O Conselho Presidial e a construção da ordem
Descrição do Produto
O CONSELHO PRESIDIAL E A CONSTRUÇÃO DA ORDEM
Raissa Gabrielle Vieira Cirino1
Em 1823, um ano após a Independência brasileira, os políticos estavam empenhados em construir o novo aparato estatal. Os primeiros a iniciarem esta difícil tarefa foram os deputados da Assembleia Constituinte, no Rio de Janeiro. Após dois meses de trabalhos, envolvendo discussões, apuração de lista dos principais problemas das províncias e várias sugestões de que bases tomar para garantir a hierarquia social e a unidade política, os deputados produziram a Carta de 20 de Outubro de 1823. No entanto, a Assembléia foi dissolvida antes de concluir seus trabalhos, e uma nova constituição foi feita por selecionados do Imperador Dom Pedro. Por outro lado, segundo Cecília Helena Salles de Oliveira (2006), a Constituição de 1824 foi bem recebida e logo reconhecida por todas as Câmaras e políticos das muitas linhas políticas, porque teve como base as constituições francesas, a constituição espanhola de 1812, a constituição das Cortes de 1822 e a própria Carta de 20 de Outubro de 1823. Isto fez com que o documento agregasse as muitas reivindicações de setores sociais diferenciados, levando a muitas interpretações, permitindo aos dirigentes do Rio de Janeiro uma ampla negociação política e adesões até mesmo de adversários. Sendo assim, as diretrizes da Carta foram aceitas, incluindo o projeto referente aos conselhos presidiais para as províncias. Este conselho era de caráter consultivo e deveria atuar juntamente com o Presidente Provincial2 com o intuito de auxiliá-lo no trato das questões de cunho provincial, como por exemplo
1.º Fomentar a agricultura, commercio, industria, artes, salubridade e commodidade geral. 2.º Promover a educação da mocidade.
1
Bolsista PIBIC. Cota UEMA / CNPq. Projeto: O Conselho Presidial do Maranhão (1825-1834). Orientador: Dr. Marcelo Cheche Galves. 2 Este cargo também foi criado pelos deputados em substituição das Juntas Provisórias criadas pelas Cortes. 1
3.º Vigiar sobre os estabelecimentos de casas de caridade, prisões, e casas de correcções e trabalho. 4.º Propôr que se estabeleçam Camaras, onde as deve haver. 5.º Propôr obras novas e concertos das antigas, e arbítrios para isto, cuidando particularmente na abertura de melhores estradas e conservação das existentes. 6.º Dar parte ao Governo dos abusos, que notar na arrecadação das rendas. 7.º Formar censo e estatitiscas da Provincia. 8.º Dar parte à Assembléa das infracções das leis, e successos extraordinários, que tiverem lugar nas Provincias. 9.º Promover as missoens, e cathequese dos Indios, a colonização dos estrangeiros, a laboração das minas, e o estabelecimento de fabricas mineraes nas Provincias metalliferas. 10. Cuidar em promover o bom tratamento dos escravos, e propôr arbítrios para facilitar a sua lenta emancipação. 11. Examinar annualmente as contas de receita e despezas dos Conselhos, depois de fiscalizadas pelo Corregedor da respectiva comarca, e bem assim as contas do Presidente da Provincia. 12. Decidir temporariamente os conflictos de jurisdição entre as Autoridades. Mas se o conflicto aparecer entre o Presidente e outra qualquer Autoridade, será decidido pela Relação do Districto. 13. Suspender Magistrados na conformidade do art. 34. 14. Suspender o Commandante Militar do comando da Força Armada, quando inste a causa publica. 15. Attender as queixas, que houverem contra os funccionários públicos, mormente contra à liberdade da imprensa, e segurança pessoal, e remmetel-as ao Imperador informadas com audiencia das partes, presidindo o VicePresidente, nocaso de serem as queixas contra o Presidente 16. Determinar por fim as despezas extraordinarias, não sendo porem estas determinações postas em execução sem prévia approvação do Imperador. Quanto às outras determinações do Conselho, serão obrigatórias, emquanto não forem revogadas, e se não oppozerem às Leis existentes (Carta de 20 de Outubro de 1823, p. 13, grifo nosso)3
Como vemos, uma das questões se refere ao trato dos conflitos de jurisdição entre autoridades, e estes realmente eram constantes nas províncias – especialmente no interior – pois a distância entre as autoridades do poder central facilitava a concentração de poder nas mãos de alguns e, conseqüentemente, a insatisfação de outros, que não tinham a quem ou a o que recorrer. A situação, então, se transformava em guerra de poder, fragilizando ainda mais a instável política provincial.
3
Optamos por manter a escrita original da época de todos os documentos de fonte primária analisados para este trabalho.
2
Neste período, os únicos órgãos que, na visão dos deputados, poderiam competir com os conselhos e com a centralização do poder seriam as câmaras. Sendo assim, estes tiveram seus poderes diminuídos e transferidos para os conselhos (HOLANDA, 1962, p. 24). Por outro lado, os deputados buscavam equilibrar os poderes nas províncias, já que o Presidente era escolhido diretamente pelo Imperador, sendo um representante do poder central; já os conselheiros eram representantes do poder provincial, e iriam controlar as ações do Presidente, evitando futuros excessos do poder central. Ao mesmo tempo, os deputados esperavam atender aos pedidos de ordem e maior representação vindos das Câmaras e das elites locais. No Maranhão, o Conselho Presidial iniciou suas atividades em meados de 1825, com o primeiro mandato dos conselheiros, que se estendeu até 1828. Suas atas foram registradas conforme as indicações da Carta, e são preservadas atualmente pelo Arquivo Público do Estado do Maranhão4. A partir de algumas atas, analisarei alguns casos de conflitos entre autoridades maranhenses, que entravam em choque e contribuíam para a instabilidade social, empecilho para o êxito do novo aparato estatal. ***
O Conselho Presidial maranhense foi instalado em 1825. Suas sessões deveriam ocorrer no melhor período para cada cidade, tendo como tempo oficial de duração dois meses, mas podendo ter seus trabalhados prorrogados por até mais dois meses com sessões extraordinárias, dependendo da quantidade e importância dos trabalhos para o presidente e os conselheiros. As eleições eram parecidas com as dos deputados, e neste primeiro mandato foram eleitos para conselheiros: Patricio José de Almeida e Silva (vice-presidente provincial), Joaquim José Sabino, Ricardo Henriques Leal, Manuel Gomes da Silva Belfort, Raimundo Ferreira da Assunção Parga, Antonio José de Souza, Felipe Antonio de Sá, Romualdo Antonio Franco de Sá, José Ascenço da Costa Ferreira e Antonio Pedro da Costa Ferreira. Alguns destes conselheiros foram substituídos por suplentes, mas a maior parte freqüentou assiduamente o Conselho pelos quatro anos para os quais foram eleitos.
4
Códice 1337. Atas do Conselho Presidial da Província do Maranhão (1825-1832).
3
De acordo com Marcelo Cheche Galves (2010), os eleitos para este mandato são novas e velhas figuras políticas provinciais, já que as devassas abertas contra os envolvidos nos tumultos do pós-Independência barraram muitos favoritos. Por outro lado, alguns políticos que possuíam ligações com a administração política anterior à independência também foram eleitos, mesmo com a pecha de “portugueses”, demonstrando que mesmo que anteriormente tivessem sido repudiados, foram aos poucos absorvidos pela nova administração. Depois do período de adaptação e organização, o Conselho inicia seus trabalhos de forma mais efetiva a partir da chegada do Presidente Pedro José da Costa Barros: as atas se tornam mais formais, cria-se o hábito de ler as atas antecedentes para depois aprová-las, e se tem um maior cuidado com o registro da presença dos conselheiros5. Em tempo, o número de trabalhos aumenta, e o Conselho passa a ter maior atuação na província. Entre os vários problemas para os quais emite seu parecer, temos os casos de conflitos de jurisdição entre autoridades. Vamos apresentar os casos mais importantes deste mandato, visto que foram mais dispendiosos e mais comentados pelos conselheiros. O primeiro caso envolve o Juiz de Fora de Caxias, Leocádio Ferreira de Govêa Pimentel Beleza contra o Capitão do Batalhão de Caçadores da mesma cidade, Jose Joaquim de Castro Launé. Leocádio já era figura conhecida na política maranhense: envolvera-se nas conturbações pós-Independência, fazendo parte de uma junta que desejava ver Miguel Bruce fora do poder no Maranhão (GALVES, 2010, p. 208) e participara das eleições de 1824, mas seria acusado de não ter os 400 mil réis de renda necessários para ser votado6 (GALVES, 2010, p. 274). Este caso foi apresentado na sessão de 16 de junho de 1827 pelo vice-presidente, Romualdo Antônio Franco de Sá, através de uma representação do Governador das Armas, o Conde d’Escragnolle. O Governador desejava consultar o Conselho sobre a atitude do Juiz em ter autuado, pronunciado e requisitado a prisão do Comandante. O primeiro documento transcrito na ata por um oficial da Secretaria do Governo7 é do Comandante Geral do Quartel General de Caxias, João Paulo Dias Carneiro, no qual ele expõe 5
Cada conselheiro recebia cerca de 3.200 réis por dia de atividade no Conselho. Caso faltassem, não recebiam sua diária; daí que todas as faltas eram registradas “por motivo de moléstia”, e raras vezes com um atestado. Desta forma, recebiam mesmo sem comparecer às sessões. 6 Porém, conseguiu se eleger para deputado na legislatura 1838-1841 (COUTINHO, p. 17 apud GALVES, p. 274) 7 O secretario Ferreira França explica que “muito que tem a fazer” (ACP, 1825-1832, p. 23, verso 1), e só subscreve a ata. A partir deste caso, o secretário do governo civil passa a recorrer bastante aos secretários do Governo.
4
que lamenta a situação, mas o Juiz se mostrou impaciente quanto a esperar suas medidas e que nunca deixara de promover o bem da tranqüilidade pública e harmonia entre as autoridades; a Vila estava também sofrendo as conseqüências desta imprudência do Juiz, já que ocorreram vinte e quatro assassinatos em menos de quatro meses, alguns até a luz do dia. Os autores são conhecidos, mas até aquele momento, nenhum havia sido autuado, pois Beleza ao invés de se preocupar com estes trágicos acontecimentos havia pronunciado Launé por usurpações e atribuições de sua jurisdição. O Comandante Dias Carneiro esperava, então, que o excelentíssimo Conselho pudesse iluminá-lo nesta delicada situação para elucidar o caso e dar a paz às famílias da Vila (ACP8, 1825-1832, p. 23, verso 1). Percebemos que Dias Carneiro parecia já apontar uma conduta errônea por parte do Juiz. Em seguida, são transcritas algumas cartas do Juiz Beleza de maio do mesmo ano, em que ele narra os acontecimentos do seu ponto de vista. Logo no início, o Juiz de Fora destaca que mal chegado o Capitão, já demonstrou “o seu máo genio, espancando a torto e a direito escravos, e homens livres sem me dar parte de [p. 23, v. 2] de seus crimes, sem provas, e nem procederem as formulas de direito” (ACP, 1825-1832, p. 23, verso 2). Beleza diz que avisou ao Comandante destes excessos, mas este se retirara para sua fazenda particular, e Launé continuou atuando como bem entendia. No primeiro documento de Dias Carneiro, ele nada comentara sobre sua estada em sua fazenda enquanto o Juiz e o Capitão permaneciam na cidade se confrontando. Graças a estas e outras ações “maldosas e estúpidas” de Launé, os boiadeiros de Itapecuru Mirim - que segundo Beleza já conheciam a fama daquele - quando sabem de sua estada em Caxias retrocedem com suas boiadas, o que prejudicava os lavradores e comerciantes da cidade. Outra queixa é a teimosia de Launé em não querer dar parte das rondas para Beleza, afim de que este possa dar as devidas sentenças aos presos; ao invés disso, Launé prefere “por se persuadir nisto a bater-se: que elle mesmo decidir não só estes negócios, mas ainda todos os outros Forenses, e diz publicamente que estas são as ordens que trouxe dadas pelos Ajudantes d’Ordens de Nossa Excellencia, e que sempre tenho duvidado” (ACP, 1825-1832, p. 23, verso 2). Beleza, então, começa a discorrer sobre a autoridade de Launé, pois este como Capitão deve se ater a dar ordens a seus soldados, e atuar em obediência ao Juiz, pois os magistrados são 8
Atas do Conselho Presidial.
5
os únicos neste país que podem punir conforme a Lei. Para o Juiz, sua situação é delicada, pois os sertanejos são dóceis e aceitam sua autoridade se sabem que estão errados, mas ao reconhecer uma injustiça, se exasperam. Porém, nada podem fazer porque Launé é o Capitão do destacamento. Cabe a Beleza interferir e zelar pela Lei e Constituição, que está a ser esmagada sobre os pés de Launé (ACP, 1825-1832, p. 23, verso 2). Beleza é enfático, e se mostra confiante quanto a sua posição de vítima na história. Como não obtinha o relatório de prisões do Capitão, o Juiz enviou dois escravos e o Alcaíde9 ao Quartel com o intuito de observar e posteriormente relatar a situação dos presos e as condições de suas capturas. Lá os representantes de Beleza se deparam com presos, em sua maioria escravos, que passavam pelos castigos mais extremos, incabíveis para o nosso período de “luzes”, envolvendo palmatória nas plantas dos pés e corte dos cabelos com faca. Por causa de tudo isto, Beleza se considerava ofendido e usurpado em sua jurisdição por Launé, e exigia um ofício do Comandante para resolver se deveria continuar no cargo ou entregá-lo, mas ainda exigindo o conhecimento do resultado das rondas noturnas (ACP, 1825-1832, p. 24, verso 1). No terceiro documento, o Juiz diz ter mandado fazer uma apreensão no Quartel, juntamente com o exame de corpo de delito nos presos. Os escrivães que foram a mando do Juiz registram que Launé pode ser acusado de [...] deter cárcere privado, dar castigos a seu arbítrio, offensa a Justiça, informação da Constituição, soltar um preto escravo, que nestes dias deveria ser arrematado pelo Juizo da Provedoria dos Auzentes, ficando alem destes crimes citado para se ver autuar por resistência a Justiça não consentindo que os dittos Escravos voltassem os presos paizanos sem ter culpa, e ao mesmo tempo por capturado um Meirinho emborcando-o assim de fazer huma diligencia que lhe haveria ordenado (ACP, 1825-1832, p. 24, verso 2).
Quanto à falta de prisões a que se refere o Comandante geral de Caxias, para Beleza é culpa de Launé, pois o Juiz afirma que mandara apreender os acusados, mas os soldados obedeciam apenas aos mandos do Capitão e nada fizeram. Ele exemplifica com o assassinato de José Joaquim Coelho, que foi morto a mando de Joaquim Simões da Mota Medeiros, e o Juiz
9
Cargo de origem bélica, mas que neste período possui apenas função de magistrado judicial, responsável em garantir o cumprimento das leis imperiais.
6
ordena a sua captura. Mas nada ocorre, já que para os soldados somente a palavra do Capitão é Lei10. Beleza se envergonha da situação, e desabafa: Sou formado em Leis, e me não envergonho de dizer a Vossa Excellencia que ignoro a Lei da creação de Commandantes Geraes, e Parciaes, e quaes as suas atribuiçoens para a elles me submeter, e só sei que a maior parte delles abordão sufficientemente o andamento da justiça havendo quem a administre, e concorrem ao mesmo passo quanto podem para que se não respeitem aos Magistrados locaes (ACP, 1825-1832, p. 24, verso 2).
Farto da situação de desmando e descontrole de sua jurisdição, o Juiz apresenta no documento seguinte o pronunciamento de prisão do Capitão, que resistiu. Ele envia o escrivão João Forjo Brabo para notificar o Comandante geral, que estava em sua fazenda, e relata que se este não retornar à cidade em três dias, irá embora para o termo de Cachoeira Grande – distrito de Caxias – e lá esperará por providências quanto a situação. Na verdade ele aparenta estar receoso com as próximas ações de Launé, que deveriam ser contra sua pessoa, pois o mesmo havia dado ordens aos soldados para maltratar os oficiais do Juiz e a este próprio. Os demais documentos são ofícios confirmados pelos escrivães João Forjo Brabo e Manoel Gonçalves Ruas. O Conselho dá seu parecer da situação declarando que o Capitão deveria seguir as ordens para se livrar das acusações, que se oficiasse ao Tribunal da Relação e ao Governador das Armas para tomar as providências necessárias, mas sem esquecer da notável ausência do Comandante Geral, João Paulo Dias Carneiro, e entregar toda a documentação ao mesmo Governador das Armas. Já na sessão de 30 de junho, o Governador das Armas responde com um ofício, no qual defende Launé e critica Beleza, pois este parecia já ter resolvido o caso a seu favor, e utiliza principalmente o parecer do Comandante Dias Carneiro, que como bem apontamos, já mostrava a sua indignação com as ações e acusações do Juiz. Acrescenta que o mesmo aponta a falta de prisões por culpa de Launé, mas ele gasta tempo mandando fazer exame de corpo de delito em 10
Em outra parte da documentação, o Juiz cita novamente este caso de assassinato. Segundo ele, a viúva de Joaquim José Coelho pede que se encontrem os responsáveis por ato tão tenebroso. Beleza aponta que tinha dois suspeitos, e requere homens armados para vingar o assassinato do homem com captura e até possível morte – se demonstrassem resistência – dos acusados (ACP, 1825-1832, p. 25, verso 1-2).
7
um escravo, enquanto um padre sexagenário fora assassinado. Por toda esta violência que o Governador diz ter enviado Launé ao distrito, já que bem sabia de sua índole incorruptível e sua energia para afastar os malfeitores. Se o Capitão cometeu algum excesso, é desaprovável, mas todos cometemos. E como prova final, apresenta trechos de várias cartas de cidadãos de Caxias, que comentam o quanto a cidade estava mais pacífica desde a chegada de Launé, e como o Juiz Beleza iniciou uma perseguição irracional baseada na inveja e no poder11. Assim, para o Governador, o Capitão deve ser mantido até a captura dos acusados, e o Juiz deve ser chamado a prestar contas, por ser ele a verdadeira causa do distúrbio do distrito (ACP, 1825-1832, p. 28, verso 2, p. 29, verso 1). Este caso deixou marcada a figura de Beleza, tanto que em julho ocorre novo caso envolvendo o Sargento Militar Luis Antônio Maciel, de Caxias, que desejava permanecer em São Luis, por se achar ameaçado de morte por José Coelho, mas o Ajudante de Ordens Antonio Bernardo de Oliveira Pimentel ordenava seu retorno em vinte e quatro horas. O Sargento pedia auxílio ao Governador para permanecer e para conservar José Coelho preso, visto que havia sido autuado em flagrante, mas pela falta de cadeia, o Juiz Beleza não havia formado ainda seu processo. Os conselheiros encaminharam os ofícios ao Governador das Armas e ao Desembargador do Crime, mas Antonio Pedro da Costa Ferreira adicionou ao fim da sessão que se o Juiz não houvesse realmente “formado culpa” ao réu, que se deveria denunciá-lo para a Assembléia Legislativa por infração da Constituição (ACP, 1825-1832, p. 34, verso 2 e p. 35, verso 1). Notoriamente, Beleza ficara sem credibilidade, e ainda continuava a ter seu nome envolvido em mais conflitos de jurisdição. Mais um caso foi apresentado em uma sessão extraordinária de vinte e sete de agosto de 1827. Trata-se das queixas do civil Joaquim José Cintra contra o Comandante Geral da Vila de Alcântara, Jose Theodoro Correia d’Azevedo Coutinho. Cintra foi contratado pela viúva D. Catherina Antonia Alves Calheiros, para fazer o epitáfio de seu falecido marido, o Tenente Coronel Francisco Lopes Calheiros. Cintra o fez, e cobrou mil réis, uma quantia cara segundo o Comandante Geral. Ao que parece, a viúva não pagou a quantia, e Cintra a pôs na justiça. Porém,
11
Os extratos de parágrafos estão copiados na íntegra no Códice 1337, que contém as atas do Conselho, iniciando-se da página 29, verso 2, até página 32, verso 1. Nestas páginas temos também cópias dos ofícios do Juiz Beleza assinados pelos escrivães, e que segundo o Conde d’Escragnolle, atestam a inocência e bom trabalho de Launé e perseguição sem fundamento e incompetência do Juiz de Fora.
8
não sem antes caluniá-la e difamá-la perante a sociedade alcantarense, ainda segundo o Comandante. Por esta razão, ele pôs Cintra na cadeia, e só o retiraria de lá se o civil assinasse um termo concordando em desistir da ação judicial e de não mais difamar o nome de D. Catherina (ACP, 1825-1832, p. 44, verso 2 e p. 45, verso 1). Cintra enviou sua representação expondo seu lado da história. Para ele, sendo um cidadão de bem, negociante que aderiu à independência do Brasil, não pode ser jogado na cadeia como um vil assassino. Ele, então, denuncia a ação do Comandante e da caprichosa viúva, que incorreriam em falta grave contra a Lei (ACP, 1825-1832, p. 44, verso 1, p. 44, verso 2). Já o Comandante Coutinho atesta que é caluniado por um mau sujeito, que não teve pena de uma das senhoras mais honradas daquela sociedade que acabava de passar pelo luto do marido. A pena de privação de sua liberdade era até pequena para suas faltas. Ele, então, fez com que duas testemunhas avaliassem o trabalho do epitáfio, para garantir um preço mais justo para a viúva, e Cintra o assinou, provavelmente forçado, e ainda permaneceu preso. Outra prova de que as ações de Cintra foram injuriosas é apresentado pelo Comandante em ofício do Presidente Pedro José da Costa Barros, que antes de se ausentar do cargo para assumir o de senador, enviara ofício ordenando que “o Commandante de Alcantara Solte o Suplicante depois de haver este assignado hum termo de não maltratar mais de maneira nenhuma aquela Senhora e quando o pratique o contrario o prenderá de novo, e o remetera para a Cadeia desta Cidade” (ACP, 18251832, p. 45, verso 2). O termo foi feito em janeiro de 1826, na casa do Comandante Coutinho, de acordo com as diretrizes do Presidente. O documento teve como testemunhas Joaquim Gonçalves Farias e Joaquim Jose Pereira da Silva, e o tabelião foi Jose Correia de Gomes de Castro, que também o assinou. Com todas estas medidas já tomadas, e com a documentação relida, os conselheiros decidiram que “não tinha lugar a acuzação contra o Coronel Commandante Geral Theodoro Correia d’Azevedo Coutinho porquanto este cumprio as ordens que recebeo do Governo que então regia esta Provincia”. Mais uma vez foi Costa Ferreira que chamou a atenção dos demais conselheiros para remeter os documentos ao Imperador e ao Congresso, para que estes decidissem “conforme a justiça” (ACP, 1825-1832, p. 44, verso 1).
9
***
O trato com as autoridades não era tarefa fácil. Devido a distância do centro de poder e órgãos fiscalizadores, os representantes da Coroa se sentiam no direito de dar sua próprias diretrizes, destoando do comando central. Gradativamente, ocorre um duplo processo de centralização – na Corte, em relação às províncias, e na capital das provinciais, em relação às câmaras. Caberá ao Conselho Presidial, em parceria com o Presidente de Província, o papel de regulador destas tensões que fragilizavam mais ainda o interior provincial e a figura de poder central, o rei. Graças ao Conselho e sua presença em São Luis, esta cidade começa a ser reconhecida como capital e centro emanador de poder, pois a partir desta que se fazia o contato com a Corte e com a Assembléia Geral. Logo, o Conselho atuava com o intuito de disseminar a ordem e o sossego que as localidades mais distantes necessitavam, se pondo como reguladores dos conflitos entre as autoridades, dando seu parecer sobre a melhor decisão a se tomar quanto a ambos os lados; mas ao mesmo tempo, possibilitando a concretização de medidas que fossem de interesse dos mais poderosos, como bem notamos no caso de Beleza e Launé, pois o segundo teve apoio do Conde d’Escragnolle em pessoa, e no caso de Cintra contra o Comandante Coutinho e a viúva D. Catherina, que foram beneficiados por sua importância na sociedade alcantarense. Ademais, os conselheiros contribuíram para a construção da ordem e consolidação do novo pacto político que fora arranjado inicialmente entre as elites de negociantes de grosso trato do sudeste e Dom Pedro I, como bem destacou Cecília Helena Salles de Oliveira (2006), garantindo a hierarquia social e a unidade, balizas do Estado que se configurava.
10
Referências 1) Documentos a) Manuscritos Livro 1337 – Atas do Conselho do Governo da Província do Maranhão (1825-1832). Arquivo Público do Estado do Maranhão. b) Impressos Carta de Lei de 20 de Outubro de 1823, pela qual Vossa Magestade Imperial manda executar o decreto da Assembléa Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brazil, que dá uma nova forma provisória aos Governos Provinciaes; ficando abolidas as Juntas Provisórias estabelecidas por Decreto de 29 de setembro de 1821. 2) Bibliografia CARVALHO, José Murilo de. (1980 / 1988) A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do século XIX. São Paulo: Globo, 2005. GALVES, Marcelo Cheche. “Ao público sincero e imparcial”: Imprensa e Independência do Maranhão (1821-1826). Niterói: UFF, 2010. Tese de Doutorado - Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, Niterói: 2010. HOLANDA, Sérgio Buarque de. A herança colonial – sua desagregação. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (org). História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difel, 1962 (tomo II, O Brasil Monárquico, vol.1), p. 9-39 11
OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles. Teoria política e prática de governar: o delineamento do Estado imperial nas primeiras décadas do séc. XIX. In: OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles; PRADO, Maria Lígia Coelho; JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco (orgs). A história na política, a política na história. São Paulo: Alameda, 2006, p. 45-57. SLEMIAN, Andréa. Sob o império das leis: Constituição e unidade nacional na formação do Brasil (1822-1834). Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2006.
12
Lihat lebih banyak...
Comentários