O contexto e os conceitos do poema Eterno, de Carlos Drummond de Andrade: uma proposta de leitura

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Universidade de São Paulo Escola de Comunicações e Artes

O contexto e os conceitos do poema Eterno, de Carlos Drummond de Andrade: uma proposta de leitura

Luís Guilherme Marques Ribeiro – 8544335 Professor Doutor Jean Pierre Chauvin Ensaio apresentado à disciplina Cultura e Literatura Brasileira: República

INTRODUÇÃO

O presente ensaio propõe uma investigação sobre a reflexão filosófica subjacente ao poema Eterno, de Carlos Drummond de Andrade, explorando a intertextualidade evidente com os textos de Blaise Pascal e Machado de Assis. A análise explora a hipótese da presença do conceito de eterno retorno de Friedrich Nietzsche como ideia central do poema.

O ensaio não se presta a fins de crítica literária nem pretende demorar-se na análise da construção poética, tampouco nos diálogos do autor com os estilos da época. Trata-se de uma abordagem que focaliza a dimensão conceitual e sua (por assim dizer) problemática filosófica, propondo uma possível interpretação.

O POEMA

"Eterno

E como ficou chato ser moderno. Agora serei eterno. Eterno! Eterno! O Padre Eterno, a vida eterna, o fogo eterno.

(Le silence éternel de ces espaces infinis m'effraie.)

- O que é eterno, Yayá Lindinha? - Ingrato! é o amor que te tenho.

Eternidade eternite eternaltivamente eternuávamos eterníssimo A cada instante se criam novas categorias do eterno Eterna é a flor que se fana se soube florir é o menino recém-nascido antes que lhe deem nome e lhe comuniquem o sentido do efêmero é o gesto de enlaçar e beijar na visita do amor às almas eterno é tudo aquilo que vive uma fração de segundo

mas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma força o resgata é minha mãe em mim que a estou pensando de tanto que a perdi de não pensá-la é o que se pensa em nós se estamos loucos é tudo que passou, porque passou é tudo que não passa, pois não houve eternas as palavras, eternos os pensamentos; e passageiras as obras.

Eterno, mas até quando? é esse marulho em nós de um mar profundo. Naufragamos sem praia; e na solidão dos botos afundamos. É tentação e vertigem; e também a pirueta dos ébrios.

Eternos! Eternos, miseravelmente. O relógio no pulso é nosso confidente.

Mas não quero ser senão eterno. Que os séculos apodreçam e não reste mais do que uma essência ou nem isso. E que eu desapareça mas fique este chão varrido onde passou uma sombra e que não fique o chão nem fique a sombra mas que a precisão urgente de ser eterno boie como uma esponja no caos e entre oceanos de nada gere um ritmo."

(ANDRADE, pp 220-221)

OS CONCEITOS O primeiro verso ("E como ficou chato ser moderno") é uma frase de sentido exclamativo iniciado com a conjunção "e", o que confere um tom prosaico ao poema logo de entrada. Não está claro o que se quer dizer com "moderno", mas afirmar que "ficou chato" evidencia um estado de insatisfação.

Em seguida a afirmação "Agora serei eterno" contrapõe modernidade e eternidade como ideias antagônicas. É importante uma atenção especial à complexidade conceitual da palavra "eterno". Uma consulta ao dicionário nos informa: "1. que dura para sempre. 2. imortal, inesquecível. 3. fig. imutável. 4. REL. Deus." (HOUAISS, 2008). Para além da primeira camada denotativa de que eterno é aquilo que se estende infinitamente no tempo, abrangendo passado, presente e futuro, há o sentido de que eterno é o que não pode ser medido pelo tempo, por transcendê-lo.

Porém, a discussão sobre o conceito de eterno remonta às primeiras reflexões ontológicas da filosofia ocidental. Segundo Platão, em Timeu, não é possível dizer que a eternidade é uma projeção do tempo ao infinito, pois o tempo é uma imagem (móvel) da eternidade (ideal), sendo passado, presente e futuro apenas reproduções inferiores do que pertenceria ao mundo das Ideias. Deste modo é admitido um contraste entre eterno (além do tempo), sempiterno (infinito no tempo) e durável (finito no tempo). A eternidade não nega o tempo, mas acolhe-o, pois o tempo se move na eternidade, que é seu modelo (MORA, 1970, p 154). Seguindo uma via parecida, os medievais, como Santo Agostinho, argumentam que a eternidade não pode ser medida pelo tempo, apesar de não ser atemporal: nela residem todos os presentes, fato que seria impossível na ordinária temporalidade mundana: o eterno é uno, perene, imutável e perfeito, e portanto pertence a Deus. Os empiristas trataram o conceito de eterno do ponto de vista da formação psicológica de sua ideia, como Locke, que tentou concebê-lo como uma ideia de tempo sem princípio nem fim, portanto, uma ampliação ao infinito do temporal. Com o positivismo e a psicanálise, tal concepção prevaleceu (Ibid, p 155). Apesar da amplitude do

conceito, temos uma pista sobre o sentido que se pretende com "moderno": a rapidez e fugacidade da vida contemporânea, que exige uma constante readaptação e mudança.

O terceiro verso exclama "Eterno! Eterno!", exaltando-o, invocando-o, elevando-o. Os três versos seguintes remetem à mitologia bíblica: Deus ("O Padre Eterno"), a salvação prometida aos cristãos ("a vida eterna") e o Inferno a que estão condenados os ímpios ("fogo eterno"). O eu lírico afirma querer ser eterno e em seguida enuncia Deus, o Paraíso e o Inferno como eternos, o que sugere uma vontade de identificação com os extremos do destino humano, uma afirmação da vida em todos os seus aspectos.

A segunda estrofe tem um só verso, em francês, entre parênteses e em itálico. A citação é do teólogo francês Blaise Pascal, no ensaio O homem perante a natureza, em que ele afirma: "O silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora" (PASCAL, p 63). A quais espaços infinitos ele está se referindo? Neste ensaio, Pascal desenvolve a ideia de que o ser humano encontra-se no meio de um duplo infinito: o infinito do tudo, na magnitude do universo, e o infinito do nada, no "abismo" que existe no interior da menor coisa, no menor dos átomos da natureza. O homem na natureza é "nada em relação ao infinito; tudo em relação ao nada; um ponto intermediário entre tudo e nada" (Ibid. p 58), e com isso pretende afirmar que "Nossa inteligência, entre as coisas inteligíveis, ocupa o mesmo lugar que nosso corpo, na magnitude da natureza" (Ibid. p 60). À constatação da "miséria humana", segue-se a afirmação da necessidade da união com Deus. É um niilismo em relação ao mundo material, um desprezo da vida que pretende afirmar um Infinito além da matéria: "Nadamos num meio-termo vasto, sempre incertos e flutuantes, empurrados de um lado para outro" (Ibid. p 60).

A terceira estrofe (— O que é eterno, Yayá Lindinha? / —Ingrato! é o amor que te tenho), também em itálico, indicando citação, é o último diálogo do conto Eterno, de Machado de Assis (vide anexo). O conto narra a história de um triângulo amoroso entre dois amigos e uma baronesa. O narrador tem um amigo de infância, Norberto, que era apaixonado por Yayá Lindinha, a quem jurava amor eterno. Depois de anos, o narrador perde contato com o amigo e acaba casando-se com a recém-viúva Yayá. Na primeira visita a Norberto depois de perderem contato, o narrador constata que seu amigo havia esquecido o antigo amor, casara-se e estava

feliz com a esposa e os filhos, afirmando ter por eles um "amor eterno". É nesse contexto que o narrador questiona-se sobre o que há de eterno nesse amor: "— Eterno! disse comigo. Tal qual o amor que ele tinha a minha mulher". Machado ironiza o sentido de "eterno" que se costuma empregar, através da contradição em que cai Norberto (personagem sentimental e romântico) por ter jurado amor eterno a duas mulheres diferentes. (ASSIS, 1943).

A quarta estrofe tem 19 versos, com um ponto final apenas na última palavra, indicando uma unidade conceitual, uma sequência de ideias que se sobrepõe. Nos primeiros três versos o poeta cria classes gramaticais diferentes para o radical etern- (Eternalidade eternite eternaltivamente / eternuávamos / eternissíssimos), e no verso seguinte afirma que "A cada instante se criam novas categorias do eterno". Tal jogo parece seguir a linha da ironia de Machado em relação à banalização do eterno, um desprezo por seu emprego para referir-se a o que é efêmero. Por outro lado, pode ser interpretado como uma valorização e uma afirmação da eternidade que há nas pequenas coisas, e a sequência de versos em seguida corroboram com esse ponto de vista.

"Eterna é a flor que se fana / se soube florir". A condição para que a flor seja eterna é ter sabido florir: se não soube florir, não é eterna. O que confere eternidade à flor é o gesto de ter sabido florir, a qualidade do florir, não apenas o fato de florir. Toda a flor se fana, pois tal é sua condição, sujeita à sua transitoriedade biológica e destinada a murchar, mas é eterna na medida em que soube florir.

Eterno "é o menino recém-nascido / antes que lhe deem nome / e lhe comuniquem o sentimento do efêmero". Cabe aqui refletir sobre o que "nome" pretende significar, por comunicar o "sentimento do efêmero". Pela lógica apresentada nesta sequência, verificamos que, se é efêmero por ter recebido o nome, é portanto eterno enquanto não tem nome. Recebe nome o que necessita de um desígnio, o que pretende existir no mundo da linguagem, do inteligível: dar nome é querer entender, fazer caber no entendimento. A oposição aqui é entre o eterno sem nome e o efêmero com nome, ou melhor, do nome que comunica efemeridade a algo. Tal pensamento remonta às discussões pré-socráticas, sobretudo à oposição entre Heráclito e Parmênides, em que era discutida a existência ou não de uma essência nas coisas

do mundo, a existência ou não de um ser fixo e imutável. Heráclito afirmava que não existia nada fixo, todo era um fluxo impossível de ser contido e tomado como referência, e a fixidez seria apenas um recurso da nossa mente, uma necessidade psicológica de parar o mundo: "utilizais nomes das coisas como se estas tivessem uma duração rígida: mas a própria correnteza na qual entrais pela segunda vez, já não é mais a mesma que a da primeira vez" (HERÁCLITO apud NIETZSCHE, 2011, p 56). Mas ainda não fica claro o que se pretende dizer com "eterno".

No verso seguinte: "[eterno] é o gesto de enlaçar e beijar": mais uma vez o eterno equivale a um gesto, uma manifestação, uma ação. Mas não é o beijar ou o enlaçar em si mesmos, mas o que acontece "na visita do amor às almas". A eternidade está no amor do gesto, não apenas na manifestação física do gesto. Novamente, o que confere a eternidade é a qualidade da ação, não a materialidade da substância e a ação por si mesma.

Os próximos dois versos enunciam o conceito subjacente aos versos anteriores: "eterno é tudo aquilo que vive uma fração de segundo / mas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma força resgata". A esta altura fica clara a referência a Nietzsche, cujo pensamento do eterno retorno parece ser a ideia central do poema. Tal ideia não chegou a ser claramente explicada por Nietzsche em seus pormenores conceituais, mas anunciada de maneira metafórica por Zaratustra (alter-ego nietzscheano, o profeta de Assim falou Zaratustra), logo, existem muitos desdobramentos interpretativos. Não obstante, a essência do conceito é simples. Reatando com Heráclito, Nietzsche afirma que o vir-a-ser (o devir, a constante mudança, a impermanência) é a condição de toda a matéria, e que tudo o que pode ser se resume ao que está sendo na fugacidade do instante, não possuindo nem o passado nem o futuro qualquer valor além da memória e da imaginação. Não há no mundo nenhum ponto fixo imutável, nenhum ser que se oponha a um não-ser, mas uma coexistência e um contínuo choque entre pares de opostos, uma dialética constante, fluida e fugaz, cuja única fixidez se encontra em nossas mentes, em nossas ideias (que Platão quis fixar metafisicamente, inventando o Mundo das Ideias, negando a realidade). Portanto o tempo deve ser entendido como um círculo cujo centro é o instante presente, eternamente surgindo no centro de si mesmo em círculos concêntricos, e não uma linha que vai do passado ao futuro, em que o

instante corresponde a uma "faísca". Diante do pavor sísmico que deparar-se com essa fugacidade provoca, Nietzsche propõe a doutrina do eterno retorno: supor que nossa vida irá se repetir um número infinito de vezes, supor que o presente retornará eternamente, afirmando o instante, conferindo-lhe uma importância infinita. Essa mudança de perspectiva confere uma densidade ontológica ao presente, que passa a ser a única coisa que existe, afirmando-se como eterno, e não apenas um choque insignificante entre passado e futuro. É uma metafísica do mundo material, uma filosofia que nega a dualidade (portanto monista), nega um mundo ideal (portanto anti-platônica) e nega a finalidade histórica (portanto anti-hegeliana), indo contra dois milênios de filosofia ocidental e reatando com o pensamento de pré-socráticos (como Heráclito e Anaximandro) e algumas doutrinas orientais (como o Budismo e o Advaita Vedanta) (SUFFRIN, 2008, pp 109-114). Agindo segundo esse princípio, "aquilo que vive uma fração de segundo" é vivido com "tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma força o resgata".

Os primeiros questionamentos que decorrem naturalmente da apresentação desse conceito são: se apenas o presente tem valor, e portanto passado e futuro são inexistentes, devemos ignorar nossa memória e nossas projeções?

Os versos seguintes parecem vir responder esses

problemas: "[eterna] é minha mãe em mim que a estou pensando / de tanto que a perdi de não pensá-la". Eterno é a memória da mãe que está no eu lírico enquanto imagem, pensamento: o que restou dela apesar do que se perdeu "de não pensá-la". A imagem evoca uma nostalgia, mas não está claro se remete a uma saudade dolorosa ou a uma lembrança boa. O próximo verso refere-se também a imagens mentais: "[eterno] é o que se pensa em nós se estamos loucos". Dizer que algo "se pensa em nós" é conferir uma autonomia a um pensamento, pressupor que ele acontece independente da vontade do sujeito que está pensando. Dizer que algo "se pensa" em nós, e não que "pensamos" algo, ou seja, que os pensamentos nos acometem, acontecem na nossa mente independente da nossa vontade enquanto sujeitos, é um dos conceitos centrais do pensamento de Nietzsche:

um pensamento ocorre apenas quando quer e não quando 'eu' quero, de modo que é falsear os fatos dizer que o sujeito 'eu' é determinante na conjugação do verbo "pensar". "Algo" pensa, porém não é o mesmo que o antigo e ilustre "eu" (NIETZSCHE, 2001, p 26).

Os três últimos versos da estrofe seguem uma cadeia conceitual: "é tudo o que passou, porque passou / é tudo que não passa, pois não houve / eternas as palavras, eternos os pensamentos; e passageiras as obras". Aqui o poeta identifica tanto o passado quanto as projeções de fatos que não aconteceram à eternidade. Essa imagem requer uma atenção especial para que a leitura não tome uma via contraditória em relação ao restante do poema. Em um primeiro momento somos tentados a entender que o eu-lírico confere valor ontológico supremo ao passado histórico e ao não-ser, ao que não existe mais e ao que sequer existiu, o que equivaleria a abranger no conceito de eterno tudo o que existiu e tudo o que não existiu, portanto, tudo. Porém, em seguida afirma-se: "eternas as palavras, eternos os pensamentos; passageiras as obras". Este último verso parece explicar os anteriores, levando-nos a entender que, do que passou e do que não aconteceu, o que importa são nossas lembranças e nossa imaginação, nossas palavras e nossos pensamentos. A oposição de "palavras" e "pensamentos" a "obras", como "eternos" e "passageiros" respectivamente, aponta novamente para a valorização da matéria do pensamento, ao estofo mental, não ao físico em si, que é impermanente. Encerra-se a quarta estrofe, a maior do poema, que conceitua a ideia de eternidade usada pelo eu lírico.

A quinta estrofe ("Eterno, mas até quando? é esse marulho em nós de um mar profundo") faz alusão à cena do conto machadiano citado, em que, após o narrador perguntar ao cocheiro "o que é eterno?" e começar a ouvir deste uma resposta incoerente acompanhada de queixas pessoais, segue com a seguinte reflexão: "Não ouvi o resto: fui mergulhando em mim mesmo, ao zunzum do cocheiro. Quando dei por mim, estava na Rua da Glória. O demônio continuava a falar; paguei, e desci até à Praia da Glória, meti-me pela do Russell e fui sair à do Flamengo. O mar batia com força. Moderei o passo, e pus-me a olhar para as ondas que vinham ali bater e morrer. Cá dentro, ressoava, como um trecho musical, a pergunta que fizera ao cocheiro: O que é eterno? As ondas, mais discretas que ele, não me contaram os seus particulares, vinham vindo, morriam, vinham vindo, morriam". (ASSIS, 1948, p 115)

A imagem que Machado usa merece uma atenção especial. A resposta está na própria natureza, não no discurso humano; está nas ondas, que dão a resposta em seu próprio

movimento: vinham e morriam. A referência parece responder à pergunta do eu lírico "Eterno, mas até quando?", remetendo à ideia de que a eternidade está no momento mesmo em que vem e morre. Eternos são os momentos que seguem um ao outro, devorando-se e renascendo a partir de si mesmos, semelhante à imagem do tempo circular.

O segundo verso da quinta estrofe apresenta outra imagem, que se sobrepõe à imagem do mar: "Naufragamos sem praia; e na solidão dos botos afundamos". Um náufrago sem praia remete ao náufrago em alto-mar, sem referência fixa: é uma vulnerabilidade absoluta em meio à fluidez, sem ponto de apoio, sem terra firme. E a imagem diz que "afundamos", ou seja, somos engolidos por esse mar, onde nos encontraremos na "solidão dos botos": o boto é um golfinho fluvial solitário, encontrado em bandos apenas em épocas de reprodução, portanto vem simbolizar a solidão submersa: estamos sem praia e sozinhos.

O sentimento de pavor que a solidão causa é evocado no último verso da estrofe: "É tentação e vertigem; e também a pirueta dos ébrios". A imagem ad tentação e da vertigem m meio à solidão absoluta remete ao penúltimo discurso de Zaratustra, O canto ébrio, em que o profeta, em meio à "velha e profunda, profunda meia-noite", afirma que enquanto a dor diz "passa, momento!", o prazer "quer a si mesmo, quer eternidade quer retorno, quer tudo eternamente igual a si mesmo". Em meio à mais profunda noite, Zaratustra diz: "o meu mundo acabou de atingir a perfeição, a meia-noite é também meio-dia — A dor é também um prazer, a maldição é também uma bênção, a noite é também um sol" (NIETZSCHE, 1978, pp 317-325), metaforizando a afirmação suprema do eterno retorno e sua capacidade de, em meio à constante luta entre opostos, inerente à realidade do mundo, afirmar o que há de belo e bom, fazendo a totalidade da vida valer a pena, uma vez que o prazer se eterniza e a dor passa.

A sexta estrofe remete ao pessimismo de Pascal em relação à miséria do homem sem Deus, mas com a mudança de perspectiva: somos miseráveis sendo eternos, não fugazes: "Eternos! Eternos, miseravelmente". O sentimento de insignificância diante do infinito é o mesmo de Pascal, apesar da perspectiva da eternidade do instante, como é metaforizado na imagem em que "O relógio no pulso é nosso confidente": confiamos o segredo de nossa eternidade a cada segundo do relógio.

Apesar do pessimismo, a última estrofe começa com a adversativa "Mas não quero ser senão eterno". Como resposta a tal sentimento, o eu lírico deseja "Que os séculos apodreçam e não reste mais do que uma essência / ou nem isso / E que eu desapareça mas fique este chão varrido onde passou uma sombra / e que não fique o chão nem fique a sombra". Novamente, é um aparente desprezo à vida, uma assunção da miséria da existência, mas um desprezo que deve ser entendido em relação ao que se afirma nos versos seguintes, a partir do "mas": "mas que a precisão urgente de ser eterno boie como uma esponja no caos / e entre oceanos de nada / gere um ritmo". A análise e interpretação desta imagem desvenda a ideia do eu lírico.

A metáfora da esponja boiando entre "oceanos de nada" remonta ao problema da miséria humana, que consiste em encontrarmo-nos como pontos insignificantes diante do "duplo infinito" do universo, em que não temos referência segura nem ponto de apoio, restando-nos apenas o refúgio em Deus. Não havendo um Deus, nem um Mundo das Ideias, nem uma finalidade histórica para a existência, o que resta? Para Nietzsche, resta a arte (cf. NIETZSCHE, 1981, pp 120-121). O valor da vida está em seu valor estético, em sua beleza; em dizer um grande "sim" à existência, afirmar na vida o que há nela de mais belo, eternizar o instante, petrificar a fração de segundo em que a flor soube florir, em que os amantes se enlaçaram e beijaram. A esponja é "a precisão urgente de ser eterno": a necessidade que a cada instante urge de que exista um valor para além da temporalidade, necessidade de agir a cada momento tendo sobre os ombros a responsabilidade do eterno, de agir como se cada instante fosse retornar eternamente. Essa esponja boia em um infinito nada, e o eu-lírico está ciente de que os séculos apodrecerão e que ele e o chão e a sombra desaparecerão: mas a esponja boia e gera um ritmo. É importante notar que o ponto alto dessa sequência de ideias é o fato de a esponja gerar um ritmo. Sem esse ritmo, toda a argumentação não conseguiria resolver o niilismo de ser "nada em relação ao infinito". O ritmo é um padrão de som ou movimento usado na música, na poesia ou na dança, manifestações artísticas dionisíacas. Se a esponja gera um ritmo, ela tem em si o único valor que pode existir em ser uma esponja entre oceanos de nada: ela tem beleza, tem música, tem ritmo, tem arte. Afirmar o que há de belo na vida é a única forma de dar a ela algum sentido: o sentido estético.

BIBLIOGRAFIA

ASSIS, Machado de. Páginas Recolhidas. Rio de Janeiro: W.M. Jackson, 1946. ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. 20 ed. Rio de Janeiro: Record. 1986. HÉBER-SUFFRIN, Pierre. O "Zaratustra" de Nietzsche. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. HOUAISS, Antônio. Minidicionário Houaiss da língua portuguesa. 3 ed. Rio de Janeiro: Objetiva. 2008. MOISÉS, Massaud. Guia prático de análise literária. 3ª ed. São Paulo: Cultrix, 1972. MORA, Jose Ferrater. Diccionario de filosofia abreviado. Buenos Aires: Sudamericana, 1970. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A filosofia na era trágica dos gregos. São Paulo: Hedra, 2011. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. São Paulo: Hemus, 1981. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim Falou Zaratustra. São Paulo: Círculo do Livro, 1978. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Para além do bém e do mal. São Paulo: Hemus, 2001 PASCAL, Blaise. O pensamento vivo de Pascal. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Martins, s.d.

ANEXO Trecho do conto Eterno, de Machado de Assis (1948)

"[...] - Viste-a bem? perguntou-me ele à porta do jardim. Não te digo o sentimento que nos prende, estas coisas sentem-se, não se exprimem. De que sorris? Achas-me naturalmente criança. Creio que sim; criança eterna, como é eterno o meu amor. Entrei no tílburi, prometendo ir lá jantar um daqueles dias. - Eterno! disse comigo. Tal qual o amor que ele tinha a minha mulher. E, voltando-me para o cocheiro, perguntei-lhe: - O que é eterno? - Com perdão de V.S.a, acudiu ele, mas eu acho que eterno é o fiscal da minha rua, um maroto que, se não lhe quebro a cara um destes dias, a minha alma se não salve. Pois o maroto parece eterno no lugar; tem aí não sei que compadres... Outros dizem que... Não me meto nisso... Lá quebrar-lhe a cara... Não ouvi o resto: fui mergulhando em mim mesmo, ao zunzum do cocheiro. Quando dei por mim, estava na Rua da Glória. O demônio continuava a falar; paguei, e desci até à Praia da Glória, meti-me pela do Russell e fui sair à do Flamengo. O mar batia com força. Moderei o passo, e pus-me a olhar para as ondas que vinham ali bater e morrer. Cá dentro, ressoava, como um trecho musical, a pergunta que fizera ao cocheiro: O que é eterno? As ondas, mais discretas que ele, não me contaram os seus particulares, vinham vindo, morriam, vinham vindo, morriam. Cheguei ao Hotel de Estrangeiros ao declinar da tarde. Minha mulher esperava-me para jantar. Eu, ao entrar no quarto, peguei-lhe das mãos, e perguntei-lhe: - O que é eterno, Iaiá Lindinha? Ela, suspirando: - Ingrato! é o amor que te tenho. Jantei sem remorsos; ao contrário, tranqüilo e jovial. Coisas do Tempo! Dá-se-lhe um punhado de lodo, ele o restitui em diamantes..."

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