceux que tendait à un acheteur l’opticien de Combray; mon livre, grâce auquel je leur fournirais le moyen de lire en euxmêmes.” (Tradução de Constança Marcondes César). 13

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As filosofias da subjetividade

As análises de Ricoeur decorrem da aspiração de construir uma hermenêutica do si. No entanto, para a constituição de um sujeito ético e configuração desta proposta hermenêutica, nosso autor examina o confronto entre as filosofias do sujeito. Estas filosofias do sujeito, ou filosofias do cogito, estudadas por ele, são as de Descartes e Nietzsche. Para Ricoeur, segundo Danese, O prefácio de Soi-Même comme un autre representa o confronto entre Descartes e Nietzsche sobre o estatuto do sujeito e prepara a interrogação do si que deve distinguir-se tanto do Cogito Exaltado quanto do Sujeito Derrotado.15 (DANESE, 1993, p. 36).

Ricoeur, com relação ao cogito, insiste sobre o vínculo entre o caráter hiperbólico e a ambição de um fundamento último na segunda meditação de Descartes: “a radicalidade do projeto é proporcional à dúvida que não exclui do regime da opinião nem o senso comum, nem a ciência, seja matemática ou física e também a tradição filosófica” (RICOEUR, 1994a, p.15). Desta dúvida, procede a hipótese do gênio maligno que coincide com a figura do grande enganador. Diz Ricoeur que “através da dúvida eu me convenço de que nada foi, mas o que eu quero encontrar é uma coisa que seja certa e verdadeira” (1994a, p.16). A fórmula cogito ergo sum exprime, portanto, a certeza do “eu” cartesiano por meio de expressões como “eu duvido, eu sou”, associada ao pensar; o duvidar, por sua vez, prescinde do “eu sou”, ou seja, “para duvidar é preciso ser”. Do original: “[...] l’apertura di Soi-même comme um autre rappresenta um confronto tra Descartes e Nietzsche, che porta sullo statuto del soggetto e prepara l’interrogazione del sé, che deve distiguersi tanto dal cogito eccessivo che da um soggwetto sconffitto.” (tradução nossa)

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Este “eu” é puro pensamento, isto é, a identidade do sujeito, em Descartes, está desprovida da dimensão temporal compreendida pela narração e das figuras do sujeito que norteiam as reflexões em Soi-même comme un autre, a saber: o sujeito da responsabilidade, da interlocução, da narração e da história. É, em síntese, uma subjetividade hipostasiada, um “eu desancorado” (para emprestar uma expressão do nosso autor) porque se coloca como reflexão sobre a própria dúvida. Diz Ricoeur que “o sujeito que medita aparece sem relação com o que chamamos locutor, agente, personagem da narração, sujeito da imputação moral etc.” (1994a, p.18). Daí se conclui que esta proposição, “eu existo pensando”, é uma verdade sem valor objetivo. É uma verdade colocada por si mesma e da qual, supomos, derivariam todas as outras verdades, tais como Deus, corpo, matéria, a matemática e outras. Todavia, na Terceira meditação esta ordo cognoscendi é destruída pela instituição de uma ordo essendi, isto é, Deus é a verdade divina e primeira. O cogito, então, perde seu caráter absoluto. Como bem examinou Martial Geroult (apud RICOEUR, 1990, p.19), esta verdade divina elimina a fonte da dúvida hiperbólica, o gênio maligno. A crítica de Nietzsche, mostrada por Ricoeur, aparentemente contrapõe-se à ambição cartesiana do cogito, assim formulada nos Fragmentos nachlass (1882-1884; apud RICOEUR, 1994a, p.24). Todavia, Nietzsche não escapa à dúvida que procede da indistinção entre a mentira e a verdade a propósito de sua crítica aos valores tradicionais. Nestas condições, o “anticogito” não é o inverso do cogito cartesiano, mas “a destruição da própria questão à qual se considera que o cogito traga uma resposta absoluta” (1994a, p.25). Para Nietzsche a linguagem é figurativa, diz Ricoeur. Assim, não existem fatos, somente interpretações da realidade e estas sempre estão sujeitas aos riscos das ilusões. A hermenêutica do si, proposta por Ricoeur, distingue-se, tanto do projeto cartesiano do cogito exaltado quanto do sujeito fe-

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rido do modelo interpretativo da suspeita de Nietzsche. A distinção passa pelo exame do conceito de atestação e de sua relação com o de testemunho.16 A atestação, segundo nosso autor é: uma espécie de certeza à qual a hermenêutica pode pretender não somente a respeito da exaltação epistêmica do cogito, a partir de Descartes, mas a respeito da humilhação em Nietzsche e seus sucessores. A atestação parece exigir menos que uma e mais que a outra. (1994a, p.33).

Assim, este conceito permanece equidistante da imediatez autofundante do cogito cartesiano e do trabalho de suspeita proposto por Nietzsche e exprime, no ser humano, a capacidade de narrar, falar e responsabilizar-se por seus atos. Ricoeur entende por atestação a afirmação do si como testemunho, ou seja, o si que se manifesta na relação com o mesmo e na dialética com o outro de si. No entanto, a dimensão ontológica do si, como dissemos, será tratada convenientemente no capítulo sobre as implicações éticas do conceito de identidade narrativa, à luz das contribuições de Aristóteles, Spinoza e Heidegger examinadas por nosso autor. Nesta primeira abordagem do conceito de identidade narrativa concluímos que o cogito criticado por Ricoeur põe em questão o primado do sujeito e sua pretensão de autossuficiência. “Transcender o ‘eu’ é sempre conservá-lo e, ao mesmo tempo, suspendê-lo enquanto instância suprema”17 (JERVOLINO apud DANESE, 1993, p. 49). Podemos inferir que a articulação entre descrever, prescrever e narrar está entretecida na tríplice dialética entre reflexão e fi Ricoeur toma emprestado este conceito de Jean Nabert, nos primeiros estudos de Soi-même comme un autre. 17 Do original: “Transcendere l’io è sempre ritenerlo e allo stesso tempo sospenderlo in quanto instanza suprema.” (tradução nossa) 16

losofia analítica, entre as identidades idem e ipse e entre o si e o outro de si. Além disso, as críticas ao cogito, à subjetividade hipostasiada, traduzem-se na eliminação das ilusões da consciência, confiante em si mesma, mascarada pela linguagem do desejo, ou daquilo que o sujeito pensa ser ou conhecer. Estas críticas têm por exigência a decifração do sujeito, ou seja, o processo de interpretação torna possível a manifestação do ser autêntico, da prioridade do existir sobre o pensar, do mundo vivido ou o “não dito” representado pela intencionalidade anterior à busca de conhecimento objetivo. Daí Ricoeur afirmar que: Uma filosofia reflexiva que tendo inteiramente assumido as correções e as instruções da psicanálise e da semiologia, toma um caminho longo e indireto de uma interpretação dos signos, privados e públicos, psíquicos e culturais, onde se exprimem o desejo de ser e o esforço para existir que nos constituem. (RICOEUR, 1978, p. 223).

A identidade narrativa corresponde, então, a uma nova formulação ou na complexificação da noção de sujeito. Objetiva-se, não somente substituir um cogito por outro, cartesiano ou nietzscheano, mas trata-se de uma hermenêutica do si pela mediação dos símbolos da cultura, pelas relações interpessoais e institucionais, ou seja, por uma via longa.

Conclusão

Reforçamos, aqui, a tese deste trabalho: a de refletir acerca das implicações éticas norteadas pelo desenvolvimento do conceito de identidade narrativa, sua vinculação à noção de alteridade, no conjunto das obras de Paul Ricoeur. Nosso autor é congruente em sua filosofia, na qual o processo de decifração do ser do homem é de fundamental importância no debate ético-filosófico contemporâneo.

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A noção de identidade narrativa, como visto, tem um longo itinerário a percorrer porque, além das diversas aporias e ambiguidades que o acompanham, nosso autor adota o recurso da “via longa”. Esta é a condição para desvelar o ser do homem na experiência vivida, em sua historicidade e em seu devir. Este método da “via longa” é designado como a função mediadora dos signos e obras da cultura exercida neste processo de decifração do ser humano. Ao contrário, evidentemente, da imediatez do “eu” da consciência pleiteada pelo cogito cartesiano, isto é, de uma subjetividade “desancorada” que converge para a separação entre o mesmo e o outro. Há uma forma mais direta de tratar as diferentes asserções referentes ao conceito de identidade pessoal e narrativa e de pôr em relevo sua estreita relação para com a alteridade e o contexto mais amplo das relações institucionais: é através das respostas formuladas à questão “quem?”. Em outros termos, é mediante a capacidade de o sujeito poder designar-se a si mesmo nas diversas dimensões implicadas no uso da linguagem, a saber: “Quem é o autor da narrativa?”; “Quem é o autor do discurso?”; “Quem é o autor de tal ação?”. Designar-se a si mesmo como autor evidencia o caráter de atribuição de direitos e deveres a que este indivíduo está sujeito. Significa a avaliação das ações próprias ou de outrem no quadro das exigências éticas e morais, isto é, ações “boas” e/ou “obrigatórias”. Em outras palavras, ainda, significa identificar o responsável pela ação, não apenas no sentido de imputação, mas no de cuidado, termo que Ricoeur toma emprestado de Hans Jonas. Nestes termos, esta discussão traz à tona outras questões e conceitos ampliados e pertinentes à reflexão ricoeuriana, mas não abordados aqui diretamente. São os conceitos de responsabilidade, da reciprocidade entre ação e sofrimento humanos e de phronésis. São termos caros à reflexão da vida social e política, carentes de uma fundamentação última da ética. Evidentemente, o vazio ético que caracteriza, de certo modo, a contemporaneidade e determina o comporta-

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mento humano é uma ameaça constante à própria existência do ser do homem. Podemos inferir que esta ameaça é herança de um idealismo exacerbado da fórmula cogito ergo sum. Esta citação pode designar, a nosso ver, uma inversão de valores, defesa do individualismo e da impessoalidade, e acentua, de modo decisivo, a fragilidade do regime democrático. As consequências são reconhecidas na forma de violência moral, que Ricoeur caracteriza por expressar a impossibilidade de o sujeito agir segundo os critérios estabelecidos pela ética e pela moral. Somos forçados a admitir que a impossibilidade de o homem exercer sua ação e, desta forma, visar a “vida boa”, implica o seu sofrimento. Da mesma forma, a impossibilidade de usar a palavra, ipso facto, pode expressar uma concepção reduzida da realidade circundante. Assim, este sujeito tolhido em seu pensar, agir e falar estará à mercê apenas da proposta de ser e existir que sua interpretação permitiu-lhe vislumbrar. Em outras palavras, sem esclarecimento, a tomada de consciência da exploração e da violência a que é submetido não é suficiente para permitir uma ação, ou, pelo menos, reagir de outro modo em determinadas situações, ou reconhecer-se a si mesmo mediante o outro, o outro como a si-mesmo. Por outro lado, esse sofrimento pode caracterizar-se pela impossibilidade de agir diante do conflito entre os objetivos pessoais e as promessas oferecidas pelo mundo, da responsabilidade, do compromisso ou da resposta ao outro: “Eis-me aqui”. As promessas do mundo são, aliás, mais abrangentes do que o homem pode realizar. É preciso ampliar seus horizontes por meio da questão da identidade narrativa. O exame do conceito de identidade narrativa a que nos propomos, nas obras de Ricoeur, Temps et récit e Soi-même comme un autre, sugere outros temas, como o da reestruturação e complexificação da noção de sujeito, da constituição e da hermenêutica do si e, em última instância, de sua dimensão ética.

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Em primeiro lugar, a hermenêutica do si, segundo Ricoeur, “encontra-se a igual distância entre a apologia do cogito e sua destituição” (RICOEUR, 1994a, p.14-15). A identidade pessoal, como vimos, não é a consciência imediata do cogito cartesiano, do “eu” imediatamente dado e evidente. Aliás, a mediação dos signos e das obras da cultura, da crítica das ilusões do sujeito, do desvio da reflexão pela análise, tanto da teoria da linguagem, do texto, da ação e da história complexificam a noção de sujeito. Em segundo lugar, podemos afirmar que Ricoeur inscreve-se na tradição filosófica contemporânea que assinala uma crítica da subjetividade ao estabelecer a relação entre ética e hermenêutica. Na obra Soi-même comme un autre, nosso autor examina o confronto entre o cogito exaltado de Descartes e o cogito ferido de Nietzsche, colocando a hermenêutica do si a igual distância dessas duas posições. O exame da questão do cogito é importante porque é o ponto de partida para a reconstituição da noção de sujeito ético, ou seja, uma nova concepção de homem e, também, de uma nova racionalidade. Consiste, ainda, em pôr em questão, de diversos modos, as certezas do cogito; consiste em mostrar, por diferentes vias, que a consciência de si não pode mais identificar-se com a certeza imediata do eu, com a presença e a transparência imediata do eu a si mesmo. (CÉSAR, 1998, p. 53).

O cogito é, portanto, representante do voluntário, da intenção, da consciência, ou seja, é uma subjetividade hipostasiada ou, como nos diz Ricoeur, uma subjetividade “desancorada”. O cogito é sinônimo de ilusão, falsidade, mas este cogito da filosofia cartesiana foi demolido e humilhado. O conhecimento imediato não mais indica a verdadeira natureza humana, e tampouco a realidade que o cerca. O homem não é quem acredita ser. (LISBOA, 2000, p. 115).

A insistência sobre a questão do sujeito deve-se à exigência de que ele possa dar sentido à sua ação e sua capacidade de afirmar-se quando submetido às críticas e às suspeitas, isto é, o outro. A pretensão do cogito como fundação última, ou “posição do si”, que caracteriza a reflexão cartesiana, é problemática. A certeza do cogito, enunciada no Cogito ergo sum, deve sofrer um processo de decifração por meio da função mediadora dos símbolos, da cultura, dos mitos, do texto e da ação. Aqui, para Ricoeur a concepção de reflexão tem um alcance mais ético do que epistemológico, isto é, a reflexão é Eros e Conatus, desejo e esforço. Em outras palavras, estes termos são o denominador comum desta compreensão calcada na existência. Diz nosso filósofo que “a reflexão é apropriação do nosso esforço por existir e de nosso desejo de ser através das obras que atestam este esforço e este desejo” (RICOEUR, 1978, p. 325). Ricoeur examina o problema da identidade narrativa em Temps et récit, na qual afirma que: o si do conhecimento de si é o fruto de uma vida examinada, segundo a palavra de Sócrates na Apologia. Ora, uma vida examinada é, em grande parte, uma vida depurada, clarificada pelos efeitos catárticos das narrativas, tanto históricas quanto fictícias, veiculadas por nossa cultura. A ipseidade, assim, a de um si instituído pelas obras da cultura que aplicou a ele próprio. (RICOEUR, 1997, p.425).

Em Soi-même comme un autre, a questão é retomada de modo mais amplo. É o exame do si que se desdobra nas relações interpessoais e nas relações sociais reguladas pela justiça. Apesar da mediação da narrativa, o si não dá conta da solicitação de uma ação em termos éticos, a não ser que se desdobre. Diz nosso autor que “o si só pode ter estima por si se a vida for qualificada boa em cada uma das três esferas, não devendo nenhuma ser privi-

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legiada em detrimento das outras”18 (DARTIGUES, 1997, p. 32). Em outras palavras, o sujeito ético é aquele que se reconhece como autor de suas ações e cuja existência e implicações estão entrelaçadas nas vidas de outras pessoas que, por sua vez, constituem o tecido social e as instituições. Essa interferência de inspiração aristotélica pode ser transferida, por exemplo, para o contexto problemático dos tempos modernos, contribuindo para uma ressignificação do mundo que conhecemos. A hermenêutica do si é o ponto de partida para o devido esclarecimento do conceito de identidade e, também, o de alteridade. Revela-se que sua equivocidade acarreta aporias cujas soluções passam, segundo Ricoeur, pelo exame da importância da teoria narrativa. Aqui está o interesse ético-filosófico do conceito de identidade narrativa e sua vinculação à noção de alteridade, a saber: mediante a narrativa, o sujeito da ação e do discurso pode apropriar-se de sua identidade propriamente ética que exprime a dialética entre a identidade idem e a identidade ipse. Estes termos articulam-se, então, na relação entre o sujeito e o ato de narrar, isto é, de um lado, na narrativa, temos a questão da permanência no tempo que constitui o grau mais significativo do termo identidade em oposição ao significado de identidade ipse, entendida, por Ricoeur, como inovação, mutabilidade. Do lado do sujeito, a dialética exprime-se na significação da identidade idem como manutenção do caráter, enquanto ipse revela-se pela manutenção da promessa dada. Deste modo, a noção de sujeito ético implica esta relação dialética entre estes dois usos do termo identidade. Além disso, este modelo narrativo permite ao sujeito seguir a história, os registros de sua ação transformadora no mundo, pela experiência e reconhecimento da alteridade, do outro, do diverso de si em instituições justas, na busca de vive Do original: “le soi ne peut avoir esime pour lui-même que si la vie est qualifiable de bonne dans chacune de ces trois sphères, aucune ne devant être privilégiée au détriment des autres.” (tradução nossa)

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rem juntos e no sofrimento. Esta experiência narrativa exprime, então, a verdadeira identidade da pessoa: “a pessoa é o que ela faz e o que sofreu”19 (DARTIGUES, 1997, p. 19). É neste sentido que relação dialética entre a equivocidade dos termos exprime, com veemência, a conotação ética da obra de Ricoeur. Na análise dos romances sobre o tempo em Temps et récit II (RICOEUR, 1984), por exemplo, encontramos a ideia do próprio leitor ser sujeito que complexifica sua identidade, experienciando novas possibilidades de ser e existir mediante a inteligência poética no imaginário do texto. Desta forma, há um aprofundamento da consciência do indivíduo em direção a uma apreensão mais rica do ser humano, que ele próprio é e que os outros são. A apreensão, no imaginário, de outros e novos modos de ser, de realizar a existência e, ainda, possibilitar uma compreensão de si e do outro, da alteridade em nós e fora de nós. É o que sugere o título da obra Soi-même comme un autre. Este desdobramento não seria possível sem consideração da dialética entre idem e ipse na narrativa e no sujeito da ação. A ação tem, portanto, seu sentido ampliado no quadro ético que acabamos de descrever. Porque, diante das exigências éticas e morais da intenção à vida verdadeira, a ação do homem pode ser lida e interpretada como um texto, conforme as análises ricoeurianas em Du texte à l’action (RICOEUR, 1986). A ação humana, no quadro de uma ética, transforma o mundo e dá forma à nossa existência. Isto, de alguma forma, nos conduz à reflexão sobre a relação entre ética e estética, uma vez que esta dialética põe em relevo os termos agir, transformar, o belo e o bom, a inscrição de sua obra no mundo (esta obra é a própria vida) e o conceito de felicidade que orienta a ação. As reflexões de nosso autor implicam a discussão de outros temas, como o da amizade, da democracia, ideologia, utopia e justiça. No entanto, neste artigo, estas são apenas sugeridas.

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Do original: “La personne est ce qu”elle fait et ce qu’elle a subi”. (tradução nossa)

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