O Continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes (c.1727-c.1763)”

July 24, 2017 | Autor: M. Daisson Hameister | Categoria: Historia Social, História do Brasil, Redes sociales, Redes Sociais, Historia Economica
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O CONTINENTE DO RIO GRANDE DE SÃO PEDRO: OS HOMENS, SUAS REDES DE RELAÇÕES E SUAS MERCADORIAS SEMOVENTES

(C.1727-C.1763)

MARTHA DAISSON HAMEISTER

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro curso de Mestrado em História Social Orientador: PROF. DR. JOÃO LUÍS RIBEIRO FRAGOSO

Rio de Janeiro 2002

O CONTINENTE DO RIO GRANDE DE SÃO PEDRO: OS HOMENS, SUAS REDES DE RELAÇÕES E SUAS MERCADORIAS SEMOVENTES

(c.1727-c.1763) Martha Daisson Hameister

Dissertação submetida ao corpo docente do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-graduação em História Social – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre.

Banca Examinadora:

_____________________________________________ Prof. Dr. João Luís Ribeiro Fragoso - Orientador Universidade Federal do Rio de Janeiro _____________________________________________ Prof. Dr. Manolo Garcia Florentino Universidade Federal do Rio de Janeiro _____________________________________________ Prof. Dr. Antônio Carlos Jucá de Sampaio Universidade Federal do Ouro Preto _____________________________________________ Profa. Dra. Francisca L. Nogueira de Azevedo (suplente) Universidade Federal do Rio de Janeiro _____________________________________________ Profa. Dra. Sheila de Castro Faria (suplente) Universidade Federal Fluminense

Rio de Janeiro 2002

Agradecimentos: Ao longo dos dois anos do curso de mestrado e de minha permanência no Rio de Janeiro, convivi com muitas pessoas aqui. Acumulei dívidas de gratidão que não há como saldar. Nomino algumas dessas pessoas. Agradeço ao orientador, professor João Luís Ribeiro Fragoso. Sua dedicação, competência, seriedade e disponibilidade ao orientar-me foram inestimáveis. Ao professor Manolo Florentino, com quem cursei uma disciplina e convivi no Laboratório de Pesquisa em História Social, agradeço os comentários instigantes que lançou na qualificação do projeto. À professora Sheila de Castro Faria, agradeço os preciosos comentários ao trabalho que elaborei para a disciplina por ela ministrada – parte dele incorporado à dissertação. Ao professor Antônio Carlos Jucá de Sampaio, agradeço a atenção, os comentários quando da qualificação e a gentileza em me auxiliar com seu material de trabalho. Ao professor Carlos Fico e à turma do mestrado de 2000: os comentários ao longo do seminário de dissertação, no mínimo, livraram-me de alguns erros. Aos colegas Carlos Engeman, Daniela dos Santos Barreto, Marcelo Ferreira de Assis e Tufy Cairus: agradeço a acolhida, os favores, os comentários e sobretudo, a amizade. Aos colegas do grupo de discussão articulado pelo professor João Fragoso: Célia Muniz, Daniela Barreto (novamente) e Roberto Guedes: agradeço os comentários e a parceria. Agradeço especialmente a Tiago Luís Gil. O “apoio técnico e serviços de rua” nos momentos em que fiquei assoberbada pelo estudo, pela redação deste e em especial no turbulento final de 2001, foram fundamentais para que tudo acabasse bem. Seus comentários, a leitura prévia de meus textos e disponibilização do material coletado para a sua pesquisa foram de grande ajuda. À Elisa Garcia, agradeço os comentários e a disponibilidade à discussão na fase inicial do trabalho. Aos colegas do LIPHIS e do curso de graduação – Alexandre, Alzira, Cláudia, Claudiane, Clilton, Daniel, Durval, as duas Janaínas e Leandro: estes dois anos foram bastante divertidos graças a eles. Aos meus tios, Jaime e Nildes, ao mano Sérgio Hameister e à Ana Suarez, pela acolhida carinhosa. À Sandra, funcionária da Secretaria do PPG-HIS, agradeço a boa vontade em

resolver os não poucos problemas burocráticos. Em Porto Alegre ficaram a minha família, colegas e amigos. Muito devo a eles. À minha mãe, Anita, pelo imenso afeto e pelo “financiamento” nas horas de aperto durante estes dois anos e ao longo de toda a minha vida. Aos meus irmãos e às minhas cunhadas, pelo suporte afetivo. Aos meus sobrinhos, Paula, Dudu, Júlia, Pipo e João Lúcio, pelas divertidas conversas ao telefone e pela Internet: isso ajudou a suportar a saudade. Ao professor Fábio Kühn: é dele a maior parte da culpa pelo meu interesse no período colonial. Devo-lhe muito pela leitura atenta e comentários de alguns dos capítulos, pelo estímulo e pelos “puxões de orelha”, pelo material disponibilizado, pelas sempre proveitosas discussões: muito obrigada, mesmo! Aos amigos e colegas Rodrigo Weimer (que contribuiu com pesquisa, fontes e trabalho braçal na alimentação da base de dados) e Fabrício Prado (“emissário especial” ao Arquivo General de La Nación. A ele devo o material que veio de lá e a ajuda no que tange a Sacramento), à Aline Francisco, ao Christian Leite, ao Leonardo Napp e à Mariana Soares, pela amizade de sempre. À Alzira Salles – na primeira fase –, e à minha cunhada Ceres Salazar – na segunda e mais longa fase – pois tornaram meu texto mais legível e sem muitas agressões à língua mãe. Estou em dívida eterna para com elas. Ao Roberto Cataldo Costa, amigão de muitos anos e excelente tradutor – fez, num estalar de dedos, o resumo virar abstract – fico de joelhos, devendo-lhe esta. À historiógrafa do Arquivo da Cúria Metropolitana de Porto Alegre, Vanessa Gomes de Campos, qualquer agradecimento seria pouco. A esta profissional competente e generosa devo o acesso à distância das fontes paroquiais, à sua base de dados para os Autos Matrimoniais e consultas ao acervo pelo telefone e correio eletrônico. Sem sua atenção, competência, presteza e generosidade este trabalho teria sido muito mais pobre. Por último, agradeço à CAPES, pela bolsa de estudos concedida. Sem ela eu não poderia ter cursado o mestrado nesta Universidade.

Sumário Introdução I. O Continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, e os animais 1. A imensa paisagem sulina 2. Os homens 3. Os animais Os gados vacuns Os gados muares Os gados cavalares

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II. Os homens, suas famílias e a conquista do Continente do Rio Grande de São Pedro 83 Antecedentes da ocupação sistemática dos territórios meridionais por populações lusas 1. Da donataria dos Assecas à abertura do Caminho das Tropas Investidas a partir do Rio de Janeiro Investidas a partir de São Paulo 2. Cristóvão Pereia de Abreu Entre o homem e o mito O tempo das coureadas Um começo de vida em Sacramento A estada no Rio de Janeiro O tempo das condutas de tropas 3. A fixação da população nos Campos de Viamão Das relações que se estabeleciam III. As formas de acumulação, as alianças e as redes de poder no mercado de animais 1. Os Registros das Passagens dos Animais

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Oficiais da Coroa e a acumulação através do Registro de Curitiba: o caso do Mestre-de-campo Manuel de Oliveira Cardoso Os meios direitos de Curitiba: uma mercê recebida e uma vasta rede de poder estabelecida no Império Português 2. A passagem dos animais pelo Registro de Curitiba: as diferentes conjunturas, os diferentes tipos de animais e a flexibilidade deste comércio IV. A consolidação de uma sociedade em meio às muitas mudanças 1.A crônica de uma crise anunciada:estratégias para enfrentar as difíceis conjunturas Em que mãos foram parar os gados reiúnos 2. Os diferentes mercados para os animais: a origem da flexibilidade e das possibilidades do mercado de semoventes Algumas palavras sobre os gados bovinos Algumas palavras sobre as cavalgaduras Os cavalos e as rotas intra-coloniais A diversidade no uso dos animais e a varidade de mercados: possíveis fatores de sobrevivência e da acumulação de riquezas no comércio de animais Um comércio de longa distância 3. Montagem e consolidação de uma estrutura: do apresamento à produção de animais Um diagnóstico precoce das conjunturas difíceis: meio caminho andado para a sua superação 4. As velhas famílias e os novos tipos de fortuna e arranjos matrimoniais: a sociedade sulina consolida-se

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Considerações Finais

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Referências Bibliográficas Anexo I Anexo II Anexo III

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Índice de ilustrações, quadros e tabelas

Ilustração 1: Ilustração 2: Ilustração 3: Ilustração 4: Quadro I: Ilustração 5: Tabela I: Ilustração 6: Quadro II:

Pretensões territoriais de Francisco de Brito Peixoto Mapa da América - pontos da rota de comercialização dos animais Mapa assinalando o Cabo da Verga a linha de isolamento epidemiológico As rotas das tropas e as localidades por onde passavam os animais Casamentos entre descendentes de Francisco de Brito Peixoto e Antônio Antunes Maciel Locais de presença de redes familiares entre o Rio de Janeiro e o Rio da Prata Passagem de Animais pelo Registro de Curitiba, 1769-1771 Passagem de Animais pelo Registro de Curitiba, 1769-1771 Distâncias aproximadas entre pontos da rota de comércio dos animais

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Abreviaturas ACMRJ – Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro AESP–DIHCSP: Arquivo do Estado de São Paulo, Documentos Interessantes Para a História e os Costumes de São Paulo AGN–BsAs: Archivo General de La Nación (Buenos Aires) AHCMPA: Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre AHRGS: Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul AHU: Arquivo Histórico Ultramarino AHU-CA-RJ: Arquivo Histórico Ultramarino, catálogo Castro Almeida, documentos relativos ao Rio de Jaeneiro AHU-NCS – Arquivo Histórico Ultramarino, documentos relativos à Nova Colônia do Sacramento AHU-RS – Arquivo Histórico Ultramarino, documentos relativos ao Rio Grande do Sul APRGS: Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul BN: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro BN–ABN: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Anais da Biblioteca Nacional BN-DH: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Documentos Históricos BR: Biblioteca Riograndense – Cidade do Rio Grande doc.: documento IHGB: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro IHGRS: Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul HGCB: História Geral da Civilização Brasileira RAPM: Revista do Arquivo Público Mineiro RIHGB: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro RIHGRGS: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul.

Resumo A proposta deste estudo é a análise da formação da sociedade do Continente do Rio Grande do São Pedro, antigo nome de parte do atual estado do Rio Grande do Sul e, talvez, de parcela do território uruguaio. Privilegiou-se para este estudo o aproveitamento comercial dos gados existentes na região. Esta formação, ocorrida a partir da década de 1730 deu-se fortemente calcada na exploração para o mercado dos diferentes rebanhos. O comércio dos animais e de seus produtos foi um dos fatores que colocou, desde os primórdios, esta região em contato com o restante da Colônia. Através do incessante ir e vir das condutas de tropas, os homens que povoaram as rotas entre o extremo-sul e as áreas mais centrais da América lusa, estabeleceram alianças, relações de parentesco e de negócios. As redes nas quais estavam inseridos extrapolavam os limites do Continente do Rio Grande de São Pedro e chegavam à metrópole, demonstrando que a distância não esmaecia os laços criados. Com uma apropriação do método onomástico enunciado por Carlo Ginzburg em “O nome e o como”, artigo da obra A Micro-história e Outros Ensaios, mapeou-se os homens que atuaram neste comércio de tropas e suas famílias, para, através de exemplos significativos, revelar aspectos dessa sociedade em formação.

Abstract This study analyses the constitution of the society of the Continente do Rio Grande de São Pedro, former name of current Brazilian state of Rio Grande do Sul, and perhaps part of the Uruguayan territory. The study focuses on commercial usage of cattle in the region. The process, developed in the 1730s, was strongly based on the exploration of the market for several types of livestock. Trading of animals and their products was one of the factors establishing, from the beginning, the contact of the region with the rest of the colony. Through the ongoing movement of herds, the men who populated the routes between the deep south and more central areas of Lusitanian America established alliances, family and business ties. The networks they were inscribed in went beyond the Continente de São Pedro’s boundaries and reached the metropolis, showing that distance did not weaken those links. Based on Carlo Ginzburg’s onomastic method, in the article “O nome e o Como”, included in the work A Micro-história e Outros Ensaios, men who acted in that herd trade were tracked along with their families in order to reveal aspects of the society in process of constitution, through meaningful instances.

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Introdução

Este estudo visa abordar aspectos da formação da sociedade do Continente do Rio Grande de São Pedro, território sulino de dimensões indefinidas durante todo o século XVIII. Para este trabalho, não serão considerados limites, mas sim zonas de fronteira deste território com áreas circunvizinhas. Ficará claro, ao longo da leitura dos capítulos que estas fronteiras serão transpostas, avançando para o sul e para o norte na busca das respostas às questões que serão lançadas. Ao norte, fica estabelecido o Rio Mampituba como fronteira, cuja foz no Oceano Atlântico se dá a aproximadamente 29o 30’ de latitude Sul e 49o 30’ de longitude Oeste. Ao sul, a barra do Chuí, a aproximadamente 34o de latitude Sul e 53o 30’ de longitude Oeste. Extrapolar-se-ão estas em direção ao Rio da Prata e à Vila da Laguna, hoje situada em no estado de Santa Catarina. Como marco cronológico inicial, optou-se por estabelecer os anos que cercam 1727, quando deu-se início às empreitadas de abertura do Caminho das Tropas, a rota terrestre que ligaria estes territórios à São Paulo, e aqueles que cercam 1763, ano em que a capital do Continente do Rio Grande de São Pedro, a Vila do Rio Grande, se viu perdida para as forças espanholas. Tem-se por objeto específico as relações que se fundaram nesta sociedade a partir da exploração dos gados existentes em suas pastagens, principal riqueza comercial desta região. Antes de mais nada, há que se frisar que o povoamento oficial do Continente

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do Rio Grande de São Pedro só passou a existir no ano de 1737, quando José da Silva Pais executou a incumbência que recebera: fundar uma fortificação militar na barra da Lagoa dos Patos. Este é o marco cronológico inicial usualmente estabelecido por historiadores ao estudar a formação da sociedade sulina (p. ex.: Queiroz, 1987; Osório, 1999). Este era também o marco cronológico que havia se estabelecido quando esta pesquisa iniciou. Entretanto, foi ficando claro que, para estudar os homens e os tratos com os gados, deveria retroceder-se, no mínimo, uma década para tentar entendê-lo desde a abertura do caminho que uniu os gados do sul aos mercados das regiões centrais. E ainda assim foi pouco. Em vários momentos foi necessário retroceder aos primórdios da ocupação nos territórios meridionais, assinalados com os anos que cercaram a fundação da Colônia do Sacramento em 1680. A exploração dos animais e seus produtos nessa massa de terras indivisas que viriam a formar o Continente do Rio Grande de São Pedro antecedeu o início de sua povoação. Por ter sido o comércio das tropas de animais um dos que mais longevidade teve, destaca-se aqui que também o marco cronológico final, 1763, foi transposto várias vezes. Na busca das permanências e descontinuidades nas práticas sociais, econômicas e políticas da sociedade que se formou no Continente, percebe-se que estas ultrapassam a arbitrariedade com que são estabelecidos tais marcos. No entanto, em algum momento da história desta região – e entenda-se aqui região como uma vasta extensão de terras, sem nenhuma outra significação – o presente estudo tinha de pôr o seu ponto final. Assume-se, portanto, a arbitrariedade dessas definições tanto territoriais quanto cronológicas, necessárias entretanto, para poder se proceder a investigação. Assume-se também as várias transgressões desses limites. Ao longo dos dois anos em que se executou esta pesquisa, o objeto de estudo foi definindo-se melhor e refinou-se. Pensava-se em trabalhar exclusivamente com a produção e o comércio de muares, tão necessários ao transporte de produtos coloniais,

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gêneros de primeira necessidade, artigos importados e produtos de exportação desde o interior até os centros urbanos ou portos na costa. O extremo sul da Colônia, deteve por mais de um século a quase exclusividade de produção desses híbridos e parecia o indicado para se desenvolver a pesquisa e a posterior redação da dissertação. Seria, não fosse as novas perspectivas que surgem quando se mergulha mais fundo na documentação. Detectou-se então, que, a produção e comercialização dos muares como uma das fases pelas quais passou a exploração dos gados diversos que existiram ao sul. Constatou-se, ao longo do trabalho, que não foram os muares a primeira fase, e nem sequer a que financiou consolidação da sociedade sulina. Assim espera-se demonstrar ao longo dos capítulos que compõe este estudo. Pareceu impossível estudar a produção dos muares sem ver as empreitadas de “caçadas de gados” como escreve Aurélio Porto (1943: 354) para dizer da captura e morte dos bovinos que viviam nos campos sulinos para a extração de couros e sebos. Impossível, sem pensar a existência dessa produção prévia, sem conhecer um pouco do comércio e dos couros entender os momentos subseqüentes da sociedade sulina, quando foram montadas verdadeiras “fábricas” de muares. Eis, então, uma das constatações levantadas aqui: a história da exploração econômica do território sob estudo iniciou-se antes do estabelecimento de núcleos populacionais e seu povoamento sistemático. Dava-se através de investidas para captura de gados para montagem de fazendas a partir da Vila da Laguna, situada ao norte do território do Continente. Também das caçadas em busca dos tão valiosos couros à partir do sul, da Colônia do Sacramento. Espera-se, ao longo dos quatro capítulos, que se possa levar o leitor a concordar com isso. Da inexistência desses núcleos populacionais decorre a alegação de inexistência de fontes documentais relativas à região para os primeiros tempos. Isso é parcialmente verdadeiro, se for feita a busca pelas desinências “Rio Grande do Sul”,

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“Rio Grande de São Pedro” entre outras que também lhe serviram de topônimo. Estes, são praticamente ineficazes para o caso de um local de dimensões e limites indefinidos e praticamente inabitado. As fontes, para o período que antecede o povoamento e mesmo alguns para anos além desse início, foram achadas, principalmente, em meio aos documentos relativos ao Rio de Janeiro, Colônia do Sacramento e São Paulo. A extrapolação dos marcos geográficos estabelecidos ficará evidente ao longo da leitura do texto. Dos núcleos populacionais que mais serão citados ao longo deste escrito, apenas Rio Grande, Viamão, Triunfo e Rio Pardo se situam dentro dos marcos assinalados. De resto, serão referências à Santos, Sorocaba, Curitiba, Laguna, Sacramento, Montevidéu, Buenos Aires, e Lisboa. A origem disso está justamente nessas teias de relações que os habitantes e exploradores do sul teceram. Elas ultrapassavam o Continente do Rio Grande de São Pedro, atravessavam o Rio da Prata, chegavam às terras espanholas. Cruzavam o oceano e tinham suas ramificações na capital do Reino, nos mais altos escalões de poder do Império Português. Para ser um comerciante de animais bem sucedido no extremo-sul, um homem e seus negócios necessitavam de ligações fortes em diversos pontos nodais da Colônia e da metrópole. Uma outra causa é o fato desse comércio, terrestre e de longa distância em sua essência, ter trilhado rotas que por vezes possuíam mais de dois mil quilômetros, em viagens que podiam durar um ano ou mais. Ao longo dos trajetos cumpridos para abastecer as regiões que demandavam pelos animais, foram se estabelecendo núcleos populacionais. Os caminhos trilhados pelos gados, usando a feliz expressão cunhada por André Jacobus, eram “vetores de relações sociais e econômicas no Brasil Colonial” (Jacobus, 2000). Acrescentar-se-ia, apenas a palavra “políticas” a ela, já que os poderes locais e suas relações com os governos da Colônia e do Império Português construíramse e possuíram nexo com o fluxo dos animais aos seus mercados. Uma caixa de Pandora foi aberta, principalmente ao tomar-se conhecimento

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do conteúdo da documentação eclesiástica do Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre. Os seu conteúdo subverteu a idéia – agora assumidamente errônea – que se tinha dessa sociedade: simples e sem muitas opções. O foi o “mal” contido na caixa que fez desviar o foco de interesse do mero comércio de animais para a detecção das relações sociais que se estabeleceram a partir de sua prática. Os alegados “grandes vazios” existentes entre um núcleo e outro eram preenchidos pelas relações das famílias e comerciantes, muito mais integradas, cientes dos quotidianos, umas das outras. Eram permeadas por redes de parentescos, alianças, negócios e rivalidades, mais do que poderia pressupor a vã filosofia. Para poder retroceder no tempo sem perder de vista os agentes sociais envolvidos nos tratos dos animais e na formação da sociedade sulina e suas práticas, teve-se de buscar uma metodologia a aplicada. De inestimável valor foi o auxílio encontrado em O Nome e o Como, de Carlo Ginzburg (1989) para arquitetar formas de extrair das fontes aquilo que se necessitava. Apesar de todos os problemas com homônimos dentro e fora de uma mesma família, imprecisões na grafia e a prática, se não comum, ao menos recorrente no Continente do Rio Grande de São Pedro, de alterar o nome de um vivente ao longo de sua existência – por equívoco no ato dos registros documentais ou intencionalmente, ao assumir uma nova vida em um território novo – foi, de fato, o nome, o fio condutor para vencer os labirintos da sociedade sulina. Para poder aglutinar as informações que se acumulavam sob os nomes dos agentes sociais dessa história, construiu-se uma base de dados na qual a característica de cada pessoa, que não admite duplicação, era o seu nome. A ficha “individual” montada inclui campos para dados sobre local e data de nascimento, filiação, óbito, inventário e testamento, cônjuge, sogros, posse de terras, posse de escravos, mercês recebidas, progressões na carreira militar, ocupações, entre outras. O nome é o identificador maior destes homens.

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Para vencer, ou ao menos driblar, as armadilhas dos homônimos usou-se alguns critérios. Se pais e filhos fossem, acrescentou-se o “o velho” e “o moço”, coisa que seus coevos já faziam, com o intuito de diferenciá-los nos registros documentais. Mas isso não resolvia o problema dos vários “Franciscos Pereiras”. Optou-se por acrescentar caracteres numéricos, iniciando em 1 e indo até quantos fossem os “Fraciscos Pereiras”. O mesmo critério foi usado para aqueles que aparecem sem sobrenome – o que, em geral, acontecia com mulheres como “Maria de Jesus” ou com estratos subalternos dessa sociedade: os muitos “Inácios” que eram escravos, pardos, índios ou forros. Esta solução gerou novo problema: por vezes produziu-se duas fichas de um mesmo sujeito por não ter-se certeza de sua identidade. Alguns casos permanecerão insolúveis, mas outros, quando utilizada mais uma das técnicas micro-históricas acabaram por solucionar-se. A referência aqui é à utilização de fontes documentais de diversas origens. Utilizou-se tudo o que os dois anos de pesquisa e os mais de mil quilômetros de distância dos arquivos sulinos permitiram. Ao obter-se informações colhidas nos distintos corpus documentais, o cruzamento dos dados dois sujeitos de mesmo nome, depurou e eliminou muitas dúvidas. Num exemplo hipotético: tem-se dois “Antônios Rodrigues” – o nome mais popular no Continente do Rio Grande de São Pedro – arrolados em uma listagem de propriedades e proprietários e outro num registro de matrimônio. A informação que se obteve da listagem de proprietário é que “Antônio Rodrigues” recebeu as terras em dote do seu sogro, Alexandre de Mendonça Pereira – o único. Se o nome do sogro coincide no registro matrimonial, a identificação positiva é óbvia. Aglutinam-se informações em uma única ficha, acrescenta-se o nome da esposa, origem do casal, data do casamento e outras tantas. Caso isto não ocorra, mantém-se as fichas em separado. Ainda assim, não há garantias de se tratarem de pessoas diferentes. Sheila

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de Castro Faria (1998) demonstrou que não era raro na Colônia o viúvo que contraia um segundo matrimônio. Assim, continuarão a existir Antônio Rodrigues 1 e 2 até que a situação defina-se. O critério utilizado para gerar uma ficha foi o titular dela ter dado origem a um documento ou a um registro específico seu em um documento. Optou-se por listar escravos como “Joaquim mina” ou “Manuel crioulo” no campo de observações de seu senhor. A menos que, caso hipotético, “Joaquim mina” seja chefe de fogo, ou tenha casado com “Maria de Jesus”, ou batize uma criança ou mesmo cometa um delito. Nesse caso, Joaquim encabeça uma ficha, constará haver batizado o menino Fulano, matado o sargento Beltrano. Maria de Jesus figurará no campo reservado aos cônjuges. Aliás, esta é a situação da imensa maioria das mulheres do Continente, que como a hipotética Maria de Jesus, não possuem sobrenome nem trazem junto do nome sinais de bens ou posses. A grande exceção são as viúvas. A imensa maioria das mulheres que deram origem a fichas eram viúvas. Estas, muitas vezes encabeçavam fogos ou possuíam terras ou escravos em seu nome. Compravam, vendiam, suplicavam aos agentes da Coroa uma ração de carne ou pediam em pensão o soldo de seu marido falecido. Melhor ainda quando citadas como “viúva do capitão de dragões José de Tal”. Nesse caso, não só será aberta a ficha para a viúva como completar-se-ão os campos “casado – sim ou não”, “cônjuge” e “patente militar” na ficha de José de Tal, caso este já tenha ficha. Transpondo as informações para os formulários dos personagens da história do Continente – trabalho que requereu paciência, cuidado e disciplina – obteve-se até o presente 2.383 fichas nominais com informações variadas de gente esteve ligada ao Continente entre 1680 e 1794. E segue aumentando este número. Esta base de dados, ao mesmo tempo em que auxiliou em muito na pesquisa, com freqüência mostrou certas deficiências, em boa medida corrigidas no evoluir da

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investigação. Uma diferença entre o que aqui se apresenta e o projeto inicial da pesquisa é a sua maior abrangência. No princípio pensava-se trabalhar somente com o grupo que atuou na condução de tropas e no seu comércio. Tendia a uma perspectiva prosopográfica, centrada nesse grupo. Todavia, a medida que a investigação se desenvolvia ficava clara e evidente a sobreposição de atividades e ocupações. Na Colônia do Sacramento e no Continente do Rio Grande de São Pedro, licenciados para a prática da medicina produziam couros, padres praticavam contrabandos, professores conduziam boiadas, sapateiros andavam embarcados e um ourives tornouse ferreiro (AHCMPA – Autos Matrimoniais, AHU-NCS- doc. 195, Carta de Antônio Pedro de Vasconcelos, ao rei, sobre a devassa que fez e enviou ao Conselho Ultramarino, acerca das atividades ilegais do religioso carmelita frei Sebastião Álvares, e do homem de negócios Cristóvão Pereira de Abreu). Antes que o leitor indague se esta sociedade vivia somente da exploração animal, se responde antecipadamente: não. Apenas os agricultores não serão tratados aqui. Para que esta sociedade pudesse crescer e alimentar-se, muitos foram os lavradores que plantaram e colheram o milho, o trigo, a mandioca. Construíram tafonas e moendas. Tentaram o cânhamo e o algodão. Só que não se tratará aqui deste ramo da produção. Para isso há a recente tese de doutoramento de Helen Osório (1999), que trouxe à luz a existência dos lavradores e fazendeiros do Rio Grande, suas produções seus bens, além dos comerciantes de gêneros diversos que atuaram na região. Todavia, o que percebeu-se ao longo da pesquisa, é que, os produtos de origem animal eram fabricados com o objetivo primeiro de lançá-los ao mercado. Uma idéia que se defende aqui é que foi do setor fortemente mercantilizado da economia dos primórdios da sociedade sulina, os couros, os sebos e os cavalos, que vieram os recursos para subsidiar a montagem mais dispendiosa das complexas produções de muares e charques. Essa acumulação, não contrariando a regra, se deu no setor mercantil e não

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no produtivo (Braudel, 1996: 329-405). Foi o comércio o único capaz de transformar o entesouramento de uma sociedade, seja ele terras e seus grãos, ou animais que pastavam ao campo. Um boi é apenas um boi e um cavalo é apenas um cavalo. Só serão riqueza se puderem ser transformados em um valor. O grande comércio e as práticas de acumulação mercantil foram as únicas capazes de tornar o tesouro animal do sul em riqueza. Esta hipótese, a possibilidade de acumulação da sociedade sulina através de mercadorias produzidas para o comércio e que não eram necessariamente destinadas à exportação para fora da Colônia, é outra idéia que se tentará validar ao longo do texto. Uma outra hipótese, a de terem os cavalos dominado o fluxo de mercadorias semoventes para além do Registro de Curitiba durante, no mínimo, os três primeiros quartéis do século XVIII será defendida. Ao contrário do que afirmam muitos trabalhos sobre a economia e sociedade do Rio Grande (p. ex. Cesar, 1979:10; Cardoso, In HGCB: 473 e Pesavento, 1985: 22-23, entre outros) não foi o observado a partir da documentação sob análise. A despeito do que se afirma, os cavalos foram os animais mais vendidos pelo sul, desde o início da década de 1730 até, seguramente a década de 1770 e possivelmente nos vinte anos seguintes. Os bovinos, a despeito do que afirma esta historiografia, jamais dominaram as rotas do sul às minas. Não foi a fome dos mineradores que financiou a consolidação do extremo-sul. Foi, isto sim, a sua voraz necessidade de meios de transporte e tração de cargas para os produtos coloniais. Para poder dizer – ou mais corretamente, dissertar – sobre comércio dos gados originários do sul foi necessário tentar compreender um pouco mais do funcionamento da sociedade que tinha nele a sua principal fonte de moedas e metais. Os povoadores eram simultaneamente fazendeiros, comerciantes de animais, contrabandistas, burocratas da Coroa, militares, pais de família zelosos e fiéis súditos

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de Sua Majestade. A sociedade que construíram, para si para os seus, refletiam estes múltiplos aspectos, imbricados uns nos outros a ponto de não se poder precisar aonde termina o comercio dos animais e aonde começam as famílias. A impressão que se tem, após dois anos de aprendizado sobre estes homens e seus semoventes, é que não há separação entre os negócios, as famílias e as relações que se estabeleceram. São todas peças de um mesmo jogo. Não se fará nessa introdução nenhuma discussão acerca da historiografia que versa sobre a região, sobre o período ou sobre o comércio dos animais. Esta, assim como os referenciais teóricos aparecerão diluídas ao longo do texto. Serão muito mais discussões pontuais do que uma revisão da literatura sobre o tema. O diálogo com a antropologia aparecerá também ao longo dos capítulos do estudo, auxiliando na tentativa de desvelar os meandros das relações pessoais de reciprocidade que estabeleciam os agentes dessa história.

As Fontes O tipo de fontes utilizadas na coleta de dados foi muito eclética. E a origem deste ecletismo foi anterior à opção de trabalhar com as técnicas micro-históricas. No diálogo com outros pesquisadores que também utilizam esta base de dados, surgiram as questões: que tipo de dados se colocará sobre cada sujeito ? Quem entra e quem fica de fora? Essas perguntas surgiram logo após ter sido localizado o Rol de Confessados de 1751, da freguesia de Viamão. Destes tirou-se que a população de confissão desta freguesia – e só existiam duas no Continente neste ano – era composta de menos de oitocentas pessoas. A resposta, dada em tom de brincadeira, foi presunçosa: “TUDO”. Para que a brincadeira e a presunção não se transformassem em mentira, alguns pesquisadores da história do Rio Grande colonial vêm contribuindo com os dados que levantam para suas pesquisas específicas e que vão, aos poucos,

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completando os campos das fichas da base de dados. A escassez de grandes séries documentais e a existência de muitas lacunas na documentação fez com que a variedade de fontes fosse a opção mais indicada. Até mesmo porque, da documentação produzida com uma finalidade específica, extraemse informações secundárias a ela e que são de suma importância para conhecer-se mais da gente que habitava o Continente. Do censo de propriedades, por exemplo vieram informações sobre relações de parentesco. Das cartas de sesmarias, indícios sobre a produção de muares. E assim por diante. Nessa busca de documentação, não se desprezou muita coisa. Registros paroquiais, cartas de sesmarias, registros de nombramentos de patentes militares, correspondências oficiais e particulares foram escrutinadas. As publicações de diversos arquivos e instituições de guarda e preservação do patrimônio foram utilizadas. O “tudo” pretensioso, dito por brincadeira, tornou-se necessário, indispensável para a realização desse estudo. Tornou-se um anseio inatingível, pois sempre queda por achar uma informação, uma fonte, um nome, uma propriedade, um negócio, um casamento, uma herança, uma descendência. As principais fontes que foram utilizadas na busca de “tudo”:

Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre (AHCMPA). este arquivo guarda fontes preciosas para o estudo da história do período colonial do Rio Grande do Sul. Para um época na qual a documentação é escassa, seu acervo é uma grata visão. a) Róis de Confessados de Viamão – 1751, 1776 e 1778 e o Treslado do Rol de Confessados de Triunfo – 1758. Esta sorte de fonte era produzida a partir da visitação anual que faziam o pároco das freguesias a todas (ou quase todas) casas de fregueses. Arrolava, abaixo do nome do chefe do fogo, todos os moradores de sua propriedade que fossem fregueses – isto equivale a dizer todos os cristãos batizados maiores de 7

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anos. Os confessados eram nominados e geralmente atribuído o grau de parentesco com o chefe do fogo. Eventualmente acusavam também uma ocupação ou uma categoria social. Abaixo dos membros do núcleo familiar moradores indígenas, livres ou forros da propriedade, as vezes junto com os escravos. Os róis de confessados se prestam, consideradas as suas peculiaridades, a algumas estimativas populacionais. Também podem dar a entender, através da seqüência de lares arrolados, as proximidades e vizinhanças de parentes e participantes das mesmas redes de relações. b) Livro 1 de Viamão de assentos de Batismos de pessoas livres e escravos 1o Livro de Batismo de Viamão (1747-1759). Deste códice pôde-se extrair informações acerca das famílias. O registro de um batizado, quando completo, pode trazer informações de até três gerações de uma mesma família: a criança que se batiza, seus pais e seus avós. No registro, se corretamente feito, também deveria constar os locais de nascimento de cada um deles, mas nem sempre isso acontece. Nessa documentação buscou-se principalmente detectar redes parentais e de compadrio do habitantes dos Campos de Viamão, que, como se verá no capítulo referente às redes de relacionamentos tecidas pelas famílias, compreendiam muitas e variadas localidades da Colônia, da Península e das terras espanholas. Traz também informações sobre a condição social. Os estratos subalternos da sociedade estão representados, assim como os seus arranjos familiais, de afinidade e compadrio; c) Autos Matrimoniais. O tipo mais corriqueiro de registro de autos matrimoniais ocorria quando um dos noivos – geralmente o noivo - procedia de regiões externas à freguesia, a Igreja temerosa de sacramentar a união de um bígamo, fazia o mesmo justificar-se solteiro ou viúvo. O procedimento usual nessas ocasiões era chamar três testemunhas que conheçam o noivo de seu local de origem ou de suas andanças. Os depoimentos das testemunhas sobre os itinerários percorridos desde o momento que deixara a casa dos pais até chegar ao Continente fornecem uma tênue visão de quanto se deslocavam as pessoas dentro dos limites do Império e mesmo pelas áreas

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de Espanha. Freqüentemente trazem as atividades e ocupações que tiveram dos noivos e depoentes. O segundo tipo é a dispensa de impedimentos. Parentes consangüíneos, por exemplo, para casar necessitavam dessa dispensa. Normalmente o documento abre com testemunhos afirmando o impedimento e termina com o motivo da dispensa. Trazem, informações sobre ancestrais, às vezes remotos, dos nubentes. d) Por último utilizou-se um processo do Juízo Eclesiástico, o Auto de denúncia que mandou fazer o Reverendo José Carlos da Silva contra Joana Gracia Maciel, mulher de João de Magalhães, o moço, pelo escândalo público com que vive e desonesto procedimento – 1757, no qual a acusada, membro de uma das famílias dos povoadores pioneiros, cometeu atos indizíveis de violência sobre uma índia de sua propriedade, além de outros comportamentos desviantes. É um documento singular. Os atos da acusada são o negativo das práticas sociais desejadas. Através do inaceitável obteve-se indícios daquilo que a sociedade tolerava. Preocupados em depor sobre os atos da acusada, as testemunhas deixaram antever outras práticas, tidas como normais e corriqueiras na freguesia de Viamão. Sobre o Registro das Passagens dos Animais de Curitiba, utilizaram-se fontes publicadas em sua maioria. São consultas do Conselho Ultramarino sobre esta unidade de fisco ou ordens e provisões para o seu bom funcionamento ou documentos gerados nas provedorias de São Paulo, Santos, Rio Grande ou Viamão. É este o Registro com documentação mais farta. Todavia, dispersa nas diferentes publicações de arquivos, museus e bibliotecas. Estão listados ao final deste os volumes que contém os documentos consultados. Deste registro, há o manuscrito de uma listagem de devedores, a Cópia da Lista dos Devedores que deu o Capitão Francisco de Paula Teixeira. Lista das pessoas que devem a Casado falecido Mestre de Campo Manuel de Oliveira Cardoso cujas dívidas se originaram no Registro de Curitiba de cujo Continente são moradores e foram os seguintes. Este foi localizado na seção divisão de manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e está transcrito na íntegra, no segundo

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anexo deste. A partir deste documento, foi possível perceber algumas práticas de acumulação nessa sociedade pré-industrial. Os documentos relativos à Expedição de Demarcação de Limites do Tratado de Madri, publicados na Revista do Arquivo Público Mineiro, trazem os registros de nombramentos de patentes, várias cartas de sesmaria dadas nos territórios sulinos durante a expedição, nomeações para cargos burocráticos, além de algumas correspondências entre os líderes desta expedição ou entre estes e Portugal. De resto, foram realmente utilizadas muitas fontes, na caça a qualquer informação que acrescentasse algo nas fichas nominais dos homens que em algum momento de suas vidas estiveram ligados ao Continente do Rio Grande de São Pedro. Citá-las uma a uma resultaria numa lista muito longa. Assim, estarão indicadas página à pagina, quando de sua utilização. Passa-se agora à maneira com que se apresentará o objeto, se levantará as hipóteses e se tentará verificá-las nesta dissertação. No primeiro capítulo, se apresentará o grande panorama dos campos e povoados sulinos. A seguir, serão mostrados ao leitor os homens, com algumas histórias que exemplificam alguns os tipos humanos que para lá se deslocaram. Basicamente com a utilização dos Autos Matrimoniais se tentará identificar algumas características dos agentes na produção, transporte e comércio dos animais de grande porte. Por último, serão apresentados os três tipos de rebanhos comercializados a partir do extremo-sul, buscando diferenciá-los pelas suas características biológicas e seu emprego durante o período colonial. No segundo capítulo, intitulado Os homens, as famílias e suas relações na conquista do Continente de São Pedro será feita uma grande digressão, tentando ver as conjunturas em que se deram os intentos de conquista dos territórios que vão até o Rio da Prata. Identificou-se um grande movimento de ocupação desta área, adentrando

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às terras espanholas e povoando os campos meridionais. Logo a seguir, ainda neste capítulo, se passará à abertura da rota de máxima importância para o escoamento dos gados sulinos até os seus mercados nas regiões mais centrais da Colônia. Decorrência da necessidade de servir às minas descobertas na década de 1690 com meios de transporte que levassem a sua produção e trouxessem os gêneros necessários – ou supérfluos – para o seu abastecimento. O denominado Caminho das Tropas foi o grande viabilizador este contato. Nesse momento pedir-seá licença ao leitor e para lhe apresentar parte da história de conquista sulina e de construção dos mercados dos animais na figura de Cristóvão Pereira de Abreu. Este homem, se verão os porquês, teve a sua vida na Colônia estreitamente ligada ao aproveitamento dos diversos gados, da extração dos seus produtos e as condutas de tropas. As redes de relações tecidas por ele incluíam, desde índios minuano até o governador do Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrade. Seguindo os seus passos, aparecerão vários aspectos da sociedade sulina e das possibilidades e opções que tinham os praticantes do comércio dos animais. Dom e contra-dom, o sistema de mercês reais e os bens recebidos que não podem ser dados, vendidos ou trocados (Godelier, 2001) auxiliaram no conhecimento e compreensão das estratégias e práticas deste homem, que por sua vez auxiliaram no entendimento do comércio e dos comerciantes dos animais. Cristóvão Pereira de Abreu será o guia na compreensão desses negócios. Retorna-se ao Continente do Rio Grande de São Pedro e alguns aspectos das primeiras famílias de povoadores oriundos da Vila da Laguna que se estabeleceram nos Campos de Viamão. Suas relações de parentesco, seus arranjos matrimoniais, seus negócios, suas alianças uniam os núcleos povoados do sul da Colônia com sólidos laços. O terceiro capítulo, privilegia a documentação relativa ao Registro da Passagem dos Animais de Curitiba. A partir dessa documentação detectaram-se alguns

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mecanismos utilizados por oficiais da Coroa no exercício de suas funções e que propiciavam a acumulação. Uma confusão gerada quando do falecimento do detentor da mercê dos meios direitos do Registro de Curitiba traz a tona as redes de poder que vinculavam os altos escalões do poder na Península aos pioneiros da conquista sulina e ao comércio de animais. Estas redes atravessavam o Atlântico e trespassavam diversos setores da sociedade colonial. Neste capítulo também serão comentados aspectos da movimentação dos gados variados produzidos ao sul rumo aos seus mercados. Aqui serão questionadas algumas certezas da historiografia sul-riograndense acerca dos gados vacuns, cavalares e muares1 e a acumulação de riquezas no Continente do Rio Grande de São Pedro. No quarto e último capítulo, observa-se, através das sucessivas mudanças nas formas de explorar os recursos animais da região, a flexibilidade do mercado de animais do sul da Colônia. Recuperando discussões colocadas ao longo dos três capítulos anteriores, retorna-se a algumas famílias de povoadores sulinos, detectando alguns reflexos destas modificações em suas vidas. Percebe-se que os povoadores preveniram-se da extinção dos recursos, reorganizaram as suas formas de produzir e de atuação no comércio terrestre de longa distância. Nas antigas famílias de povoadores notam-se os sinais de composições diferentes das fortunas e dos arranjos matrimoniais. Às mudanças nas práticas econômicas dessa sociedade corresponderam às mudanças nas práticas sociais. Como já dito, são peças de um mesmo jogo. A alteração de um dos componentes acaba por modificar a configuração do jogo inteiro. Passa-se, então, à dissertação propriamente dita.

1 Para facilitar a leitura do texto, impregnado de termos específicos do trato dos animais, sua produção e dos linguajares regionais e de época, no Anexo I está colocado há um pequeno léxico.

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Capítulo I O Continente do Rio Grande de São Pedro: os homens e os animais

“(...) e começando por onde Vossa Mercê acaba lhe digo que eu não posso responder a esta última parte da pergunta porque esta matéria de futuro é tão alheia ao pré-conhecimento dos homens, que por isso só pedimos a Deus nos dê hoje o pão nosso de cada dia porque ninguém sabe o que será amanhã. Agora, pelo que toca à primeira parte da pergunta do que é esta terra não tenho dúvida a responder porque é coisa que manipulo há seis meses. A este país, meu senhor, tenho chamado a terra dos muitos e ouça Vossa Mercê com toda a verdade, porque aqui há muita carne, muito peixe, muito pato, muita marreca, muito maçarico real, muita perdiz, muito jacum, muito laticínio, muito ananás, muita courama, muita madeira, muito barro, muito bálsamo, muita serra, muito lago e muito pântano, no verão muita calma, muita mosca, muita mutuca, muito mosquito, muita polilha, muita pulga, no inverno muita chuva, muito vento, muito frio, muito trovão e com todo o tempo muito trabalho, muita faxina, muito excelente ar, muito boa água, muita esperança, muita saúde para servir a Vossa Mercê, pode produzir como já experimentamos muita balancia, muita abóbora, muito legume, muita hortaliça e porque com uma palavra diga o que mais importa a Vossa Mercê também há muita falta de tudo o mais para a vida e para o luxo; e como o que veio de baetas, tabaco, facas e chapéus e outras drogas por conta de El-Rei se tem feito um grosso avanço, seis frascos de aguardente se vendem por onze mil réis, bebe o comprador dois e vende os outros por onze mil réis. Vem mais guarnição, chegaram 200 e tantos índios e índias, chegaram casais e na terra não há mais que o que fica dito e para Vossa Mercê veja a sua fertilidade sendo tudo areia, medi uma cana de milho e achei 22 palmos, pesou-se um linguado e tinha 19 libras, não vi princípios tão avultados em terra alguma nem a há mais salutífera, fecunda e forte”. (Carta do Mestre-de-Campo André Ribeiro Coutinho apud Fortes, 1980: 71-74)

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1. A vasta paisagem sulina É do ano de 1737 a carta supra de André Ribeiro Coutinho, mestre-de-campo, presente quando da fundação do Forte de Jesus Maria e José, na barra da Lagoa dos Patos. Foi escrita a um amigo no Rio de Janeiro e que, segundo o comentário de João Borges Fortes, tem um texto “fatigantemente prolixo, gongórico, e porfiadamente erudito” (Fortes: 1980: 70). Sem querer cair na “fatigante prolixidade”, pretende-se destacar alguns de seus aspectos. Em seus “muitos”, essa carta traz elementos existentes nos campos sulinos nos primórdios de sua ocupação e que, com pequenas nuanças e licenças, podem ser aplicadas desde o Rio da Prata até regiões situadas no atual estado de Santa Catarina. As incertezas para com o dia de amanhã são, provavelmente, características dos lusos nas terras americanas recém conquistadas. As esperanças de fazer progredir o povoamento também. O ufanismo, outro aspecto desta carta, está presente desde outra carta, aquela escrita por Pero Vaz de Caminha ao senhor El-Rei. Tem-se nela a presença de populações autóctones remanejadas para melhor servir aos conquistadores e ao povoamento das terras de Sua Majestade, em conformidade com o observado por Stuart Schwartz, Maria Regina de Almeida, John Monteiro e João Fragoso, para os casos da Bahia, Amazônia Ocidental, São Paulo e Rio de Janeiro respectivamente (Schwartz, 1988; Almeida, 1990; Monteiro, 1994; e Fragoso, 2000). E tem-se a amizade expressa por um servidor da Coroa, beneficiando alguém de suas relações com informações privilegiadas sobre o novo território, o que também encontra referências na historiografia, em particular na obra Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial (Schwartz, 1979). Cada terra da Colônia com seus atrativos, os homens indo e vindo, alguns se

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fixando. Nesta parte da Colônia, uns com intuito de obter dela o máximo de seus frutos sem descuidar da defesa dos interesses de Sua Majestade, outros apenas com a esperança de sobreviver. Soldados na defesa dos territórios conquistados sendo constantemente ameaçados pelo inimigo castelhano e pelos índios, não deixando de lado os seus próprios interesses particulares; casais de açorianos e madeirenses transmigrados da fome que grassava nas Ilhas para ir ao encontro do desconhecido (Fortes, 1999); índios pagãos e cristianizados, agindo e reagindo em uma realidade que até então lhes era estranha; padres da Companhia de Jesus, submetidos temporalmente à Coroa de Espanha, com suas Missões, seus gados, suas fazendas, suas fábricas, seus ervais e seus milhares de índios, temendo os paulistas que já os haviam levado em grande número desde as Missões do Guairá e do Tape (Monteiro, 1994: 75; Neumann, 1996: 50-51). Contingentes humanos de diversos pontos da Colônia, das Ilhas e da Península, espanhóis e portugueses – em sua maioria – estavam presentes nestes momentos. Homens e mulheres, camponeses e soldados, comerciantes de gêneros e de animais, militares, padres. Alguma gente rica, muita gente pobre, gente livre, gente escrava e gente administrada. Era uma terra de índios. “Terra de ninguém”, diziam alguns. Uma fronteira aberta. E gados. Miríades de gados que proliferavam pelos campos indivisos desde que foram introduzidos pelos padres da Companhia de Jesus (Porto, 1943: 169-203). Uma riqueza sem par, esperando o momento certo e os homens capazes a explorá-la e pô-la em movimento para outras regiões que dela necessitassem. Assim se configurava o semblante dessa terra, que tinha muito ainda para ser conhecida quando a Coroa lusa voltou seus olhos para esta fronteira meridional. Data da segunda metade do século XVII uma das primeiras menções aos gados existentes nos campos daquilo que ainda viria a ser chamado de “O Continente

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do Rio Grande de São Pedro”. Assim diz, em 1663, o Padre da Companhia de Jesus, Simão de Vasconcelos: “Daqui em diante [Rio Tramandaí] até o Rio da Prata, seguemse as campinas já ditas, cheias de imensidade de gado, caça, cavalos, porcos monteses, e muitos outros gêneros que andam em bandos (...)” (Vasconcellos in Cesar, 1988: 34)

E menos de vinte anos transcorreram até D. Manuel Lobo, por ordem de Sua Majestade, chegar ao Rio da Prata para erigir as fortificações que marcariam a primeira fundação da Nova Colônia de Sacramento. Antes de avistar os espanhóis saídos de Buenos Aires, na outra margem do Prata, que próximos à ilha de San Gabriel pescavam, D. Manuel Lobo avistou os gados bovinos nas praias e banhados (Correspondência de D. Manuel Lobo, apud Monteiro, 1937 v.2: 25). Marco do início da ocupação de uma região litorânea, que começou a ser povoada um tanto tardiamente – se comparado às outras regiões da Colônia –, a fundação de Sacramento em 1680, foi uma afronta aos espanhóis lindeiros da margem meridional do Prata. Por um lado uma decisão política, qual seja, marcar a presença lusa no Prata com fortificações militares; por outro, garantir um porto para o comércio nessa região já freqüentada por portugueses desde o século XVI (Canabrava, 1984). E mais do que isso: representava a possibilidade de garantir rotas terrestres entre o Prata e o restante da Colônia, onde a presença de comerciantes e contrabandistas de animais passou a ser uma constante nos séculos XVIII e XIX, motivando os olhares mais que atentos dos castelhanos para este fluxo de animais: “...por averse echo los portugueses dueños de las Campañas, sus ganados con continuadas violencias, robos, sin sujetarse a los limites señalados, (...) aprovechandose de numerosas porciones de vacas, que sacavan de las tierras de aquella jurisdicion para hacer carne salada, grasa, y sebo de que tenian crescido comércio en el Brasil, como en Europa de los cueros de los toros (...) en las distancias de los caminos, que tenia ya

30 abiertos para comunicarse con el Brasil, por onde sacavan tropas de mullas mansas, y cavallos para el uso, y servicio de sus minas”. (IHGB, coleção IHGB Lata 25 Doc. 2)

Este comércio terrestre, independente de seu vulto e proporção, segue pouco estudado pela historiografia platina (Canedo, 1998a: 148) e mesmo pela historiografia brasileira. Nem bem nascia, e Sacramento já era destruída pelos índios dos padres jesuítas espanhóis, aliados, nessa ocasião, aos homens de Espanha no Prata. Uma reconstrução procedeu-se logo a seguir (Monteiro, 1937; Sá, 1988). A instituição do segundo marco de ocupação dos territórios sulinos deu-se no ano de 1684, com a fundação do povoado da Laguna, no atual estado de Santa Catarina, levada a cabo por paulistas oriundos de Santos, capitaneados por Domingos de Brito Peixoto e seus filhos (Cabral, 1976). O terceiro núcleo populacional, erigido por determinação régia, foi feito às margens da barra da Lagoa dos Patos, por José da Silva Pais. A partir da fundação do Forte Jesus, Maria e José, em 1737, onde hoje se situa a cidade portuária de Rio Grande, povoadores iniciaram oficialmente a ocupação do Continente do Rio Grande de São Pedro (Fortes, 1980). Destaca-se aqui este marco, tanto cronológico como de ocupação, sem desconsiderar que, há alguns anos outros grupos humanos já haviam se dirigido ao sul, com intuito de estabeler núcleo ou núcleos populacionais. A presença dos gados na pampa sulina e a presença dos gentios, ou seja, grupos populacionais autóctones não convertidos à religião cristã, são uma constante na documentação sobre a região. Foram atrativos para os lusos que por ali se aventuravam, por interesse próprio e/ou para o cumprimento das ordens de El-Rey. Desde as fundações de Sacramento e do povoado da Laguna, os gados ocuparam lugar nas preocupações dos habitantes (Monteiro, 1931: Fortes, 1941: 9-38; Cabral, 1976: 92) e os índios nas preocupações destes e das autoridades. Manuel Gonçalves

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de Aguiar, sargento-mor da praça de Santos respondeu, em 1721, a uma sucessão de perguntas feitas pelo governador-geral das Capitanias do Sul. As perguntas, assim como as respostas, com freqüência, enfatizavam a presença de gados e de gentios. Tais respostas deixavam entrever também a existência de relações mais ou menos amistosas entre os indígenas e os colonizadores, denotando que, ao contrário de um conflito, o que buscavam era a construção e manutenção de laços de “amizade” e de “negócios”: “O gentio que habita esta marinha chega até Castilhos, Maldonando e Monte Vedio; é gentio livre e os mais das Aldeias dos Padres da Companhia Castelhanos (...) só o que sei é que alguns moradores da Laguna foram ao centro dessa campanha a resgatar algum gado e cavalgaduras e com efeito fizeram o dito resgate com os Índios e as conduziram para a mesma Laguna, trazendo em sua companhia alguns dos Índios, que tornaram a voltar para suas toldarias e campanhas.” (Aguiar, in RIHGB, 1908: 300)

Desde a fundação de Sacramento, a cada embate com os soldados castelhanos e seus aliados indígenas, os gados trocavam de mãos, sendo o butim principal das batalhas que se travavam. Ou então eram mortos, fosse para a alimentação dos militares, fosse em represália às pretensões mais sólidas de estabelecimento em tal região. Como exemplo disso tem-se os embates travados em 1735, quando do grande ataque de espanhóis à Colônia de Sacramento. Ficaram registradas no Extrato das perdas e danos executadas pelas Tropas Espanholas mandadas pelo Governador de Buenos Aires, Dom Miguel de Salzedo, nas campanhas e domínios da Praça do Rio da Prata da Nova Colônia do Sacramento (IHGB - Coleção Instituto Histórico. Lata 25 Doc. 2). Além de patachos, sumacas, canoas, produção de trigo, escravos, carros de bois, couros, e danos às propriedades rurais, 62.018 cabeças de gado vacum entre bois mansos, vacas de leite e gado xucro (não amansado) foram levados, importando a quantia de 106:888$023 no inventário de perdas, onde o total não chega a atingir 330:000$000.

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Os bovinos levados pelos inimigos, se somados aos cavalos, éguas e potros, também parte do saque, compõem muito mais de um terço do total dos danos causados a Sacramento (BR, 1941: 13-16). As movimentações militares, portanto, além de responsáveis pela chegada de um grande contingente humano, trouxeram também consigo um tipo de guerra na qual, mais do que mortos, eram feitos saques e danos às posses do opositor. Estas guerras são ditas por Helen Osório como destrutivas dos rebanhos, a principal riqueza que o sul produzia (Osório, 1999: 62).

2. Os homens Não é exagero pressupor que parte da fortuna pessoal dos habitantes da Laguna nesses limiar do século XVIII tivesse sido feita às custas da existência dos animais, As vezes de forma não muito lícita, como é perceptível num abaixo-assinado encaminhado à Câmara da Vila, datado de fevereiro de 1727: “(...) nós com oito pessoas mais baixo assinadas que nós todos nos obrigamos a fazer com cavalos nossos todo o gado vacum e cavalos que pudermos na Pampa da Vacaria o qual amansaremos e conduziremos a este porto do Rio Grande de São Pedro e o passaremos o dito Rio e depois marcado o deitaremos nas campanhas desta parte para Sua Majestade que Deus Guarde (...) em tudo mais seguiremos a ordem do dito Tenente General (...) mandarem ao contrário e se Sua Majestade ou o dito General ou não houverem por bem e a nos não mandarem pagar o nosso trabalho ficará o dito gado para nós os ditos feitores dele (...) por sermos todos pobres e não termos outro meio para passar e vivermos disto e ficará a nossa paga a eleição de que Sua Majestade for servido ou Excelentíssimo Senhor General desta Capitania não sendo pelo capitãomor da Vila da Laguna Francisco de Brito Peixoto por nos ter ocupado em várias ocasiões para semelhantes ocasiões e fazer gado dizendo que é para a Fazenda Real não o sendo senão para a sua como é notório a todos da Vila da Laguna (...)” (Monteiro, 1937 v. 2: 179-180 - grifo meu).

A atividade de preia de gado foi uma das principais geradoras de recursos para a Vila da Laguna e por conseqüência, dos primeiros habitantes lusos do Continente

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do Rio Grande de São Pedro, haja vista terem sido os moradores da Laguna, e em especial os do núcleo familiar do Capitão-mor da Vila, Francisco de Brito Peixoto – citado no documento acima – os primeiros a serem deslocados mais ao para o sul. Há registro de uma primeira expedição partiu em 1715 indo até a Colônia do Sacramento, para fazer reconhecimento das terras e arrebanhar animais (Neis, 1975: 20). Outras se seguiram com o mesmo propósito. A mais importante ocorreu em meados da década de 1720. A “Frota de João de Magalhães” – curioso nome dado pela historiografia do Rio Grande do Sul a uma expedição terrestre – era composta de trinta ou trinta e um homens, entre livres, escravos e índios. Eram comandados por João de Magalhães, genro de Francisco de Brito Peixoto, com intuito de explorar as terras do sul, em 1725. Segundo Fortes, estes comandados “eram principalmente os próprios escravos e os de seu sogro, na maioria homens pardos”. Assinalando aqui que muitas vezes os índios administrados são designados como “pardos” (AHCMPA – Róis dos Confessados de Viamão 1751, 1776 e 1778; Autos Matrimoniais), os tais escravos “pardos” talvez incluíssem estes administrados. Na heterogeneidade da composição da “frota”, percebe-se que algo além da prática da coerção e do exercício da força mantinha estes subalternos lado-a-lado com seus senhores, em número bastante menor. Um ato de insubordinação seria suficiente para que escapassem para os territórios inexplorados pelos seus senhores e daí para a liberdade. Todavia, isso não ocorreu, denotando, assim, a presença de relações entre as parcelas oriundas de distintos estratos sociais que extrapolam o exercício do poder através da violência como mantenedora da boa ordem. Mais que a subordinação pela força, pressupõe-se a negociação entre os setores que compunham a expedição, dando uma certa coesão a este grupo tão heterogêneo. A expedição possivelmente fixou alguns desses homens no local onde, por presença de bancos de areia à entrada da Lagoa dos Patos, podiam cruzar a embocaduras

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com animais e cargas nas estações propícias do ano. Esta expedição, conforme determinaram as autoridades de São Paulo, deveria ter sido conduzida pelo próprio Brito Peixoto. João Borges Fortes refere-se a “impedimentos” à partida de Francisco de Brito Peixoto da Vila da Laguna, que o levaram a propor a liderança de seu genro. A julgar pelo tom de descontentamento dos lagunistas no documento já citado, desconfia-se que tais “impedimentos” fossem movidos pela população da vila sinal de descontentamento com seu Capitão-mor. Importante também é pensar sobre o que teria motivado moradores da Vila da Laguna no deslocar-se mais ao sul e perceber que este deslocamento não foi o primeiro empreendido pela família de Francisco de Brito Peixoto. Tal família já conhecia a Laguna, de viagens anteriores de reconhecimento, a mais antiga provavelmente datada do ano de 1676. Francisco de Brito Peixoto, juntamente com seu pai, Domingos de Brito Peixoto, e seu irmão Sebastião de Brito Guerra, deixara a Vila de Santos indo para o sul. Uma vez fundada a povoação da Laguna, Francisco de Brito Peixoto reiterou, em 1714, um pedido de posse dessas terras feito por seu pai que, assim como Sebastião de Brito Guerra, morreu nestas terras, provavelmente sob ataques de indígenas. A súplica inclui a lembrança de ser Francisco de Brito Peixoto o único filho varão e sobrevivente de Domingos de Brito Peixoto, figura abonada da Vila de Santos (Franco apud Cabral, 1976: 57-58). Independente do deferimento de tal súplica, a presença desta família deixou seu nome vinculado à toponímia de Santa Catarina, sendo exemplo a chamada Enseada do Brito, no continente, defronte à ilha da atual Florianópolis Seria, então, o estabelecimento no Continente do Rio Grande de São Pedro, um desdobramento de uma migração primeira desta família de paulistas. Parece correto, portanto, que se busquem os motivos dessas migrações e constante deslocamento de famílias e contingentes populacionais rumo às fronteiras da Colônia junto aos estudos que investigam os modos de funcionamento da sociedade paulista, considerando que

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os novos povoadores carregavam em si as vivências adquiridas junto ao seu lugar de origem e da sociedade que os gerou. O “novo” que se criava, supõe-se aqui, já vinha impregnado de elementos do “velho” que havia ficado para trás. Alida Metcalf (1983), em seu estudo sobre as famílias de Santana de Parnaíba, observou que dentre estas experiências dos paulistas, há a existência de um sistema de heranças que tendia a privilegiar um herdeiro com uma porção maior do patrimônio familiar em detrimento dos outros. Ao mesmo tempo, a legislação forçava o parcelamentos dos bens e das propriedades para a ser repartido entre os herdeiros forçados. Também era uma constante o prejuízo das filhas mulheres nas partilhas. A ininterrupta tomadia de terras circunvizinhas, os parcelamentos consecutivos das glebas de terras entre os herdeiros e sua exploração extensiva, com desmatamento e posteriores queimadas sem utilização de técnicas de manejo de solo que propiciassem sua recuperação acabavam por esgotar as propriedades e as próprias localidades onde se situavam. Tais situações geravam estratégias familiares que lhes permitissem viver e sobreviver por mais gerações (Metcalf, 1993). Para os filhos preteridos e para aqueles que herdaram uma parcela diminuta dos bens, devido a um número grande de irmãos com quem partilharam as posses, ou ainda para aqueles que não mais obtinham dos solos exaustos o seu sustento e o de seus familiares, migrar para as fronteiras, buscando melhores perspectivas para reconstruir suas vidas, se configurava como uma boa alternativa. Migravam não apenas os “pobres”, mas também frações das elites locais (Metcalf, 1983: 93). Percebe-se para o contexto da Laguna e imediações um relativo esgotamento dos recursos quando da tentativa de assentamento de açorianos na década de 1740, recursos estes que ainda estavam disponíveis quando da transferência das primeiras famílias vicentinas. Ao que tudo indica, a imensa maioria das terras, sobretudo as terras de boa qualidade já estavam ocupadas, sobrando para os novos sitiantes açorianos as terras de pouca produtividade (Fortes, 1999).

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Também, ao que parece, destino que vai ao encontro desse padrão de transmissão de heranças estudado por Metcalf, tiveram os bens de Francisco de Brito Peixoto. Este homem jamais casou-se, a despeito da prole numerosa batizada cujos batismos nomeiam-no como pai, fruto de relacionamentos com índias ditas “carijós”. Assim, jamais teve uma esposa e, por conseqüência, não teve filhos legítimos (Fortes, 1998: 49). Os filhos naturais, na ausência destes herdeiros legítimos, possuíam plenas condições de herdar seu patrimônio. Só que isso não ocorreu. Ao contrário, o capitão-mor da Vila da Laguna, Francisco de Brito Peixoto, legou seus bens e doou em vida as mercês que poderiam advir do serviço de povoamento e fundação da Laguna a um sobrinho, Diogo Pinto do Rego, Mestre-de-campo na Vila de Santos, filho de uma irmã sua, Ana Pinto da Silva. (BN, manuscritos, II – 1, 2, 2, 3 – Notícia da Povoação, e fundação da Vila da Laguna feita por Francisco de Brito Peixoto que foi Capitão-mor dela e doou os seus serviços em seu sobrinho Diogo Pinto do Rego). A opção de Brito Peixoto ao legar seu patrimônio ao sobrinho não o tornava menos preocupado com o destino de sua prole. Data de 1732 um requerimento que fez à Sua Majestade da mercê de “uns campos e terras” que começariam no Rio Tramandaí até o Rio Grande de São Pedro (barra da Lagoa dos Patos), tendo algo em torno de dez léguas de comprido, no entanto, sem especificar quantas léguas teria de largo ou mesmo se compreenderia as duas margens da Lagoa dos Patos. Tais terras seriam “para mim e minhas famílias”, conforme escreveu o Capitão-mor (Requerimento apud Fortes, 1931: 27). Tratava pois, de garantir, nas novas terras que se conquistavam, os recursos para sua descendência. O requerimento seguiu sob forma de consulta ao Conde de Sarzedas, para confirmar os serviços prestados pelo Capitão-mor, às custas de sua própria fazenda, conforme o alegado. Dentre estes serviços, é dada grande relevância à abertura do Caminho da Praia, desde a Colônia do Sacramento até a Vila da Laguna, executados

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por ele e também na pessoa de seu genro, João de Magalhães, tendo por trajeto todo o litoral dos atuais Uruguai, Rio Grande do Sul e Santa Catarina até a Laguna. O conde redirecionou a questão à Câmara da Laguna, cujos membros lhe responderam confirmando que o povoamento da Laguna fora de fato feito às custas da família de Domingos e Francisco de Brito Peixoto, mas que o Capitão-mor não abriu tal caminho, já que tratava-se de “praia lavada” que não necessitava de empenho algum para se tornar transitável (apud Cabral, 1976: 148). Contestavam, portanto, o merecimento de tal benesse. Destaca-se também nesta resposta o alerta da Câmara quanto às dimensões das terras pretendidas, sem que este seja argumento no parecer desfavorável dos lagunistas: “... a distância que vai do Rio Tremandi da parte do norte até o Rio Grande de São Pedro, correndo caminho do sudeste é tanto na nossa opinião como geral, são cinqüenta léguas pouco mais ou menos e os campos que estão entre os dois rios estão hoje povoados com 27 fazendas assim de éguas como de vacas. (...). (apud Cabral, 1976: 149).

Alegando uma dimensão para tais “campos”, os limites assinalados extrapolavam em aproximadamente cinco vezes às dez léguas da solicitação (ver Ilustração I, confeccionada com base nas informações contidas nestes documentos). Considerando-se as proporções da terra pretendida, o “descobridor” dessas campanhas almejava obtê-las – e com elas os gados que por ventura ali estivessem – em quantidade mais que necessária para “suas famílias” que se dirigiram para o sul, como recíproca de seu empenho no fiel serviço de Sua Majestade. Aliás, “famílias” estas que se compunham de seis de seus oito filhos e filhas e seus cônjuges, dos quais encontraram-se referências nos registros eclesiásticos quanto a terem se fixado no Continente do Rio Grande de São Pedro (AHCMPA – Róis de Confessados de Viamão – 1751, 1776, 1778 e Treslado do Rol dos Confessados na Nova parroquia do Bom Iezus do Triunfo no anno de 1758).

38 Ilustração I Pretensões territoriais de Francisco de Brito Peixoto

Marcel Mauss, em Ensaio Sobre a Dádiva, descreve as reciprocidades geradas pelo dom e contra-dom como possuidoras de características que avançam para além da simples relação homem-a-homem: “Nesses fenômenos sociais ‘totais’, como nos propomos a chamá-los, exprimem-se, ao mesmo tempo e de uma só vez, toda a espécie de instituições: religiosas, jurídicas e morais – estas políticas e familiais ao mesmo tempo; econômicas – supondo formas particulares de produção e de consumo, ou antes, de prestação e de distribuição, sem contar os fenômenos estéticos nos quais desembocam tais fatos e os fenômenos

39 morfológicos que manifestam estas instituições.” (Mauss, 1974: 41)

Segundo Xavier & Hespanha, “ao ato de dar subjaz uma ‘pouco virtuosa’ estratégia de valorização social e política” (Xavier & Hespanha, 1993: 390). Nessa premissa reside a escolha dos bens a dar, preferencialmente duráveis, e o prolongar dos atos de retribuição, assentando-se um interminável intercâmbio de reciprocidades prestadas entre homens em situações desiguais (Xavier & Hespanha, 1993: 390). Em que pese ser o rei, em uma sociedade fortemente hierarquizada como era a sociedade portuguesa de Antigo Regime, o ápice dessa hierarquia, toda e qualquer prestação ou contra-prestação que envolve favores reais, se dá entre homens de categorias sociais muito desiguais: “... a amizade desigual é, formalmente, aquela que legitima as relações de poder entre homens livres. Sob este ponto de vista, a regra será a da proporção entre a posição social dos dois ‘amigos’, quer no plano das prestações (em que o inferior é obrigado a prestações menos importantes), quer também, de modo inverso, no plano do amor, (em que o inferior é obrigado a dar mais que o superior). O modelo de troca é o mesmo – prestações materiais em troca de submissão política, effectus em troca de affectus”. (Xavier & Hespanha, 1993: 386).

O sistema de mercês, empregado pela Coroa também aparece como uma forma de redistribuição das riquezas obtidas com as conquistas. Não somente em terras, como fora praticado antes das grandes viagens marítimas, mas também sob outras formas: “Se, ao transmutar-se em empresa de comércio, a Coroa passou a possuir bens móveis em quantidade crescente, nem por isso deixou os distribuir em benefício como outrora fazia com os bens de raiz. Estes benefícios revestiam diferentes formas: a de funções administrativas ou militares que proporcionavam, além dos vencimentos, os cobiçados proes e percalços que lhes andavam associados; a concessão de viagens marítimas em regime de exclusividade ou de isenção de taxas e direitos alfandegários (...). O Rei concedia a suas mercês segundo dois critérios combinados: a categoria hierárquica do beneficiado e a importância dos

40 serviços que se pretendia recompensar ou esperava dele.” (Thomaz, 1994: 430-431).

Ainda que a solicitação de mercê de Brito Peixoto possa parecer aos olhos do século XXI um pedido abusivo, a prática de solicitar favores reais como contrapartida a favores anteriormente prestados por seus súditos é mais um dos antigos costumes trazidos para o novo território que se povoava. Se grande fora o serviço de povoar a Laguna, avançar sobre os campos meridionais ocupando-lhes as terras e permitindo o aproveitamento da grande quantidade de gados já conhecidas das autoridades – serviço este prestado às custas de sua própria fazenda –, a contrapartida do mesmo deveria comportar mercê que o recompensasse de maneira justa. Não há, portanto, incoerência nem “abuso” na forma de agir de Brito Peixoto, contando com a anuência de seus coevos. Talvez tenha havido, isto sim, um tanto de má-fé, anotada pelos lagunistas: reivindicava ele serviço que não prestara – a abertura do Caminho da Praia – e atribuía limites para a terra solicitada em mercê que extrapolavam as medidas em léguas que constavam na solicitação. De resto, dá a entender que a solicitação pareceu perfeitamente normal aos olhos de seus pares. Percebe-se nessa troca de favores, de reciprocidades, a existência dos “fenômenos sociais totais” enunciados por Mauss. Neste caso os recursos econômicos – no exemplo, as terras, o bem de raiz fundamental – concedidos a um homem estavam condicionados às suas relações políticas com aqueles que pudessem interferir no processo e com quem concedesse estes recursos. Baseava-se na troca dos serviços prestados, que não eram e não são mensuráveis, nem podem ser expressos sob qualquer forma de quantificação, envolvendo a organização social, política e econômica dessa sociedade, bem como todo o seu código moral, pois só este pode atribuir um valor – não mensurável – aos préstimos. A “amizade entre desiguais” colocada por Xavier e Hespanha, transparece neste processo como um todo, assim como percebe-se estar ao alcance do Capitão-

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mor da Vila da Laguna – título este que também é uma mercê real – solicitar ao rei uma grande extensão de terras, e não estar ao alcance de um homem qualquer. Ou seja, os preceitos da hierarquia social e da desigualdade entre os homens livres são mantidos nesse tipo de solicitação. Alguns podiam almejar um favor real de monta, outros, sequer ousariam verbalizar tal anseio. Outra vez, nota-se aqui que, o germe da nova sociedade sulina que se fundava, vinha calcado sobre práticas anteriores e que eram pilares da sociedade lusa de Antigo Regime: a do sistema de mercês como retribuição dos serviços prestados, a hierarquização da sociedade e a desigualdade entre homens com o mesmo estatuto de livres. Livres mas não iguais: “Na sociedade de Antigo Regime, o mais aparente é divisão estados ou ordens - clero, nobreza, braço popular. É uma divisão jurídica, por um lado, é , por outro, uma divisão de valores e de comportamentos estão estereotipados, fixados de uma vez para sempre, salvo raras exceções. Cada qual o como oposição numa hierarquia rígida, segundo tem, ou não, títulos e tem, ou não, direito a certas formas de tratamento.” (Godinho,1975: p. 72)

Estas diferenças expressavam-se também perante a lei. As pessoas de categoria social mais baixa eram passíveis de degredo, punições físicas e sanções monetárias – estas de valores inferiores às aplicadas às pessoas situadas em patamar mais alto na escala social. Ao contrário, as penas pecuniárias mais elevadas, os exílios mais longos e em regiões mais distantes, e a não aplicação de humilhações físicas, estavam destinadas àqueles situados nos estratos sociais superiores (Godinho, 1975: 75-78). A liberdade – tê-la ou não – por si só, nesta sociedade que se construía, não servia para equiparar os homens. Várias combinações de elementos que podiam dar distinção aos homens e suas famílias, o nascimento, o sangue, o tipo de trabalho a que se dedicavam, os serviços por eles prestados à Sua Majestade, eram considerados para conferir as “qualidades” (Godinho, 1975). Eram mesclados de forma não completamente regulada, dando a entender que cada caso diferia do outro, concedendo

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uma relativa maleabilidade. Permitia, inclusive, que homens nascidos e criados em situação inferior pudessem galgar alguns degraus na sociedade hierarquizada. Ou o seu contraposto, que alguns bem-nascidos caíssem em desgraça ante seus pares e à sociedade como um todo. Um outro aspecto que se destaca no processo que envolve a súplica de Brito Peixoto à Sua Majestade pela mercê em terras é a curiosa expressão “a mim e minhas famílias”. Sem sombra de dúvidas, a concepção de família do Capitão-mor da Laguna extrapola o limite da família nuclear e da família co-residente. Em primeiro lugar porque, como já dito, Francisco de Brito Peixoto jamais levou uma mulher ao altar, sendo sua prole gerada por relações mantidas com mais de uma índia carijó, o que nem de longe se assemelha aos preceitos da religiosidade da população que viveu no período. Em segundo lugar porque, mesmo após o deslocamento para os Campos de Viamão, no Continente do Rio Grande de São Pedro – que distam centenas de quilômetros da Vila da Laguna – seus filhos e filhas continuavam a ser tratados como “minhas famílias”. Aqui há uma grande aproximação do colocado por Giovanni Levi em sua percepção do que seria a família na realidade piemontesa por ele estudada: “Falaremos de família no sentido de grupos não co-residentes mas interligados por vínculos de parentela consangüínea ou por alianças e relações fictícias que aparecem na nebulosa realidade institucional do Antigo Regime”. (Levi, 2000: 98-99)

Ainda que não se tenha ao certo toda a sorte e abrangência dos laços de parentesco geradas por consangüinidade, matrimônio ou compadrio e que estabeleciam os limites para que alguns fossem considerados membros de uma mesma família, no contexto do Continente do Rio Grande de São Pedro, há que se buscar os indícios destas relações junto às fontes, para que se possa ter alguma percepção mais precisa da extensão da família, tal como era concebida pelos coevos. É nessa perspectiva, a

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de tentar perceber as relações que se forjavam, que o olhar sobre tais famílias deve ser lançado, sob pena de perder-se de vista as redes de reciprocidades que se formavam a partir da existência delas. As relações no seio da família, “o amor (ou piedade) familiar, desdobrava-se em vários sentimentos recíprocos” (Hespanha 1993a: 273) que compreendem direitos e deveres. Os deveres dos pais, cujo amor pelos filhos esperava-se que superasse àquele que tinham pelas esposas, compreendem a educação, o sustento e os dotes para matrimônio e ingresso na vida religiosa. “Os filhos são antes de mais, os que o são pelo sangue, independentemente de terem nascido na constância do casamento” (Hespanha 1993a: 274). O dever paterno à educação e ao sustento da prole atingia a toda a prole, portanto, independente de terem nascido das relações conjugais de seus pais, fora delas ou mesmo em relações espúrias, como as adúlteras ou as mantidas com religiosos. Aos filhos cabia o respeito, a gratidão, a obediência e o obséquio, muitas vezes expressos no amparo e sustento aos pais idosos em sua velhice ou a encomendar ofícios religiosos em intenção de suas almas após a morte. Estes deveres filiais podem ser considerados espécie de contra-dom relativo ao empenho e esforço dos pais em educar, sustentar e dotar a prole (Hespanha 1993a: 274-276). As reciprocidades internas à família também podiam ser de tipo desigual. Os poderes do pater famílias podia estender-se inclusive para além do matrimônio dos filhos, até o reconhecimento de sua emancipação, principalmente se co-residentes fossem, interferindo nos destinos dos familiares e gerindo os destinos do patrimônio da família. Daí não parecer estranha, nem aos seus pares, nem aos homens do rei, a atitude de Brito Peixoto ao reivindicar para si a empresa levada a cabo pelo seu genro, João de Magalhães quando de sua solicitação de mercê: faziam todos parte de uma mesma família, havendo nos filhos e possivelmente nos genros uma continuidade do pater familias.

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Sabe-se que os filhos e filhas de Brito Peixoto, em sua maioria, saíram da Laguna já casados (Fortes, 1998). Logo, as “famílias” referidas pelo Capitão-mor incorporavam também os genros e noras, além dos netos, muitos nascidos na Laguna antes dessa segunda migração do “clã Brito Peixoto” (Carvalho, 1975) Trata-se, portanto de uma apreensão de família extensa, no sentido em que aglutina não apenas os filhos não co-residentes, como também aqueles que a ela se agregaram via matrimônio, ou seja, os genros, as noras e incluíam a terceira geração, os netos nascidos dessas uniões. Em contrapartida, percebe-se que no Continente pessoas externas ao casal formado e sua prole, podiam co-habitar em uma mesma residência, provavelmente submetendo-se à autoridade do chefe daquela família. Acabava sendo reconhecido pelo pároco encarregado da Desobriga Pascal – período do ano em que todos os fiéis deviam confessar e comungar durante visita do padre a seus lares – o parentesco nãoconsangüíneo com o chefe do fogo, tal como arrolado nos domicílios de números 31 e 41 do Treslado do Rol de Confessados de Triunfo – 1758, respectivamente “Maria Mendes viúva, Salvador Vaz fo., Antonio Vaz fo., Manuel da Silva genro; Maria Vaz mulher”; (AHCMPA – Treslado do Rol de Confessados de Triunfo, 1758 – grifo meu)

e “Jerônimo da Silveira Machado, Maria Santa mulher; Miguel cunhado, Ana escrava”. (AHCMPA – Treslado do Rol de Confessados de Triunfo, 1758 – grifo meu.),

ou parentes consangüíneos, filhos de irmãos que não co-habitavam com o chefe do fogo, exemplos arrolados nos fogos 18 e 34 do mesmo documento, respectivamente: “Manuel Pinto Bandeira, Maria de Moraes mulher, Manuel Pinto fo., Salvador Pinto fo., Francisco Pinto fo. Isabel sobrinha viúva...” (AHCMPA – Treslado do Rol de Confessados de Triunfo, 1758 – grifo meu)

45 e “João Soares Leite, Domingas Nunes mulher, Antônio Dias sobrinho.” (AHCMPA – Treslado do Rol de Confessados de Triunfo, 1758 – grifo meu)

Quanto às relações de compadrio, a própria sociedade do século XVIII admitia: forjavam laços que poderiam interferir nas atitudes e juízos das pessoas, mesmo perante à lei. Indício de que a sociedade era ciente da influência desse tipo de relação sobre os atos dos homens são as últimas observações que se fazem registrar nos depoimentos de várias testemunhas nos Autos da Devassa Sobre a Entrega da Vila de Rio Grande aos Castelhanos datado de 1764. As testemunhas, ao final do depoimento, afirmam seu compadrio com acusados. Citam-se aqui, a título de exemplo, os testemunhos de Francisco Barreto Pereira Pinto e Manuel Pereira Rodrigues, em cujos depoimentos consta: “do costume disse ser compadre do Coronel Tomás Luís Osório” (BR, 1937: 16 e 23). Nos documentos eclesiásticos, exemplifica-se a proximidade desse parentesco construído no ato do batismo, com estabelecimento de reciprocidades entre os compadres e entre padrinhos e afilhados, com cinco afilhados encontrados residindo nos fogos de seus padrinhos no Rol dos Confessados de Viamão–1776 e dois no Rol dos Confessados de Viamão – 1778. Ao que parece, é uma relação mais profunda que a mera amizade, porém menos forte que o parentesco por sangue. As alianças e reciprocidades que se formavam quando da realização dos casamentos se expressam na importância dos genros de Francisco de Brito Peixoto ante a sociedade da Vila da Laguna. Pelo menos dois deles foram vereadores junto à Câmara da Vila da Laguna, Agostinho Guterres e João de Magalhães, este segundo por diversos mandatos, mesmo após ter fixado residência nos Campos de Viamão (Cabral, 1946: 60 e 114). Também parece vir desse parentesco forjado ao desposar a filha de Brito Peixoto a indicação de João de Magalhães, “genro bastardo do dito povoador Francisco de Brito Peixoto” (Inventários e Testamentos apud Fortes, 1931: 21), para levar à frente a

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expedição à barra Lagoa dos Patos – na época denominada Rio Grande. O poder pessoal e a posição social de Francisco de Brito Peixoto recaía sobre os membros de sua família, consangüíneos ou não. O reconhecimento do terreno, de tudo o que havia entre Laguna e o Rio Grande e a preia dos gados espraiados nas terras devolutas foram os objetivos primeiros da missão delegada a Magalhães. Os documentos acerca dessa expedição de João de Magalhães confirmam a existência de muitos gados nas pastagens entre a o Rio Tramandaí e os campos de Sacramento, e como resultado dela, o assentamento de alguns homens na parte norte do canal que liga a Lagoa dos Patos ao mar. Já no início da década de 1730 as filhas e filhos de Brito Peixoto, juntamente com cônjuges e filhos, estabeleceram-se em data um tanto inexata mais ao norte, nos Campos de Viamão, nas proximidades do que hoje é a cidade de Porto Alegre. Sabe-se que no ano de 1735 estavam vendendo gados para a Sacramento sitiada pelos espanhóis. Em 1735, portanto, estas famílias já estavam estabelecidas nos Continente (Monteiro, 1979: 31). As pessoas, famílias, militares, vagamundos e andantes, que cruzavam ou estabeleciam-se no território entre a Laguna e a Colônia de Sacramento, como já foi dito, tinham como uma das principais fontes de renda as atividades ligadas ao manejo dos gados, alzados ou colhidos aos campos, ou seja, recolhidos das pastagens onde viviam ao léu. A historiografia como um todo, quando trata dos momentos iniciais da ocupação lusa na América, é prolixa em dizer da importância dos gados bovinos do sul e de suas utilizações para a fixação dessas populações nesta porção meridional (entre outros Porto, 1943: 339-390; Cardoso, 1967: 473; Cesar, 1979a: 10; Pesavento, 1985 22). Os escritos mais recentes reafirmam esta premissa: “A tomadia de gado nos campos indivisos foi fundamental para o estabelecimento das estância e da atividade pecuária nos territórios portugueses. A quantidade de reses que eram conduzidas é de difícil avaliação por tratar-se de contrabando”. (Osório, 1999: 48).

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Estes gados bovinos, levados em pé até os seus mercados, com o passar do tempo, teriam sido substituídos: como produto para a alimentação, pelo charque (carne desidratada pelo sol e pelo sal, sob forma de mantas, produzida nos territórios sulinos); como animais predominando nas rotas das tropas, por gados muares destinados ao transportes de cargas no interior da Colônia (Ellis Jr, 1950; M. Ellis, 1950). Porém não é esta a percepção que as fontes consultadas oferecem. No entanto não se discutirão aqui estas afirmativas. A polêmica ficará guardada para o terceiro capítulo À existência dos gados e ao seu aproveitamento é correlata a fixação de populações na região sulina. Com a utilização dos recentemente localizados Róis de Confessados da freguesia de Viamão e Treslado do Rol dos Confessados de Triunfo, do Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre, observa-se que muitos dos arrolados em 1751, em Viamão, como “andantes” tornaram-se posteriormente “assistentes nessa freguesia”, ou seja, assistindo – sabe-se lá com que regularidade – os ofícios religiosos nessa localidade, estabelecendo residência e criando famílias. Cruzando-se os dados dos Róis de Confessados de Viamão e do Treslado do Rol de Confessados de Triunfo com outra sorte de documentação eclesiástica do AHCMPA, os Autos Matrimoniais, também da freguesia de Viamão, verifica-se que muitos dos que ali se estabeleceram ou que “por ora assistem nesta freguesia”, alegaram como ocupações “viver da condução de tropas”, “viver de andar pelo sertão”, “trabalhar na conduta das tropas” de alguém, “viver de andar pelos campos”. Estes homens e suas relações com o restante da sociedade meridional são o foco do estudo que ora se apresenta. Algumas destas desinências de ocupação podem ser vistas no depoimento de Sebastião Rodrigues da Cruz, natural de Paranaguá, quando de seu matrimônio com Petronila Carvalho de Oliveira, natural de Viamão, ambos livres: “...de idade de poucos meses transportaram seus pais para a Vila de Curitiba onde tiveram criação e de idade de 10 anos saíra de casa

48 de seus pais para estes campos de Viamão pelo sertão na condução de tropas.” (AHCMPA, Autos Matrimoniais de Sebastião Rodrigues da Cruz e Petronila Carvalho de Oliveira - 1756)

As duas testemunhas para a comprovação do estado de solteiro de Sebastião Rodrigues da Cruz eram naturais de Curitiba. O contato deles com o noivo advinha da vizinhança nesta vila e da atividade que tinham em comum: conduzir gados pelo sertão. Uma das testemunhas, Francisco de Castro, quando alega sua ocupação, é mais específico: “vive da condução de tropas para o sertão de São Paulo”. O noivo fixou residência nos Campos de Viamão, em localidade que em 1757 passaria a compor a nova freguesia de Triunfo. Até o presente não se obtiveram informações que levem a crer que seus “camaradas” também o tenham feito. (AHCMPA, Autos Matrimoniais de Sebastião Rodrigues da Cruz e Petronila Carvalho de Oliveira- 1756; Treslado do Rol dos Confessados de Triunfo 1758 ). Os Autos Matrimoniais revelam a mobilidade espacial no território da Colônia, já observada por Sheila de Castro Faria (Faria, 1998) e uma certa “heterogeneidade” de posições sociais nos pares formados nestes casamentos. O ingresso de peninsulares e nativos das ilhas de Açores e Madeira, de pardos forros e outras categorias nesta sociedade através de suas atividades vinculadas aos tratos dos gados e pelo próprio matrimônio também transparece nessa documentação, se considerado que: “... a noção de ‘cor’ herdada do período colonial, não designava, preferencialmente, matizes de pigmentação ou níveis diferentes de mestiçagem, mas buscava definir lugares sociais, nos quais etnia e condição estavam indissociavelmente ligadas.” (Mattos, 1998: 98).

Um bom exemplo dessa heterogeneidade de posições sociais é o casamento de Francisco da Rosa, natural da Ilha do Pico, freguesia de N. Sra. Boanova, com Teodósia da Silva, parda forra, natural de Viamão, filha de Escolástica Peixota, índia

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das Missões, antiga administrada de Ana da Guerra – uma das filhas de Francisco de Brito Peixoto – e de pai incógnito. O noivo e várias testemunhas depuseram para afirmar seu estado de solteiro. Do depoimento de Francisco tem-se que: “da idade de 11 anos [corroído] a seus pais e viera em companhia do Padre Domingos; porque neste tempo ele depoente [foi] para a vila de Laguna em companhia do Alferes Antônio Francisco e que na dita vila [corroído] e que estâncias de fora fugindo ele depoente do dito alferes e viera assistir para a casa do alferes Francisco Manuel de Souza, aonde morou 3 anos e meio, e nesse tempo se metera em uma tropa de gado que ia para o sertão em companhia de José da Fonseca e de Jacinto Roque e fora na dita campanha até o Rio de Janeiro e em toda esta viagem até se recolher outra vez a estes campos de Viamão quatro anos.” (AHCMPA. Autos Matrimoniais de Francisco da Rosa e Teodósia da Silva - 1759)

As testemunhas de Francisco da Rosa eram todas portuguesas, da península ou ilhéus. E acrescentam certas informações à inquieta vida do noivo. Francisco Rodrigues de Macedo, natural de Braga, alega que já conhecia Francisco da Rosa de uma de suas vindas das Terras de Castela para os Campos de Viamão. Antônio Agostinho Castelbranco, natural da Ilha Terceira, afirma que o conheceu Francisco da Rosa na Ilha de Santa Catarina (atual Florianópolis), ainda menino a “assistir pela casa dele, testemunha, feito seu moço de servir”. Passado algum tempo, reencontrou Francisco na casa do Alferes “e andara feito seu pastor de ovelhas”. Há uma terceira testemunha que apenas confirmou os outros depoimentos (AHCMPA. Autos Matrimoniais de Francisco da Rosa e Teodósia da Silva – 1759; Rol dos Confessados de Viamão – 1751) Todas estas andanças de Francisco da Rosa teriam ocorrido antes dos seus 20 anos, idade que alega ao tentar habilitar-se ao casamento com Teodósia. Longe da excepcionalidade, o fato de ter-se distanciado de sua família em idade precoce é corriqueiro nos depoimentos para os vários casais onde o homem é ou foi condutor de tropas. Afastar-se da família em tenra idade, por vezes jamais retornando ao núcleo

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familiar onde foram gerados, parece ser o padrão para aqueles que dedicaram algum tempo de suas vidas a conduzir animais. A quantificação destes casos não pôde ser feita por ainda não estarem todos os Autos Matrimoniais transcritos. Todavia, a predominância do precoce afastamento da família é significativa nos depoimentos dados ao pároco pelos nubentes envolvidos com condução de tropas ou de suas testemunhas, nos documentos já disponibilizados. Já as noivas, até meados da década de 1750 eram em grande parte oriundas de outras terras que não o Continente. Tudo leva a crer que a maioria delas, após este período era nativa, senão dos Campos de Viamão, do Continente do Rio Grande de São Pedro ou oriundas de núcleos parentais que para lá se transferiram, geralmente tendo estes núcleos passagem pela Laguna. Ao que tudo indica as terras da Laguna já estavam, desde as últimas décadas, ocupadas por grandes sesmarias pertencentes às boas famílias originárias de São Paulo. Na década de 1740 e posteriores, os açorianos que chegaram à Ilha de Santa Catarina e às terras próximas à Vila da Laguna tiveram de ser remanejados para os Campos de Viamão, Rio Pardo, Vila do Rio Grande e Colônia do Sacramento por não haver terras “devolutas” para se fixarem (Fortes, 1999: 40-47). A fronteira estava fechada. E muito mais para “estrangeiros”, sem posses, prestígio e relações pessoais. Não se necessita de maiores esforços para explicar o fenômeno do incremento do número de noivas nativas ou moradoras do Continente. Tendo o povoado do Rio Grande surgido oficialmente apenas em 1737, no início da década de 1730 no povoamento não-oficial de Viamão, poucas famílias estavam radicadas. A única igreja que existia em todo o Continente era a da Vila do Rio Grande, erigida também em 1737 (ACMRJ – Toledo, Livro das Visitas Pastorais no 6, 1799). Era submetida ao Bispado do Rio de Janeiro, assim como era também submetida ao Rio de Janeiro a administração da Vila de Rio Grande. Das famílias que habitavam os Campos de Viamão, geralmente as crianças

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nascidas eram batizadas na Laguna, vila à qual o povoado de Viamão estava administrativamente e “afetivamente” vinculado devido à origem de seus primeiros povoadores, e que por sua vez mantinha vínculos administrativos com o governo de São Paulo. Mais fácil seria proceder um batismo na Vila do Rio Grande pela proximidade e facilidades do relevo, mas parte destas populações dos Campos de Viamão, dão-nos a entender, preferiam manter acesos seus laços com Laguna e São Paulo. Com o crescimento dos núcleos populacionais, por migração ou por nascimentos nas famílias dos casais lá estabelecidos, e com a instauração de freguesias nas terras do Continente – Viamão por volta de 1740 e mais dez nas três décadas seguintes (ACMRJ – Toledo, Livro das Visitas Pastorais no 6, 1799) – as crianças passaram a ser batizadas nestes locais, colocando as moças que se casavam como naturais dessas terras. Abaixo, exemplificam-se alguns destes matrimônios, dois com noivas com origem externa ao Continente e uma nascida em sua jurisdição:

– Diogo, escravo crioulo, provavelmente nascido em Viamão ou na Laguna, casou-se com Felícia, natural de Sorocaba, filha de Ana, negra mina, no ano de 1753. Este é caso é bastante peculiar. É um dos raros casamentos em que as testemunhas depõem apenas sobre o estado de solteira da noiva, já que o noivo era escravo do padre Manuel Pinto de Figueiredo e portanto conhecido na comunidade, dispensando estas formalidades. A noiva veio de Sorocaba em companhia do dono, um homem das primeiras famílias habitantes dos Campos de Viamão, e pessoas reconhecidas da comunidade foram chamadas a depor. Não sendo nascida no local e sendo filha de uma escrava de Manuel dos Santos Robalo, Capitão-mor da Vila de Sorocaba, apesar de ter sido transferida para o sul – primeiramente para Laguna e posteriormente para a propriedade de Cláudio Guterres, casado com uma filha de Robalo – com idade entre 7 e 9 anos, isso não foi suficiente para ser considerada solteira, necessitando de

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depoimentos – ou seja, do aval – de “gente de bem” ou “homens abonados”. É este um indício que se tem de que o reconhecimento que a comunidade fazia de seus membros era mais significativo que o bom senso e a própria legislação, que estabelecia como limite mínimo a idade de 12 anos para o casamento de mulher, o que por si colocaria Felícia na condição de solteira desde sua chegada em Viamão (AHCMPA Autos Matrimoniais de Diogo e Felícia 1753)

– Jerônimo da Silveira Machado, natural da Ilha do Faial. Para o seu matrimônio, alegando-se solteiro, disse ao pároco que “ de sua pátria saíra fugido da casa de seus pais para o Brasil de idade de 9 anos e sempre andara pelo Rio Grande e embarcado para este Viamão aonde haverá 16 anos (...) navegando nas embarcações del Rey e em outras de particulares com o ofício de marinheiro.”

Casou-se em 1753 com Maria Santa, filha dos “casais de Sua Majestade”, ou seja, dos casais de açorianos remanejados para o Continente do Rio Grande de São Pedro. Isso pode significar já ser nascida quando da migração ou ter nascido no Continente após a chegada de seus pais, mas jamais deixaria de ser “filha dos casais”, um estigma ou uma referência para a origem de parte da população que não é inteiramente nativa da Colônia e uma grande parcela desta vivendo em situação de pobreza (Fortes, 1999, Neis, 1975: 61-64). O casal que se formou em 1753 fixou residência no Continente, sendo arrolados no Treslado do Rol dos Confessados de Triunfo em 1758, no já mencionado fogo de número 41. Apesar da pouca idade em que “fugiu”, Jerônimo obteve um tanto de êxito no desenvolver da sua vida. Ainda na primeira metade da década de 1750 solicitou e recebeu carta de sesmaria, em região dos Campos de Viamão que mais tarde comporia a freguesia de Triunfo – um desmembramento da Freguesia de Viamão somada a outros territórios antes afastados do braço da Igreja. A prole deste casal, se é que a

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tiveram, provavelmente constaria de “naturais” do Continente, deixando para trás as desinências que aludiam à origem de ilhéu. (RAPM, ano XXIII - 1929. p. 457 - 458. Carta de Sesmaria; AHCMPA. Autos Matrimoniais de Jerônimo da Silveira Machado e Maria Santa – 1753; Treslado do Rol dos Confessados de Triunfo 1758) .

– Félix Ribeiro, natural de Jundiaí. Casou-se em 1760 com Ana Maria, parda forra, natural de Viamão. Nada nos depoimentos para o estado de solteiro de Félix Ribeiro, do próprio ou de suas testemunhas, apontam para uma origem escrava em três gerações. Seus pais têm nome e sobrenome, sem os termos “escravo”, “pardo” ou “forro” agregados aos seus nomes, logo, um reconhecido por essa sociedade como plenamente livre. Félix vivia de seu trabalho no campo, o que pode significar tanto um pequeno agricultor em terras que não são próprias, prestando eventualmente jornal a alguém ou trabalhando de peão para outrem. Em sua vontade de pertencer a um grupo ou mesmo à sociedade que se estabelecia, em incluir-se em uma rede de solidariedade ou de relações interpessoais de reciprocidade, não vacilou em casar-se com uma parda forra. Este casamento revela outros aspectos mais complexos das relações existentes entre os diferentes estratos que compunham esta sociedade. Se por um lado a parda Ana tinha por nascimento um status social inferior ao de Francisco, por outro, ao que tudo indica, Francisco era pobre. Ana Maria era parda forra, mas filha do Capitão da Ordenança Pedro da Silva Chaves com Maria Francisca, uma escrava de propriedade de André dos Santos. Isto punha Ana Maria, ao menos quanto ao aspecto financeiro e ao prestígio de sua família, num estrato superior ao do noivo. Pedro da Silva Chaves possuía sesmaria nos Campos de Viamão; no ano de 1751 possui no mínimo 4 escravos em suas terras, cuja posse foi dada por carta de sesmaria em 1752, na qual alega possuir também grande quantidade de gados vacuns e cavalares. Numa das estâncias de Pedro da Silva Chaves, em 1751, está arrolado um

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homem com nome impossível de ler dada a corrosão do documento. O sobrenome é Ribeiro, com a desinência de “camarada”. Tudo leva a crer que fosse o próprio Félix Ribeiro. Não consta que o Capitão fosse casado ou tivesse outros filhos. Isso quer dizer que, provavelmente, não possuía herdeiros legais diretos, colocando sua filha natural em condições de herdar suas posses. Embora fosse capitão e tivesse um tanto de prestígio pessoal, esse prestígio não fora suficiente para provocar o esquecimento do estatuto de parda de sua filha. Com tal casamento com um homem plenamente livre, em uma ou duas gerações os apodos “forro” e “pardo” desapareceriam da descendência do capitão. Félix inseriu-se em uma família de proprietários de terras, gados e homens. Para a família da moça, um rapaz de origem humilde, mas distante da mácula da escravidão pode ter significado um bom casamento para a filha. Para os dois lados, o casamento parece ter sido bastante vantajoso. (AHCMPA - Rol dos Confessados de Viamão – 1751; AHCMPA - Autos Matrimoniais de Felix Ribeiro e Ana Maria – 1760; RAPM, 1929: 468-469 - Carta de Sesmaria de Pedro da Silva Chaves; BR, 1937: 120) O que ainda está para ser estudado, são as levas migratórias ou as migrações de famílias isoladas ou mesmo de indivíduos1 . Quais as motivações destes para fixarem-se, ainda que temporariamente, nestas terras meridionais? E o que os atraiu para estas localidades em especial? Isto, ainda está para ser explicado. Especula-se aqui que, dentro dos arranjos de casamento, as famílias que possuíam filhas, tinham em mãos a possibilidade de atrair homens originários de outras regiões para dentro de seus núcleos parentais, por terem algumas posses, serem 1 Usa-se “indivíduos” em contraposição a membros das famílias ou de grupos de amizade. Designa-se assim homens ou mulheres sem grandes vínculos de parentesco ou amizade, não incluídos em grupos pré-estabelecidos que habitavam a região ou que, por motivos diversos, migravam ou circulavam por lá. A ausência de vínculos não significa que a formação destes não fossem uma das metas destas pessoas. Nestes documentos paroquiais fica evidente o anseio de “desgarrados” em inserir-se via casamento ou relações de compadrio a estes grupos já formados, mesmo que com origem inferior à sua. A necessidade de pertencer a alguma rede familiar ou de solidariedade se sobrepõe a manter relações exclusivas com pessoas “livres” ou “brancas”. Parece preferível este tipo de associação do que ficar sem vínculos no local, como o caso citado de Félix Ribeiro.

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livres, ou mesmo por darem a possibilidade de uma prole que pudesse levar a cabo as tarefas rotineiras de uma propriedade rural. E note-se bem: os povoados nesse período compunham-se de agrupamentos de pequenas posses de terras com produção agropecuária ou grandes sesmarias voltadas para o mesmo tipo de produção, situadas em torno de acampamentos militares ou de terras de parentes, as vezes distando as sedes das unidades domésticas vários quilômetros umas das outras. Os arranjos matrimoniais para as famílias das moças nascidas ou vivendo no Continente era, de certa maneira, uma forma de captar e capitalizar recursos humanos. Pode-se arriscar aqui alguns palpites para os motivos dessas migrações, ainda que não se pretenda o seu aprofundamento neste estudo. Durante os momentos que a estremadura sul foi ameaçada pelo inimigo castelhano, reforços em homens e armas foram solicitados às outras regiões da Colônia. Promessas de terras em duas situações de conflito podem ter motivado homens a se engajarem nas tropas de “aventureiros”. O bando – notificação afixada em locais públicos e anunciado ao toque de caixas – lançado em 1735 pelo governador de São Paulo e citado em correspondência desse ao Conde Vice-rei, é explícito em oferecer terras no Continente para aqueles que se dirigissem até a Sacramento sitiada. “... publiquei bandos nesta Capitania para que toda a pessoa que quisesse acompanhar ao dito Cristóvão Pereira lhe daria daquele sítio as sesmarias que quisessem, na forma das ordens de Sua Majestade, para se estabelecerem”. (AESP-DIHCSP, v. XIII, 1895a: 364).

E a partir de 1751, para a campanha da demarcação dos limites referentes ao Tratado de Madri, e em um de seus desdobramentos, o esvaziamento das Missões Jesuíticas e expulsão dos padres da Companhia, novamente se tem essa promessa, dessa vez feita por Gomes Freire de Andrade: “Faço saber a toda a pessoa que se quiser, com sua família ou sem ela, estabelecer nas ditas terras, tanto nas sete Aldeias que hoje se

56 acham povoadas e os Padres entregam inteiras em casas, como nas mais terras que delas correm para Castilhos, Rio Grande e Ilha de Santa Catarina; lhe concedo em nome de Sua Majestade o mesmo mantimento, subsistência, ferramenta e mais conveniências, que o dito senhor tem aos Casais, que mandou tirar das Ilhas e ao presente estão na de Santa Catarina, dando-se-lhe maior número de gados e éguas que a estes na dita Ilha são permitidos e além das referidas conveniências se permite a qualquer pessoa que com sua família ou só se for estabelecer...” (BN-DH, v. 71, 1951: 238-239)

Tais promessas permaneceram como palavras ao vento. Desde a década de 1730, pouco mais que um punhado de sesmarias foram doadas, boa parte delas a lagunistas, familiares e colaterais de Francisco de Brito Peixoto, como Jerônimo de Ornelas de Menezes casado com uma prima do Capitão-mor (RAPM, XXIV - Carta de Confirmação de Sesmaria por S.M, 1933: 64-66), e durante a Expedição de Demarcação de Limites, chefiada por Gomes Freire de Andrade. Encontraram-se até o presente momento, pouco menos de 100 sesmarias doadas nesta Expedição. Ainda que possa parecer uma grande “democratização” da posse de terras, passar de menos de uma dezena de sesmarias a quase uma centena, os critérios para o recebimento das cartas de sesmarias parecem basear-se, antes, na qualidade dos homens que as receberam. A imensa maioria delas foi para homens de elevada patente dentro das companhias de Dragões e de Ordenanças e para detentores de cargos de prestígio, como o provedor da Fazenda Real do Rio Grande ou o Juiz de Órfãos (RAPM – XXIII e XXIV, 1929 e 1933). José Pinheiro Soares do Lago, por exemplo, arrendatário dos dízimos do Continente, recebeu, durante a expedição de Gomes Freire de Andrade, três cartas de sesmaria, em locais distintos. As três localidades são pontos estratégicos para a produção e comércio de animais. Seria uma delas próxima ao Chuí, em localidade hoje situada no território uruguaio e onde se tem indícios da formação de charqueadas e fazendas de criação de cavalos e muares nesta década; a outra, próxima a Vila do

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Rio Grande, onde residia José, com suas criações e lá exercia seu contrato de dizimeiro; a terceira nos Campos de Cima da Serra, junto ao Caminho das Tropas. Para a segunda sesmaria, alegou José Pinheiro que, por receber os dízimos sob forma de gado vacum e cavalar, necessitava de terras para estocá-los. A primeira sesmaria foi doada em agosto de 1754, a segunda e a terceira em agosto de 1755, com menos de quinze dias de diferença, ou seja, em um ano o contratador dos dízimos passou a ser também o maior detentor de terras com direito de posse do Continente. Em todas elas não há uma cláusula usual: a de não poder deter mais de uma parcela de terras. (RAPM v. XXIV, 1933: 77-78, 183-184, 186-187). Encontraram-se outros casos em que foram doadas duas sesmarias aos requerentes, indicando que não só as terras eram dadas a homens detentores de qualidades não possuída por outros, como também uma tendência a concentração das posses em mãos de determinadas pessoas. O mesmo pode ser dito para os membros de uma mesma família: João de Magalhães; seu sobrinho, Cláudio Guterres; um primo de Francisco de Brito Peixoto e alguns de seus genros receberam cartas de sesmaria durante esta expedição. (RAPM v. XXIII e XXIV, 1929 e 1933). Aos soldados e aventureiros, somente por um golpe de sorte – o que é muito pouco provável – ou por excelentes relações pessoais próprias ou de suas famílias – hipótese bem mais cabível – tocaria um quinhão de terras. O mesmo pode ser dito dos casais de açorianos. O edital de 1747, que os cooptou nas Ilhas dos Açores para virem povoar o território americano, promete além de terras das em datas de um quarto de légua em quadro, uma espingarda, sementes, ferramentas, duas vacas, uma égua, farinha para o sustento no primeiro ano, ajuda de mil réis a cada filho que levassem junto e mais dois mil e quatrocentos réis de ajuda de custo (apud Fortes, 1999: 27). Para os contingentes introduzidos por esta leva migratória houve muita demora

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na distribuição das terras. Poucos receberam de pronto, a maioria em locais que pouco distavam dos territórios espanhóis e, portanto, suscetíveis a ataques e perda dos bens, o que justifica a entrega da espingarda. Em cada colono havia um defensor das terras, suas e de Sua Majestade. De resto, para a maioria, foram anos de penúria e deslocamentos em direção às Missões e a outras fronteiras, no aguardo das terras prometidas (Fortes, 1999: 48-94). Se a promessa de terras foi uma constante para atrair povoadores, a distribuição deste importante recurso foi direcionado principalmente a setores da sociedade compostos de funcionários da Coroa, comerciantes de animais, pioneiros do povoamento e militares de altas patentes. Havia, portanto, um monopólio dessas terras por parte de setores influentes da sociedade. Os Autos Matrimoniais, além da “integração” entre os portugueses do Reino e da Colônia, e de gente de diferentes estratos sociais migrados ao Continente, também revelam as relações entre estes e os espanhóis, quer do Reino, quer das terras americanas. Agostinho Guterres, que certamente conduziu tropas entre 1729 e 1731, era, provavelmente, natural de Valença, Espanha2 . Foi casado com uma das filhas de Francisco de Brito Peixoto, ainda na vila da Laguna, onde foi eleito vereador. Transferiu-se para os campos de Viamão onde criou e casou seus filhos, um dos quais foi capitão e também vereador no povoado de Viamão. Por ser um antigo, ilustre e ativo membro da comunidade, várias vezes foi chamado a servir de testemunha para o estado de solteiro de outros homens. Apesar de, nestes depoimentos, alegar “viver do trabalho de roças”, ao longo do testemunhos, aparece seu envolvimento com a condução de suas tropas.

2 Nos vários documentos eclesiásticos onde consta seu nome, a origem atribuída é diversa, indo de Valença à Galícia. Todavia, nenhuma vez é alegada outra origem que não em terras espanholas. Diz-se aqui Valença por ser a localidade que mais é citada nos documentos relativos a Agostinho Guterres ou a sua família.

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Existe a possibilidade de um condutor de tropas nas condições de Guterres ter-se afazendado, ou seja, ter montado sua fazenda de cria de animais e de lavouras, passando, de fato, a viver dos rendimentos da agricultura e da pecuária, embora para este homem não pareça ser exatamente o caso. Mais provável é que, uma vez montada a sua fazenda, tenha diminuído a intensidade de suas viagens ou delegado a outros esta atividade, mas não deixando de todo o exercício desse comércio. Também há a sempre presente possibilidade de omitir nos depoimentos uma atividade em detrimento de outra que goze de maior status. O propósito dos testemunhos é buscar junto às pessoas mais influentes e respeitáveis do círculo de relacionamento dos noivos a fiança de seu comportamento idôneo e de, principalmente, serem solteiros – a bigamia não só não era legal como não era também tolerada nos rígidos códigos religiosos e morais. Nessa medida, é concebível a omissão de certas atividades com o intuito de promover as testemunhas a situações elevadas. O caso de Agostinho Guterres e alguns outros casos de espanhóis de nascimento, geralmente com envolvimento no comércio de tropas e que mantinham relações de parentesco e compadrio com portugueses durante o período denominado pela historiografia como Dominação Espanhola3 , foram abordados por Fábio Kühn (Kühn, 1999). Nos Autos Matrimoniais também transparecem as diferenciações sociais que perpassam a atividade da “condução de tropas”. Em algum momento, a historiografia brasileira gerou a categoria explicativa “tropeiro”, que aglutina tanto os senhores de homens, terras e animais, envolvidos no comércio de tropas, como as mais diferentes espécies de tipos humanos que atuaram nessas condutas, sob paga de jornal, com outra forma de remuneração qualquer ou até mesmo sem esta remuneração, submetidos

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Período entre a tomada da Vila do Rio Grande, capital do Continente, pelas tropas espanholas, em 1763, até 1777, ano da sua retomada. Durante a Dominação Espanhola, o Continente do Rio Grande de São Pedro luso ficou reduzido ao quadrante nordeste do atual Rio Grande do Sul.

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a trabalho compulsório, como os escravos ou os indígenas administrados (Garcia, 2000). A designação “tropeiro” também agrupa tanto homens que tinham por função conduzir gados diversos aos seus mercados – sendo, portanto os animais a mercadoria em questão – quanto aos homens que conduziam mercadorias ao lombo das bestas, semelhante a um comerciante de gêneros diversos, mais próximos de mascates do que de especialistas na condução de animais indômitos. Neste segundo tipo de comerciantes, mercadores de gêneros diversos estão os tropeiros estudados por Alcir Lenharo, em As Tropas da Moderação (Lenharo, 1979). O termo “tropeiro” homogeneíza as diferenças que estão expressas nos documentos relativos aos encarregados do transporte de tropas desde o sul. Como a documentação consultada não utiliza, normalmente, a palavra “tropeiro” para designar homens que transitavam pela Colônia nos três primeiros quartéis do século XVIII, optou-se por não utilizá-la aqui. Antes, os documentos paroquiais indica-os como “condutores” de tropas ou “peões na conduta” de algum outro homem. Assim também se auto-designam estes homens. O termo “tropeiro” é reservado à documentação oficial, escrita por funcionários vindos de Portugal – como André Ribeiro Coutinho – controladores, mas não praticantes destas atividades. A palavra “tropeiro” será abandonada aqui, portanto, inclusive para evitar a já aludida bissemia e a confusão entre a sorte de homens que se pretende estudar e os comerciantes de gêneros diversos. Como já visto, vários alegam “viver de andar pelos sertões”. Será usado aqui o termo “condutor de tropas” para designá-los. Ainda assim, não se desfaz a pseudohomogeneidade dessa categoria. Sem dúvida alguma, havia homens de diferentes condições sociais atuando nestas empreitadas, distinções estas que se pretende demonstrar nos exemplos abaixo, fruto do cruzamento dos dados extraídos de

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documentação de diferente natureza. Vejam-se pois os casos que se seguem.

– Bento de Oliveira: pardo forro, filho natural de um preto cativo, Manuel e de uma índia administrada, Serafina. Ostenta o sobrenome de seu antigo amo. Era natural de Taubaté. Teria em torno de 24 anos no ano de 1753, quando se casou com Angélica, crioula forra natural da Vila de Rio Grande, filha natural de Felipe e Teresa de Jesus, negra mina solteira. Conduziu tropas no caminho da Serra para Miguel Félix de Oliveira, “administrador que foi de sua mãe”. A julgar pelas testemunhas que depõem em seu casamento, teria vindo para os campos de Viamão com pouca idade, por volta dos 9 anos, na companhia de seu amo, Miguel Félix de Oliveira. (AHCMPA. Autos Matrimoniais de Bento de Oliveira e Angélica - 1753)

– Miguel Félix de Oliveira: natural de Taubaté, casado com Maria da Silva Moraes, ambos livres. Como testemunha do casamento de Bento de Oliveira, alega “ter negociações nestes Campos de Viamão”, ao passo que os outros depoentes e o próprio Bento de Oliveira, dizem que o noivo conduziu tropas para Miguel Félix. Adivinha-se aqui a natureza dos negócios de Miguel Félix. Em 1756 casou um filho seu, Francisco Félix da Silva com Angélica, natural de Pindamonhangaba, também livres. As núpcias se deram em Viamão. Por algum motivo, Miguel Félix não estava satisfeito com o casamento de seu filho, pois, quando depôs sobre o estado de solteiro de Francisco Félix, alega que irá dizer somente a verdade em virtude de seu juramento, pois o faz “sem intente algum de casar seu filho com a dita”. Angélica, a noiva, por não ser natural da localidade ou por não estar vivendo ali na companhia de seus pais, necessitou também de testemunhos de seu estado de solteira, apesar de ter somente 13 anos. Os depoentes de Francisco Félix são os mesmos de sua noiva, incluindo-se aqui o próprio Miguel Félix. Francisco, diz viver nas terras de seu pai, nos Campos de Cima da Serra. De sua ocupação, quando testemunha para seu próprio filho, Miguel

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Félix alega viver de sua fazenda, em contraste com os negócios alegados no depoimento para Bento de Oliveira. (AHCMPA - Autos Matrimoniais de Bento de Oliveira e Angélica - 1753 e Autos Matrimoniais de Francisco Félix da Silva e Rita Nunes de Siqueira - 1756).

– Bento Xavier de Souza: pardo forro, filho de Francisco Xavier, escravo e Ana do Rosário, parda forra, natural do Rio de Janeiro, Candelária. Para o seu casamento com Ana da Costa, parda forra, filha de pardos forros, natural de Laguna, diz que “de idade de 8 para 9 anos saíra de sua pátria na companhia do Coronel de Cristóvão Pereira de Abreu para estes Campos de Viamão por onde tem andado a melhor de 10 anos sem mais tornar à sua pátria”. Uma de suas testemunhas, João da Silva, diz que conheceu o justificante quando foi ao Rio de Janeiro “na condução de uma tropa de gado do licenciado José Tavares” e que não tinha ele mais que 8-9 anos”(AHCMPA, Autos Matrimoniais de Bento Xavier de Souza e Antônia da Costa - 1756). – Manuel de Barros Pereira: filho de Manuel de Barros e Margarida de Bastos. Natural da Ilha de Santa Maria. Casou-se somente aos 60 anos, com uma açoriana da qual não teve filhos (Neis, 1975: 39), ainda que tenha se justificado solteiro em 1759 e ter tido pelo menos uma filha, Margarida da Exaltação, cuja mãe era uma escrava sua. Nos depoimentos das testemunhas do seu estado de solteiro, é dito que andou conduzindo tropas com Cristóvão Pereira de Abreu e em condutas próprias. Possuía uma sesmaria de três léguas por uma légua nos Campos de Viamão – localidade da Guarda de Santo Antônio, e outras terras nos Campos de Cima da Serra, junto ao Caminho das Tropas. Esteve presente na empreitada de abertura deste caminho, quando tinha idade em torno de 12 anos. Em 1735 aparece numa listagem gerada na Vila da Laguna, transcrita por Borges Fortes, como um dos condutores de cavalhadas que não puderam passar pelo bloqueio promovido pelos “índios dos padres”. No Rol dos

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Confessados de Viamão – 1751), as duas propriedades ainda estão em seu nome, sendo que contava, nesta época, com no mínimo 10 escravos. Não se pode saber o número exato pois o documento está danificado no trecho que arrola os escravos em uma destas propriedades. Sua filha casou-se contra a vontade do pai com Inácio José de Mendonça, pardo forro, sesmeiro e detentor de patente militar. Considerando que o noivo de sua filha já era duas vezes viúvo, com filhos nos dois casamentos, filhos em relações extra-conjugais e ainda era filho bastardo de um padre com uma escrava, imagina-se os motivos de Manuel de Barros Pereira em não desejar tal matrimônio. (Neis, 1975: 36-38; Fortes, 1941: 165; Carta de sesmaria in RAPM, 1933: 215-216; AHCMPA. Rol dos Confessados de Viamão - 1751; Autos Matrimoniais de Inácio José de Mendonça e Margarida da Exaltação - 1755; Autos de Justificação de Solteiro de Manuel de Barros Pereira - 1759; Autos de Jusitificação e Impedimento de Antônio Lopes de Negreiros e Quitéria Rodrigues de Godói; Autos Matrimoniais de Inácio Rodrigues Pais e Maria Tomásia - 1761). Retornando ao intuito pelo qual se colocaram aqui estas quatro breves histórias que por vezes se confundem umas nas outras, verificam-se, além da já mencionada migração para o Continente movida pela presença dos gados e das relações de parentesco que tiveram esta atividade como propiciadora, as relações sociais entre gente de diferentes posições. Dos exemplos acima colocados, extrai-se que a atividade de “condução de gados” oculta em seu interior diferenças sociais gritantes. Não se pode considerar como pertencentes a um mesmo estrato social o “negociante” Miguel Félix de Oliveira, condutor de gados, tal qual seu filho, detentor de terras e senhor de escravos – mesmo que pouco numerosos – e o outro Oliveira, o Bento, filho de uma administrada de Miguel Félix, dito pardo forro, casado com uma mulher também parda forra e que nas viagens pelos sertões estava em uma posição subalterna ao seu amo Miguel Félix, quiçá ainda a Francisco Félix da Silva. Tampouco entre homens que conduziram gados, que atuaram “na conduta de

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Cristóvão Pereira de Abreu”, como é dito nos Autos Matrimoniais, pode-se divisar um grupo homogêneo. Composto de homens livres da península, portugueses e espanhóis, soldados de diversas patentes que serviram em Sacramento, São Paulo e no próprio Continente, homens com aptidões mecânicas ou “aventureiros” que deixaram seus locais de origem em troca desta atividade e de promessas de terras. Há também as instigantes categorias “pardo” e “pardo forro”, contempladas no estudo de Sheila de Castro Faria A Colônia em Movimento (1998). No contexto das condutas de tropas, percebem-se pardos que são filhos de indígenas assim como ex-escravos e descendentes de escravos. Assim como sesmeiros, proprietários de escravos, proprietários de lavouras e homens bons da Vila da Laguna, como os já mencionados João de Magalhães e Agostinho Guterres (AHCMPA – Autos Matrimoniais). Disso resultam as categorias explicativas “tropeiro” ou “condutor de tropas” como insatisfatórias para dar conta da complexidade das relações sociais e das distintas posições e status dentro deste grupo. Este é um dos problemas que se colocam a esta investigação, e a possibilidade de solução que se percebe, passa, cada vez mais, por uma análise micro-histórica, descendo às minúcias dos textos dos documentos e cruzando os dados de fontes de diversas naturezas, perseguindo os sujeitos dessa história através de seus nomes. A utilização de uma base de dados que tem o nome dos sujeitos dessa história como indicador principal e ferramenta de busca tem sido o principal instrumento para a reconstrução de suas trajetórias. Como era de se esperar, aos mais destacados homens dessa sociedade corresponde uma farta documentação produzida por várias instituições, que vão desde as oficiais, tais como próprio governo do Continente, de São Paulo, Rio de Janeiro ou mesmo o Conselho Ultramarino e as instituições eclesiásticas, onde figuram constantemente como nubentes, testemunhas em processos matrimoniais, do juízo eclesiástico ou padrinhos de batizados.

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Na medida em que as pessoas ocupam posições mais afastadas das esferas de poder, começa a escassez de documentação. Talvez excetuando-se os Róis dos Confessados, onde são arrolados todos os fregueses de confissão, autos de matrimônio e registros de batizados, os setores inferiores da sociedade não têm seus nomes registrados com freqüência na documentação. O mesmo serve para as mulheres. Estas tendem a ter mais menções na documentação, quanto mais posses ou prestígio têm seus familiares, aparecendo como herdeiras ou testamenteiras. Ainda há a dificuldade de encontrar-se inventários para o período anterior a 1763, já que os livros se perderam possivelmente quando da invasão espanhola na Vila do Rio Grande. Esta tarefa, perseguir os agentes sociais pelo seu nome próprio, não é sempre fácil. Apesar de Ginzburg dizer que “O fio de Ariadne que guia o investigador no labirinto documental é aquilo que distingue um indivíduo de um outro em todas as sociedades conhecidas: o nome” (Ginzburg, 1989: 174)

esta não é a realidade do Continente do Rio Grande São Pedro no período colonial nem das regiões adjacentes, repetindo-se em outras áreas da Colônia ou da Península (Faria, 1998: 114; Scott, 2001). Filhos com nomes idênticos ao dos pais ou mães, mulheres isentas de sobrenome, cujo nome é composto por nomes de santos e de elementos religiosos, como Maria da Anunciação ou a já citada Margarida da Exaltação e multiplicidades de homônimos tornam esta tarefa árdua. Também a imprecisão dos párocos no ato dos registros aumentam estas dificuldades. Maria de Jesus num documento, noutro torna-se Maria do Espírito Santo, e tem-se certeza de ser a mesma mulher, dado ser o mesmo marido, a mesma filiação e com os mesmos filhos e escravos (Hameister 2001c). Se para Deus basta o nome de batismo para reconhecer as ovelhas de seu

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rebanho, para o historiador isso não é suficiente! No presente momento, tem-se na base de dados nada mais nada menos que dez Antônio Rodrigues vinculados ao Continente do Rio Grande de São Pedro, sem que se possa dizer que são o mesmo sujeito. Alguns já puderam ser discernidos por referências a eventos anteriores ou a filiação e origem. Os Antônio Rodrigues já foram mais de dez. Para alguns, tem-se a desconfiança de ser a mesma pessoa de outro registro, mas a certeza ainda não veio (e talvez não venha nunca). Através dos vários registros documentais gerados neste período, percebe-se, para a nascente sociedade sulina, a presença de várias categorias e sub-categorias sócio-econômicas que, ao mesmo tempo segregam os homens e os colocam em contato. Esta sociedade sulina, a exemplo do restante da Colônia, não se resumia às relações dicotômicas senhor-escravo. Tampouco era o território de poucos braços negros como a historiografia tradicional do Rio Grande do Sul criou, território de homens livres, bravos e altivos, que pouco tinham a ver com as diretrizes básicas de Portugal para a sua Colônia. Resguardadas as particularidades, inerentes à grande “colcha de retalhos” de relações sociais, políticas, de trabalho e econômicas da sociedade colonial, as terras meridionais eram apenas mais um “retalho” nesta colcha. Nem ao menos era o local onde o contato entre portugueses e indígenas se fez com atitudes quase que respeitosas, num entrelaçar de culturas – facilitado pelo anterior “adestramento” dos indígenas levado a cabo pelos padres jesuítas em seus aldeamentos (Azara, 2000; Neumann:1996): “A implantação dos aldeamentos marcou uma série de alterações na política de conversão. Passa-se a fixar os indígenas em um mesmo local: todos são ‘índios’, independente de suas etnias e tradições culturais. A aldeia não é mais apenas um espaço indígena, é agora um espaço criado pela cultura cristã. A aldeia foi a implantação física da Missão. A aldeia é um projeto pedagógico total.” (Neumann, 1996: 49)

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Existiram conflitos e negociações entre os colonizadores e os indígenas, fossem eles catequizados ou gentios. A cooptação dos gentios minuano foi feita através do comércio de animais e gêneros: “Os índios Minoanos aqui vão se conservando uma amizade (...) e me tem vendido muitos cavalos” (Carta de Manuel Gomes Barbosa a ao Vice-rei Marquês de Angeja – 1718, apud Monteiro 1937: 66). Tal comércio estabelecido envolvia dois produtos coloniais também utilizados pelos traficantes no lucrativo comércio de escravos africanos (Florentino, 1997; Curto, 1999; Miller, 1999): “... e como todo o País que corre de Monte Vídio até a Colônia pelo espaço de trinta léguas de campanha é habitado pelas duas nações charruas e minuanes que se conservam neutrais, não se pode temer que se interessem em favor dos Castelhanos principalmente tendo os Portugueses um modo tão fácil de os contentar e adquirir com o tabaco e as águas ardentes que eles pagam a preço de Cavalos de que muito necessitamos.” (Carta do Conde das Galvêas a Diogo de Mendonça Corte Real, apud Monteiro, 1937 v. 1: 89 – documento datado de 1736. – grifo meu)

Valiam-se também do reconhecimento da autoridade de seus líderes por presentes que simbolizavam a importância que tinham e pela aproximação através da atuação da Igreja, haja vista o exemplo abaixo: “Mandando-me V. Ex.a dizer o quanto S. M. queria que se fizesse amizade com os bárbaros Minuanes e se tratassem com tal prudência e modo, que eles se reduzissem á nossa Santa Fé e amizade do Estado e que eu assim o executasse; pus tanto cuidado que vindo até o Estreito por conselho do Coronel Cristóvão Pereira, os tratei e fiz presentes, pela Fazenda Real, proporcionados aos seus usos e em nome de S. M. dei a um a nomeação e o bastão de Capitão e o Padre Fr. Sebastião de Milão, pode reduzir uma mulher e seus filhos, com o marido (por contrato temporal) ao grêmio da Igreja.” (Coutinho, 1951: 332 – documento datado de 1740 – grifo meu)

Para o Continente do Rio Grande de São Pedro, em seus momentos iniciais, observam-se traços gerais que permeiam o povoamento anterior ou simultâneo de outras regiões, quais sejam, o apossar-se de terras indivisas com ou sem homologação

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dessa posse, a exploração da mão-de-obra autóctone, dentro ou fora dos parâmetros da legalidade (Garcia, 2000), sendo esta substituída, ainda que não totalmente, por braços escravos e a exploração extensiva dos recursos da região. Estas características forneceram elementos para uma acumulação inicial nas novas áreas ocupadas, assim com os elementos para diferenciação e hierarquização social entre os possuidores de bens e prestígio e os despossuídos, propiciada pela distribuição criteriosa das mercês reais. Como já dito, esta diferenciação social é um dos pilares da organização dessa sociedade. Não existindo somente as diferenças dos estatutos de livres e escravos, ficava dada a diferença entre os próprios homens livres: os que tem acesso à terra, às patentes militares, aos cargos da Coroa – com os prós e percalços que lhes são correlatos –, à administração de indígenas, à cobrança de fiscos e taxas. Também nestas questões a diferença entre homens livres fazia-se sentir. Novamente, portanto, percebem-se as tais diferenças entre homens “iguais”. Estes elementos, observados no extremo-sul da Colônia, também foram percebidos para outras regiões coloniais (Schwartz, 1988: 21-56; Fragoso, 2000: 4552). Retornando à questão dos “condutores de tropas” e suas diferenças, acreditase que, de momento, acrescentar “senhor”, “camarada” ou “escravo” a este termo sirva como paliativo para designar as distinções, até que se equacione este problema de categorias explicativas. Esta não será tarefa fácil, já que além de senhores de escravos, escravos e índios administrados, as fontes oferecem categorias outras ainda desvendadas nas minúcias das relações inerentes a estas desinências. As mais comuns são “agregado” e “camarada”. Mesmo que se chegue a um consenso sobre o significado dessas denominações, tem-se certeza que, no máximo, se obterá uma aproximação da complexidade das relações que se estabeleceram no Continente do Rio Grande de São Pedro. Sobre outro aspecto, é certo que há uma clara sobreposição de atividades,

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como no caso do licenciado4 – praticante da medicina com algum aprendizado técnicoteórico, sem, no entanto, ser médico – José Tavares, citado em um depoimento para matrimônio como organizador ou proprietário de uma conduta de animais para o sertão (AHCMPA - Autos Matrimoniais de Bento Xavier de Souza e Antônia da Costa – 1756). Também há na mesma situação o sapateiro José Machado da Silva (AHCMPA. Autos matrimoniais de José Machado da Silva e Teresa Maria de Jesus – 1758), o Padre Manuel Luís de Vergueiros (BN – DH v.II. 1928b: 139), além de vários militares da companhia de Dragões ou das companhias de Ordenanças que praticaram também a conduta de animais (AHCMPA. Autos Matrimoniais) Essa sobreposição de atividades, independente de haver uma especialização em determinadas profissões ou ofícios mecânicos, assim como as categorias sociais difusas de “agregado” e “camarada” denotam a existência de uma frágil divisão do trabalho nesta região da Colônia com sua sociedade ainda em formação. Isto não quer dizer que, através de determinados indicadores, as posições já não tivessem alguma definição, como no exemplo já citado do casamento de Félix Ribeiro. Sua noiva, ainda que filha de Capitão, sesmeiro e dono de escravos continuava a ser vista como parda por essa sociedade, ao passo que às filhas do Capitão-mor Francisco de Brito Peixoto, ainda que filhas de índias fossem, jamais pesaram os apodos de índias, pardas ou mestiças. Esta sociedade em formação, ao que se percebe, reinterpretava as origens étnicas de seus membros de acordo com a posição ocupada pelos membros da família na hierarquia social. Há que se ter muito cuidado, feita esta observação, ao designar como “branca”, “negra”, “parda” ou “índia” uma pessoa. Antes de ser uma alusão à sua pigmentação de pele, como dito no já citado trecho da obra de Mattos e na obra de Faria, é uma

4 Neste caso específico, licenciado para a prática da medicina. Ou seja, tendo passado por uma universidade, não atingiu o grau de doutor. Cf. Bluteau s.d., verbetes “licença” e “licenciado”.

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referência ao status social e ao grau de proximidade com as instâncias de poder político, social e econômico desfrutado, reafirmando tal distinção entre homens livres.

3. Os animais Já esboçou-se aqui acerca da ocupação deste território, dos homens que o habitavam, das relações sociais existentes nesta região, mas pouco foi dito acerca dos animais, exceto que estavam lá. O que se pretende agora é discorrer um pouco sobre cada um dos tipos de animais de grande porte fornecidos pelo sul às outras regiões da colônia, em pé ou sob forma de produtos deles extraídos. E antes disso, lembrar o momento em que se “dá calor” à exploração e à ocupação dos territórios meridionais. Para o melhor entendimento dos termos de uso regional ou do período estudado, consultar o léxico em Anexo I. Na década de 1690, o ouro havia sido descoberto nas Minas Gerais, provocando deslocamentos populacionais para essa região e mais do que isso, fomentando o desenvolvimento de um mercado para os produtos produzidos na própria Colônia e de produtos importados. Os primeiros, utilizados em grande escala pelo total da população e os segundos mais voltados para o luxo e ostentação dos setores que enriqueceram com a extração do ouro e outras atividades a ele correlacionadas. Charles Boxer, em A Idade do Ouro do Brasil, apresenta as grandes transformações pelas quais passaram todas as regiões da Colônia a partir da exploração das jazidas do metal. Estas regiões suas economias locais dinamizadas com o estabelecimento de um grande, ainda que pouco especializado, mercado consumidor (Boxer, 2000). As regiões sulinas não escaparam dessa grande inflexão na economia colonial. Ao contrário, ao que tudo indica, a exploração comercial das mercadorias animais só se tornou possível porque passou a existir um mercado capaz de consumi-las.

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Com já dito ao início, o conhecimento da existência dos gados “dos padres” nas pastagens sulinas já havia sido relatado às autoridades portuguesas desde as primeiras décadas da segunda metade do século XVII. Mas ficaram praticamente intocados, até a formação deste mercado consumidor. Se os paulistas, ávidos por riquezas, cruzaram os territórios meridionais para saquear as Missões e prear índios, parece impossível que não tenham percebido a infinidade de animais que pastavam aos campos. Se não os levaram junto é porque não tinham o que fazer com eles. Antes do ouro, gados no pasto eram apenas gados no pasto e não riqueza traduzível em valores monetários. Assim, como uma “poupança” que a cada período de reprodução aumentava, os gados ficaram no sul, até o momento em que foram postos em movimento para as regiões mais centrais da Colônia. Não por acaso, o Caminho das Tropas foi mandado abrir na década de 1720 e não é acaso também que os animais que predominaram ao longo desta rota e por um longo período foram os cavalos, animais de transporte de homens e cargas. Sobre este assunto se discorrerá mais detidamente terceiro capítulo. Mas deixa-se claro aqui que, as transformações que ocorreram na economia a partir da mineração do ouro foram o motor da exploração comercial dos gados e por conseqüência desta, do próprio povoamento de tudo o que existe ao sul da Vila da Laguna. Não foi, portanto, este povoamento e esta exploração dos gados um movimento desconectado do que ocorria na Colônia como um todo e sim uma extensão dos efeitos provocados pelo boom da mineração. A informação da existência dos gados detida pelos paulistas, é bem provável, teria favorecido ao próprio Brito Peixoto, aparentado com a família Leme (Fortes: 1941, segundo apêndice) – uma das famílias paulistas que montou bandeiras para a preia de índios em territórios missioneiros. O declínio da mineração não levou à quebra desta economia baseada na exploração dos animais. A crise da mineração não provocou a decadência da região

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das Minas Gerais, pelo contrário, esta passou a funcionar como abastecedora de alimentos e produtos coloniais para outras localidades, havendo o deslocamento da mão-de-obra empregada na mineração para o setor agrário (Fragoso & Florentino, 2001: 79). Mesmo com o redirecionamento do eixo dessa economia da exportação para o abastecimento interno, a demanda por animais de carga e transporte seguiu e mesmo aumentou (Ellis Jr., 1950), bem como de bovinos para a alimentação. Foi nesse período situado entre o ápice da mineração e seu declínio, com a ativação do mercado interno à Colônia, que se deu o surgimento da sociedade meridional.

Os gados vacuns Desnecessário dizer das utilidades da carne bovina, grande fonte de proteínas. Mas é sempre bom lembrar dos outros subprodutos de origem bovina que muitas vezes passam desapercebidos no dia-a-dia. Dos gados bovinos eram extraídos, o couro e os sebos, produtos de grande importância para a vida cotidiana. Dos sebos eram feitos os sabões, as velas e certos combustíveis. Também eram feitas as graxas para impermeabilização dos couros e tecidos para os velames de embarcações. Dos couros, calçados, parte do mobiliário e vestimentas. Pequenas embarcações e selas para a montaria. As barracas de campanhas militares e de acampamentos de viajantes. Os toldos de carretas. As bolsas para transporte de produtos vários. Os invólucros de mercadorias de exportação como o tabaco eram, muitas vezes, o próprio couro curtido e impermeabilizado com os sebos também extraídos dos bovinos. O couro, durante o século XVIII, consistiu em excelente produto de exportação. Além dos usos já mencionados, a nascente indústria européia mecanizada demandava por correias de transmissão. O couro era a matéria prima básica para estas peças fundamentais nos mecanismos industriais. Evidência disso é que sempre

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os couros constaram como um dos principais produtos de exportação, junto com o açúcar e o tabaco. “(...) e suas peles formavam um dos mais volumosos artigos de exportação brasileiros. Todos os rolos de fumo brasileiros exportados para Lisboa eram envolvidos em peles - em uma média de vinte e sete mil e quinhentos rolos quando o ano era bom - além da vasta quantidade de peles exportadas para a manufatura de calçados. O moderno historiador brasileiro, Capistrano de Abreu faz-nos lembrar até que ponto os fazendeiros e criadores do interior viveram no que se poderia chamar a Idade do Couro. As portas e camas - quando as tinham - de suas cabanas, seus odres de água, seus alforjes para o alimento, sua armadura para cavalgar nos matagais, e a maior parte das outras coisas que usavam, eram feitas, em todo ou em parte de peles curtidas.” (Boxer, 2000: 250)

À fundação de Sacramento, seguiu-se a exploração dos recursos de seu entorno. Pobre em madeiras, pobre em minérios, a margem setentrional oferecia como possibilidade a exploração das miríades de gados das Vacarias del Mar5 . A importância comercial dos couros obtidos fica evidente, já que uma das primeiras taxas instituídas pela Coroa lusa específicamente para a esta estremadura foram “Os Quintos dos Couros de Sacramento”. O primeiro triênio deste imposto criado em 1699 foi gerido pelos representantes da Coroa, passando, logo a seguir, a ser adjudicado sob forma de contrato e leiloado a particulares no Rio de Janeiro. Os couros eram extraídos in loco, com métodos de curtume um tanto toscos. O processo consistia em, uma vez esfolado o animal, seu couro estaqueado ao campo, com bastante tensão para secar ao sol. Existindo caieira nas proximidades, a cal era sempre bem-vinda, pois sua aplicação acelerava o processo de desidratação da pele, tal qual o sal – um produto caro. Além de queimar e remover os cabelos, ou seja, os pêlos do animal. O couro em cabelo possuía valor comercial inferior ao couro isento de pêlos (Simonsen, 1957: 170-172). A exploração da cal, em geral oriunda de

5 Campos litorâneos situados entre o Prata e a Lagoa Mirim, na chamada “região dos índios Tape”. A maior parte desta área está hoje em território uruguaio.

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depósitos naturais de conchas ou de formações arqueológicas conhecidas como sambaquis ou concheros, se fez associada à exploração dos couros e dos sebos, já que também substituía a soda cáustica na feitura dos sabões. Tal era a profusão de animais e a facilidade em obtê-los que a documentação refere-se ao ato de courear em campo como “recolher os frutos da campanha”. Assim se expressa Simão Pereira de Sá, quando alude a esta atividade. (Sá, 1993: 39). Embutidos nos vários motivos que teriam espanhóis e lusos para suas peleias na fronteira sul, os couros foram constantes motivos das pequenas contendas entre eles. Simão Pereira de Sá relata um acontecimento passado na década de 1720, quando a frágil paz da região era discutida nas mesas diplomáticas entre Portugal e Espanha. Um assalto nos campos resultou em uma batalha “particular” devido ao saque de um comboio de carretas que recolhiam os frutos da campanha. “A prudência com que se toleravam alguns insultos foi animando o atrevimento [dos castelhanos], até que cega e descomedida a ambição chegou a empreender nas vizinhanças da Praça o delírio de nos tomarem sete carros, e catorze escravos que se recolhiam com os frutos da Campanha. (...) Pertenciam aqueles bens a Cristóvão Pereira de Abreu o qual instigado da violência, congregou oito amigos de resolução, e montados em soberbos brutos, saíram a campo (sem vênia do Governador) a restaurar o furto, que acharam intacto na posse dos agressores”. (Sá, 1993: 57)

Os gados muares Na documentação sobre esta porção meridional do território luso, vastas são as referências aos gados muares. Na primeira metade do século XVIII, devido ao boom da mineração, tornou-se necessária a utilização de animais aptos para tiro e carga, para a vazão dos produtos de exportação e para a movimentação das cargas que abasteciam o interior da Colônia. A predileção por muares para o transporte de cargas no interior da Colônia é justificada pelas características físicas deste animal. Fruto da cruza entre asnos e

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eqüinos, os muares associam a robustez muscular e resistência do esqueleto do asno com um porte maior, herdado das características dos cavalos (Canedo, 1993: 155). Em princípio, esse hibridismo não ocorre in natura. Para que estes animais existam, é necessária a ingerência humana no processo de reprodução. É um processo complexo, que passa pela separação dos rebanhos de distintas espécies - os asininos e os eqüinos - sub-repartidos por sexo, isolados dos reprodutores de outros animais de sua própria espécie, requerendo vigilância constante para não pôr a perder o burro reprodutor (burro hechor). Este é o animal mais caro presente nos inventários de fazendeiros, chegando a valer 15 cavalos mansos. O alto preço deste animal é devido ao adestramento e tratamento especial desde o seu nascimento, para posterior cobertura de éguas, também condicionadas desde filhotes à aceitação dos burros reprodutores. As éguas para este tipo de produção receberam também uma designação própria, chamadas de éguas de cria, éguas de cria de mulas, ou éguas de ventre. Em princípio, esse hibridismo não ocorre de maneira natural. (Müller, 1954: 229-237 e 313-324; Pont, 1986: 859-860; Gil, 2000) A capacidade de carga deste animal, em citação de Eschwege em Myriam Ellis, varia de 6 a 12 arrobas . Esta autora conclui por caro este tipo de transporte, sendo o preferido talvez por ser o único possível de embrenhar-se em picadas íngremes do interior (M. Ellis, 1950: 505). O fornecimento de mulas para as regiões mais centrais da Colônia foi praticamente dominado pelo Continente do Rio Grande de São Pedro, haja vista as Cartas Régias de 1761, 1764 e 1765 (docs. 3, 4 e 5 em Anexo III), que reafirmavam o impedimento da cria de mulas em outras regiões da Colônia e regulamentavam a sua produção nos pastos sulinos. Tem-se motivos para acreditar que esta produção somente foi instituída ou alcançou patamares comercializáveis na década de 1750. Isto será discutido nos capítulos finais.

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Acrescenta-se aqui mais um dado, para indicar serem estes animais produzidos para o abastecimento de meio de tração e carga para regiões mais centrais da Colônia: por características de relevo, os muares jamais foram utilizados em grande escala no Rio Grande de São Pedro. Para a tração de carretas com carga através dos terrenos relativamente planos da pampa sulina os bois mansos eram animais mais eficientes, capazes de tracionar um peso muito maior do que o que seria possível para os muares. Encontram-se em Simão Pereira de Sá referências a comboios de carros de boi carregando couros no território entre a Colônia do Sacramento e a Barra da Lagoa dos Patos (SÁ, 1988: 57). Para a montaria, os cavalos apresentavam maior rendimento nesse mesmo relevo, por serem capazes de maior velocidade e por seu trote mais macio que o dos muares. Há também um fator cultural sobre o qual não se entrará em maiores detalhes por não ser alvo deste estudo: as populações sulinas, por algum motivo, desprezavam a montaria tanto sobre mulas como sobre éguas, fato este notado na primeira metade do século XIX por Auguste Saint-Hilaire: “Consideram humilhante usar a égua como montaria, e sendo esses animais encontrados facilmente, não se vendem por mais de uma pataca ou pataca e meia. O barão as compra em toda a vizinhança unicamente para matá-las; manda curtir-lhe o couro, fabricando sabão com o sebo” (Saint-Hilaire, 1987: 23)

Talvez o período da Dominação Espanhola tenha sido uma exceção. A tomada da Vila de Rio Grande, inviabilizou o acesso dos navios aos únicos dois portos do Continente. O primeiro, a própria Vila do Rio Grande, pela presença dos espanhóis, o segundo, porto lacustre onde hoje se situa a cidade de Porto Alegre, inacessível por estar o canal de entrada da Lagoa dos Patos dentro dos limites de tiro dos castelhanos que tomaram Rio Grande e a porção norte do canal. O abastecimento dos Campos de Viamão passou a ser feito pelo porto da

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Laguna, e as cargas que lá desembarcavam dos navios eram trazidas por pequenas embarcações ou por via terrestre ou num trajeto de mais de 400 km. Neste período, pode ter ocorrido a utilização mais intensa de muares nas rotas sulinas. O comércio dos muares foi uma constante no período colonial, e, ao que parece, declinou apenas no terceiro quartel do século XIX, segundo o observado por um diplomata francês (D’Ornano, 1996: 82 e 83) e dito por Alfredo Ellis Jr. (Ellis Jr, 1950). Apesar desse declínio, ainda na primeira metade do século XX as regiões interioranas do Rio Grande do Sul produziam e vendiam muares para São Paulo e Minas. Na região de Passo Fundo e Vacaria ainda é possível encontrar senhores idosos que dizem ter sido birivas, designação regional dada ao peão muladeiro que trilhava com tropa as rotas desde o sul até o interior de São Paulo. A necessidade de transportes terrestres no interior da Colônia, seja para o abastecimento interno, seja no transporte de alimentos ou ainda no escoamento de produtos de exportação desde os seus locais de origem até portos fluviais ou marítimos. Também eram eles a executar toda a sorte de trabalhos que necessitam de tração animal, nas moendas, nos engenhos e no abastecimento de água. Seu amplo emprego foi responsável pela longevidade do fluxo de muares que eram transportados indômitos desde os campos sulinos até a região de Sorocaba. De lá eram re-comercializados e partiam rumo as unidades consumidoras da mercadoria “muares”. Os gados cavalares

Os cavalos, também com origem nos animais dos padres da Companhia, multiplicaram-se à lei da natureza desde sua introdução no Continente, em data imprecisa durante o século XVII. No já citado documento datado de 1663, escrito

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Simão de Vasconcelos, há uma clara alusão à existência de cavalos entre o Rio da Prata e o Rio Tramandaí, nos Campos de Viamão, assim como desde o início do século XVIII, os habitantes da Laguna investiam a estes prados para a captura dos cavalos. O cavalo é, por excelência, animal para o transporte humano e apto também a condução de pequenas cargas. Se foi preterido para o transporte de cargas pesadas, foi devido à fragilidade de seu esqueleto, pouco adaptado ao trilhar de caminhos irregulares. Uma fratura em um cavalo significava, nesse contexto, a morte do animal, ou por decorrência dos ferimentos ou por sacrifício praticado com o intuito de pouparlhe sofrimento. Para os animais cavalares, houve sempre os exércitos de Sua Majestade como consumidores regulares. Eram tão necessários que a Coroa não descuidou de garantir sua produção nos campos sulinos através das já referidas cartas régias ou com o estabelecimento de duas Estâncias Reais, Bojuru e Torotama, uma em cada margem da Lagoa dos Patos, destinadas a juntar o gado reiúno e zelar pela reprodução dos cavalos reais. Mais do que meio de transporte, cavalos significavam armas para o exército, armas estas responsáveis pela supremacia bélica da cavalaria ante a infantaria. Durante o cerco de 1735 à Sacramento, a falta de cavalos foi um dos problemas enfrentados. Primeiro porque os milhares que haviam sido arrebanhados no entorno da cidade foram saqueados pelos castelhanos e segundo porque o bloqueio impedia que cavalos chegassem com o auxílio externo. O exército de Sua Majestade adquiriu cavalos nas campanhas do Continente do Rio Grande de São Pedro e homens com relações pessoais e comerciais bastante estreitas com os índios da etnia minuano. Estes homens foram convocados para que, contando com a ajuda do gentio conseguissem introduzir os cavalos necessários à manutenção daquela Praça (Monteiro, 1937 v.I: 227-360). As milícias e tropas particulares também foram consumidores da mercadoria

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“cavalos”, bem como os grandes senhores e suas famílias, que os utilizavam para o transporte pessoal. Não se pode desconsiderar o status social associado aos cavaleiros no Antigo Regime (houve tempo em que apenas homens bem nascidos podiam montar em cavalgaduras – inclusive as mulas – sendo os camponeses obrigados a andar ao rés do chão, mesmo possuindo animais, deveriam guiá-los pelas rédeas, indo à frente, ou tangê-los com bastões, indo atrás). Desconhece-se a validade destes costumes e legislação para os territórios coloniais, mas para o território sulino, tem-se a certeza de que, ao menos na prática, isto não se verificou. Talvez pela necessidade de que cada homem, cada colono, ou mesmo cada homem escravo, fosse também um “soldado” na defesa do território, tanto de ataques indígenas como do inimigo espanhol. Talvez pela necessidade premente de montarias para o trato com os gados, não foi incomum, gente de todas as categorias sociais, montar cavalos para exercer suas lides com os mesmos, haja vista os exemplos de escravos, pardos forros e homens brancos e pobres que atuaram como “coletores de gados”, de “frutos da campanha” e condutores de tropas. Estas atividades requeriam montaria. É bem possível que alguns destes homens de categoria social inferior pudessem até mesmo ter sido proprietários de alguns animais. Às diferentes categorias de animais e suas respectivas utilizações, estão associados diferentes tipos de consumidores, sejam estes os membros de comunidades urbanas, agricultores e camponeses, ou grandes produtores rurais, milicianos e militares, senhores ricos e os pobres que viviam do seu trabalho. Se o pólo produtor desses animais possuiu uma certa limitação geográfica, a utilização deles foi disseminada por toda a Colônia. Os povoamentos interioranos no circuito centro-sul da Colônias cuja existência se deveu em grande medida ao constante fluxo de animais-mercadoria são muitos. Rio Grande, Viamão, Laguna, Lajes, Curitiba, Itu e Sorocaba são exemplos disso. Larga é a lista dos consumidores, assim como largos são os destinos dos

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animais que partiam do sul, deixando atrás de si rastros de relações sociais, econômicas e mesmo políticas que foram possíveis a partir da sua exploração comercial no território colonial. O período que aqui se estuda compreende um desenvolvimento na exploração dos gados e na consolidação de uma sociedade nas porções meridionais da Colônia. Desde o momento de abertura da Caminho das tropas, em 1727 até o período em que os castelhanos tomaram a capital do Continente, modificaram-se as maneiras de se apropriar dos gados e de seus sub-produtos. Houve alterações nos grupos onde predominavam o poder econômico e as influências políticas na região e mesmo foi possível uma maior regularização do fornecimento de sua principal riqueza, qual seja, os animais de grande porte, para outras regiões da Colônia. De tudo o que foi dito neste capítulo, que trata dos movimentos populacionais no período de formação da sociedade sulina, algumas coisas tem de ser destacadas antes de se dar prosseguimento. A primeira delas é ressaltar que a espontaneidade na ocupação desse território é questionável. Antes, ela foi motivada por problemas e questões que se colocavam para toda a Colônia bem como para o Império Português. As migrações de populações oriundas da península provavelmente estão relacionadas ao sistema de heranças lá vigente e à pouca produtividade dos solos. Os morgadios e o direito à primogenitura fizeram com que filhos segundos se transferissem para a Colônia com o intuito de fazer riqueza e angariar prestígio. Tal é o caso de Francisco Antônio Cardoso de Menezes e Souza, que se apresentava como Fidalgo da Casa de Sua Majestade. Alega ser filho segundo, vivendo somente dos seus soldos e por isso requerendo à Sua Majestade que essa importância seja paga em dobro, tendo seu pedido deferido pelo Conselho Ultramarino (RAPM, XXIV , 1933: 138-139). Os casais de açorianos, são uma tentativa de resolver dois problemas da Coroa em um único lance: o problema da superpopulação e fome que havia nas Ilhas e o

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problema de ocupação de territórios ameaçados pelos espanhóis. Em certa medida, esta estratégia foi bem sucedida, pois durante a execução dos tratados de paz nos quais que se fez valer o princípio de utis posidetis, as terras do sul, ocupadas pelos lusos que invadiam os limites espanhóis e das missões dos padres jesuítas, tinham assentados sobre elas, entre outros, os casais de açorianos. As migrações internas à Colônia correspondem ao constante movimento em busca de fronteiras abertas onde os “aventureiros” e preteridos nas heranças familiares estabeleciam nova vida e tinham possibilidades de angariar riquezas ou meios de sobrevivência que não mais eram possíveis em seus locais de origem. Outro aspecto a ser reforçado é que a sociedade do novo território ocupado tem em si características da sociedade de Antigo Regime fortemente marcadas. Novo em sua ocupação, mas velho na forma da organização social. A diferenciação social calcada na escravidão negra coloca uma forte clivagem entre os homens livres e os escravos, da mesma maneira que diferencia os homens livres entre aqueles que são ou não senhores de outros homens. As redes de reciprocidade assimétricas, ou seja, entre homens de posses e prestígios diferenciados, acentuam ainda mais estas distinções, fazendo com que existam qualidades diferentes de homens livres. O sistema de distribuição de mercês empregada pela Coroa portuguesa as torna evidentes ao mesmo tempo em que as reforça, legitima e reitera. Além disso, o Continente do Rio Grande de São Pedro não foi ocupado de uma forma inovadora. A apropriação dos recursos locais propiciou a um limitado número de famílias um entesouramento que serviu de alavanca para angariar ou manter status, qual seja, continuar na posição em que se detém mando, riqueza e privilégios em diferentes conjunturas. Na descendência das famílias que receberam sesmarias, que prearam e negociaram gados e/ou que administravam indígenas são percebidos alguns dos maiores possuidores de escravos da segunda metade do século XVIII. Padrões

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semelhantes foram encontrados para outras regiões da Colônia, sendo esta estratégia mais do que uma opção particular dos colonos sulinos: era a adaptação de uma fórmula portuguesa conhecida e aplicada em diversas localidades da América Portuguesa. Não sendo exceção, a ocupação dos territórios meridionais seguiu a regra, moldandose às idiossincrasias locais, maleabilidade esta, que lhe permitiu sobreviver ao tempo e às mudanças. Dos muitos anos que antecederam a abertura do Caminho das Tropas aos anos que cercaram a tomada da Vila de Rio Grande, em 1763, sempre privilegiando o olhar sobre os animais e os homens que os comerciavam, tentando perceber as modificações que as atividades e os grupos humanos sofreram ao longo deste período é o que tratarão as páginas que seguem.

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Capítulo II Os homens, suas famílias e a conquista do Continente do Rio Grande de São Pedro

Rotas terrestres pelo interior da América sempre existiram, desde a ocupação dos territórios pelo gênero humano. Considerando que o homem não é nativo do continente americano, toda a ocupação deste se deu através de migrações em seu interior, independente de quais tenham sido os pontos de ingresso dessas populações na América. As migrações dos grupos humanos pelo interior americano, aconteceram antes e depois da descoberta do Novo Mundo (Guidon, 1981; Brochado, 1984; Mota, 1997). Para os territórios que ficam ao sul da Ilha de Santa Catarina, não houve exceção. Índios guarani, kaingang, minuano, charrua, genoa, entre outros, que habitavam a região, trilhavam-na de norte a sul e de leste a oeste. Com a chegada dos europeus à região – e entenda-se aqui, região apenas como uma vasta extensão de terras – a existência de algumas dessas rotas passaram ao conhecimento dos conquistadores e ao registro documental escrito. Um dos mais antigos registros nesse sentido, senão o mais antigo das regiões interioranas subtropicais americanas, está no relato das viagens de Cabeza de Vaca, na primeira metade do século XVI. Esse espanhol, tendo chegado à Ilha de Santa Catarina, onde atualmente se situa a cidade de Florianópolis, resolveu, após alguns

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meses, partir para Assunción, no Paraguai, a pé, pelo interior (Cabeza de Vaca, 1999: 147-171). Determinou que um outro espanhol, Pedro Dorantes, fosse à frente, para “descobrir o caminho”. Este retornou com notícias: “Disse também que soubera pelos índios da ilha que a maneira mais segura e próxima de entrar para a terra povoada era por um rio que estava um pouco acima, chamado Itabucu, que está na ponta da ilha, a dezoito ou vinte léguas deste porto.” (Cabeza de Vaca, 1999: 155).

O caminho que foi indicado pelos índios guarani, os quais eram “lavradores que semeiam o milho e a mandioca (...) Mas também comem carne humana e tanto pode ser dos índios seus inimigos, dos cristãos ou dos seus próprios companheiros de tribo. É gente muito amiga, mas também muito guerreira e vingativa.” (Cabeza de Vaca, 1999: 157-158)

mostrou-se correto e passível de ser cumprido. Muito mais porque alguns desses índios serviram de guias para a jornada de Cabeza de Vaca. Os europeus perceberam, além disso, que os grupos e as aldeias indígenas que foram sendo encontrados ao longo do trajeto, falavam a mesma língua de seus guias, facilitando o entendimento, as trocas de presentes e alimentos, os festejos de chegada e partida, enfim, o contato entre eles – os índios – e os europeus (Cabeza de Vaca, 1999: 170). Deste exemplo, o que se pretende destacar é que, se para os europeus o território era desconhecido, para os indígenas ele era por demais familiar. E, a partir da narrativa da “aventura” sul-americana de Cabeza de Vaca e do percebido junto à documentação relativa aos territórios sulinos nos primórdios de sua ocupação, conforme alguns exemplos dados no capítulo anterior, geraram-se, além das contendas, alianças e colaborações de parte a parte. Isto foi o que colocou os pioneiros dos caminhos interioranos um tanto além da ignorância absoluta da geografia e da topografia das regiões a serem exploradas.

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Uma pré-existência de rotas interioranas, um pré-conhecimento dos territórios a serem tomados por posse pelas Coroas ibéricas, por mais vago que pudesse ser, e a utilização de autóctones “amigos, aptos para guiar os súditos dos reis de Espanha e de Portugal, são alguns dos pressupostos dos quais se parte para dizer da implementação das rotas que uniram o extremo-sul do território pretendido pelos lusos ao restante da Colônia. Os colonizadores da América portuguesa, em seus intentos de ocupação e exploração de riquezas, privilegiaram os territórios ao longo da costa marítima da Colônia quando da implantação dos engenhos de açúcar e a correlata lavoura canavieira. Também os rios navegáveis, mesmo que por pequenas embarcações, foram eleitos. Destes cursos d’água, tomavam o rumo imediato do mar. Talvez pela experiência dessa economia açucareira nas Ilhas atlânticas portuguesas, o transporte das mercadorias produzidas, o açúcar e as águas ardentes e os gêneros e objetos necessários à manutenção e funcionamento das propriedades produtoras de açúcar eram providos fundamentalmente por embarcações e não raros eram os engenhos que possuíam seu próprio ancoradouro (Schwartz, 1988). Para as outras ocupações interioranas, como São Paulo por exemplo, cuja produção não estava necessariamente voltada para a exportação, nem sempre houve cursos de rios passíveis de navegação sem interrupção até o litoral. Na última década do século XVII, com a descoberta do ouro de aluvião, populações de diversos locais da Colônia deslocaram-se para as regiões de mineração, levando inclusive grande número de escravos (Boxer, 2000). Para alguns, principalmente os que viviam da agricultura e da pecuária, havia a opção de local para se situar. O ouro das minas ou outros minerais existentes nos territórios internos determinavam peremptoriamente o estabelecimento de populações mineradoras no interior da Colônia, junto às jazidas. Estes homens deveriam se dirigir para onde os minérios estivessem, encravados no solo ou à flor da terra. Com as

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migrações e com e a exploração de territórios do interior, houve a necessidade de utilização de meios de transporte para os gêneros e objetos, para os produtos exportados ou de circulação interna, para aqueles trazidos para satisfazer necessidades básicas ou para o fausto dos que enriqueciam arrancando riquezas à terra (cf. Boxer, 2000). A ocupação do extremo-sul da Colônia, mesmo que tenha sido povoada nos moldes anteriores, inicialmente pontilhando o litoral com núcleos populacionais esparsos – e considera-se aqui o Prata como uma extensão desse litoral, haja vista a grande distância existente entre as duas margens e seu curso que dá vazão direta ao Atlântico, – não se ocupou da lavoura canavieira. Talvez por motivos climáticos. Talvez por já existir um ativo comércio com Buenos Aires quando começou sua ocupação pelos portugueses, em 1680. O certo é que a agricultura comercial não foi a atividade de destaque nos tempos iniciais dos núcleos meridionais. Para o que ficou conhecido posteriormente como o Continente do Rio Grande de São Pedro, talvez, ainda, por condições do próprio relevo desta orla. Do rio Mampituba em direção ao sul, até a barra do Chuí, não há acidentes geográficos significativos e a única possibilidade de ancoradouro é a barra da Lagoa dos Patos. Esta era larga o suficiente e, no entanto, rasa e salpicada de bancos de areia, não permitindo embarcações de grande calado. De resto, são quilômetros e quilômetros de “praia lavada” (apud Cabral, 1976: 148), mar aberto, mar grosso, sem abrigo de baías de espécie alguma que facilitassem a construção de portos, ainda que pequenos. Muito provavelmente, eximiram-se as populações de origem lusa e espanhola do plantio em grande escala por ser esta terra dotada da imensa riqueza que os rebanhos de animais de grande porte representavam, dispensando investimentos de monta como aqueles exigidos para a geração de outras atividades: “A economia criadora, além de voltada para o mercado interno, não tinha estrutura agrária tão rígida quanto a açucareira, apresentava

87 maior mobilidade social, não exigia grandes investimentos para montar empresa (terra e gado representavam fatores de produção baratos, senão gratuitos)...” (Buescu, 1979: 593)

O povoamento efetivo das regiões meridionais, iniciado com a fundação da Colônia do Sacramento em 1680, tendo continuidade com a fundação da Laguna (1684) e do Forte de Jesus Maria e José, em Rio Grande (1737) tiveram, e aqui mais um pressuposto para dar seguimento ao escrito, relação com o que se passava no restante da Colônia e do próprio Império Português. Associada à descoberta do ouro no interior da Colônia, neste findar do século XVII, está a demanda por alimentos destinados ao grande número de pessoas que se dirigiram para às áreas de mineração, desleixando da produção de subsistência para empreender garimpos (Boxer, 2000). E também está relacionada a demanda de meios de transporte e tração para que pudessem fazer o escoamento das riquezas extraídas e do abastecimento dessa sociedade que se gerou em torno desses empreendimentos mineradores e correlatos. Sobre a sociedade que envolvida no fornecimento desses animais e seus produtos é que se debruçam as páginas que se seguem. Os principais pólos envolvidos neste comércio estão colocados na Ilustração 2. A existência da necessidade de carnes para a alimentação e de transportes para as cargas a partir do final do século XVII, ou seja, de um mercado para estes animais, ainda que em formação, é outro dos pressupostos dos quais se parte para pensar a conexão do extremo-sul ao novo centro nevrálgico da Colônia Como última observação, tem-se que este descobrimento do ouro nos territórios internos, desencadeador de grandes mudanças no Estado do Brasil, foi também o que deu partida à tomadia de territórios e implementação das rotas terrestres. Foi fator determinante para uma inflexão na política de ocupação dos territórios meridionais. Segundo Mafalda Zemella

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Ilustração 2 Mapa da América - pontos da rota da comercialização dos animais

Foto de satélite modificada para fins de ilustração neste estudo

89 “Os centros de criação de muares, localizados nesse longínquo Sul, propiciaram o extraordinário alongamento das correntes do comércio paulista. Assim sendo, o comércio paulista não se fazia unicamente entre as vilas planaltinas e as Gerais: projetava-se até os confins dos campos sulinos, representado por volumoso tráfico de muares, gado cavalar e vacum. Espalhou-se assim por todo o sul, até os confins do Prata, o sopro de prosperidade que se irradiava das minas de ouro de alémMantiqueira.” (Zemella: 1990: 60)

Estas regiões meridionais, num primeiro momento, voltavam-se para o Atlântico, para o comércio de cabotagem e de longa distância. Mas após o advento do ouro, nos primeiros anos da década de 1690, passou também a necessitar de um contato mais estreito com as áreas internas, demandante dos animais indômitos que se reproduziam nos campos sulinos. Ainda que tenham transcorrido em torno de quarenta anos entre o início da mineração e a abertura de rotas terrestres que deram vazão aos rebanhos rumo às regiões mais centrais, percebe-se uma gradual mudança nesse sentido. Esta integração por via terrestre entre as partes meridionais e as regiões mineradoras não se deu, portanto, de súbito. Antes, tinham que ser viabilizados os caminhos que penetrassem os sertões. Até que isso se efetivasse, os rebanhos sulinos ficaram ao uso de seus donos, os jesuítas espanhóis e os índios missioneiros, coureadores e chagadores (ver léxico em Anexo I). Tormento constante para os assentamentos catequizadores dos jesuítas durante a primeira metade do século XVII foram as expedições “de los portugueses de San Pablo” (apud Araújo, 1990: 133) em busca de braços indígenas para as suas lavouras. Sobre as Missões Orientais do Uruguai, escreveu Aurélio Porto: “a primeira fase em que se inicia a catequese do gentio é de curta duração, pois compreende somente 10 anos (1627-1637), que decorrem entre o estabelecimento das primeiras reduções e a expulsão dos jesuítas pelas bandeiras paulistas. Até o retorno dos jesuítas e a fundação do primeiro dos Sete Povo, em território riograndense, transcorreram 45 anos (1637-1682), e é neste entretempo que os primeiros rebanhos de gado ali lançados pelos padres se desenvolveram

90 assombrosamente, constituindo o fundo nuclear da opulenta riqueza econômica, razão de ser do futuro povoamento do Rio Grande do Sul, entreposto que se fixa entre a Colônia do Sacramento e Laguna” (Porto, v. 1, 1943: 16)

Nessa migração, os jesuítas também deslocaram os animais que conseguiram juntar, levando-os mais para o sudoeste. Na década de 1650, povoaram com eles as suas estâncias e aquilo que ficou conhecido como Vacaria del Mar, que ocupava grade extensão da pampa situada hoje em território uruguaio e extremo-sul do Rio Grande do Sul. Os portugueses que se dirigiram para o Continente, paulistas em sua maioria, acumularam informações sobre a região, até que pudesse haver condições para sua efetiva exploração (Boxer, 2000). Parafraseando Shakespeare, há que se afirmar que também no estudo da história não há quase nada de novo sob o sol. No primeiro ano de circulação da Revista de História da USP, mais precisamente no número 4, Myriam Ellis publicou seu Estudo sobre alguns tipos de transporte no Brasil Colonial, o qual discorre sobre os meios empregados no deslocamento de cargas para atendimento às diferentes necessidades dos colonos (M. Ellis, 1950). Esse estudo tem como coluna vertebral o artigo de Alfredo Ellis Jr., publicado no número 1 da mesma revista, intitulado O Ciclo do Muar. Ambos tratam da importância dos animais de tração, carga e tiro para o funcionamento das economias interioranas ou mesmo de plantation (Ellis Jr., 1950). Em Estudo sobre alguns tipos de transporte... Myriam Ellis tece comparações entre os diversos meios de transporte, sua eficiência e eficácia, seus custos e a que tipo de carga eram adequados (M. Ellis, 1950). Ambos os autores atribuíram as áreas meridionais como sendo a principal fonte dos animais. Ora, se o tema não é novo, o tipo de análise pela qual se pretende submeter os dados extraídos da documentação talvez tragam perspectivas senão novas, ao menos diferentes dessas anteriormente efetuadas, tentando ver para além dos animais que se deslocavam, a sociedade que tinha neles o motor de sua economia e vetor das relações

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que se construíram. Pretensão seria querer abranger todo o trato dos gados no território colonial e as diferentes formas de organização econômica e social. Formas estas que, se perpassadas pela política lusa para suas colônias, possuíam certa homogeneidade, também assumiam características idiossincráticas, fruto da adaptação às condições locais e às necessidades de cada momento. A pretensão encerra-se, pois, em discutir aqui, um pouco do aproveitamento de animais oriundos da porção sul das terras lusoamericanas e sua importância em dar movimento aos homens, à sociedade e à economia que a partir da existência destes gados se gerou e foi capaz de sobreviver.

Antecedentes da ocupação sistemática dos territórios meridionais por populações lusas Antes dos portugueses estabelecerem a Colônia do Santíssimo Sacramento, na margem setentrional do Rio da Prata, ao se iniciar a década de 1680, o comércio luso, nesta região, já estava estabelecido fundamentalmente através do porto espanhol de Buenos Aires, onde negociavam-se bens e metais preciosos (Canabrava, 1984; Moutoukias 1988). Os primeiros atrativos econômicos da região platina foram este comércio e a exploração dos animais de grande porte que se multiplicavam pelas campanhas (Moutoukias 1988: 151). O local escolhido e as intenções da Coroa para a fundação da Colônia do Sacramento – defronte ao porto de Buenos Aires - servia simultaneamente de pólo português no comércio platino e acesso ao interior do continente. Isto obrigou-lhe, desde o princípio, à função de porto. Pelo Rio da Prata eram feitos o comércio, o abastecimento de gêneros e munições, o desembarque de soldados e de famílias com seus negros e índios (Moutoukias, 1988). A exploração dos animais pampeanos, neste primeiro momento, não pressupunha o seu largo envio por rotas terrestres. Antes, os ganaderos e changadores

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portugueses se empenhavam na localização dos rebanhos dos vacuns, e in loco abatiam os touros, sacavam-lhes os couros. Fabricavam os sebos também no próprio local de abate, fazendo posteriormente o despacho destes produtos pelo porto de Sacramento. As incursões dos portugueses em busca dos vacuns provocava protestos dos espanhóis, homens do rei ou da Igreja, que chegaram a propor e planejar o extermínio dos machos – os touros desse rebanho –, aproximadamente um milhão de animais, para evitar tais investidas lusas. Isto deveria se efetuar em pouco tempo. Este extermínio não foi consumado, talvez pela megalomania de tal projeto. Moutoukias apresenta o cálculo feito à época, onde cada grupo de cem índios poderia dar conta de dois mil animais ao dia, sacando-lhes os couros e os sebos com aproveitamento para Espanha, e não para Portugal (Moutoukias, 1988: 154-157). O comércio entre com Buenos Aires, Bahia e Rio de Janeiro foram a vida da Nova Colônia nas duas últimas décadas do século XVII. Mas também antes disso, a possibilidade de exploração dos rebanhos de vacuns e cavalares já despontava, não só aos aventureiros e negociantes lusos que se lançaram às margens do Prata – alguns estabelecidos e muito bem entrosados na comunidade de comerciantes portenhos – mas também na idéia de homens do Império Português, como Salvador Correia de Sá e Benavides e sua família (Boxer, 1973; Moutoukias, 1988). Por ser área simultaneamente limítrofe e de contato entre os dois países ibéricos, isto imprimiu características peculiares à sua colonização.

1. Da Donataria dos Assecas à Abertura do Caminho das Tropas O interesse na larga exploração dos animais sulinos deu seus primeiros sinais no terceiro quartel do século XVII e foi viabilizada na primeira metade do século XVIII, com a efetiva abertura do Caminho das Tropas. Nesse lapso, começam também os intentos de ocupação mais sistemática das terras, com a chegada de famílias a seus grandes campos.

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Muitos “ensaios” para a execução destas empresas foram feitos, tanto para a ocupação dos territórios meridionais como para sua ligação terrestre ao restante do Estado do Brasil. Acerca de todos estes intentos, Aurélio Porto dedicou uma grande parcela do primeiro volume de sua História das Missões Orientais do Uruguai (Porto, 1943 v.1: 234-280, 339-391). Ainda que se discorde das interpretações colocadas por este autor, a sua apresentação dos eventos e a correspondência destes às fontes que se têm consultado, faz com que se recomende a leitura desta obra como referência ao processo de ocupação e conexão dos territórios meridionais, em especial do Continente do Rio Grande de São Pedro, ao restante da Colônia. Este trabalho, que já conta com bem mais de cinqüenta anos, conserva ainda muito do seu vigor. Especialmente deve ser destacada a grande quantidade de fontes de acervos diversos que foram utilizadas, sejam elas transcritas ao longo do texto e notas ou em sua correta indicação, permitindo se produzissem novas pesquisas, que iniciaram muito além do marco zero do qual largou Aurélio Porto. A seguir, em linhas gerais, serão destacadas, algumas destas empresas aludidas por Aurélio Porto, consideradas aqui como mais relevantes. Faz-se isto com o intuito de acrescentar outros aspectos que não foram contemplados por ele, e de avançar na explicação dos fenômenos que culminaram na formação da sociedade meridional da Colônia e na consolidação da posse de tais territórios sob a bandeira lusa.

Investidas a partir do Rio de Janeiro Diz Jônathas da Costa Rêgo Monteiro, que das terras do Brasil, foi o Rio Grande do Sul das últimas, se não a última, a despertar o interesse das autoridades. Data de 1658, ou seja, dezoito anos após o fim da união das duas Coroas, a primeira solicitação dessas terras reiúnas por um súdito de Portugal. Foi feito por Salvador Correia de Sá um pedido de uma grande porção de terras na área, como mercê de uma capitania. As terras desta capitania seriam “100 léguas de costa, sendo 50 ao norte da

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ilha de Santa Catarina e 50 ao sul da mesma ilha” (Monteiro, 1979: 17). O limite meridional destas terras, estaria muito próximo à barra da Lagoa dos Patos. Anos mais tarde, Salvador Correia de Sá fez um segundo pedido de terras, também na região meridional, desta vez abrangendo a embocadura do Rio da Prata, recebendo mercê (apud Abreu, 1976, nota no 10: 44-47). Os extremos dessas duas grandes extensões de terras concedidas uniam-se, conferindo-lhes continuidade. A Donataria dos Assecas estendia-se, portanto, desde o Prata, para além da ilha de Santa Catarina, incorporando os territórios paranaenses. No século XVII, Salvador Correia de Sá e Benavides, era um profundo conhecedor da região meridional, tendo atuado no comércio platino e também tendo ciência da geografia do Prata e de seus potenciais para negócios e recursos para a exploração. Por ser homem do Império Português, sua atuação em governanças e em ações no interesse de Sua Majestade não se restringiu a uma única localidade dentro das possessões sob domínio luso. Também conhecia outras terras, em outros continentes, conhecia as demandas de outras regiões. Do Estado da Índia ao Estado do Brasil, do Rio de Janeiro a Luanda, do Prata a Lisboa, em terras de Espanha e em terras de Portugal, suas redes de relações, parentesco e amizade estavam lançadas (Boxer, 1973). Tendo Salvador Correia de Sá comandado a operação que livrou o Reino de Angola do domínio dos holandeses, em 1648, sentiu de perto o problema da inexistência de uma cavalaria em Luanda, ao mesmo tempo que era sabedor dos grandes rebanhos de eqüinos que viviam ao sul. Soube das conseqüências causadas pela interrupção do fluxo de prata para as mãos dos portugueses (Bandeira, 1985: 37-55). Ele teria incentivado a fundação de um núcleo luso na margem do Prata (Bandeira, 1985: 42). Supõe-se aqui que seu interesse nessas terras estivesse vinculado não somente ao comércio estabelecido com os espanhóis, mas também na exploração dos animais de grande porte, talvez sob forma de produtos como o couro e o sebo ou

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com o remanejo de cavalos para outras regiões do Império que deles necessitassem. Do outro lado do Atlântico, dentre essas regiões sob frágil domínio luso que, como o Estado do Brasil, sofriam ataques de outras nações européias, estava o Reino de Angola. Segundo Luís Felipe de Alencastro, o comércio entre África e a região platina era feito desde as primeiras décadas do século XVII, com cavalos servindo de mercadoria no escambo escravista. João Rodrigues Coutinho, asentista de Angola, governador desta conquista nos primeiros anos deste século, pretendia levar do Panamá e do Prata, para Angola, 2.500 cavalos para lá formar uma companhia de cavalaria. Em 1609, após a morte de João Rodrigues Coutinho, um irmão seu daria continuidade ao asiento. Não o fez por temor às doenças angolanas (Alencastro, 2000: 80-81). A insalubridade do Reino de Angola fazia muitas vítimas, “assim a gente, como os Cavalos, respiravam um ar danoso à saúde, que secundava ao clima” (Corrêa apud Santos, s.d.: 61). Outros membros da família deram seqüência a este comércio em que as mercadorias negociadas eram a prata, os escravos e os cavalos. (Alecastro 2000: 81). Alencastro justifica a ausência de produção local de cavalos no Reino de Angola com uma conjugação de dois fatores. O primeiro seria a já aludida insalubridade angolana. Os homens, assim como os animais, eram infectados pela mosca tsé-tsé, agente transmissor de várias tripanossomíases, uma especialmente letal para os cavalos (ver Ilustração 3). Esta doença “embaraçava a criação de cavalos na área. Abaixo do Cabo da Verga (atual Conakry) ninguém comprava mais cavalos. Sinal – ontem como hoje – do início da barreira epidemiológica levantada pela tripanossomíase”. (Alencastro, 2000: 50).

O segundo fator seria o temor dos portugueses de que as populações africanas pudessem constituir sua própria cavalaria, colocando-os em condições bélicas semelhantes às suas. Para não dar azo a isto, os eqüinos levados para lá eram apenas

Ilustração 3 mapa assinalando o Cabo da Verga e a linha de isolamento epidemiológico

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machos. As matrizes para uma produção não chegavam até o Reino de Angola (Alencastro, 2000: 97, nota 113, à página 409). No século XVII, a família de Salvador Correia de Sá e Benavides estava, como já foi dito, inteirada da necessidade de cavalos do outro lado do oceano. E não podia ser o contrário, Salvador Correia de Sá foi chefe militar na guerra contra os holandeses atuando nos dois continentes entre 1640 e 1650. Um outro tipo de trocas, a troca de favores e serviços, envolvendo a Coroa, também se estabeleceu. No final da década de 1670, Tomé de Souza Correia, da família de Salvador Correia de Sá, havia requerido o hábito da Ordem de Cristo. Entre as condições para a obtenção de tal distinção estava a colocação de cinqüenta cavalos, à sua custa, no Reino de Angola (AHU, RJ, CA docs. 1.324-1.327). Não encontrou-se referência quanto ao desfecho dessa empresa, mas presume-se que tenha sido bem sucedida, pois Tomé Correia foi aceito na ordem militar. Pelo interesse desta família, que transformou esta imensa região meridional na Donataria dos Assecas, pela percepção que tinham daquilo que ocorria em distintos locais do imenso Império Ultramarino lusitano, percebe-se que a tomada de posse dessas regiões meridionais assume, além da importância para a colonização desses territórios dentro da Colônia lusa na América, importância para o próprio funcionamento desse Império nas duas margens do Atlântico. Deixa de ser um movimento regional, no sentido estrito dessa palavra, para apresentar-se conectado ao grande mar português e ao comércio nele praticado, assunto este que será retomado ao capítulo quarto. Nos anos que separam as duas solicitações de terras de Salvador Correia de Sá e Benavides, toda uma série de desventuras atingiram a ele e a sua família. A política da Corte fez com que Salvador caísse em desgraça, colocando-o e a alguns de seus filhos sob risco de vida. Por motivos distintos, tanto ele quanto membros de sua família foram privados da liberdade (Boxer, 1973: 382-388).

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Esta crise se abateu sobre ele e sua estirpe nos anos que vão de 1667 a 1678, e até o passamento de Salvador Correia de Sá, por volta de 1682, não fora completamente revertida. Isso induz a considerá-la como um dos fatores que lhes impediu a tomadia de posse efetiva e povoamento da Donataria. Este aparente abandono das terras sulinas ainda queda por ser explicado. Houve muitas dificuldades e um grande atraso para os Correia de Sá darem início a fundação de uma fortificação à margem do Prata. Este atraso acarretou numa ordem régia datada de 1678, dada a Dom Manuel Lobo, oficial indicado para empreender a fundação de Nova Lusitânia, primeiro nome, logo abandonado, da Colônia do Santíssimo Sacramento (Porto, 1943 v. 1: 251-252). Em 1695, houve um segundo grande intento de obtenção de posse das terras sulinas, junto à barra da Lagoa dos Patos. Desta vez em menores proporções, e almejando as terras que margeavam a Lagoa dos Patos. Foi feita por Manuel Jordão da Silva, morador da cidade do Rio de Janeiro (Monteiro,1979: 18). Diz o requerimento de Manuel Jordão: “Como Vossa Senhoria tem mostrado tão grande zelo no serviço real (...) me ofereço para ir povoar o Rio Grande, por ter muitos filhos e muitos netos, todos para servimos a Sua Majestade, dando-se 50 casais de Índios das Aldeias e 30 solteiros das aldeias reais de São Paulo e 6000 cruzados para ajuda de custo, para o que obrigarei minha fazenda e os pagamentos de 2 engenhos; reservando e fundando esta vila que há de ser opulenta pelas razões que têm andado informação.” (apud Costa e Silva,1968: 31)

Quando desta solicitação, a Colônia do Sacramento já contava com 15 anos desde sua fundação. Já arrebanhavam-se os gados em seu entorno e mesmo entrando à campanha, penetrando o continente. Essa era uma atividade constante. Quando desta solicitação, a Vila da Laguna já contava quase dez anos. As rotas litorâneas da costa uruguaia até Santa Catarina já estavam sendo trilhadas por coureadores ganaderos e changadores. A Banda Oriental começava a constituir-se (Prado, 2001).

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E na primeira metade da década de 1690 já estava descoberto o ouro das Gerais. Diz Boxer: “A data e lugar exatos da primeira descoberta realmente rica provavelmente jamais serão conhecidos.(...). Coligindo as narrativas contraditórias e fragmentárias que nos vieram ter às mãos, pareceria que o ouro foi encontrado quase simultaneamente em regiões diversas da zona que hoje é Minas Gerais, e por pessoas diferentes ou diferentes grupos de paulistas, nos anos entre 1693 e 1695.” (Boxer, 2000: 61).

Ainda assim, alerta este autor, que já na década de 1680 o ouro de aluvião havia sido descoberto, apesar de estarem as informações acerca dessas descobertas sob sigilo. Admite ainda que estas informações possam ter circulado de maneira truncada na primeira metade da década de 1690 (Boxer, 2000: 61) Nisto talvez residisse a intenção colonizadora de Manuel Jordão da Silva. Solicitou as terras que continham o único ancoradouro natural na orla do atual Rio Grande do Sul, mas tudo leva a crer que tivesse seus olhos voltados, também, para o interior, para os campos e, talvez, para seus animais. Mas novamente a posse de tais territórios não foi efetivada. A grande possibilidade motivadora para o intento de Manuel Jordão migrar para o sul provavelmente tenha sido o mesmo motivo para que a Coroa não lhe deferisse o pedido. Estava ele envolvido num crime de assassinato cometido contra um dos protegidos e familiares do já falecido Salvador Correia de Sá. Aurélio Porto argumenta sobre os interesses de Manuel Jordão ao voltar-se para o Sul. Embrenhou-se nos sertões e conheceu novas terras provavelmente para escapar à devassa aberta nessa ocasião para apurar este crime (Porto, 1943 v.1: 339) que resultou na ordem de prisão e seqüestro dos bens dos criminosos (AHU, RJ, CA – docs. 1.621 e 1.622). Fossem quais fossem seus motivos para deixar a cidade do Rio de Janeiro, seu projeto incluía, além dele próprio, no mínimo duas gerações de sua família (apud Costa e Silva, 1968:31 e 32). Acerca da Consulta do Conselho Ultramarino sobre essa

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sua petição, apesar de elogiado o empreendedor Manuel Jordão “homem de idade, com tanto vigor e esperteza como se fosse 25 anos” (Ata do Conselho Ultramarino, apud Porto, 1943 v.1: 340), foi deliberação do Conselho negar-lhe o pedido, alegando que este povoamento poderia soar aos castelhanos como provocação e desencadear novos ataques à Colônia do Sacramento (Porto, 1943 v.1: 340). Outros motivos podem ser acrescidos para essa negativa. Além solicitar elevado valor em dinheiro e grande de número de indígenas a serem tirados de aldeias reais paulistas, essas terras eram justamente aquelas que haviam sido dadas primeiramente à família da vítima do crime, gente de boa estirpe e que, apesar dos altos e baixos, há gerações tinha bons vínculos junto às Coroas portuguesa e espanhola (Boxer, 1973). E tendo-lhe sido indeferido o pedido, jamais serão sabidas quais eram as reais intenções de Manuel Jordão para as terras sulinas requisitadas. Ainda que estes dois intentos de povoamento partindo de pessoas com estreitos vínculos familiares, políticos e econômicos com o Rio de Janeiro não tenham se concretizado, elas contribuíram em muito para a ocupação dessas terras. A fundação e mantença da Colônia do Santíssimo Sacramento, em 1680 são, incontestes, manifestações desse fenômeno. E ainda há quem afirme que as informações repassadas por Salvador Correia de Sá tenham surtido um outro efeito: “Lucas Boiteux, com muito fundamento, atribui o povoamento da Ilha de Santa Catarina e o da Laguna às insinuações de Salvador Correia de Sá, aos capitães Francisco Dias Velho e Domingos de Brito Peixoto, que o governador da Repartição do Sul conhecera em suas repetidas viagens a Santos.” (Porto, 1943 v.1: 243)

Investidas a partir de São Paulo Enquanto os propósitos de ocupação capitaneados pelo Rio de Janeiro visavam o estabelecimento de portos e pontos para o comércio na região e com outros portos no Atlântico, os que irradiavam a partir de São Paulo tinham por objetivo estabelecer

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populações, descobrir jazidas de minérios, explorar a terra na produção agrícola e pecuária. Enquanto os homens vinculados ao Rio de Janeiro, segundo o que se observa na concessão da Donataria dos Assecas e na solicitação de Manuel Jordão, faziam seus pedidos de concessão de terras nessas regiões meridionais para sua posterior ocupação, os homens vinculados a São Paulo, agiam de maneira diametralmente oposta: empreendiam a ocupação, por vezes sem anuência da Coroa, para depois solicitar as mercês que julgavam lhes competir, sendo um dos três grupos citados por RussellWood que mais contribuíram para a expansão de fronteiras: “O ímpeto de avançar para além dos povoamentos nucleares não partiu das autoridades da Coroa, mas de três grupos, sendo que nenhum deles era central para a sociedade metropolitana ou colonial: jesuítas e homens do clero em busca de almas; paulistas em busca de índios; e fazendeiros de gado em busca de pastagens.(...) Apesar de se encontrar entre as primeiras vilas criadas no Brasil, São Paulo continuava a ser um povoado de fronteira, com uma população em expansão e comunidades satélites ao seu redor; mas era menos um núcleo do que o lugar de partida de expedições de exploração (...).” (Russell-Wood,1998, versão para Internet).

Nesta fronteira, a atuação dos paulistas foi determinante para a efetiva ocupação: “Paralelamente, acontecia outro fenômeno, em grande parte de iniciativa particular, como tantas vezes se verificou na época, e mais tarde, um fato que vem a reforçar a impressão de que se fazia cada vez mais nítida uma ação “brasileira”, independente da metropolitana”. Foi a descida, ainda ao longo do litoral, dos paulistas para o sul: Curitiba (1654), São Francisco (1658) Desterro (1673), Ilha de Santa Catarina (1675), Laguna (1684)”. (Buescu, 1979: 588)

Como já visto no capítulo anterior, as constantes migrações dos paulistas decorriam do sistema de transmissão de bens por herança, bem como do exaustivo aproveitamento de recursos dos locais dos assentamentos, compelindo parcelas das famílias e seus subalternos ao constante deslocamento. Essa peculiaridade aparece como traço estrutural dessa sociedade (Metcalf, 1983; Monteiro, 1994).

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No Continente do Rio Grande de São Pedro, após as investidas para preia de gados e expedições de reconhecimento nas primeiras décadas do século XVIII, os paulistas desviaram-se novamente um pouco mais para o interior, ocupando os Campos de Viamão, entre o Oceano Atlântico, a Lagoa dos Patos e a Serra do Mar. Ainda que no modo de agir fossem diferentes e por vezes os mesmos territórios fossem cobiçados por paulistas e cariocas concomitantemente, favorecendo algum tipo de confronto local, numa escala maior essas duas linhas de atuação concorriam para um mesmo ponto: a expansão das fronteiras lusas na América, fazendo frente às ocupações espanholas. “A primeira, desde o Rio de Janeiro, com interesses claros na manutenção de rotas comerciais e uma política de incorporação territorial baseada na fundação de presídios militares enquanto núcleos populacionais. A segunda frente avançava por terra, desde Laguna, amparada por paulistas que buscavam acesso aos rebanhos de gado bovino e cavalar existentes na região. Essas duas frentes desenvolveram-se de forma articulada e complementar. E as políticas implementadas na região no período em questão significam o encontro de interesses entre a Coroa e as elites locais que sustentaram tal expansão.” (Prado, 2001).

Dos paulistas, na figura de Domingos de Brito Peixoto e seus filhos, partiu o deslocamento, por via terrestre, de populações sempre mais ao sul. Com os paulistas, nascia a larga utilização de rotas terrestres litorâneas e do interior, com o intuito de preia de gados xucros e montagem de fazendas. Não se descarta aqui a possibilidade de serem também atraídos pela presença dos gentios, principalmente os guarani, já que a Laguna, no atual estado de Santa Catarina, foi a primeiramente denominada Lagoa dos Patos1 , ponto receptador de indígenas atraídos desde o interior para posterior envio a São

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Tal topônimo da Laguna não mais será utilizado aqui. Tenta-se assim escapar da inevitável confusão que este gera, já que mais ao sul, o inicialmente chamado Rio Grande ou Rio de São Pedro foi posteriormente denominado de Lagoa dos Patos. Esta desinência permanece até os dias de hoje. Assim, neste estudo, “Lagoa dos Patos” sempre designará a grande poção de águas totalmente contido nas terras do Continente do Rio Grande de São Pedro, e que dava navegação desde sua barra, localizada ao sul, junto à Vila do Rio Grande, hoje cidade do Rio Grande, até o Porto dos Casais, nos Campos de Viamão, hoje cidade de Porto Alegre. Esta é a designação que se mantém até os dias de hoje.

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Paulo (Monteiro, 1994: 64-66). Segundo Taunay, a Vila da Laguna vivia da pescaria e dos peixes salgados, por ser o único local a produzi-los e exportá-los para o Norte, em embarcações da família Brito Peixoto. “Mais: mandara vir de várias distantes partes muita variedade de gado: bois, cavalos, ovelhas, carneiros, e cabras, que se havia um tanto multiplicado, que já de vários anos de lá vinha todo o gado vacum consumido na maior parte das vilas do sul. Para a cidade do Rio de Janeiro partiam continuadamente muitas embarcações, carregando carnes salgadas para as frotas destinadas ao Reino, além de inumeráveis couros de bois, para sola.” (Taunay, apud Cabral, 1976:107)

Movidos pela ciência dos grandes rebanhos, deu-se início, por iniciativa dos paulistas, os intentos de abertura de grandes rotas. Viajantes, em geral com uma patente militar – ou de Dragões ou de Ordenanças – foram encarregados de fornecer notícias às autoridades. Acerca destas viagens de reconhecimento e de tentativas de povoamento por parte dos governos e de particulares, também extensamente comentadas na já aludida obra de Aurélio Porto. Duas das mais significativas são as já mencionadas Roteiro por onde se deve governar quem sair por terra da colonia do Sacramento para o Rio de Janeiro ou villa de Santos, de Domingos da Filgueira, (Filgueira apud Abreu, 1976: 70-72) e as respostas dadas por Manuel Gonçalves de Aguiar, sargento-mor da Vila de Santos (Aguiar, in RIHGB, 1908: 291-303 1998:69 e ss.). Uma das primeiras tentativas de abrir as rotas sob os auspícios da coroa, se não a primeira, partiu de Bartolomeu Pais de Abreu (ver Anexo II, documento 1 e seguintes), genro de Pedro Taques de Almeida, detentor de uma das maiores fortunas de São Paulo (cf. Blaj, 1998). Em sua petição ao rei destacava a importância da exploração dos gados vacum e cavalares, juntamente com a intenção de promover o descobrimento de minas. Como contrapartida solicitava mercês em terras, posto de

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guarda-mor de todas as minas que se descobrissem e isenção de taxas sobre quaisquer animais que ele ou seus sócios conduzissem rumo às regiões mais centrais da Colônia. A Coroa, através do Conselho Ultramarino, aceitou a sua proposta, concordando na cessão de tais direitos. No entanto, não foi este homem quem empreendeu a abertura da rota por onde circulariam os gados sulinos. Uma vez autorizada a empreitada, o sertanista não foi localizado, tendo partido para a descoberta de minas em Cuiabá (Blaj, 1998; ver também Anexo II, documentos 2, 3 e 4). Se o intento de Bartolomeu Pais de Abreu não foi realizado, a idéia avançou para além do Atlântico, sendo que “este negócio não seja para desprezar”(Anexo II, documento 3) era a opinião que tinha o Conselho Ultramarino. O novo governador de São Paulo, Rodrigo Cesar de Menezes, passou a receber ordens para que a tarefa não ficasse sem execução. Este deu início às ações que redundariam na abertura de vários caminhos terrestres no interior da Colônia, que ligavam os campos do sul aos sertões de São Paulo e estes às Minas dos Goiases, entre eles o Caminho das Tropas. Tendo planejado e incentivado a abertura da rota, Rodrigo Cesar de Menezes já havia deixado o governo de São Paulo quando esta se concretizou, não sem dificuldades, entre os anos de 1727 e 1730. Antônio da Silva Caldeira Pimentel, que já havia assumido o governo de São Paulo logo após a saída de Rodrigo Cesar de Menezes, determinou ao sargento-mor Francisco de Souza e Faria dirigir-se à Vila da Laguna e providenciar homens para tal projeto (ver Anexo II, documento 5). Nesse progressivo despertar de interesses pelas terras sulinas, já foi anotada uma modificação nas intenções iniciais para a ocupação do território meridional, motivada muito provavelmente pela descoberta do ouro, na década de 1680. Estavam estas intenções, num primeiro momento, voltadas para o mar, e a partir de meados desta década, com o olhar lançado ao interior.

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E mais uma modificação percebe-se ter ocorrido entre o início e o final da década de 1720. Quando da petição de Bartolomeu Pais de Abreu à Sua Majestade, datada do ano de 1720, há a tônica no emprego de seus recursos pessoais na execução da empreitada. Dizia ele: “Acho-me com talentos e cabedais para, com forças de uma voltado corpo de armas, fazer entrada ao Rio Grande sem a menor despesa da fazenda real” (Carta de Bartolomeu Pais de Abreu a ElRei, apud Goulart, 1961: 206-207- grifo meu).

Para o ano de 1727, quando da nomeação de Souza e Faria para execução das tarefas, as coisas já eram bem diferentes. Nesse momento a Coroa portuguesa já demonstrava bastante interesse na abertura desse caminho, autorizando despesas junto à Provedoria de Santos. Se Bartolomeu argumentava possuir experiência e cabedal para custeá-la, a tarefa assumida por Souza e Faria foi inteiramente financiada pela Real Fazenda, através dos cofres da Provedoria da Vila de Santos. Dela obteve desde mantimentos, armas e munições até as embarcações que necessitasse (ver Anexo II, documentos 5). Os poderes a ele conferidos pelo governador de São Paulo, em atendimento às ordens de Sua Majestade, davam-lhe inclusive mando sobre os Capitães-mores das vilas por onde passasse. Podia Souza e Faria, nessas localidades, requerer homens, mantimentos, gados e munições, correndo tudo por conta da provedoria. A ordem era para que nada lhe dificultasse a tarefa (Anexo II, documento 5). Tal mudança, passar da iniciativa de particulares para a iniciativa da Coroa, através de seus representantes e de seus cofres na Colônia, pensa-se ter tido dois motivos principais: o primeiro, lembra-se aqui, foi a cristalização dos numerosos e densamente habitados núcleos populacionais vinculados à atividade mineradora; o segundo, decorrência do primeiro, foi a própria percepção da Coroa acerca da necessidade de animais de transporte para cargas – essenciais para a mineração –

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como entre estes núcleos e as áreas produtoras de alimentos e entre o interior e os portos marítimos. A realização desta tarefa de abertura do Caminho das Tropas não foi fácil, pois os homens importantes de Santos, Curitiba, Paranaguá, e de Laguna, por serem aparentados e por estarem perdendo “em suas liberdades” (Abreu, 1908: 255-256). Sentiam-se prejudicados, provavelmente, nos direitos de cobranças de taxas e/ou isenções de fisco associados às mercês reais recebidas. O desvio dessas antigas rotas que passavam pelo litoral para o novo Caminho das Tropas, interiorano, e o estabelecimento de núcleos populacionais ao sul podiam gerar lucros para a Coroa. Também podiam ser muito convenientes para os senhores de condutas de animais e para os novos pontos de parada e invernada dos animais, encurtando o trajeto. Podiam garantir o provimento regular de transportes para as minas. Todavia, impossível agradar a todos ao mesmo tempo. Os membros das comunidades excluídas do roteiro, que perdiam em poder ante a circulação mais intensa de animais que sob conduta de outros homens que não eles próprios, ou pela instalação de acampamentos militares ao longo do roteiro, sentiam-se prejudicados em seus direitos. Alguns destes homens, os maiorais das localidades que ficariam distanciadas da grande rota dos animais, geraram uma série de obstáculos, se não diretos, ao menos sob forma de “pequenas sabotagens”. Tais obstáculos acumularam-se e fizeram desta obra aparentemente simples, uma tarefa hercúlea de muitos anos de duração. Para a sua execução o auxílio de outros homens se fez necessário. Movidos por interesses particulares, quais sejam, negociar os gados transformando o tesouro animal existentes nas pastagens em riqueza comercializável. Conhecedores da força e das fraquezas dos lagunistas, estes homens, os “particulares” da Colônia do Sacramento, se uniram ao esforço de Souza e Faria. A importância da intervenção destes para pôr a termo a tarefa está registrada em algumas

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das Notícias Práticas dadas ao padre jesuíta e geógrafo Diogo Soares (RIHGB, 1908). Abaixo, vai transcrito um longo trecho de um documento redigido por um dos “descobridores” dos caminhos, Cristóvão Pereira de Abreu, que acorreu em auxílio de Souza e Faria, levando consigo outros tantos homens e seus animais rumo ao sertão: “A esta diligência foram sempre opostos vários moradores das Vilas de Santos, Parnaguá, e Curitiba, e da mesma sorte os da Vila de Laguna, e de Sta. Catarina, (...), receosos de que com a abertura do novo caminho perderiam as suas liberdades, o faziam impossível; (...). Neste tempo me achava eu na nova Colônia do Sacramento, e tendo esta notícia, me pus logo a caminho a ver o estado em que se achava esta diligência, e chegando à Vila da Laguna achei ao dito Francisco de Souza com alguma gente, mas quase impossibilitado a dar execução ao que se lhe ordenava, porque o Capitão-mor da dita Vila, ou pelos motivos já ditos, ou por contemplação dos moradores da Vila de Santos, Parnaguá, e Curitiba, com quem era aparentado, simuladamente lhe fazia impossível, principalmente na gente, porque tanto se lhe alistava de dia como lhe fugia de noite; e vendo-o eu neste estado, cuidei em aplicar-lhe o remédio, fazendo-o primeiro congraçar o dito Francisco de Souza, com o Capitão-mor a quem não faltava, e tive a fortuna de que ele se pusesse a caminho com boa ordem e a gente necessária em Fevereiro de 728. (...) Este roteiro é o mesmo, que diz trouxera consigo o Sargento-mor Francisco de Souza e Faria, que se o seguira abrindo o caminho a onde acabam as serras e não em Araranguá, nunca experimentaria em perto de três anos que gastou nele, as fomes e misérias que são notórias, verdade é que culpam nesta parte ao Capitão-mor da Laguna, que por seus particulares interesses lhe quis fazer impossível a jornada e o caminho, facilitando-lhe a entrada pela parte mais dificultosa que há para esta abertura. (Abreu, 1908: 255-258 – grifos meus.).

Cabe aqui lembrar que o Capitão-mor da Vila da Laguna, a este tempo, era o já citado Francisco de Brito Peixoto. Não podendo contrapor-se diretamente às ordens que Souza e Faria recebera do governador de São Paulo, procedera então, Brito Peixoto, desta maneira um tanto dissimulada. O Capitão-mor da Laguna, natural da Vila de Santos e moldado pela insubordinação dos paulistas, acatava as ordens, todavia, não as cumpria. Vale também alertar que o autor das linhas acima, neste momento defensor ferrenho das ordens régias, pertencia a uma outra teia de relações, a qual não era

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prejudicada por esta rota, muito pelo contrário, como se verá adiante. O caminho a ser seguido por Souza e Faria, “onde acabam as serras” segundo a indicação dada por Brito Peixoto que depreende-se de uma das Notícias Práticas dada a Diogo Soares, parece ser o acidente geográfico conhecido como canyon ou garganta do Taimbezinho. Lá estão algumas das encostas de serra mais íngremes existentes no Brasil e onde, por isso mesmo, não existem sequer vestígios de antigas trilhas indígenas. A rota dada como sendo ideal para a abertura do caminho pelo Capitão-mor, nada mais é uma sucessão de paredões de pedra. A malícia do Capitãomor da Laguna transformou em inferno a missão do “primeiro descobridor dos caminhos” (Abreu; Souza e Faria in RIHGB 1908). Faz-se aqui a observação de que, ao dizer “os paulistas”, não significa fazer referência a um todo homogêneo. As contendas e sabotagens que permearam os anos da abertura do Caminho das Tropas foram empreendidas por paulistas, assim como a demanda pela efetivação desta rota. Estes fatos revelam, antes, a existência de clivagens no interior do grupo assim conhecido. Para tanto, as anotações na Genealogia Paulistana, de Luiz Gonzaga da Silva Leme (Leme, versão para Internet) são reveladoras das contendas que permeavam as famílias de São Paulo, assim como os conflitos entre os Pires e os Camargo, referidos por John Monteiro (1994). Os “descobridores” dos caminhos agiram segundo ordens que partiram expressamente de São Paulo. Assim como, de São Paulo, eram oriundos Francisco de Brito Peixoto e suas famílias, tanto seus filhos quanto, pelo que indicam as Notícias Práticas, os seus aparentados das outras localidades. No entanto, não deixaram de opor seus interesses particulares ao que se poderia supor como sendo um interesse dos “paulistas” de modo geral. Deixa-se aqui um indicativo para futuras pesquisas: as ligações e rupturas entre os grupos de paulistas que permaneceram em São Paulo e os que se deslocaram para as regiões meridionais. Percebe-se que os elos não foram rompidos, mas que nem por isso formavam um bloco único e coeso.

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Apesar desses atos que empatavam a viagem, Souza e Faria conseguiu cumprir o novo roteiro, que foi retificado por Cristóvão Pereira de Abreu, chegando este às Minas em torno de 1731, talvez “um ano a mais ou a menos”.

2. Cristóvão Pereira de Abreu

Para falar da história do aproveitamento dos gados sulinos e das relações que se estabeleceram no sul da Colônia, um bom fio condutor é a trajetória de Cristóvão Pereira de Abreu, já citado diversas vezes neste escrito. Cristóvão Pereira, como também é comumente referido na documentação, é, por certo, um dos “particulares” cuja vida, neste período inicial da ocupação meridional lusa, é das mais bem documentadas. Atuando em Sacramento, provavelmente já em sua segunda década de existência, diversificou suas atividades e os locais onde as praticava. Participante das coureadas desde o tempo da “caça aos gados” (Porto, 1943 v. 1: 354-355) foi também arrematador de impostos, contrabandista, condutor de tropas, tenente, capitão e posteriormente, nomeado respectivamente, coronel das Ordenanças pelo Conde de Sarzedas e por Gomes Freire de Andrade, onde quer que estivesse, quando o assunto em pauta se tratasse dos territórios meridionais e de manter boas relações com o gentio minuano (AESP-DIHCSP 1895a 363-366; BN-ABN 1928: 238-240) Suas atividades contribuíram para tecer amizades, parentescos, negócios e também inimizades. E esta sorte de relações o atingiram em suas atividades, num moto-continuum. Estas redes de afinidades e inimizades incluíam índios minuano e guarani; padres da ordem do Carmo e da Companhia de Jesus; governadores do Rio de Janeiro, de São Paulo, da Colônia do Sacramento e de Buenos Aires; contrabandistas castelhanos e contrabandistas lusos; soldados paulistas, mineiros e cariocas, sesmeiros

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lusitanos, homens escravos, pardos forros e homens desvalidos. Tudo fundia-se em um único amálgama: o mundo colonial. Por esses e outros motivos, retraçar-se-á seus passos com o intuito de servir de contraponto ao processo de ocupação do território e da utilização dos animais de grande porte como fonte de riqueza. Faz-se, então, um longo parênteses, desde o nascimento deste homem, até o momento em que foi concluído o Caminho das Tropas. Como foi participante desta empreitada e como boa parte de sua vida, a partir deste momento, foi dedicada ao comércio dos animais e atividades correlatas, falar desse comércio e de Cristóvão Pereira de Abreu passou a ser, muitas vezes, falar da mesma coisa.

Entre o homem e o mito Cristóvão Pereira de Abreu nasceu em Ponte de Lima, no Bispado de Braga (ACMRJ – Livro de Registro de Casamentos da Igreja da Candelária – 1708), em data controversa. Alguns autores (Vellinho, 1969: 139; Spalding, 1969:148; Franco, 1989: 12; Brum, 1999: 65) dão por certo o ano de 1680 “(...) procedia da mais velha cepa lusitana. (...) Cristóvão Pereira nasceu no mesmo ano em que se levantava defronte a Buenos Aires o baluarte português que seria o teatro inicial de suas primeiras façanhas no ultramar.” (Vellinho, 1969: 139),

coisa que, para a vertente historiográfica que pretendeu dar a Cristóvão Pereira de Abreu o atributo de “fundador” da sociedade estabelecida no Continente do Rio Grande de São Pedro é uma coincidência muito conveniente. Seria então esta civilização também originária da “boa cepa lusitana”, em contraposição às influências que este território poderia ter sofrido, vindas de povos indígenas e de povos de Espanha (Gutfreind, 1992: 136). Aurélio Porto (1943 v.1: 354) diz que Cristóvão Pereira “nasceu em 1680,

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mais ou menos”. Um texto apócrifo atribui o ano de 1682. Já o genaealogista Carlos Rheingantz (1965: 205) dá como sendo 1678 o ano de nascimento de Cristóvão Pereira de Abreu. A bem da verdade, esta diferença dois anos – “pouco mais ou pouco menos”, como se dizia na época – em quase nada se faz sentir, se levada em consideração a movimentada vida deste homem, que aumentou o seu patrimônio e a folha de serviços prestados à Sua Majestade. A menos que se pretenda a partir de sua existência dar formato ao mundo que se forjava nos territórios meridionais. Ao contrário, o que se pretende aqui é ver como esse mundo dava formato às vidas dos conquistadores. De grande serventia é a trajetória de Cristóvão Pereira de Abreu, que até o ano de sua morte atuou na conquista e desbravamento da região. Morreu em 1755, na Vila de Rio Grande, engajado na expedição de demarcação de limites do Tratado de Madri, ganhando territórios e índios missioneiros para a Coroa Lusa, provando ser “fiel súdito”, que dispunha de vontade e cabedal para servir El-Rei, à custa de sua própria fazenda. Teve por testamenteiros Manuel Lobo dos Santos, tesoureiro da Fazenda Real do Rio Grande de São Pedro (AHU,RJ,CA docs. 17.758 e 17761); Manuel de Araújo Gomes, sesmeiro, capitão de infantaria de Ordenanças, produtor de muares, comerciante de animais, administrador do Registro de Viamão e arrematador de impostos (RAPM XXIV, 1933: 173-174, 191-193; AHRGS cód. F1242 fls. 180v189, cód. F1245 – fls. 26v-29); e Francisco Antonio Cardoso de Menezes e Souza, fidalgo da casa de Sua Majestade, Coronel de Dragões e Comissário plenipotenciário da partida de Minas Gerais nessa expedição (RAPM XXIII, 1929: 504-505; RAPM XXIV, 1933: 92-93, 138-139). O mito derivado de suas façanhas já obrou em torná-lo “paulista” (apud Porto, 1943 v.1: 384), “verdadeiro fundador do agrupamento urbano de Porto Alegre” (Xavier, in: RIHGRGS, no 121, 1975: 106-111), “o tropeiro” (Brum, 1999:69) por excelência.

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“Um bandeirante (...) rebento viril da velha estirpe lusitana” (Ferreira Filho, 1958: 31). Um “grande tropeiro” com “laivos de sensibilidade mal ocultos sob a rudeza do oficio”, “sertanista singular” que “não se deixava absorver de todo pelos interesses materiais do negociante de gados”, “figura surpreendente”, já que “nas operações não se viu ninguém que se sobrepusesse a Cristóvão Pereira em solicitude e valimento (...) um verdadeiro mestre na arte da guerra” (Vellinho, 1964: 139-149). Um “perfeito símbolo de todos os povoadores do Rio Grande” (Porto, 1943 v.1: 353). Não se questionam aqui os atos de bravura e as atitudes singulares de Cristóvão Pereira de Abreu, pois, assim procedendo, estariam sendo jogados fora os relatos e parte do juízo que dele faziam seus coevos. Tais atos estão relatados em obras como a História Topográfica e Bélica da Nova Colônia do Sacramento do Rio da Prata, de Simão Pereira de Sá, datada de 1737 e escrita no calor das lutas contra os castelhanos na Colônia do Sacramento. Já neste ano o autor, ao contar as façanhas de Cristóvão Pereira de Abreu, empresta-lhe modos quase que sobre-humanos (Sá 1993: 57, 159161). Semelhantes coisas foram ditas por Sá acerca de Diogo Osório Cardoso e Manuel Jorge, entre outros. Os heróis da Sacramento sitiada, que não se esqueça aqui, em boa medita tornariam-se moradores do Continente. O perfil de homens de muito valor, bravos, abnegados, valentes e resolutos – muito mais do que poderia ser a maioria dos mortais – desde então era desenhado. Dos dois acima citados, o primeiro seria Coronel de Dragões e comandante militar do Continente do Rio Grande de São Pedro em 1740 e o segundo se beneficiaria, em 1752, com uma sesmaria de três léguas por uma légua, onde acumulava “casas e currais, três mil e tantas cabeças de gado vacum, trezentas e tantas ovelhas, outras tantas éguas, e crias de mulas” (RAPM XXIII 1929: 458). Mas tampouco se pretende alimentar aqui a parcialidade surgida dessa mitificação que dá a Cristóvão Pereira caráter quase que de “mito fundador” da

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sociedade sulina. Eis que, o mito, reforçando o herói, esconde o homem. O que se precisa entender é o como e o porquê dessa sociedade necessitar “heróis” e “insignes fundadores” tais como Cristóvão Pereira e Francisco de Brito Peixoto, entre outros. Valioso auxílio fornece Maurice Godelier: “O sagrado só pode aparecer quando alguma coisa do homem desaparece. E o homem que desaparece é o homem co-autor. (...). se faz acompanhar de uma alteração, de uma ocultação do real, de uma inversão das relações de causas e efeitos (...) O essencial está no fato de que os mitos são uma explicação das origem das coisas que legitima a ordem do universo e da sociedade. (...) os homens (e as mulheres) imaginários tomam o lugar dos homens e das mulheres reais no tempo das origens. Eles devolvem-lhes suas próprias leis, seus costumes, mas sacralizados, idealizados, transmutados em Bem comum, em princípio sagrado que não pode sofrer contestação, que só pode ser objeto do consentimento de todos”. (Godelier, 2001: 260-263 – grifos do autor)

Guardadas as proporções e diferenças entre a sociedade estudada por Godelier, os baruya e seus mitos fundadores, e a sociedade sulina que já surgiu dentro de muitos dos padrões europeus da Era Moderna, percebe-se que reforçando-se aspectos destes agentes singulares e “esquecendo-se” de outros, se obtém a legitimação para a própria hierarquização da sociedade em surgimento. Não são presentes dos deuses, como na sociedade estudada por Godelier, que dizem a maneira com que deve se estruturar a sociedade e o direito que alguns grupos têm – e que devem exercer – de submeter os outros grupos, dando ordem ao caos préexistente. Mas são benesses reais, mercês e concessões que deram a alguns “heróis” a posse da maior parte das terras e o direito de explorar a maior parte dos recursos, fossem eles humanos ou materiais. Passa como legítimo, e mais do que isso, como necessário que assim o seja. No reforço ao “mito” tem-se como natural que alguns detenham posses, prestígio e poder, pois assim o receberam. E receberam como distinção, ou seja, como algo que os diferencia dos demais. Não o receberam de Deus, mas de Sua Majestade, o que não é o mesmo, mas acaba por funcionar da

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mesma maneira. Não se pretende lançar às sombras os aspectos nada elogiáveis de sua trajetória. Envolver-se com o contrabando de couros em larga escala (AHU - NCS, docs. 102,195 e 326), proceder descaminho dos gados (RAMSP/AMSP, 1939: 253) ou autorizar a seus subalternos a passar no fio da faca os índios prisioneiros que não puderam conduzir (BR. 1946: 361) foram também atitudes de Cristóvão Pereira, lado a lado com aquelas que foram cantadas em prosa por Simão Pereira de Sá. Todas elas fazem parte dos “gloriosos momentos” de conquista das regiões meridionais. Esquecer estes aspectos seria concordar como sendo natural ou inevitável a forma como esta sociedade se organizou. Seria retirar, dos homens que viveram nestes tempos quase míticos da formação de uma sociedade, a possibilidade de agir ou fazer opções, e mesmo de gerar seus “mitos fundadores”. Seria, enfim, subtrair a ação humana para devolvê-la deificada, mitificada ou como quer Godelier, trabalhada pelo pensamento humano, conscientemente, mas acionando mecanismos inconscientes, ocultando da própria sociedade “o fato essencial de que, em parte, os homens (e não os deuses ou espíritos da natureza ou ancestrais míticos) são autores de si mesmos” (Godelier, 2001: 260).

Por sob seus heróis, uma sociedade se formava, repleta das características que permeavam toda a sociedade lusitana e colonial. Esta sim, marcava os homens, permitindo-lhes ou não, atos de bravura ou covardia. Dava forma às relações e às atitudes daqueles que se empenhavam em sua construção. Com esta percepção, temse da trajetória de Cristóvão Pereira de Abreu mais do que uma coleção de histórias quase que fantásticas, mais do que o mito necessário a uma sociedade que surge. Tem-se uma lente privilegiada que permite visualizar a formação do espaço e da sociedade sulinos.

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O tempo das coureadas Cristóvão Pereira de Abreu foi para a Colônia do Sacramento após uma breve e proveitosa passagem pelo Rio de Janeiro, provavelmente na segunda metade da década de 1690, em data tão incerta quanto é a do seu nascimento. Na Colônia do Sacramento fez parte dos primeiros grupos de homens que se lançaram à extração dos couros dos bovinos selvagens das imediações do presídio, fabricando este produto em larga escala. Na conta feita por Moysés Vellinho, com a idade de vinte e um anos, era o contratador dos quintos dos couros da Nova Colônia do Sacramento, imposto cobrado sobre os couros e seus efeitos (Vellinho,1969: 139-140). Era tempo das coureadas. O produto era escoado pelo porto Colônia do Sacramento, Ilha de São Gabriel (situada no Prata) ou por pequenos ancoradouros clandestinos, junto às formações rochosas de Castilhos, hoje em território uruguaio. Tomavam o rumo do mar até o porto do Rio de Janeiro e daí para a Europa. Ou, se embarcados clandestinamente, eram contrabandeados principalmente para a Inglaterra. O que não passava despercebido aos súditos leigos ou religiosos de Espanha: “O que mais aborrecia os padres das missões era a penetração dos portugueses à cata de gado, que caçavam a tiro por lhes faltar o uso do laço, não só para a carne que salgavam, como também pelo aproveitamento do couro que vendiam, e mais do que isso, a penetração pelos rios, em suas embarcações à procura de lenha, que já era escassa nas proximidades da Colônia.” (Monteiro, 1937: 140).

Tal imposto, o quinto dos couros, existiu unicamente nos territórios sulinos, não sendo implantado em nenhuma outra área da Colônia (Osório, 2001: 115-116). Instituído em 1699, somente no segundo triênio de sua existência passou a ser adjudicado a particulares. Saiu da administração dos agentes da Coroa para as mãos daqueles que o arrematassem em leilão (Monteiro, 1937: 131). Esta taxação era cobrada também dos couros adquiridos aos castelhanos e aos índios e dos outros subprodutos dessa extração: os sebos e as línguas postas em barris de salmoura que eram enviadas

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para o Rio de Janeiro e consumidas como iguarias. O aproveitamento da carne era mínimo, restringindo-se ao consumo local e à pouca quantia enviada em navios, sob forma de tiras finas em conserva de salmoura. Muito pouca carne sofria o processo de salga para conservação característico do charque. Esse negócio dos couros, sua extração, aquisição e comercialização, bem como os seus efeitos, “naquele tempo era um dos maiores daquela conquista” (Porto, 1943 v.1: 354). E a cobrança dos quintos relacionadas a estes produtos animais provavelmente o mais rentável imposto cobrado em Sacramento no período. O direito de cobrança dos quintos dos couros era adquirido da Coroa por tempo determinado, geralmente três anos, sob paga de um valor fixo, cobrado ao final de cada ano de exercício. Os pagamentos da taxa podiam ser efetuados sob forma de produtos ou dinheiro, sendo mais recorrente a primeira forma. O mesmo ocorria com o pagamento do valor devido à Coroa: sob forma de produtos ou em moeda eram saldadas anualmente as parcelas. A escassa quantidade de moeda circulante na Colônia fazia com que, geralmente, o contratador optasse pelo primeiro modo. A Colônia do Sacramento, até a fundação de Rio Grande, era única praça onde tal imposto era arrecadado. Todavia, a sua aplicação abrangia todos os couros comercializados nessa área ainda indivisa. Os animais, por terem sido afugentados por espanhóis e “índios dos padres” ou extintos no entorno da fortificação, eram buscados por toda a campanha. Do território das Missões aos do delta do Rio Jacuí, dos Campos de Cima da Serra, às bordas do Rio Negro. Coureadores e changadores cruzavam as terras em sua incessante busca por “frutos da campanha”. A Banda Oriental e o Continente do Rio Grande de São Pedro se fundiam em uma única e imensa área de recolhimento e de fabricação de couros. A unidade espacial era conferida pelas atividades que nela se desenvolviam, muito mais que pelos tratados das mesas diplomáticas européias.

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Os coureadores, índios “dos padres” ou minuano, espanhóis ou portugueses, possuíam dela o domínio e o conhecimento. A intimidade destes homens com a região ia a tal ponto que aqui se podem lançar dúvidas quanto a possibilidade de serem ambos, Continente do Rio Grande de São Pedro e Banda Oriental coisas distintas. As evidências do trânsito das populações autóctones e de gente subordinada aos monarcas dos dois reinos nessa imensa planície, suas atividades e relações, levam, antes, a crer que estes são dois nomes diferentes para exatamente a mesma área. E toda ela sujeita à cobrança dos quintos dos couros, caso houvesse eficiência em sua arrecadação. Cabia ao arrematador dos quintos saber das potencialidades do negócio sobre o qual estava autorizado a arrecadar 20% do montante. Fiscalizava a sua efetiva cobrança para que não houvesse prejuízo, uma vez abatido do valor bruto o valor devido à Coroa. Por se tratar de uma alta quantia que ficava devida à Coroa no ato da arrematação, exigia-se um ou mais fiadores para a validação deste contrato. Ainda que não se conheçam os critérios específicos para que alguém pudesse arrematar e contratar os couros, para todas as adjudicações havia a necessidade comum: deveriam ambos, fiador e arrematador, contar com cabedais, boa reputação e boas relações na praça. Aurélio Porto reivindica para Cristóvão Pereira de Abreu o contrato dos couros do triênio que iniciava nos últimos meses de 1702, ou seja, o primeiro triênio em que tal imposto fora a leilão (Porto, 1943 v.1: 354). Considerando a imprecisão da data de nascimento de Cristóvão Pereira, ele poderia ter entre 19 e 24 anos de idade quando desta arrematação – o que, ainda assim, é considerada pouca para este tipo de atividade. Também era alto o valor desse contrato. Segundo Aurélio Porto, era de 70.000 cruzados ao ano. Essa quantia evidencia o conhecimento, por parte de representantes da Coroa, dos grandes valores movimentados nesse negócio. E conhecimento das potencialidades da exploração dos couros por parte do arrematador do contrato. Queda a pergunta sobre as maneiras

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que teria um jovem para aproximar-se do mais lucrativo negócio e do mais lucrativo imposto cobrado na região. Para averiguar e compreender ao menos parte das possibilidades que Sacramento reservava às carreiras dos recém chegados, necessita-se aqui de mais uma digressão, com apoio na trajetória peculiar de Cristóvão Pereira naquela praça.

Um começo de vida em Sacramento Cristóvão Pereira de Abreu deixou Portugal sozinho, ou seja, não veio acompanhando seus pais. E ao que tudo indica, não veio com grande fortuna a forrar os seus bolsos. Admite-se também que, nesse contexto de conquista, não eram muitos os que se arriscavam a tarefas extremamente perigosas, como internar-se na campanha, dispondo-se a ataques de indígenas e espanhóis na busca do gado selvagem. Quem fazia isto e sobrevivia aos perigos, tinha grandes possibilidades de fabricar grande quantidade de couros e vender a bom preço suas mercadorias. Há que se mencionar, também, os riscos próprios das atividades de preia e de coureada. Enfrentar manadas de milhares de bovinos indômitos era tarefa nada fácil. Um estouro do rebanho podia pôr a perder uma ou mais vidas. Mesmo a utilização de armas de fogo não auxiliava em muito a tarefa. Cabe aqui lembrar que estas armas não eram de repetição, necessitando de uma recarga que compreendia várias etapas após cada tiro. Se o primeiro disparo errasse o alvo, talvez não houvesse tempo ou ocasião para um segundo. Acredita-se que essa atividade pudesse constituir uma boa forma para alguém saído do nada – ou quase nada, ver-se-á adiante – avultar-se em Sacramento. Porém, dados os riscos inerentes a ela, parece pouco provável que, gente com cabedal suficiente tenha vindo pessoalmente à campanha. Estes preferiam, antes, pagar pelos serviços de alguns peões, utilizar-se de escravos ou pagar pelo produto já extraído pelos changadores e entregue dentro dos limites da civilização, ou seja, no espaço urbano

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de Sacramento ou em algum sítio ou depósito em suas imediações. Existem alusões acerca de Cristóvão Pereira de Abreu, pessoalmente, ter-se internado nas campanhas, indo das estâncias dos padres da Companhia de Jesus à Vacaria del Mar e ao território dos índios tape, no interior do atual Rio Grande do Sul. Logo, quando de suas primeiras atuações na Colônia do Sacramento, por jovem que era ou por desprovido de capital, fez-se necessária a sua atuação nas coureadas e nas negociações diretas com os índios que vendiam gado e couros. O fato de ter conseguido arrematar um contrato de valor elevado em tão pouco tempo indica que seu negócio prosperava e que, muito provavelmente, possuía relações com homens respeitáveis, na praça de Sacramento ou na praça do Rio de Janeiro, que lhe tinham confiança, o que demonstravam fiando-lhe a dívida com a Coroa. Atuando nos negócios ligados ao couro e outros produtos animais, iniciou sua carreira de negociante e arrecadador de taxas. Mas a prosperidade desse negócio não foi duradoura. Não pelo esgotamento de recursos – não ao menos neste momento –, nem por falta de mercado, mas porque a paz entre Portugal e Espanha rompeu-se novamente no ano de 1704, deixando tensas todas as localidades, que como Sacramento, achavam-se em situação de fronteira. Em 1705, após meses de cerco e de batalhas com os castelhanos, a Colônia do Sacramento foi abandonada pelos portugueses e ocupada pelos espanhóis (Monteiro,1937:146-163). No ano de 1705 o contrato dos quintos dos couros ainda estava com Cristóvão Pereira de Abreu, já que existe uma Carta Régia que ordena serem resguardados os direitos a ele pertencentes, respeitando as condições deste seu contrato (Publicações do AN, v. 1, 1922: p. 194). Esse fato é um tanto instigante e que merece estudo futuro: o território estava perdido para os portugueses, mas a cobrança de uma taxa instituída pela sua Coroa continuava a valer para essas terras, agora sob domínio de Espanha. Novamente há indicativo de não haver limites claros entre o que se julgava

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ser o Continente do Rio Grande de São Pedro e a Banda Oriental e que, mesmo estando em guerra os dois países europeus, de forma aberta ou velada o comércio entre os súditos de ambos continuava existindo. Também percebe-se que a rixa, transformada em guerra nas imediações da única praça lusa no Prata, era nascida muito mais nas altas esferas do que entre aqueles que compartilhavam das mesmas atividades. Mesmo que transformado em soldados, beligerantes cada qual na defesa de sua Coroa, seus negócios prosseguiam. Denota, por outro lado, que a Coroa lusa – malgrado suas incessantes tentativas de manter a posse territorial – mais do que deter este território, procurava garantir a mantença dos negócios de seus súditos com espanhóis e autóctones. Disso dependia o acesso da Coroa às riquezas provindas desta região. Até o descobrimento do ouro, Sacramento era a grande fonte de acesso luso aos metais preciosos, justamente através do comércio legal e do contrabando. E tampouco este fato seria uma novidade na história da expansão marítima lusa. No Estado da Índia, mais que a conquista de territórios, a Coroa portuguesa ocupou-se de sua colocação nas rotas comerciais existentes. Agindo dessa maneira, garantia sua integração nas rotas de negócios regionais já existentes (Thomaz, 1994). Talvez este modelo empregado na Ásia tenha sido, em tempos de instabilidade na diplomacia ou de guerras declaradas, o melhor a ser seguido nas bordas do Prata, até que, ou melhor dito, se a posse territorial se consolidasse. Durante todo esse tempo, os dez anos em que Colônia do Sacramento ficou sob domínio espanhol, dos homens que não desertaram, passando para o inimigo, muitos deslocaram-se para outras regiões. Alguns a tocar seus negócios, outros a servir Sua Majestade. Alguns homens “de resolução” (Sá, 1993: 37), como Cristóvão Pereira de Abreu fizeram ambas as coisas. Aqui se tenta entender o que poderia ter sido uma “carreira meteórica” para um jovem que chegou da península à Colônia do Sacramento sem a companhia de

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seus pais. Como pode, então, em poucos anos de atividade, pretender contrato de valor tão elevado? Teria ele enriquecido subitamente? Busca-se aqui, como já foi feito anteriormente, no local de origem dos homens que vinham lançar-se à sorte nesses locais ermos a possível explicação para tais interrogações. Jorge Miguel M. V. Pedreira, em Homens de Negócio da Praça de Lisboa constata que boa parte dos comerciantes de grosso trato da capital portuguesa eram descendentes de famílias minhotas, sendo a maioria destas famílias originárias de freguesias rurais, mas também há uma presença significativa de gente oriunda de situações urbanas, como Braga, Viana ou Guimarães (Pedreira, 1995: 193) e “A maior parte dos homens de negócio do reino e das conquistas são nascidos naquelas províncias. (...) Milhares de minhotos passam anualmente para o Brasil, e outras províncias do reino” (Silveira apud Pedreira, 1995: 193)

Ainda que o período observado por Pedreira seja imediatamente posterior ao abrangido no presente estudo, percebem-se válidas as suas conclusões para serem usadas aqui. O Minho, como dito por Pedreira, contribuiu com um considerável contingente de migrantes, inclusive para as regiões meridionais da América lusa. Os motivos para deixar o Minho são aludidos por este autor como sendo a pressão demográfica e “regimes sucessórios não igualitários que privavam da posse de terra uma grande parte dos descendentes, obrigando-os a abandonar a exploração agrícola” (Pedreira, 1995: 207). Como recorrência nas migrações desses minhotos, Pedreira verifica que os jovens migravam para regiões geograficamente afastadas. E quase sempre desenvolviam em carreiras outras que não as de seus pais. “A explicação reside numa configuração social que conjuga as estruturas econômico-sociais da região de origem – que impulsionam a

122 emigração de forma permanente – e os dispositivos de recepção, em Lisboa, dos que iam chegando. O caráter estrutural da imigração minhota e as redes que se teciam com base em laços de parentesco, em relações de amizade e de vizinhança ou nos próprios contratos do negócio propiciava a reprodução do movimento migratório e até dos itinerários pessoais. (...). A preferência entre herdeiros, que afastava vários elementos que cada geração, conferia um âmbito intergeracional às redes sociais e familiares que permitiu a colocação em Lisboa dos minhotos que aqui procuravam o caminho da prosperidade. Por isso era tão freqüente que o auxílio aos recém-chegados ficasse a cargo dos tios, que tinham percorrido o mesmo itinerário na geração anterior. Uma vez instaladas, estas redes, que não tinham um suporte exclusivamente familiar, pois mobilizavam também compadres, amigos e outros conhecimentos (...). De resto, a separação não implicava numa interrupção das relações com às famílias. (Pedreira,1995: 207-208).

Pensa-se ser este um bom caminho para se entender o caso de Cristóvão Pereira de Abreu. Aurélio Porto reporta-se à sua família de Braga, situada no Minho: “Os Pereira, da Ponte de Lima, descendem de D. Maria Pereira, filha natural do condestável D. Nuno Álvares Pereira (...) O nome Cristóvão é comum nesse ramo dos Pereira, vindo das mais velhas gerações. No Nobiliário de Afonso Torres encontram-se vários, dos quais um, D. Cristóvão Pereira, casado com uma Abreu. (...). Vinha dos mesmos troncos Cristóvão de Ornelas de Abreu, que teve, em 1681, patente (...) para servir na Colônia do Sacramento, de que foi, em 1685, governador (...).” (Porto: 1943 v.1: 353-354).

Ora, pressupõe-se então, que Cristóvão Pereira de Abreu não chegou à Colônia do Sacramento completamente desprovido. Talvez jovem e inexperiente. Talvez sem um dobrão no bolso. No entanto, um aparentado seu já havia exercido, ainda que interinamente, o posto maior que poderia obter um agente de Sua Majestade em uma fortificação militar. Mesmo que já houvesse deixado esta praça, não é inconcebível pensar que as relações estabelecidas por Cristóvão de Ornelas Abreu estivessem longe de se esmaecerem totalmente, e em sua ausência, ter deixado o jovem aparentado sob os auspícios de algum amigo ou mesmo um familiar seu. E as relações de Cristóvão de Ornelas extrapolavam os limites da praça de Sacramento, fazendo vau ao Prata e negociando mercadorias com o “inimigo” mesmo estando o fundador, D. Manuel Lobo, sob prisão em território espanhol.

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Rêgo Monteiro, por exemplo, afirma que após um ataque de espanhóis a Sacramento, com Cristóvão de Ornelas no comando, as proibições à mantença do comércio com o inimigo recrudesceram. Não como represália às ofensas servidas, “Pois era certo que o Governador Dornelas, de conluio com o de Buenos Aires, fazia comércio por sua conta, não permitindo que os mais o fizessem, chegando a ponto de mandar ao fundo um lanchão de particulares que comerciavam às ocultas”. (Monteiro, 1937 v.1: 108)

Não foi possível, ainda, conferir a veracidade desse parentesco aludido por Aurélio Porto junto à documentação paroquial portuguesa ou mesmo junto à genealogias que o incluam. Considerando que fraudes nos registros eclesiásticos e genealogias falsamente forjadas com o intuito de garantir uma nobreza ancestral aos poderosos desse período, obtenção de distinções, ingresso nas ordens militares ou em certas confrarias não foram tão raras assim (Mello: 2000), esses laços familiares ficam sob suspeita até que se possa investiga-los. No entanto, essa informação não é de todo desprezível, e dando um voto de confiança ao autor da História das Missões Orientais do Uruguai, considerar-se-á aqui a possibilidade de realmente existir algum vínculo entre esses dois Cristóvãos. Isso indica que, ao modo dos minhotos, Cristóvão Pereira dirigiu-se a uma localidade distante, onde existiam relações de parentesco, amizade e/ou compadrio e de negócios que remontavam o seu local de origem. Dada a qualidade do seu possível aparentado em Sacramento, a vida para ele deve ter sido um tanto mais fácil do que para alguém totalmente isento dessas ligações. Até mesmo para os relacionamentos com a outra margem do Prata poderia, ao que tudo indica, ao jovem de Ponte de Lima, ter tocado certa parcela de “herança” deixada por Ornelas. Não foram raras as vezes que Cristóvão Pereira manteve negócios e relações de amizade com gente do Chile e de Buenos Aires (Carta de Cristóvão Pereira a Gomes Freire de Andrade – 1736, in BR, 1946: 360), tendo, nos idos de

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1730, procurador constituído nessa cidade. Anterior ao grande cerco de Sacramento de 1737, acolheu em sua casa um homem: “Este castelhano é filho de Chile homem grave e sendo casado em Buenos Aires e sucedeu um caso de honra de que não pode tomar despique por cuja causa se retirou para Colônia onde assistiu em minha casa muitos anos e dele me vali pela inteligência que tinha para alguns negócios, e principalmente para o desfruto das campanhas. (Carta de Cristóvão Pereira a Gomes Freire de Andrade – 1736, in BR, 1946: 360)”

que posteriormente passou a viver na campanha, nas imediações da cidade, servindolhe de informante dos movimentos dos castelhanos no entorno da praça. Mesmo na sua correspondência com Gomes Freire de Andrade, Cristóvão Pereira de Abreu cuidadosamente omite o nome de tal espia, preservando ao mesmo tempo o anonimato, a integridade física e a amizade (Carta de Cristóvão Pereira a Gomes Freire de Andrade – 1736, in BR, 1946: 359-360) Em Sacramento e na campanha ao seu redor, viviam, às vezes sob o mesmo teto, homens de Portugal e homens de Espanha. Ligados pela amizade que sabe-se lá como surgira, mas que fora mantida através das atividades comuns “alguns negócios e o desfruto da campanha”. Os marcos divisórios estabelecidos pelas duas Coroas eram antes de mais nada uma membrana permeável às relações sociais entre os seus súditos. Os elos humanos da grande cadeia de relacionamentos e parentescos moviamse através dela senão a bel prazer, ao menos com muita desenvoltura. Situação semelhante encontrou Fábio Kühn para os Campos de Viamão durante o período de 1763-1777, no qual a Vila do Rio Grande esteve dominada pelos espanhóis, e portanto, uma ruptura diplomática havia ocorrido. No entanto, entre os habitantes dos Campos de Viamão havia espanhóis que casavam, eram padrinhos ou batizavam seus filhos, dando a idéia de que as amizades e os parentescos permaneciam para as famílias e os conflitos, os rompimentos e as beligerâncias eram deixados para ambas as Majestades (Kühn, 1999). Novamente se sugere que a pampa sulina era um

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grande espaço que mantinha a sua integridade mesmo quando as Coroas davam contra. Na década de 1750, Cristóvão Pereira manteve animada correspondência pessoal com D. José de Andonaegui, governador de Buenos Aires. No teor dessas cartas estão desde saudações à esposa de Andonaegui, tratando-a pelo nome – o que denota a grande intimidade que tinha com o governador buenairense –, até agradecimentos à sua intercessão, graças à qual ele, Cristóvão Pereira pode conduzir animais - matrizes e reprodutores - para a produção de muares das campanhas de Buenos Aires, passando pela Banda Oriental e adentrando ao Continente do Rio Grande de São Pedro, escapando da acusação de contrabando (AGN, Sala IX, Legajo 3.8.2). Mesmo que houvesse ingressado nos negócios da região platina através da mão de um protetor, caberia a ele, Cristóvão Pereira de Abreu, a manutenção dessas relações e boa condução dos comércios e negócios, reforçando e ampliando os laços e mantendo seu nome “limpo” no meio em que atuava. Há uma “herança”, não contabilizada por não ser passível de atribuição de valores, semelhante à aquela demonstrada por Giovanni Levi (2000). Às relações comerciais e de amizade abertas por Cristóvão de Ornelas provavelmente foi apresentado Cristóvão Pereira, que, nesse caso, não deixou que permanecessem estáticas, foram re-investidas na perpetuação e expansão dos laços de amizade e negócios em que estava metido, gerando novos laços. Essas relações interpessoais de reciprocidade, lembrando mais uma vez Marcel Mauss (1974: 41), eram componentes da vida familiar, política, econômica e social, cada uma à sua vez e todas simultaneamente. Este “bem”, possivelmente repassado por seu parente mais velho, se enquadra na categoria de dons que Maurice Godelier (2001), estudou ao tentar resolver o “enigma do dom”. Godelier analisa as “coisas” – que muito bem podem ser os objetos, as pessoas, as magias, os nomes, os segredos, etc. – que não são passíveis de serem trocados, dados ou vendidos. Tampouco a posse pode ser dada em definitivo. São

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inalienáveis, com usufruto legado dentro de um círculo muito restrito de pessoas. Permanecem dentro das famílias e clãs, sendo repassados através das gerações (Godelier, 2001: 16-17; 93-96). São elementos que os diferenciam do restante do grupo social e lhes fornecem capacidades especiais que não podem ser possuídas por outros grupos. As relações no comércio e sociedade platinos, supõe-se aqui, não seriam repassadas a um estranho. Mas é plausível pensar que fluiriam de um Cristóvão Abreu para outro Cristóvão Abreu, dando continuidade ao nome, ao prestígio, a certa gama de poder já construídos na praça. Assim, o jovem iniciado nesta rede já detém este legado antes mesmo de ingressar na cadeia de trocas construída.

A estada no Rio de Janeiro Segundo Aurélio Porto (1943), no ano de 1704, Cristóvão Pereira de Abreu já se encontrava no Rio de Janeiro. Enquanto Sacramento permanecia sob domínio espanhol, casou-se, também no Rio, no ano de 1708. Desposou Dona Clara Maria Apolinária de Amorim, “pertencente a uma das mais ilustres famílias da cidade” (Porto, 1943 v.1: 356). A sua união com dona Clara, antes de mais nada, significou seu ingresso em um círculo bastante restrito. O pai de dona Clara possivelmente era um estrangeiro na cidade do Rio de Janeiro, já que na genealogia construída por Carlos Rheingantz (1965) para as primeiras famílias cariocas não lhe são indicadas a ascendência nem a procedência. A mãe, Simoa Vieira, procedia de família senhorial, presente na cidade desde as últimas décadas do século XVI. Seu pai, Gonçalo de Muros (Rheingantz 1969, havia sido contratador dos dízimos do Rio de Janeiro (AUH, CA, RJ, cx 5, doc. 860), vereador na Câmara desta cidade (RJ-DGPEA, 1935), e senhor de engenho (Cartório do 1o. Ofício de Notas do RJ, Escritura de Quitação de 1679).

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Duas das irmãs de dona Clara casaram-se com parentes, dois irmãos, que como elas eram vinculados à família Muros. Pelo menos um dos cunhados exerceu cargo na Câmara do Rio de Janeiro, assim como o pai deles. Também as famílias desses cunhados possuíam ao menos um engenho de açúcar. A mistura do poder político e o poder econômico e prestígio fazia parte da grande química que permitiu a formação de fortunas e agiu na perpetuação da sociedade hierarquizada e excludente que se formava na Colônia (Fragoso, 2001). Esse era o perfil da família na qual se inseriu Cristóvão Pereira de Abreu. Impossível saber neste momento qual a porta permitiu a Cristóvão Pereira aceder a esta família. Pode-se, no entanto, especular sobre algumas hipóteses. A primeira é sugerir que o seu sogro, Félix Bezerra da Rocha, tal como Cristóvão fosse procedente do Minho. Considerando que não se trata de pessoa de família com tradição na cidade e que o sobrenome Amorim, dado a duas filhas é o mesmo sobrenome de dona Leonor Pereira de Amorim, mãe de Cristóvão Pereira de Abreu. Assim como o outro possível parente o recebeu e encaminhou na Colônia do Sacramento, um outro aparentado poderia ter-lhe incluído no seio da família através do matrimônio com uma das filhas. Isto não seria de todo improvável, já que os outros genros de Félix Bezerra da Rocha pertenciam à rede parental materna da família das suas noivas. Uma segunda hipótese, aventa-se aqui, são relações que poderiam ter surgido na própria Colônia do Sacramento. Ao que tudo indica, um dos seus cunhados que era capitão, andara embarcado pelo Rio da Prata. De uma amizade travada na região meridional da Colônia poderia ter-se dado a introdução de Cristóvão Pereira no núcleo familiar carioca. Todavia, não se pode ainda avançar para além dessas conjecturas. São especulações e nada mais, alerta-se novamente. Pretende-se, em momento oportuno, precisar as circunstâncias que propiciaram tal matrimônio. Não é improvável, também, que sua aceitação como contratador dos couros,

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a obtenção de fiadores e a manutenção dos direitos desse contrato quando a Colônia do Sacramento estava perdida para os lusos, tenham sido fruto de sua relação com uma família de tal porte. Se uma parte de seus negócios sediadas no sul estava em decadência devido ao abandono de Sacramento, isso não significa que tenha ficado parado. Cristóvão Pereira de Abreu foi o arrematador dos direitos dos dízimos sobre o tabaco para o Rio de Janeiro entre 1707 e 1710, conforme uma petição do ano de 17162 (AHU,RJ, CA, doc. 3.474). Em que pese a possibilidade deste contrato não ser dos maiores em importância na cidade do Rio de Janeiro, podia ser um dos mais proveitosos para o seu comércio sulino. O tabaco era uma das mercadorias preferenciais no escambo com os índios minuano, cuja contrapartida eram gados vacuns, cavalares e os couros, conforme citação no capítulo anterior. O arrematador do contrato cobrando em produto a parte que lhe era devida e tendo ele próprio isenção sobre embarque do mesmo, obtinha a baixos custos a mercadoria de seu outro negócio, o comércio dos animais e seus produtos. Os contratos do tabaco e dos couros estendia, na figura de Cristóvão Pereira de Abreu, o alcance das famílias Muros e Souza Coutinho para a região do Prata. Nisso se percebe que, se sua inserção nesta família foi proveitosa para sua carreira, a contrapartida, o proveito da família com o ingresso de Cristóvão Pereira também é verdadeira. Aurélio Porto também alude que nesta estada prolongada no Rio de Janeiro há uma participação ativa de Cristóvão Pereira de Abreu na junta formada no Engenho Novo dos Padres Jesuítas para decidir sobre o resgate que deveria ser pago aos franceses que tomaram o Rio de Janeiro em 1711 (Porto, 1943 v.1: 355). Não foi possível averiguar a veracidade de sua presença. Entretanto, a julgar que por essa época

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Agradeço a Antônio Carlos Jucá de Sampaio a indicação deste documento.

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Cristóvão Pereira de Abreu recebeu o hábito de cavaleiro da Ordem de Cristo, essa presumida atuação poderia ter colaborado para demonstrar sua lealdade para com a Coroa na obtenção dessa distinção (Franco, 1989: 12-13). Além disso, um de seus cunhados, Manuel de Souza Coutinho casado com dona Ângela Bezerra, irmã de dona Clara, é mencionado em documento que registra a decisão dos valores a serem tomados por empréstimo para o pagamento do resgate (AHU,RJ, CA, doc. 3.396), o que torna esta hipótese bastante verossímil. No ano de 1718, segundo a genealogia de Carlos Rheingantz, teria nascido um filho seu, de nome Antônio, todavia sem registro de sobrenome (Rheingantz, 1965: 205). Em 1719, possivelmente em função de sua viuvez, teria ele retornado à Sacramento. O que realmente chama a atenção, tanto em sua estada no Rio de Janeiro como no tempo em que passou no sul é sorte das redes de relações em que se inseriu. No Prata e no Rio de Janeiro, Cristóvão circulava em esferas de mando político e poder econômico, e vislumbra-se ele como sendo um elo nas possíveis ligações de sua família carioca com a região platina.

O tempo das condutas das tropas Na ano de 1722 há novos registros documentais, citados por Aurélio Porto, acerca de sua atividade de coureada – ou colher os frutos da campanha, como consta em muitos desses registros – são encontrados. Mas ao que parece, ao final década de 1720 foi despertado seu interesse para um outro tipo de atividade: o transporte de animais, por via terrestre para outras localidades. O seu e o de mais gente, inclusive o da Coroa portuguesa, que já estava ciente da carência de transportes na região mineradora. São Paulo, fornecedor de gêneros alimentos e de animais de transporte para as Minas, também passou por momentos difíceis. Atraídos pelos veios de ouro que

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fluíam para os seus cofres, os paulistas que atuaram nas rotas de comércio de abastecimento das Minas acabaram por desabastecer sua própria região. Houve um período de carestia e de escassez de alimentos junto às áreas produtoras, pois tudo era remetido para onde corria o ouro (Zemella: 1990: 54-65). Num primeiro momento, os animais vacuns eram enviados para a Laguna e daí transformados em carne salgada ou por alguma antiga rota dos bandeirantes, eram enviados, não sem dificuldades, para São Paulo. Na segunda Notícia Prática dada ao Padre Diogo Soares, anterior a 1730, Cristóvão Pereira de Abreu descreve o trajeto de Sacramento à Vila da Laguna, por terra, dizendo de como proceder a travessia do Rio Grande (barra da Lagoa dos Patos), coisa que já havia feito várias vezes conduzindo seus animais sozinho e na companhia de outros condutores da Laguna (Abreu. 1908: 307). Estando na Laguna, quando da chegada do sargento-mor Souza e Faria, com as ordens para a abertura de um caminho para São Paulo, primeiro Cristóvão de Pereira de Abreu intercedeu para a solução dos empecilhos gerados pelos lagunistas ao recrutamento de homens e em seguida retornou à Sacramento, juntando homens e animais para cumprir a primeira viagem. Todavia, o caminho aberto era muito precário e seguido com muita dificuldade. Os homens conseguiram trilhar trechos abertos por Souza e Faria e outros tantos necessitaram ser retificados, melhorados ou ainda abertas rotas alternativas. Ao que tudo indica, eram os homens que “foram pelo sertão com tropas de Cristóvão Pereira de Abreu abrindo o caminho” (AHCMPA – Auto de Justificação de Solteiro de Manuel de Barros Pereira – 1759). Treze meses durou a jornada até Curitiba. O caminho, retificado por Cristóvão Pereira, acrescido de pontes e balsas nas passagens dos rios, podia agora ser cumprido em poucos meses (Abreu, 1908: 257). Até São Paulo, foram de três a quatro anos cumprindo esta tarefa, já que consta terem partido de Sacramento ainda em 1727 e chegado a São Paulo em 1730 .

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Essa viagem inaugural, misto de desbravamento e comboio com finalidade de comércio dos animais, rendeu, de direitos sobre a passagem dos animais, algo em torno de dez mil cruzados (Abreu, 1908: 258). E mais do que isso, a garantia de um fluxo sazonal, mas regular, de cavalgaduras e gado de corte. Supõe-se que com a abertura deste caminho, Cristóvão Pereira tenha deixado um pouco de lado, mas não de todo, a participação in loco na extração dos frutos da campanha e do seu comércio. Passou a atuar, pessoalmente ou através de gente a seu mando, das incessantes viagens na conduta de tropas para São Paulo e para as Minas. Na carta de sesmaria de três léguas que recebeu em Minas, datado do ano de 1751, Cristóvão Pereira diz ocupar as terras “como tutor, e curador do seu Irmão o Reverendo Doutor Manuel de Amorim Pereira, se achava de posse per si, e pelo demente, seu Irmão, há mais de vinte anos de uma fazenda sita no Sertão de Itambé da Comarca do Serro Frio, a qual se chamava Condado” (RAPM, 1921. 389-391).

Retroagindo estes vinte anos, pouco mais ou pouco menos, há a coincidência com o final da primeira viagem em conduta. Também confirmam a sua atuação direta em tal atividade outros documentos consultados.Veja-se trecho do bando lançado pelo governador de São Paulo, Antônio Luís de Távora, conde de Sarzedas, em 1734: “Por se haver novamente concluído a abertura do caminho da Laguna e Colônia [do Sacramento] por terra para a vila de Curuytuba desta capitania e ser conveniente que os direitos reais se não desencaminhem como acontece por falta de darem fianças naquela vila de que resulta muitos introdutores das cavalgaduras, disporem delas: ordeno e mando, que de hoje em diante não passe pessoa alguma com os seus comboios da referida vila de Curuytuba sem dar fiança perante o provedor do registro (...) tudo debaixo das penas que tem os desencaminhadores, da Real Fazenda; e porque me consta que muitas pessoas das que tem entrado com os comboios de Cristóvão Pereira de Abreu não tem dado fiança até o presente em prejuízo da Fazenda Real (...).” (RAMSP/AMSP, 1939: 253 – grifo meu)

Este não foi o único problema com os “descaminhos” cometidos por Cristóvão

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Pereira. Desde 1723 pesam sobre ele acusações de desvio dos quintos dos couros (AHU-NCS doc. 102. Carta de Antônio Pedro de Vasconcelos sobre o embargo dos couros de Cristóvão Pereira de Abreu, pelo não pagamento dos quintos enviados no navio Nossa Senhora Madre de Deus e São José – 1723). Ao que tudo indica, tratavase do embarque clandestino desse produto diretamente em navios ingleses que aportavam no Rio da Prata. Ao final da década de 1720 há, em Sacramento, um largo processo que resultou em devassa acerca de seu envolvimento com o contrabando de couros. Essa devassa foi encerrada com certa brevidade, dada a sua posição destacada dentro desta sociedade bem como a qualidade de seus amigos; – entre eles Gomes Freire de Andrade, José da Silva Pais e o próprio Antônio Luís de Távora. O então governador de Sacramento, Antônio Pedro de Vasconcelos, também amigo e pertencente à rede de negócios em que atuava Cristóvão Pereira, teve de colocar sob prisão o sócio de Cristóvão Pereira, o frei Sebastião Alves (ou Álvares), do hábito do Carmo, o outro único acusado nessa devassa. Aconselhado pelo governador do Rio de Janeiro, Vahia Monteiro, o “Onça”, para que não os prendesse e sim os expulsasse como contraventores que eram. Antônio Pedro alegou estar de mãos atadas, “pois o secular além de andar ausente tem hábito de christo; e por provisão que V. Mag. Passou ao juiz de fora do Rio de janeiro [...] a favor dos cavaleiros das três ordens militares para que não serem presos nem vechados de cabo de guerra ou ministro de justiça sem ser em flagrante delito, ou por ordem de outro dos mesmos Cavaleiros”. (AHU -NCS doc.195 – Carta de Antônio Pedro de Vasconcelos ao Rei sobre devassa que fez e enviou ao Conselho Ultramarino acerca das atividades ilegais do religioso carmelita frei Sebastião Álvares e do homem de negócios Cristóvão Pereira de Abreu – 1728)

A esse respeito, o governador Vahia Monteiro, fez comentário sarcástico: “se um professo no hábito do Carmo pode ser castigado, por que não o pode um do hábito

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de Cristo?” (apud Porto, 1943 v.1: 359). Em 1728 estava Cristóvão Pereira, confirmado por José Pedro de Vasconcelos, embrenhado aos matos, ocupado em abrir o Caminho das Tropas (Ver Ilustração 4). Ao despontar no outro extremo do trajeto, em vez de punição recebeu elogios e agradecimentos, engordou os cofres de Sua Majestade com mais de dez mil cruzados, os seus com outro tanto resultante da venda dos animais, e deixou o caminho apto para outros comboios trilharem. O momento da viagem se revelara providencial para inverter o rumo que tomavam os acontecimentos em Sacramento. Desse ponto, ou seja, do início das viagens em remessas de animais retomase o tema dessas tropas, que após a abertura do Caminho das Tropas e de sua correção, chamado de Caminho de Cristóvão Pereira, teve fluxo constante, apesar de sazonal, permitindo, como quer Alfredo Ellis Jr. que várias regiões da Colônia lusa e mesmo do Prata espanhol, tocados pela presença do ouro das Minas, se integrassem através dessas rotas terrestres (Ellis Jr, 1950).

5. A fixação das populações dos Campos de Viamão

A trajetória do Coronel de Ordenanças Cristóvão Pereira de Abreu, mais do que as suas próprias iniciativas, dá a perceber as modificações que ocorreram na Colônia como um todo. Do final da década de 1690 até os primeiros trinta anos do século XVIII, as atividades econômicas sulinas centravam-se na extração dos produtos dos gados. O escoamento feito por mar tinha por objetivo o porto do Rio para a sua redistribuição na América portuguesa ou para novo embarque rumo à Europa. Após este período, tais produtos do sul deram, paulatinamente, lugar à comercialização dos rebanhos de bovinos, eqüinos e muares, conduzidos em pé por rotas internas ao território colonial. Essa mudança, que se iniciou nos últimos anos da década de 1720, denota que a transferência de grandes contingentes populacionais

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Ilustração 4 As rotas das tropas e as localidades por onde passavam os animais

Fonte: Simonsen, 1957, encarte entre páginas 254-255. Modificado para fins de ilustração neste estudo.

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para o interior, basicamente em função das atividades de mineração e o correlato desenvolvimento de lavouras para o seu abastecimento, aumentou a demanda por estes animais. Um mercado interno à Colônia, necessitado de meios de transporte para os produtos que circulavam do litoral às minas e pelos sertões que se povoavam mais e mais, tornava-se consistente. A riqueza animal que se reproduzia nos campos era, portanto, transformada em mercadorias passíveis de comercialização em outros pontos da Colônia. Coincidente com os primeiros cinco anos de viagens na conduta das tropas é o surgimento dos núcleos populacionais, oficiais ou não no alegado grande “hiato” populacional entre a Vila da Laguna e a Colônia do Sacramento. Em data anterior a 1735 alguns lagunistas já estavam situados nos Campos de Viamão. O ouro moveu populações mesmo para áreas bem distantes das regiões mineradoras (Boxer, 2000). Em 1737, na barra da Lagoa dos Patos estavam o Coronel Cristóvão Pereira de Abreu, o Tenente Francisco de Souza e Faria, o Capitão Domingos Gomes Ribeiro, entre outros, a espera do desembarque de José da Silva Pais, munidos de ordens para erigir o presídio de Jesus, Maria e José, que daria origem à futura Vila do Rio Grande. O local ideal para a construção do forte foi indicado às autoridades por estes e outros condutores de animais, conforme se lê na segunda Notícia Prática de Cristóvão Pereira ao pe. geógrafo Diogo Soares: “E tornando ao Rio Grande (...) naquele lugar se pode fazer com um rio de excelente água doce, que permanente por um lado se mete no Rio Grande (...). Neste lugar é a única parte em que se pode povoar, e passar, e ainda que tem bastante largura, não é dificultoso o passar nela animais e razão de que com maré vazia tem bancos em que descansam, e tem já passado muitos com felicidade conduzidos pelos mercadores da Laguna, e eu passei alguns em minha companhia. (ABREU, 1908: 308).

Vários participantes da empreitada de “abertura do Caminho das Tropas” foram também alguns dos primeiros a se estabelecerem no Continente. Assim se deu

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com João de Magalhães, Cristóvão Pereira, Manuel de Barros Pereira, Agostinho Guterres, entre outros (AHCMPA – Auto de Justificação de Solteiro de Manuel de Barros Pereira 1759). A exceção do último citado, para quem ainda não se localizou documento que comprove, estes homens receberam, em algum momento de suas vidas, uma ou mais sesmaria por doação régia. Também foram eles detentores de alguma patente militar, do Regimento de Dragões ou da Companhia das Ordenanças (RAPM XIX, 1921: 389-391; RAPM, 1929: 474-475. RAPM, 1933: 171, 180, 215-216, 248250).

Das relações que se estabeleciam O comércio dos animais, correlato, pois, à exploração do ouro, propiciava não apenas o aparecimento de novos núcleos populacionais, a exemplo dos povoados de Viamão e Lajes, como também punha em contato as famílias dessas diferentes localidades. Exemplificam-se aqui com alguns casos de trabalhadores em condutas de animais que estabeleceram-se nos Campos de Viamão, como o pardo Bento de Oliveira, já citado no capítulo anterior, natural de Taubaté; Felipe de Santiago, natural de Córdoba, em terras de Espanha; Félix Rodrigues Fernandes, natural de Santa Catarina, freguesia de Nossa Senhora do Desterro; José Veloso, natural de Curitiba; Sebastião Rodrigues da Cruz, natural de Paranaguá ou Francisco Martins Soares, da freguesia de Mariana, nas Minas. Todos casaram com noivas nascidas no Continente ou que tinham os pais lá estabelecidos há alguns anos. (AHCMPA - Autos matrimoniais de Bento de Oliveira e Angélica – 1753; Autos matrimoniais de José Veloso e Rosa Maria – 1753; Autos Matrimoniais de Felipe de Santiago e Inácia Fernandes – 1761; Autos Matrimoniais Felix Rodrigues Fernandes e Cristina Guterres – 1759; Autos Matrimoniais de Sebastião Rodrigues da Cruz e Petronila Carvalho de Oliveira – 1756; Carvalho, in RIHGRGS, 121, 1975: 144).

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O Caminho das Tropas não uniu apenas geograficamente os pontos de atividade de pouso, invernada e comércio de animais que ficavam ao longo de seu trajeto. Aproximou a gente que habitava os povoados, pequenos ou grandes, que passaram a contar com um fluxo sazonal, mas constante, de peões, condutores, comerciantes, tratadores e adestradores de animais. As famílias se utilizavam da rota. O contato entre membros de comunidades por vezes com mais de mil ou mil e quinhentos quilômetros entre elas se fazia através dos migrantes. Estes deixavam seus lugares de origem e de nascimento, mas não rompiam os vínculos com tais localidades. Os Autos Matrimoniais (AHCMPA) apresentam testemunhos de pessoas de muitos locais por onde passara o migrante aspirante ao casamento. O tipo de informação prestada pelas testemunhas muitas vezes indicam que tinham notícias freqüentes do membro da comunidade que partira. Isto deixa claro que as ligações não estagnavam com o distanciamento, ao contrário, mantinham-se vívidas e ativas por muitos anos. A família constituída por Jerônimo de Ornelas, um dos primeiros habitantes dos Campos de Viamão, estudada por Fábio Kühn é exemplar. Jerônimo tinha parentesco com Francisco de Brito Peixoto por haver casado com uma prima deste. Além das muitos filhas de seu casamento com Dona Lucrécia Leme Barbosa, natural da Vila de Guaratinguetá, pelo menos dois bastardos foram batizados tendo-lhe como pai nomeado no registro. Um rapaz, filho de uma índia de Minas, posteriormente moradora de São Paulo, e uma moça, filha de uma mulher de Curitiba. Destaca-se que tanto Curitiba quanto as Minas ficavam no roteiro dos condutores de animais (Kühn, 2001a). As viagens de conduta de animais até os locais de sua venda eram muito longas. Duravam até três meses ou mais para Curitiba, nove meses ou mais até Sorocaba e mais de ano para as Minas. Foram estas relações, estabelecidas com famílias locais e que estabeleceram novas famílias ao longo do trajeto que deram sustento aos condutores. De uma certa maneira, estes relacionamentos possibilitavam a sua aceitação

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e assimilação nos diferentes locais onde exerciam seu ofício de comerciantes e condutores. A obtenção de bons negócios, compradores certos, e melhores preços para suas mercadorias, hospedagem, satisfação de necessidades básicas e mesmo sobrevivência, podiam depender do estabelecimento dessas ligações. Nem só de bastardias e relações não homologadas pela Igreja estas redes parentais se construíram. Dois outros ramos da família de Francisco de Brito Peixoto também são exemplos das íntimas ligações estabelecidas entre elites locais envolvidas no trato dos animais. Ao que tudo indica, o Tenente de Ordenanças Cláudio Guterres, neto de Francisco de Brito Peixoto, fez o primeiro casamento que solidificava uma aliança entre a família do antigo Capitão-mor da Laguna e descendentes de capitães-mores de Sorocaba. Infere-se esta primazia ao desposar a moça sorocabana pelo fato de ter trazido com ele, em uma de suas viagens, a menina Felícia, filha de uma escrava de seu sogro, provavelmente como parte do dote (AHCMPA - Autos Matrimoniais de Diogo e Felícia – 1753). Os demais casamentos entre estas famílias ocorreram quando seu sogro, Manuel dos Santos Robalo, já havia falecido. Cláudio casou-se em primeiras núpcias com Gertrudes dos Santos, neta do já falecido Capitão-mor de Sorocaba Antônio Antunes Maciel e filha do então Capitão-mor da mesma vila, Manuel dos Santos Robalo com Maria Moreira Maciel (AHCMPA - Autos matrimoniais de Jerônimo Pais de Barros e Benta dos Santos Robalo – 1757). Depois de Cláudio, João de Magalhães, o moço, primo de Cláudio, casou-se em Sorocaba, no ano de 1742 com Joana Gracia Maciel (Leme, versão para Internet), irmã viúva Maria Moreira Maciel e tia de Gertrudes. João de Magalhães, o velho, viúvo de uma tia materna de Cláudio, casou-se com Maria Moreira Maciel, sogra de Cláudio. Era esta mulher, portanto, filha de um capitão-mor e viúva de outro.

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Lucas de Magalhães, outro filho de João de Magalhães, o velho, casou-se com Maria Pires, filha de Joana Gracia Maciel (AHCMPA – 1o Livro de Batismos de Viamão fl. 6, 59.). E por último, Andrezza Velosa Maciel, também filha de João de Magalhães, o velho e Maria Moreira Maciel, casou-se com um primo em terceiro grau, natural de Sorocaba. Veja-se a seguir o quadro montado com o intuito de desfazer o nó do parentesco entre alguns dos descendentes de Brito Peixoto e as descendentes de Antônio Antunes Maciel:

Quadro I - Casamentos entre descendentes de Francisco de Brito Peixoto e de Antônio Antunes Maciel

P ai s J o ão d e M ag al hãe s , o v e l ho

??

Cô n j u g e

S ogros

F o n tes

M ari a M o re i ra M ac i e l

A ntô ni o A ntune s M ac i e l e M ari a Do m i n g u e s

AHCMPA – 1º Livro de Batismos de Viamão; Autos Matrimoniais de Antônio Alves Paiva e Andreza Velosa Maciel – 1762

J o ão d e M ag al hãe s , o m o ç o

J o ão d e M ag al hãe s , o v e l ho e A na d e B ri to

J o ana G rac i a M ac i e l

A ntô ni o A ntune s M ac i e l e M ari a Do m i n g u e s

AHCMPA – 1º Livro de Batismos de Viamão, AUTO DE DENÚNCIA que mandou fazer o Reverendo Vigário José Carlos da Silva ...

Luc as d e M ag al hãe s

J o ão d e M ag al hãe s , o v e l ho e A na d e B ri to A g o s ti nho Gute rre s e M ari a d e B ri to

M ari a P i re s

A ntô ni o P i re s B and e i ra e J o ana G rac i a M ac i e l

AHCMPA 1º Livro de Batismos de Viamão

Ge rtrud e s d o s S a n to s

M ari a M o re i ra M ac i e l e M anue l d o s S anto s Ro b a l o

AHCMPA – Autos Matrimoniais de Jerônimo Pais de Barros e Benta dos Santos Robalo – 1756

A ntô ni o A l v e s P ai v a

J o s é A l v e s Go m e s e Is a b e l S o a r e s P a i s (p ri m a 3º g rau d e M ari a M . M ac i e l )

AHCMPA 1º Livro de Batismos de Viamão; Autos Matrimoniais de Antônio Alves Paiva e Andreza Velosa Maciel – 1762

Cl áud i o Gute rre s

A nd re z a Ve l o s a M ac i e l

J o ão d e M ag al hãe s , o v e l ho e M ari a M o re i ra M ac i e l

O que teria propiciado o conhecimento de Cláudio e Gertrudes, supõe-se aqui, seriam as atividades de comércio de animais e suas correlatas. Agostinho Guterres, pai de Cláudio atuara na primeira viagem pelo Caminho das Tropas e não é difícil de imaginar que Cláudio teria feito uma ou mais viagens em conduta. O pai de sua esposa provavelmente também teria atuado no comércio de animais. Tampouco devem ter sido outras as formas de contato entre os Magalhães e as famílias

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sorocabanas. João de Magalhães, o velho, outro antigo condutor de tropas e pioneiro da abertura do Caminho, fora casado em primeiras núpcias com a filha do capitão-mor de Laguna, Ana de Brito. Era noivo à altura da filha e viúva de capitães-mores, desta vez o de Sorocaba. Manuel dos Santos Robalo, primeiro marido de Maria Moreira Maciel, possuía terras nos Campos de Cima da Serra, localidade que margeava o Caminho das Tropas e caracterizada por ser pontilhada de fazendas de comerciantes de gado (AHCMPA Rol dos Confessados de Viamão – Fazendas de Cima da Serra – 1751). Na “Fazenda do defunto Robalo”, assim como nos outros dez fogos contados em Cima da Serra, não há a presença das famílias de seus proprietários, nem dos próprios, pois não foram arrolados lá em 1751. De todos os confessados das Fazendas de Cima da Serra cujo sexo pode ser determinado apenas duas são mulheres e estão em uma única propriedade. Estas são mulheres dos agregados e não de membros de família de proprietários. Tratavam-se de locais de trabalho, com alguma lavoura e principalmente de invernada e estocagem de animais. Não eram locais de residência dos proprietários e suas famílias. Apesar dos Róis dos Confessados não trazerem anotações acerca da produção dessas unidades, das onze que são arroladas contadas em Cima da Serra, nove pertencem, com certeza, a produtores e/ou comerciantes de animais. Difícil pensar que o morador da Vila de Sorocaba tivesse ali outra atividade que não a de seus vizinhos, também absenteístas. Das cinco unidades para as quais se localizou a carta de sesmaria, quatro tem as dimensões de “três léguas de comprido por uma largo”, a quinta é um pouco menor, constando de “duas léguas de comprido por pouco mais de uma de largo”, mas ainda é uma grande propriedade (RAPM, 1929: 463-464; 468-469 RAPM, 1933: 50-52; 171; 215-216;). Três desses proprietários possuíam outras terras no Continente do

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Rio Grande de São Pedro e um em Minas Gerais e Montevidéu (AHCMPA – Rol dos Confessados de Viamão – 1751; RAPM, 1921: 389-391; Apolant, 1966: 9). Eram as Fazendas, portanto, grandes extensões de terras, e com pouquíssimos moradores. A mais populosa contava com talvez nove confessados –impossível de determinar uma vez que o documento está corroído, servindo o número de linhas para estimar em quatro ou cinco o número de escravos. Os moradores eram, um filho homem do proprietário, camaradas e escravos. Semelhante situação ocorria nas terras do Tenente (e futuro capitão) de Dragões Francisco Pinto Bandeira, em Cima da Serra, onde existiam apenas quatro habitantes confessados, ao passo que nas suas terras localizadas mais perto do povoado de Viamão contavam com vinte e três confessados, dentre os quais sua esposa e dois filhos. Nessas terras, o restante são escravos e um índio (AHCMPA – Rol dos Confessados de Viamão – 1751). Cinco dos onze proprietários das Fazendas possuíam patente militar, de Dragões ou de Ordenanças. As patentes militares e as mercês em terras e/ou em cargos da administração, foram as formas mais usuais da retribuição de Sua Majestade aos serviços prestados por seus “fiéis vassalos” no extremo-sul, mas não as únicas. Como já dito, no capítulo anterior, existe grande coincidência entre os portadores de patentes militares ou de milícias civis mais elevadas e os receptores de porções de terras de maior tamanho. E estes que eram agraciados com tal sorte de mercês, estavam presentes no território mesmo antes de seu povoamento sistemático. Foram homens que, de alguma maneira, estiveram associados à conquista do mesmo. Uma outra coincidência que pesa sobre alguns primeiros povoadores dos Campos de Viamão e mais além, salvo algumas exceções, é a existência de indígenas em suas propriedades. Pesquisa sobre os matrimônios entre escravos e indígenas e a relação destes com as famílias dos povoadores lagunistas vem sendo desenvolvida por Elisa Frühauf Garcia, já dispondo de alguns resultados parciais (Garcia 2000; 2001a, 2001b, 2001c, 2001d), dos quais valeu-se este escrito para auxílio na análise

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de alguns dos casos adiante. O Rol dos Confessados de Viamão – 1751 é revelador quanto à presença de indígenas nas propriedades do Continente. Nas terras de Cristóvão Pereira, cuja posse só seria homologada por sesmaria real em 1754, consta pelo menos um indígena, provavelmente minuano, e sob suspeita de também o serem estão as duas referidas mulheres. João de Magalhães, nesse ano, tem em sua propriedade, no mínimo – ressalva feita por estar danificado o documento – uma índia administrada. Seu filho João de Magalhães o novo, também tem arrolada apenas uma índia entre os subalternos de seu fogo. Ana da Guerra, cunhada de João de Magalhães e de Agostinho Guterres, filha de Francisco de Brito Peixoto com uma índia, tem arrolados na sua propriedade oito indígenas administrados, entre homens e mulheres. Esta é a grande exceção, pois não dispõe de nenhum escravo, seja africano ou crioulo. Francisco Pinto Bandeira, outro dos netos de Francisco de Brito Peixoto e participante das primeiras investidas ao sul, também apresenta um índio administrado junto com, para os padrões locais, vasta escravaria de origem africana. A presença de índios sob administração no Continente, portanto, não era excludente com a escravidão de africanos e seus descendentes (Garcia 2000; 2001a, 2001b, 2001c, 2001d). Na fazenda de Cima da Serra de Cristóvão Pereira há índios arrolados junto com um escravo. Em seu sítio em Montevidéu, no mesmo ano de 1751, Cristóvão Pereira possui uma escrava. Na carta de sesmaria de suas terras em Minas Gerais, possui lavouras, engenho e escravaria (AHCMPA - Rol dos Confessados de Viamão – 1751; Apolant, 1966: 9; RAPM, 1921: 389-391). Com a grande exceção de Ana da Guerra, as propriedades geralmente mesclavam indígenas e escravos de origem africana (Garcia, 2001d) sendo estes últimos numericamente superiores não somente em algumas propriedades como em toda freguesia (Kühn 2001b).

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No caso de Francisco Pinto Bandeira, por exemplo, nesse arrolamento de 1751 estão listados vinte escravos africanos e crioulos na mesma propriedade em que vive o índio Bartolomeu. Na sua propriedade dos Campos de Cima da Serra, provavelmente terras para a invernada de tropas de animais, há mais um escravo (AHCMPA - Rol dos Confessados de Viamão – 1751). Subentendem-se estes escravos como sendo africanos ou seus descendentes, uma vez que em 1751 ainda era possível administrar indígenas – ou seja, garantir que lhes fossem administrados os sacramentos e zelar pela sua educação e suas vidas de cristãos, enfim, servir-lhes de tutores e, como contra-partida a essa dádiva, receber serviços prestados pelos indígenas (Garcia, 2001c) Muitos dos administradores revelam seus índios nesse rol de confessados de 1751. O mesmo não ocorreu de maneira tão evidente no arrolamento feito na freguesia do Triunfo – área desmembrada da freguesia de Viamão – no ano de 1758. Inclusive porque alguns dos administrados passavam a compor parte da família extensa, aquela composta por filhos, noras, genros, netos, agregados e camaradas, levando, portanto, outras designações que podiam se sobrepor ao “índio administrado”. O pequeno número de indígenas que constam neste rol de 1751, talvez indique que tal prática estava em desuso. Em contrapartida, foi observado um contingente de escravos africanos e crioulos em quantidade significativa (Kühn, 2001b). Há o interessante caso de Joana Gracia Maciel, que ingressara na família de João de Magalhães, e por conseqüência no grupo de famílias de povoadores descendentes de Francisco de Brito Peixoto. Ela também procedia de família de prestígio em São Paulo. Seu pai, como já dito, havia sido capitão-mor da Vila de Sorocaba, localidade que também recebeu “calor ao seu povoamento” a partir das condutas de tropas de animais. O exemplo de Joana, mostrado a seguir, não indica um comportamento recorrente dos administradores de indígenas do Continente, e sim, provavelmente um

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comportamento desviado. O processo que se abriu contra ela é repleto de informações, nas entrelinhas, de outros aspectos da sociedade sulina. No ano de 1757, Joana, moradora juntamente com seu marido nos Campos de Viamão, foi denunciada ao Juízo Eclesiástico por “escândalo público com que vive e desonesto procedimento”. O vigário de Viamão, pe. José Carlos da Silva abriu processo contra ela e um bom número de depoentes foram ouvidos. No Termo das Testemunhas, dá depoimento Domingos Rodrigues Correia, homem casado e morador nos Campos de Viamão, dono de fazenda de gados, e com 50 anos de idade, “pouco mais ou menos”. Foi perguntado “a ele testemunha que a dita denunciada mandava uma Índias suas administradas que se fossem ao ganho para lhe trazerem dinheiro e aguardente e se as tratava mal por conta desta diligência. Respondeu que era público em toda esta vizinhança que a dita denunciada tratava tão mal, de pancadas, mortas de fome e nuas” (AHCMPA – Juízo Eclesiástico – processo no 7. Auto de denúncia que mandou fazer o Reverendo José Carlos da Silva contra Joana Gracia Maciel, mulher de João de Magalhães, o moço, pelo escândalo público com que vive e desonesto procedimento – 1757- fls. 6-6v.)

Uma dessas índias administradas, de nome Suzana, sofrera tal grau de maustratos e torturas, incluindo espancamento e queimaduras com tição de brasa, “por cuja razão o Capelão que exercia nesta freguesia, Manuel Luís Vergueiro [—] a dita índia e a degradou [sic] para São Paulo por evitar para que a dita denunciada não matasse a dita índia” (AHCMPA – Auto de denúncia que mandou fazer...fl. 6v.).

Contido neste processo há a alusão de colocar as índias “ao ganho”, ou seja, a serviço de outrem por paga de jornal, como procediam com escravos, obtendo delas alguma renda, e no caso de Joana, um tanto de aguardente. Transparece também um dos tipos de serviços prestados pelas índias de Joana. João Rangel, casado no Rio de Janeiro e por ofício carpinteiro, morador nos Campos de

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Viamão testemunha no processo, confirmou o que lhe foi perguntado pelo padre, que Joana obrigava que a índia fosse ter com seus amigos “e usar mal de si” para obter o dinheiro e a bebida (AHCMPA - Auto de denúncia que mandou fazer... fl. 3 a fl.4). A índia Suzana, ao que tudo indica, era compelida à prostituição por sua administradora. Justamente por aquela pessoa que deveria zelar pela sua vida religiosa e por conseqüência, sua conduta moral. A aparente situação de normalidade, que admitia a administração de índios passíveis de serem postos “ao ganho”, foi rompida por um acúmulo de comportamentos extremados praticados por Joana Maciel, tais como “receber homens portas adentro”, mandar agredir e “desonestar” suas cunhadas e torturar e prostituir suas subalternas (AHCMPA – Auto de denúncia que mandou fazer...). Isso permitiu a percepção da existência de um limite imposto pela sociedade para os comportamentos individuais. Protegendo-se contra a desagregação social que poderia advir da generalização de práticas assim, extremadas, o agrupamento ao qual Joana pertencia tratou de extirpar o quisto, punindo-a. Apesar de estar inserida, por vínculos matrimoniais à família fundadora do núcleo populacional, ou seja, aos conquistadores de uma parcela significativa dos territórios da Vila da Laguna e Continente do Rio Grande de São Pedro, esta posição não a salvaguardou das regras de “bom convívio” que a sociedade se autoimpunha. Manter índios sob sua posse era socialmente aceito, mas infligir-lhes maus-tratos e submeter-lhes a torturas não foi tolerado. Percebe-se que esta sociedade admitia algumas mentiras infamadoras, já que nos autos matrimoniais que antecederam ao casamento de Jerônimo Pais de Barros com a jovem Benta dos Santos Robalo, a irmã e o cunhado da noiva, que por algum motivo não desejavam tal união, prestaram falso testemunho com o intuito empatar o casamento. Seu cunhado, Cláudio Guterres, alegou que “sua mulher Gertrudes dos Santos, quando soube se tinham apregoado os ditos contraentes lhe dissera que na vila de Sorocaba quando lá assistia houvera suspeitas que o dito Jerônimo tivera tratos ilícitos com Maria dos Santos Robalo, irmã da dita contraenta; disse ser cunhado da

146 dita contraenta.” (AHCMPA – Depoimento de Cláudio Guterres nos Autos Matrimoniais de Jerônimo Pais de Barros e Benta dos Santos Robalo – 1757).

O casal não poupou a outra cunhada de Cláudio e irmã de Gertrudes e Benta da infâmia sobre seu procedimento. Viúva e moradora na Vila de Sorocaba, há centenas de quilômetros de distância, foi atingida por uma intriga familiar. Maria recebeu os “respingos” que maculavam sua honestidade, enxovalhavam-lhe a honra e a colocavam no pecado de manter relações de “cópula ilícita” com o noivo. Por depoimentos prestados por testemunhas oriundas de Sorocaba, o pároco concluiu que o impedimento de tal casório saíra “por malícia”. Apressou-se em realizar o matrimônio, pois sobre também sobre a jovem Benta, já pesava má fama devido “manter relações portas a dentro” com Jerônimo e às falsas alegações das relações de seu noivo com sua irmã. Nada indica que dos detratores do casal e da irmã residente em Sorocaba tenham sido de alguma maneira penalizados pelas injúrias que lançaram (AHCMPA – Autos matrimoniais de Jerônimo Pais de Barros e Benta dos Santos Robalo – 1757). No entanto, Joana Gracia Maciel foi bem além da mentira tolerada, contada com fins de zelar pelos interesses maiores de uma família na tentativa de evitar uma união indesejada. Segundo uma das testemunhas junto ao Juízo Eclesiástico Joana era “mulher de má língua e infamadora (...) mulher de mau procedimento e vive sempre com escândalo e concubinada como era público e notório em toda a vizinhança, chegando a ir mesmo em busca dos homens (...) [e] que havia mandado forçar e desonestar as suas cunhadas” (AHCMPA – depoimento de João Rangel nos Autos de denúncia que mandou fazer...)

Cabe aqui a perguntar como esta sociedade, que tinha por público o seu mau procedimento e língua viperina, tolerou por tanto tempo seus comportamentos

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impróprios. Talvez a gota d’água tenha sido o bárbaro espancamento e as torturas às quais foi submetida a índia Suzana, ou ainda as agressões físicas e o ato de mandar seu filho Manuel Pires, de alcunha “o grosso” a “forçar a mulher de Salvador Pinto” e “que diziam a mesma denunciada tinha intenção fazer o mesmo à mulher de Antônio José Viegas e mulher de João de Azevedo”, todas elas irmãs de seu marido João de Magalhães, o moço. Eram tias de Manuel, parentesco não consangüíneo, mas aos olhos de Deus – e da comunidade – por força das relações contraídas ao casamento de sua mãe. (AHCMPA – Rol dos Confessados de Viamão – 1751, 1776 e 1778; Livros de Batismo de Viamão, Autos de denúncia que mandou fazer...; AHRGS – Relação dos moradores de Viamão – 1784;). A acusada foi condenada a cumprir pena de degredo. Pela posição dela e dos seus parentes, foi uma pena leve, já que foi expulsa para o Porto dos Casais, atual Porto Alegre, situado algo em torno de uma vintena de quilômetros de sua antiga residência e do povoado de Viamão, onde viviam seus familiares. (AHCMPA – Auto de denúncia que mandou fazer... fl. 12v). É provável que tenha ido um pouco mais além, rumo aos povoados que margeiam o rio Jacuí. Fosse no Reino, e julgada pela dura letra da lei, teria sido degredada para África pelas traições a seu marido ou condenada à morte, por mandar “desonestar” suas cunhadas (Ordenações Filipinas, Livro V, títulos XVIII, e XXV, versão para Internet). Apesar da pena branda, todo esse episódio dá a entender que, por mais influente que pudesse ser uma pessoa ou o grupo aonde ela estava inserida, para tudo havia um limite. Às pequenas faltas podia-se fazer vistas grossas, mas as atitudes que ameaçavam a coesão social não podiam passar impunes. Entre a estabilidade social ou a intocabilidade de uma filha de boa família, a opção foi clara: a sociedade que se formava ao sul da Colônia era zelosa de sua continuidade, não permitindo que um de seus membros a colocasse em risco.

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Revelador também foi reconhecer no pároco que livrou a índia Suzana do suplício a que era submetida por Joana Gracia Maciel. Este fora um antigo vigário de Viamão, já não mais ocupado dessa paróquia, e que, concomitante com seus afazeres religiosos também praticava a condução de tropas para São Paulo já no início da década de 1750 (AN – DH v. II, 1928: 139). Esta sua segunda “profissão” foi o que facilitou a evasão da moça. A sobreposição de atividades, comentada no capítulo anterior, também se fazia sentir entre os membros do clero, levando-os, além de cuidar dos rebanhos do Senhor, a comercializar rebanhos seus. Outras testemunhas, moradoras em Sorocaba ou nos Campos de Viamão, que contribuíram no processo contra Joana ou no impedimento de casamento da jovem Benta, estavam absolutamente inteiradas do que ocorria tanto nos Campos de Viamão como na Vila de Sorocaba, a qual Joana havia deixado no ano de 1741, após seu casamento com João de Magalhães, o moço. A sórdida história de Joana Gracia Maciel e suas administradas desvelou, pois, aspectos menos escabrosos da vida dessa sociedade, que compunha-se de intrincadas relações de parentescos e redes de negócios e de poder político. As pessoas, assim como as notícias, circulavam na Colônia (Faria, 1998) e nessa circulação os vínculos eram mantidos ou reavivados. A Ilustração 5 acusa a presença de três redes familiares, pessoais e de negócios e as localidades onde foram detectados seus membros ou suas atuações. Tais famílias estabeleciam complexas formas de relacionamentos. A administração de indígenas e a coerção não eram as únicas formas de vínculo com as populações autóctones (Garcia 2000; 2001a; 2001b; 2001c; 2001d). Augusto Silva (1999), em sua dissertação de mestrado, cita um provável casamento em ritual indígena de Rafael Pinto Bandeira. Este homem, que chegou a exercer por duas vezes de forma interina o governo do Continente do Rio Grande de São Pedro (Osório, Berwanger & Souza 2001: 235),

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provinha das famílias dos fundadores do povoado de Viamão. Bisneto de Francisco de Brito Peixoto, teria desposado a filha de um dos chefes minuano – mestiço de espanhóis com índios – conhecido como D. Miguel Caraí. Esse fora capataz de seu pai, Francisco Pinto Bandeira. Dessa união teria nascido Bibiana Maria Bandeira criada pelo pai, pois a mãe falecera ao dar à luz (Silva, 1999: 40). Aurélio Porto afirma que Bibiana teria casado com um alferes, morador da Vila do Rio Grande (Porto, 1943: 43). Silva afirma não ter localizado documentação que confirmasse tal relacionamento, todavia, o alegado marido de Bibiana na obra de Aurélio Porto foi relacionado entre os irmãos da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Vila de Rio Grande (Museu da Cidade de Rio Grande - Livro de Entradas dos Irmãos, Irmandade do Santíssimo Sacramento). Após a morte da mãe de Bibiana, Rafael Pinto Bandeira teria desposado na Igreja, outra índia, desta vez guarani, natural da Missão Jesuítica de São Lourenço, localizada nas terras de Espanha. De tal casamento não houve geração. Rafael casouse pela terceira vez com uma mulher natural de Sacramento, do qual viriam as suas duas legítimas herdeiras (Silva 1999: 41). Casamentos ou uniões dessa sorte não eram novidades nesta família. O próprio Rafael Pinto Bandeira era bisneto de uma das índias carijó que deram filhos a Francisco de Brito Peixoto (Fortes 1998: 49). Tampouco estas práticas restringiam-se a aos Peixoto/Bandeira. Lourenço D’orneles, o filho bastardo Jerônimo de Ornelas e mestiço com índia, teve sua descendência legítima a partir de seu casamento com uma “índia da terra”, Maria Lopes, do distrito de Montevidéu (AHCMPA – 1o Livro de Batismos de Viamão, fls. 69, 123 e 133, 14/05/1758). Novamente, ressalta-se aqui, a ignorância proposital por parte dos colonos dos limites territoriais estabelecidos pelas metrópoles ibéricas. O filho bastardo/mestiço de um português casado com uma santista e nascido nas Minas, morando nas

Ilustração 5 Locais de presença de redes familiares entre o Rio de Janeiro e o Rio da Prata

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propriedades paternas do Continente do Rio Grande de São Pedro, desposa “índia do distrito de Montevidéu” com pais das “Aldeias de Buenos Aires”. As relações familiares, assim como aquelas alianças que foram percebidas nos negócios dos couros, ultrapassam qualquer delimitação geográfica e política – entendendo-se aqui como as políticas e a diplomacia dos Estados ibéricos. Obedeciam, isto sim, a política e as lógicas das relações familiares, comerciais e sociais. E percebe-se, agora, visto de um novo ângulo, que os territórios da Banda Oriental e do Continente do Rio Grande de São Pedro tendem a se confundir, ou melhor dito, se fundir numa única e imensa área com o constante ir e vir de homens e mulheres. Há nos registros de batismos outros tantos casos de casais “mistos” registrando os seus filhos, como o exemplos de Gaspar Fernandes, natural de Braga, casado com Maria da Silva, “parda forra do gentio da terra” (AHCMPA - Autos Matrimoniais de Antônio Dias Manso e Ana Maria de Azevedo – 1755; 1o Livro de Batismos de Viamão, fl.134, 20/05/1758) ou que não fazem parte dos grupos familiares dos fundadores da povoação, acusando, então, uma prática de alianças matrimoniais que permeava setores mais amplos do grupo de povoadores (Cf. Garcia 2001b; 2001c; 2001d). Estes tipo de uniões e geração de filhos não eram benéficas apenas aos alegadamente “brancos” do Continente do Rio Grande de São Pedro. Segundo Aurélio Porto, o avô minuano de Bibiana Bandeira, após deixar as terras de Francisco Pinto Bandeira “foi recebido como rei deles [índios minuano], levando porém do contato com os brancos noções de humanidade. É sob sua dominação que se processa, entre os minuanos, o acolhimento hospitaleiro que dispensavam aos brancos e pretos, quer espanhóis, quer portugueses, seus companheiros de guerrilhas como outros índios, sócios nas arreadas de gado, que vendiam aos lagunistas e colonistas, compartícipes no contrabando que campeava nas imprecisas fronteiras entre as colônias de Portugal e Castela”. (Porto, 1943: 43).

Se é verdadeira esta história ou se é mais um “mito de origem” da sociedade

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sulina, não foi possível saber. Aurélio Porto dá a entender que a humanização dos indígenas minuano se deu a partir do contato estreito com o branco, subtraindo a alma e a vontade dos habitantes autóctone. Estas, então, seriam características do branco civilizador. Não se entrará no mérito dessa discussão, apenas se reafirmará, como já dito ao início deste capítulo, que discorda-se da visão apresentada por Aurélio Porto. Se realmente ocorreram tais fatos, é pouco provável que ter estado agregado a uma das principais famílias do Continente – os Pinto Bandeira– tivesse deixado de influenciar a escolha de seus pares indígenas ao delegarem-lhe a liderança. Os minuano acostumados às negociações de gados e cavalos com os portugueses, também negociavam a sua posição ante a sociedade “branca”, haja vista a citação colocada à página 67 do capítulo primeiro. O reconhecimento da autoridade de Miguel Caraí pelos outros “maiorais minuano”, como eram chamados, caso tenha ocorrido, acredita-se ser conseqüência também deste seu contato estreito com os Pinto Bandeira. A aliança foi consolidada no momento em que sua filha tornara-se esposa de um dos “maiorais” dos conquistadores. Em suma, de tudo o que foi colocado aqui, para os primeiros momentos da ocupação dos territórios meridionais e em especial do Continente do Rio Grande de São Pedro, fica claro que para a maioria das principais famílias dos primeiros povoadores do Continente do Rio Grande de São Pedro, alguns elementos em comum aparecem nas suas trajetórias, com raras exceções. Seriam elas: a) atuar nas primeiras coureadas, corridas de gado e condutas de tropas, agir no desbravamento dos caminhos; b) engajar-se nos exércitos de Sua Majestade no combate aos espanhóis do Prata, recebendo patente, seja de Ordenanças, Aventureiros ou de Dragões; c) tomar posse de terras homologadas ou não por mercê real, sem envolver transação de compra, ainda que existisse um tênue mercado para terras.

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Para alguns ainda coube algum cargo da administração, também dado por mercê real. Geralmente, este era um item adicional para quem já havia atingido os três patamares acima colocados. Esse foi o caso de Rafael Pinto Bandeira, que assumiu interinamente a comandância do Continente (Silva, 1999). Alguns deles foram eleitos por seus pares para cargo de vereança ou de oficiais nas câmaras ou da Laguna, como João de Magalhães, o velho e Agostinho Guterres, ou do Continente do Rio Grande de São Pedro (Cabral, 1976: 60), como o foi Cláudio Guterres, filho de Agostinho. Também este parece ser item adicional para alguns dos que já haviam cumprido os outros itens listados. Isso indica que o que vinha sendo construído desde o primeiro deslocamento dos Brito Peixoto, de Santos para a Laguna, a conquista de territórios e as glórias que daí decorriam, não diluiu-se ao longo do tempo, e de alguma forma foi transmitido aos genros e netos. Resta ver alguns aspectos do comércio dos animais sulinos, um dos elementos que propiciaram a acumulação e enriquecimento no Continente do Rio Grande de São Pedro e as rápidas transformações que este território sofreu, passando de um contexto de conquista para uma situação de posse lusa consolidada num curto espaço de tempo. Essa é a proposta para os capítulos que seguem.

Capítulo III As formas de acumulação, as alianças e as redes de poder no mercado de animais

A exploração dos animais sulinos, levados em pé ou sob forma de produtos até os seus mercados consumidores, fossem eles na Colônia, na Península ou mesmo na África, era um dos elos de ligação do Continente com o restante do Império Português. A Coroa, através dos sistemáticos contatos com seus representantes no Estado do Brasil tentou regulamentar e instituir estruturas de cobrança de fisco sobre as transações e deslocamento dessas mercadorias, extraídas dos animais ou organizadas em tropas. Os dízimos eram cobrados sobre os animais que ficavam nos pastos, sobre os couros e os sebos, cobravam-se os quintos. Estes últimos eram referentes a toda e qualquer transação comercial que os envolvesse, inclusive sobre os produtos adquiridos pelos súditos da Coroa lusa dos índios e castelhanos. Por último, para as tropas postas em movimento, era cobrada uma quantia fixa sobre cada animal que passava em unidades estabelecidas ao longo da rota. Este capítulo iniciará tratando de generalidades sobre os Registros das Passagens dos Animais, as tais estruturas dispostas ao longo do Caminho das Tropas. Passará a especificidades sobre o Registro de Curitiba. Através de alguns dados e pequenas histórias desse Registro, trará à tona algumas formas de acumulação que tais unidades possibilitavam.

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Essas unidades, por possuírem arrecadação em moeda sonante propiciava mcertas facilidades aos seus administradores. Apresentar-se-á o caso do Mestre-decampo Manuel de Oliveira Cardoso, que durante certo tempo parece ter administrado um dos Registros que exerciam a cobrança do fisco sobre os animais na rota das tropas. Tudo parece indicar que, antes de chegarem aos cofres da Coroa, os valores arrecadados percorriam longo caminho, passando diferentes mãos e possivelmente gerando lucros para aqueles que tinham o poder de fazê-los girar. Com a posterior adjudicação dos Registros, estas e outras facilidades passariam às mãos dos particulares que arrematavam os contratos. Sob este aspecto, o Registro de Curitiba, funcionava como uma espécie de “caixa-econômica” para as localidades aonde se situava e talvez para além delas. Os valores para o giro eram obtidos através da cobrança de um imposto – forma de extração do excedente produzido por uma sociedade. Tinha os seus rendimentos controlados por funcionários da Coroa ou por homens que receberam o direito de fazê-lo. Os lucros extras, gerados ao colocar esta arrecadação numa espécie de “mercado de crédito”, eram apropriados pelos oficiais d’el Rei ou por particulares. Isto está em consonância com o observado para outras regiões da Colônia e mesmo da América Colonial (Fragoso, in Fragoso, Bicalho & Gouvêa 2001; Bethell, 1998). O Registro de Curitiba foi talvez o único local onde o parte dos direitos de cobrança das taxas foi dado em mercê. Com esta particularidade, ao findar o período de vigência de uma dessas mercês, uma série de eventos se passaram, trazendo à tona as redes de poder que atravessavam a Repartição Sul e chegavam ao outro lado do Atlântico. Também através da documentação desse Registro é possível discorrer sobre peculiaridades do comércio intra e inter-colonial de animais. Nas diferentes utilizações das mercadorias semoventes conduzidas desde o sul, visualiza-se a possibilidade de explicar, pelo menos em parte, a sua longevidade.

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Uma vez tendo oferecido uma visão desse comércio, retornará à sociedade que viveu da dos animais e seus produtos. Tentará destacar as mudanças sofridas por essa sociedade nas distintas fases perceptíveis nessa exploração e o que pôde possibilitar a esta sociedade atravessar as diferentes conjunturas de prosperidade e de crises sem chegar à bancarrota.

1. Os Registros das Passagens dos Animais Com o estabelecimento do Caminho das Tropas, desde os Campos de Viamão até São Paulo, as grandes viagens anuais foram dando calor a povoamentos interioranos, como o de Viamão, o de Lages (hoje município com o mesmo nome no estado de Santa Catarina), da Vila de Curitiba. No extremo norte dessa rota até a década de 1750, a cobrança oscilava entre a Vila de Itu e a Vila de Sorocaba, em São Paulo. Havendo o sucesso do Caminho e do comércio dos animais, a Coroa apressouse em transformar as antigas “Guardas”, estruturas militares que faziam também a contagem dos animais para fins de arrecadação de fisco, em outro tipo de unidade de cobrança, os “Registros das Passagens dos Animais”. Há indicação de terem existido Guardas com cobrança de direitos sobre a passagem das tropas no Chuí, na travessia do Rio Grande; nos Campos de Viamão – a chamada Guarda Velha – e em Curitiba, junto ao acampamento militar da Faxina. Na década de 1740, a guarda de Rio Grande não mais estava ocupada na cobrança dessa taxa e a Guarda Velha tornou-se o Registro de Viamão (Neis 1975). Posteriormente, no território do atual Rio Grande do Sul foi instituído um segundo Registro, nos campos da Vacaria, em Cima da Serra, dentro dos limites do atual município de Bom Jesus, na área de fronteira entre os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Denominava-se Registro de Santa Vitória. A sua criação aponta

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para a possibilidade de tropas estarem sendo despachadas a partir da região oeste do Continente do Rio Grande de São Pedro, não passando, assim, pelo Registro de Viamão, situado já na área litorânea. Estas tropas que vinham do oeste poderiam ser oriundas dos territórios espanhóis ou ainda acusar uma nova expansão territorial – sem explícita anuência da Coroa ou de seus representantes – em direção às fronteiras com as terras de Espanha. Provavelmente se utilizavam de rotas pré-existentes, criadas pelos indígenas, pelos bandeirantes ou ainda utilizadas pelos padres da Companhia de Jesus, já que para oeste ficavam também as Missões Jesuíticas. No ano de 1733, a Guarda existente no acampamento das proximidades de Curitiba, tornou-se um Registro de Tropas. A transformação ocorreu sob pretexto de ressarcir os cofres reais pela despesa feita com a expedição de Souza e Faria (BN-DH, 1928a: 220). A exemplo dos quintos dos couros, cobrados na Colônia do Sacramento e posteriormente também na Vila do Rio Grande, os primeiros anos de arrecadação ficaram a cargo da Coroa, com os militares que chefiavam os acampamentos se ocupando da cobrança. Em 1743, também a exemplo do que ocorrera com a arrecadação sobre os couros e seus efeitos, o Conselho Ultramarino resolveu por colocar o contrato do Registro à arrematação em leilão, fazendo passar o direito – e a responsabilidade – de cobrança deste encargo para as mãos de particulares (BN–DH, 1928a: 454). O despacho do Conselho Ultramarino que dá início à adjudicação deste Registro, calcado em informações que partiam da localidade, dá mostras de uma alegada “incompetência” na administração dos militares/empregados da Coroa em fazer cumprir a cobrança estabelecida. Também acusa “espertezas” praticadas pelos condutores dos animais, burlando o fisco com um aval obtido no próprio Registro: “(...) passado que a formalidade com que se cobram os direitos das cavalgaduras que entram nessa Capitania vindas do Rio Grande não

158 era aquela que se precisava, pois tinha mostrado a experiência que muitos deles se perdiam, porque fazendo-se deles manifesto na vila de Curitiba e assinado termo para dele se lhes passarem suas guias, sucedia que vindo para as vilas da Serra acima nelas vendiam as ditas cavalgaduras, e as extraíam para as Minas sem pagarem os direitos delas (...)” (BN–DH, 1928a: 454)

Isso dá a entender que, imediatamente após a criação de modalidades distintas de cobrança de fisco, os praticantes dos comércios engendravam formas de burlá-lo. Os descaminhos, os contrabandos aparecem como correlatos quase que imediatos ao estabelecimento de um comércio legalmente instituído. Não se pode afirmar ao certo, mas tem-se motivos para acreditar que certos descaminhos que não eram impedidos, assim se deviam muito mais às possíveis alianças entre alguns dos condutores e encarregados dos Registros do que pela incapacidade de exercer um controle eficiente. Até mesmo porque, nos Registros, os encarregados geralmente sabiam quem eram os contraventores, as formas usadas para burlar o fisco e as rotas alternativas aos registros. Vários expedientes eram usados como forma de legitimar o “calote” dado nas estruturas de cobrança de fisco. O Regimento pelo qual se há de governar o oficial comandante da Guarda do Porto, foi instituído por André Ribeiro Coutinho para a Guarda de Rio Grande, local onde se passava a vau barra da Lagoa dos Patos, indo para a parte do Norte, atual município de São José do Norte, no outro lado do canal. Na disposição sobre as bestas que por ali passassem, rezava que deveriam pagar direitos “de todas quantas forem mencionadas nela, as quais se contarão muito exatamente” (AHRGS – Anais v. 1, 1977: 132). No entanto, o item seguinte apresenta uma ressalva: “Sucedendo porém dispararem algumas e faltarem por esse motivo ou por qualquer outro o completar o número de animais (...) passará o comandante da guarda uma certidão jurada aos Santos Evangelhos do número que somente passou desta parte do Sul, sem se intrometer no que chegou à do Norte” (AHRGS – Anais v. 1, 1977: 133)

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Não é difícil imaginar a existência de alguns condutores de tropas “especializados” em conduzir bestas muito velozes e xucras, as quais “disparavam” no pequeno curral afunilado em que se fazia a contagem! Curiosamente alguns condutores “caloteiros” eram descobertos e outros não. De maneira surpreendente, a maioria jamais teve sua mercadoria apreendida. Infelizmente, não se obteve, para o período sob estudo, nenhum auto de apreensão de tropas em nenhum dos Registros, o que daria uma idéia melhor de quem seriam os contraventores e quem seriam seus aliados dentro da administração dos registros ou das provedorias responsáveis por eles. Sem estes autos não se tem sequer noção do número de animais que saíam do Continente sem serem computadas ou tributadas. Com exceção de Cristóvão Pereira de Abreu, nenhum outro “descaminhador” está citado nominalmente na documentação vista, e sobre os descaminhos praticados por ele se comentará mais adiante. Tem-se absoluta certeza de não ser ele o único dado às práticas ilícitas dado que, mesmo após sua morte, não raro as instruções dadas aos administradores dos registros incluíam itens acerca de como proceder para evitar os descaminhos e embaraçar os descaminhadores. Os Registros das Passagens dos Animais, ao que parece, possuíam uma estrutura física considerável, fruto das necessidades de guarda da sua documentação e do estabelecimento de lojas e armazéns para suprir os condutores de alimentos e outros gêneros. O Registro de Viamão abrigava contingentes humanos responsáveis pelo seu bom funcionamento e um tanto de animais destinados à sua alimentação. Dos animais abatidos no local, os couros eram sacados e curtidos e parte da carne repartida entre os homens, de acordo com o seu status na organização do local. Outra parte era destinada à salga e era possivelmente era estocada num “armazém real”. Provavelmente estabelecimentos semelhantes existiram em vários Registros. A sua disposição espacial deveria ser adequada a provocar um afunilamento no fluxo dos animais que cruzavam pela estrutura, passavam, assim, em fila indiana

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para assim possibilitar a contagem. No presente momento, o NUPArq (Núcleo de Pesquisa Arqueológica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e o MARSUL (Museu Arqueológico do Estado do Rio Grande do Sul) do vêm procedendo em conjunto pesquisas arqueológicas nos dois Registros situados neste estado. Isto, sem dúvida, trará muitos esclarecimentos acerca do seu funcionamento e da cultura material produzida pelas atividades de conduta de tropas e suas correlatas. Neste estudo será utilizada principalmente a documentação relativa ao Registro de Curitiba. Não trata-se de uma escolha, e sim da falta de opções. A documentação relativa ao Registro de Viamão é muito escassa e incompleta. Até o presente momento, não localizou-se, para o período sob estudo, qualquer documento que forneça uma vaga idéia sobre a movimentação dos animais neste Registro. Apesar da documentação do Registro de Curitiba ser também lacunar e incompleta, é suficiente para fornecer noções do funcionamento do Registro e das quantidades de animais que por lá passavam. De certa maneira, o Registro de Curitiba “escolheu-se” para esta pesquisa.

Oficiais da Coroa e a acumulação através do Registro de Curitiba: o caso do Mestre-decampo Manuel de Oliveira Cardoso

Na busca por documentos relativos a este Registro, eis que localizou-se uma listagem que revelou alguns aspectos do funcionamento de um Registro de Passagens de Animais que jamais haviam sido aventados. Iniciada em algum ano após 1740, sem que tenha se podido datar com precisão o início, tem-se uma lista de devedores “cujas dívidas se originaram no Registro de Curitiba”, que prolonga-se até o início do século XIX (BN – dm – doc. II-35,25,13 no 9 – cat. mss. Paraná). Os direitos de cobrança estavam sob ordens de um militar, “o falecido Mestrede-campo” Manuel de Oliveira Cardoso havia sido o responsável por cobranças. O documento redigido pelo Capitão Francisco de Paula Teixeira encontra se no Anexo III, documento 1.

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As pessoas relacionadas nesta listagem são moradores das vilas e localidades próximas ao Registro, como o acampamento militar da Faxina e certas fazendas. Não fica claro desde quanto tempo remontavam as tais dívidas, nem exatamente qual a origem delas. Fica claro, entretanto, que boa parte delas não é relativa à passagem de animais, e sim da cessão de crédito. Provavelmente os valores que davam sustento a este crédito eram aqueles arrecadados na cobrança dos direitos. Em se tratando de um período com uma frágil circulação de moedas, instituições como os Registros de Passagens de Animais contavam com alguma receita em espécie. Tudo indica que estes valores eram reaplicados pelos administradores, sob forma de créditos concedidos ou mesmo sob forma de empréstimos. Tais procedimentos fazia com que os valores “girassem” nestas localidades e talvez mais para além, financiando a subsistência e até mesmo o seu desenvolvimento. Percebe-se que associadas ao Registro estavam uma ou mais lojas que vendiam gêneros e fazendas. Infelizmente não foi possível saber a quem pertenciam estas lojas, se ao militar encarregado da administração do Registro ou a algum particular. Quando da retirada destas mercadorias por parte dos habitantes do entorno dessa estrutura, geravam-se algumas das dívidas, que estão arroladas no mesmo documento. Para estas retiradas de mercadorias, o documento discrimina como sendo o valor devido “de fazendas”. Em outras anotações, não parece que o montante devido tenha surgido desse tipo de crédito, dando a entender que os valores foram retirados como empréstimos ou outra sorte de crédito que não despesas com gêneros tomados à loja. Note-se bem, o homem que estivera encarregado da administração do Registro não era um arrematador. Era um Mestre-de-campo, um homem das hostes de Sua Majestade. Por conseqüência, os valores movimentados não eram seus por direito. Como muitos outros oficiais da Coroa, este Mestre-de-campo, valendo-se de seu cargo, movimentava dinheiro que pertencia a Coroa. O que era cobrado era um imposto, uma taxa e como tal, a finalidade seria dar sustento à sociedade tributada. O caminho

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do dinheiro, no entanto, parece longo, passando por muitas mãos. Exceção feita a dois homens, então falecidos, que deviam juntos quantia aproximada de 1$900:000 réis, raramente os valores atingiram 100$000. Grande parte das dívidas foram feitas por soldados, por pessoas de ofício, tais como alfaiates, ourives e carpinteiros, geralmente pardos, assim como por “camaradas do sertão”. Estes homens podiam também exercer funções de condutores de tropas. Todavia, as dívidas não são relativas às condutas já que não se referem a nenhum tipo de animal sob responsabilidade do devedor passando pelo Registro. Para vários deles há a indicação do local de moradia, tais como “morador da vila”, “morador em Tamanduá”, “morador ao pé do Registro” ou o “preto Félix da Fazenda dos Papagaios”. À margem do documento, vai assinalado “por crédito”, indicando, portanto, dívidas não originadas pela passagem de tropas. Em contraste, aquelas que eram geradas pela condução de animais acusam que o valor devido é relativo à essa passagem, discriminando o tipo de animais e o número no quaul foram conduzidos (BN – dm – doc. II-35,25,13 no 9 – cat. mss. Paraná, doc. 1 em Anexo III). Os homens de ofício eram moradores em fazendas próximas, “moradores ao pé do Registro”, da Vila da Lapa, dos Campos Gerais, do Acampamento da Faxina. Eram pessoas que mesmo sem ter dinheiro, podiam pagar seus débitos pois podiam ganhá-lo com seu trabalho especializado ou com ele prestar serviços aos seus credores. Também os escravos contraíam dívidas. Isso indica uma certa autonomia destes ante a seus senhores, tanto no ato de endividar-se como na possibilidade de obter algum dinheiro para saldá-las. Diz-se isso porque dificilmente se permite a alguém contrair dívidas se este alguém não tiver uma mínima possibilidade de saldála. Exceção são aquelas dívidas feitas para não serem pagas. Estas geram a gratidão que entra no jogo dos dons e contra-dons, prendendo o devedor nos “grilhões” de reciprocidade com seu benemérito. Todavia, não parece ser este o caso dos devedores “o Pardo Inácio oficial de

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ferreiro escravo de José dos Santos Rosa morador em Tamanduá” ou do “mulato Joaquim Alfaiate”, escravo de José dos Santos. Seriam estes dois escravos com ofício propriedade do mesmo senhor? Seriam escravos postos ao ganho? São questões que ficam em aberto, todavia, ajudam a delinear o perfil dos devedores do Registro não envolvidos em condutas de animais. A listagem inclui também – e somente – mulheres ditas “pardas”. Mulheres, até onde se conseguiu ver, nunca faziam parte das condutas de tropas, havendo uma única exceção em que uma mulher diz ter seguido em uma conduta. Nos procedimentos para seu casamento, Ana da Silva e suas testemunhas alegam ter ido ela para o sul com um grupo de condutores (AHCMPA – Autos Matrimoniais de José de Morais e Ana da Silva – 1753). Entretanto, seu noivo também fazia parte dessa comitiva, e a viagem talvez fosse a “mudança” do futuro casal para a freguesia de Viamão. As mulheres listadas no documento de Curitiba, portanto, deviam por algum crédito fornecido pela administração da estrutura, fosse por retirada de mercadorias, fosse por receber algum empréstimo. Algumas dessas mulheres, ao final do documento, dão mostras de terem abatido com dinheiro uma parcela do montante devido, ao contrário de muitos devedores que permanecem sem nada debitar. Não se tem idéia acerca das atividades exercidas por estas mulheres e que lhes conferiam um certo ganho. Percebe-se, porém, que estas atividades eram capazes de garantir a quem lhes cedia o crédito um bom grau de certeza de que seriam pagos. Havendo a adjudicação dos direitos de cobrança, para os arrematadores deter o contrato de um Registro, podia ser, então, uma forma de atuar como fornecedor de créditos no interior da Colônia. Além da captação de recursos em moeda sonante ou em animais como paga pela passagem das tropas, quem detivesse o controle desta unidade de fisco tinha a possibilidade de vender mercadorias nas lojas a ela associadas e liberar crédito sob forma de empréstimo ou por retirada de produtos. Estes particulares apropriavam-se de parte do excedente da produção desta sociedade, não sendo isto,

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portanto, monopólio do Estado. A lucratividade na posse destas estruturas extrapolava, portanto, a mera arrecadação dos valores estipulados para os animais. Interessante pensar que, uma vez tendo um homem penetrado por uma porta em certas atividades rentáveis do sul da Colônia, e entre essas estão certamente as arrematações dos contratos para a cobrança de fisco (Osório, 2001), uma série de outras portas se abriam a ele, possibilitando-lhe outras rendas. Essas, por sua vez, aumentavam-lhe mais ainda o cabedal e as suas redes de relacionamento. Tornavamse credores de diversos setores da sociedade interiorana.

Os meios direitos do Registro de Curitiba: uma mercê recebida e uma vasta rede de poder estabelecida no Império Português No segundo triênio em que o contrato do Registro de Curitiba foi a leilão, mais precisamente no ano de 1747, iniciou-se uma forma peculiar de administração dessa estrutura. A partir deste momento, o contrato não foi mais leilão por inteiro. Uma estranha modalidade de arrematação dos direitos por metades foi gerada para este Registro, advinda de uma mercê real. Esta forma, um tanto diferente das demais, remete novamente à trajetória de Cristóvão Pereira de Abreu, a qual se entrecruza com os destinos do comércio dos gados e as atividades suas correlatas. Em 1o de maio ano de 1747, um despacho do Conselho Ultramarino concedia a Cristóvão Pereira de Abreu: “em remuneração dos seus serviços fazer-lhe mercê da metade dos direitos que pagam os gados, e cavalgaduras que entram na Capitania de São Paulo pelo registro de Curitiba, por tempo de doze anos que se hão de cobrar pela fazenda real nessa Provedoria”. (BN–DH, 1928b: 61-62 – grifos meus).

Explícito está nesse documento o câmbio de serviços prestados à Coroa “à custa de sua própria fazenda” – cânone sempre presente nas solicitação –, por uma mercê régia, o effectus em troca de affectus (Xavier & Hespanha, 1993: 386). Portanto,

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a partir de 1747, somente uma metade dos direitos do Registro de Curitiba podia ser arrematada em leilão. Cristóvão Pereira de Abreu, que já havia sido arrematador dos quintos dos couros de Sacramento, dá mostras de ter um certo padrão em relação à sua atividade no ramo de cobranças de taxas. Não parece ser coincidência ter almejado exercer a cobrança dos dois fiscos somente após ter findado o primeiro triênio. Sua atitude denota, antes, um planejamento prévio. Sugere-se aqui que ele tenha ficado atento ao crescimento dos negócios de condutas de animais, das quais participava ativamente como condutor, proprietário e comerciante. Em três anos foi-lhe possível avaliar a movimentação e o funcionamento do Registro, assim como o fizera com o contrato dos couros. Ciente das potencialidades, alçou-se a suplicar a mercê. Esta lhe era praticamente garantida por sua extensa folha de serviços prestados à Sua Majestade e por seus aliados em diversas esferas de poder. Dentre os muitos aliados, dois deles são da maior importância. Primeiramente, cita-se aqui, Gomes Freire de Andrade, governador do Rio de Janeiro e de várias capitanias do Sul, seu “amigo pessoal” desde os tempos das campanhas em defesa da Colônia do Sacramento. O segundo exemplo é o Brigadeiro José da Silva Pais, outro veterano da defesa de Sacramento, fundador das fortificações de Rio Grande. Foi ele o responsável pela fortificação da Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro. Elaborou o projeto de fortificação de Sacramento, Ilha de Santa Catarina, e Rio Grande sendo também primeiro governador militar destas duas últimas. Exerceu algumas vezes o governo interino do Rio de Janeiro. Ao tempo da mercê dada a Cristóvão Pereira, já havia retornado para Portugal, exercendo funções de arquiteto de Sua Majestade (Barreto, 1951; Spalding, 1969, v. 2: 113-117). Nesta rota, Cristóvão Pereira de Abreu já obtivera, em anos passados, uma outra benesse. Tão logo havia concluído o Caminho das Tropas, foi recompensado pelo Conde de Sarzedas, então governador de São Paulo, com o privilégio de, doravante,

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passar suas tropas em primeiro lugar no Registro de Curitiba, em detrimento de quantos aguardassem a sua vez na fila (Fortes, 1931: 13; doc. 9 em Anexo III). Pode parecer pouca coisa, mas significava largar, com algum tempo de vantagem sobre outros comerciantes de animais, em direção a um mercado onde os valores metálicos fluíam. Era um mercado necessitado, ou melhor dizendo, ávido por cavalgaduras. Do bom aproveitamento dessa vantagem poderiam resultar negócios mais lucrativos, sem a presença de mais comerciantes e mais mercadorias que forçassem o valor das mesmas para baixo. Significava agir sem concorrência num mercado que demandava pelo produto oferecido. O comerciante podia jogar com mais liberdade com o preço dos animais a serem vendidos. O detentor dos direitos isentava-se do pagamento da taxa sobre os seus animais. Ou seja, os seus custos com o pagamento de impostos sobre o seu comércio era menor que o dos outros comerciantes, ou mesmo inexistentes. Também a cobrança da taxa podia ser feita em gênero, o que levaria ao detentor dos direitos a aumentar a sua tropa, se comerciante de animais fosse ele. Imaginam-se duas possibilidades para estes casos, sendo que o comerciante do século XVIII podia considerar outras tantas sem que se saiba aqui. Na primeira, o “desconto” seria transferido para o preço da mercadoria posta à venda, fazendo que os animais se revertessem em valores de maneira mais rápida do que para os outros comerciantes, justamente por serem mais baratos. No caso das minas estes valores possivelmente eram pagos em ouro. Na segunda, acredita-se que mantendo o preço do produto semelhante ao preço praticado pelos outros comerciantes, o ganho líquido sobre cada um dos animais era maior que o dos outros condutores. Em realidade, tanto faz qual delas tenha sido adotada. Ambas redundariam em maior lucratividade. Não adotar nenhuma delas, segundo os padrões de acumulação do capital mercantil da época, seria ingenuidade ou incompetência no exercício do comércio. Estes são atributos que em momento

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algum cabem na trajetória do Coronel das Ordenanças Cristóvão Pereira de Abreu. Como demonstra este exemplo, ao detentor dos meios direitos de Curitiba estavam dadas possibilidade de obtenção de um lucro fora do alcance da maioria dos mortais envolvidos nesse comércio. Tudo devido às mercês recebidas, aquelas distinções que tornavam alguns homens diferentes dos outros homens, já comentadas no capítulo precedente. Estas, de fato, agraciando homens com certas qualidades, já demonstradas e comprovadas, acabavam por diferenciá-los mais ainda do restante dos humanos. Influenciavam, portanto, neste comércio, outros fatores que não as leis de oferta e procura. As amizades, os bons relacionamentos, o descuidar de sua fazenda no serviço de Sua Majestade, podiam conferir ganhos a médio e longo prazo, e, certamente, deveriam entrar no cômputo dos praticantes do comércio de animais. Trata-se aqui, portanto, de um mercado peculiar, imperfeito, em que a nem todas as coisas podem ser conferidos valores monetários, justamente por não estarem postas à venda, mas que entram no cálculo econômico dos agentes deste mercado (Kula, 1979; Polanyi, 1980). No caso do comércio dos animais, além dos favores recebidos, a própria mercadoria negociada nem sempre foi adquirida a troco de moeda. Lembram-se aqui as citações feitas no primeiro capítulo, nas quais os índios minuano, em troca de mimos, aguardente, tabaco e deferências, entregavam cavalos para selar a amizade com os militares lusos (Carta de Manuel Gomes Barbosa a ao Vice-rei Marquês de Angeja – 1718, apud Monteiro 1937: 66; Carta do Conde das Galvêas a Diogo de Mendonça Corte Real, apud Monteiro, 1937 v. 1: 89). Analisando a documentação do Registro de Curitiba, para o ano de 1751, foi possível calcular um valor padrão arrecadado por tipo de animal nessa estrutura. Por cada besta muar a paga padrão era de 2$500 rs. O padrão para cada cavalo era de 2$000 rs. Para os gados vacuns e para as éguas o valor era de $480 rs (BN-DH, 1928b: 139-140).

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Diz-se aqui “valor padrão” por ser aquele recolhido pela maioria dos condutores. No entanto, alguns desses homens pagaram bem menos e outros pagaram um tanto a mais. Por exemplo, os condutores Pedro Vaz Pires, Antônio de Brito e João Alves pagaram por cavalo somente 1$028 rs, 1$178 rs e 1$680 rs respectivamente. Já os condutores Salvador Ribeiro e José Caetano pagaram por cavalo 2$166 rs e 2$064 rs, respectivamente. Para as éguas e para as vacas os valores oscilaram entre $230 rs e $480 rs por cabeça. O condutor André Moreira pagou o padrão pelos cavalos que conduzia e passou 15 vacas de graça. A aplicação de um valor médio no caso da arrecadação do Registro acarretaria em distorções que ocultariam a desigualdade existente entre os homens que o praticavam. Lembrando aqui, a desigualdade entre os homens era um dos pilares que sustentavam a organização social. Não se tem explicação para esta discrepância de valores, mas pode-se pensar também em duas hipótese: por dívidas anteriores entre condutores e administradores do Registro – que bem poderiam ser dívidas “pessoais” e não dívidas para com “instituição” Registro – valores eram “debitados” ou “acrescentados” ao valor pago pelos condutores. A segunda é que, em função de relações de negócios, amizades ou parentescos, eventualmente alteravam-se o valor da tributação, decididas, portanto, no próprio Registro, a despeito de haver “tabelamento” proposto (ou imposto) pelas provedorias. Ambas as hipótese sugerem a mesma conclusão: se está diante de um valor que, mesmo ditado pelos órgãos que oficialmente representam a Coroa na Colônia, apresentam variações que não eram previstas por ela. As relações travadas entre os participantes desse comércio também influenciam nos valores cobrados sobre as mercadorias. Não são, portanto, as leis de oferta e procura as únicas a agirem neste comércio. Antes, ele é perpassado pelo grau das relações e pelos valores pessoais. Esta é mais uma manifestação do mercado imperfeito, permeado pelas relações que os grupos sociais engendravam. Mesmo que dois homens praticantes deste

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comércio agissem de maneira idêntica, as possibilidades abertas a um e a outro eram diferentes, pois suas ações e relacionamentos pregressos os colocavam em situação de desigualdade ante a sociedade como um todo. Esta reconhecia, legitimava e perpetuava-se através destas distinções. Após a morte de Cristóvão Pereira de Abreu, em 1755, em pleno exercício da benesse dos meios direitos do Registro de Curitiba ocorreram fatos muito interessantes. Os direitos cedidos pela mercê se extinguiriam no ano de 1759. Como decorrência de seu passamento, em 1757 e 1758, uma série de eventos que envolveram os provedores de Santos e da Capitania de São Paulo, o provedor de órfãos e ausentes da praça de Santos, soldados e condutores armados nas imediações do Registro. Vários documentos relativos a estes conflitos estão transcritos no segundo volume dos Documentos Históricos, editado pelo Arquivo Nacional (BN-DH, 1928b: 243-269). Neste momento veio à tona a grande rede de poder, que atinge, inclusive, o cerne do Império Português, na qual Cristóvão Pereira estava inserido O que se pôde depreender desta confusão toda é que, tendo morrido o detentor da mercê de meios direitos, o provedor da Fazenda Real e o provedor dos Defuntos e Ausentes, ambos da praça de Santos, em nome de uma dívida antiga de Cristóvão Pereira com a Provedoria de Santos, no valor de 947$000 réis, apressaram em tomar posse do Registro. Com auxílio de soldados embargaram os comboios de tropas. Em resposta a tal gesto, o provedor da capitania de São Paulo mandou o cabo de esquadra responsável por Curitiba, também munido de soldados armados, dirigirse ao Registro para levantar o embargo. Os dois provedores da praça de Santos não acataram as ordens, abrindo fogo contra Comandante de Curitiba, Francisco Xavier Pinto. Não houve mortes, mas tampouco a situação foi resolvida. O então governador do Rio de Janeiro e outras tantas capitanias do sul, Gomes Freire da Andrade, amigo – leia-se aqui como fazendo parte da mesma teia de relações – do falecido Cristóvão Pereira, não poupou palavras ásperas e ações para que não

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fosse lesada a fazenda do defunto e seus herdeiros. Destes, infelizmente, não se tem nenhum dado. Escreveu Gomes Freire de Andrade à Sua Majestade por intermédio do Ouvidor Geral da Comarca de Paranaguá: “Pela cópia da certidão, que inclusa remeto, passada pelo cabo de esquadra comandante do registro de Curitiba, sou certo da violência com que Vossa Majestade incompetentemente se intromete por parte do juízo dos ausentes na arrecadação dos direitos pertencentes ao Juízo da Provedoria da Fazenda Real da Praça de Santos por falecimento do Coronel Cristóvão Pereira, sem atender nem às representações feitas pelo Provedor da Fazenda (...), nem ainda ao determinado pela Relação do Rio de Janeiro (...) mas antes, com perniciosa violência procede Vossa Majestade nesta parte, de sorte, que com Paisanos armados intenta sustentar o seu partido, como se vê da mesma certidão. Espero, Vossa Majestade se abstenha de continuar semelhante procedimento, sendo certo, que nada pertence ao Juízo dos ausentes a causa, que Vossa Majestade a ele quer afetar e com tão culpável violência defender, tanto em prejuízo da Real Fazenda” (BN-DH, 1928b: 243-244 – grifos meus)

A solução veio somente no ano de 1760, após a questão ter saído do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, passado várias vezes pelo Conselho Ultramarino e pela Mesa da Consciência, ordenando o valor devido fosse descontado da arrecadação dos direitos e que os herdeiros houvessem o restante. O provedor dos ausentes deveria, então, fazer o repasse e a devolução do montante equivocadamente apossado para fazenda do falecido, sem receber os emolumentos, pois o embargo anterior teria sido incorreto. Real Fazenda deveria fazer o mesmo, já que adiantara-se na cobrança do devido por Cristóvão Pereira. Lembra-se aqui que o valor devido à Provedoria representava em algo em torno de 10% do que fora arrecadado apenas no ano de 1751 pelo detentor dos meios direitos (BN-DH, 1928b: 139-140). Este caso ilustra o já explanado: os “paulistas” discordavam entre si, dando origem a contendas mais sérias. Entre o provedor geral da Capitania de São Paulo e o provedor da Real Fazenda da Praça de Santos havia uma discordância séria na interpretação de como cobrar a dívida de um falecido para com os cofres das

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provedorias e sobre como administrar a metade dos direitos do Registro. Também demonstra quão longe podiam ir tais contendas. O que a princípio parecia um problema local, acabou por demonstrar que os interesses nos contratos de arrecadação de fiscos ocupavam os governadores, atravessavam o Atlântico. Depois de passar pela Relação do Rio de Janeiro, foram ao Conselho Ultramarino e inclusive à Mesa da Consciência, instâncias superiores a que podiam recorrer os súditos de Sua Majestade. As teias de relações pessoais com seus nódulos na Colônia tinham ramificações na metrópole. Um comerciante de animais, mesmo depois de falecido, tinha quem lhe defendesse os interesses nas mais altas esferas do governo e da justiça lusos. A mercê de meios direitos para servidores de Sua Majestade prosseguiu, passando para outros mercenários 1 . O agraciado com os meios direitos do Registro de Curitiba, tão logo se encerrou o período que competia a Cristóvão Pereira de Abreu, foi Thomé Joaquim da Costa Corte Real, conselheiro do Conselho Ultramarino e secretário de Estado dos Negócios da Marinha, ou seja, atuante no primeiro escalão de poder do Império Português. As Secretarias de Estado de Sua Majestade, a essa época, eram apenas três: Reino, Marinha e dos Negócios Estrangeiros e Guerra, seus titulares acumulavam a função de ministro e secretário de Estado. Thomé Joaquim Corte Real, exerceu este cargo entre os outubro de 1757 e março de 1760 (Cardim,

1 Mercenário: “Aquele que trabalha com os olhos na mercê, que espera”. Mercê: “Mercê: deriva-se do Latim, Merces, que na sua genuína significação quer dizer paga do mercenário, ou galardão, e recompensa que se dá ao merecimento de alguém (...) Mas na língua portuguesa não se costuma nessa significação de salário, prêmio, remuneração, senão graça, ou benefício, como os que Deus faz a suas criaturas, ou os senhores aos seus criados (...)”.Cf. Bluteau, Raphael, Vocabulário Portuguez e Latino. Rio de Janeiro: UERJ - CD, s.d. A expressão não tem, portanto, a conotação pejorativa atual: “1. Que trabalha por soldada ou estipêndio; 2. Que trabalha sem outro interesse que não a paga; interesseiro, venal. 3. Por extensão: Que age por interesse financeiro. S. m. 3. Aquele que serve ou trabalha por estipêndio ou interesse”. Cf. Dicionário Aurélio Eletrônico Século XXI, verbete Mercenário. Praticamente todos os nobres, fidalgos, militares e funcionários da Coroa lusa eram mercenários, pois títulos, cargos, patentes e terras eram obtidos através de mercês ou graças dadas (e esperadas) em contrapartida aos serviços prestados. Esta era a forma de distribuição social da riqueza tomada pela Coroa. Cf. Thomaz, 1994; Cf. Monteiro, 2001.

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1998: 417). Já o Conselho Ultramarino era geralmente composto por cinco homens, “Sendo um órgão deliberativo e bastante característico das sociedades de Antigo Regime, teve como critério de seleção de seus presidentes a titulação de fidalguia de primeira nobreza e a prévia experiência em negócios ultramarinos.” (Gouvêa, 2001: 292).

A mercê dos meios direitos do Registro de Curitiba foi concedida a “Thomé Joaquim da Costa Corte Real, do meu Conselho, e Secretário de Estado da Marinha, e Domínios Ultramarinos, em parte da remuneração dos seus serviços da metade dos direitos, que no Registro da Curitiba pagam por entrada para São Paulo os gados, e cavalgaduras, que ao mesmo registro chegam das partes do Rio Grande de São Pedro; para que fique percebendo os referidos direitos de juro, e herdade, na conformidade em que os arrecadara o Coronel da Ordenança Cristóvão Pereira de Abreu; enquanto durou a mercê; que deles teve.” (BN-DH, 1928b: 286-287).

Anterior à concessão da mercê, seu nome aparece com freqüência nos documentos do Conselho Ultramarino que despachavam sobre os assuntos do sul e sobre o Registro de Curitiba. As pautas no Conselho Ultramarino eram distribuídas aos Conselheiros que deveriam estudá-las, relatá-las e sugerir-lhes encaminhamento nas sessões que lhes daria parecer (Gouvêa, 2001: 292). Depreende-se que, a constância da assinatura de Tomé Joaquim da Costa Corte Real nos despachos relativos a estes assuntos tornava-o um dos homens da península mais inteirados e hábeis no manejo dos meandros deste negócio do trato dos animais. Por conseqüência, sabedor das possibilidades de arrecadação e ganhos de um detentor dos meios direitos do Registro de Curitiba. A distância física não era empecilho para que se reconhecesse um bom negócio. Desde que Cristóvão Pereira assumiu a metade dos diretos deste Registro, relatórios trimestrais do rendimento do mesmo deveriam ser enviados tanto à

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provedoria de São Paulo como para o próprio Conselho Ultramarino, dos quais, se desconhece o paradeiro. Provavelmente tais relatórios tinham o intuito de prevenir desvios e desonestidades que pudessem ocorrer entre o mercenário e o arrematador, “sócios” involuntários. Disto se infere novamente que, Thomé Joaquim da Costa Corte Real sabia muito bem do valor das arrecadações desta estrutura de cobrança de fisco, e que esta, como será visto logo adiante, vinha aumentando ano a ano durante as décadas de 1750 e 1760. Também estes eventos que cercaram a transmissão da posse do Registro de Curitiba, nos anos que se seguiram, há uma grande coincidência de sobrenomes nos dois lados do Atlântico. Na América, nos territórios meridionais, na capitania de São Paulo ou como no Rio de Janeiro, os sobrenomes Freire de Andrade e Menezes e Souza se repetem, dando mostras que estas famílias, a exemplo daquelas já citadas no capítulo anterior, possuíam extensões de suas redes de parentesco em diversas regiões da Colônia e no próprio Reino. Governadores, desembargadores, conselheiros, militares de altas patentes possuíam laços familiares. Dos longínquos rincões da América até as mais altas esferas do poder, estes sobrenomes estão presentes, dando a perceber que tais relações iam além da Colônia e chegavam ao cerne do Império Português. Alexandre Metello Souza e Menezes, conselheiro do Conselho Ultramarino é outro nome constante nos despachos relativos ao sul da Colônia. Possuía parentesco com o Capitão de Dragões Francisco Antônio Cardoso de Menezes e Souza, comandante plenipotenciário da partida do Rio de Janeiro (RAPM XXIII, 1929: 504505) durante a Expedição de Demarcação de Limites do Tratado de Madri, chefiada por Gomes Freire de Andrade. Este capitão foi testamenteiro de Cristóvão de Pereira e estava presente na Vila do Rio Grande quando da sua morte (IHGRS, Cópia do Registro de Óbito de Cristóvão Pereira de Abreu). Foi também arrematador da outra metade do Registro

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de Curitiba no ano de 1764 e no triênio 1765-1767 (BN-DH, 1928b: 374-377; 382385). Provavelmente era tio de Alexandre Cardoso de Menezes e Souza, oficial de Dragões na Expedição de Demarcação dos Limites do Tratado de Madri e aparentado do Coronel Governador de São Paulo em 1764 (RAPM, 1933: 85-86; BN-DH, 1928b: 374). Alexandre é citado na documentação relativa a esta e outras arrematações. Na longa discussão sobre a quem competia a cobrança dos anos que ainda haviam de vencer, o terceiro sobrenome, Freire de Andrade, também aparece nos documentos da península: o desembargador e conselheiro do Conselho Ultramarino Antônio Freire de Andrada Henriques também interveio e despachou favoravelmente à causa do “defunto Cristóvão Pereira” (BN-DH, 1928b: 61-62; 64; 132-145; 211266). No sul da América, além de Gomes Freire de Andrade, encontra-se com freqüência o nome de José Freire de Andrade, Capitão de Dragões. Este foi comandante que dos militares do Rio Pardo na Fortaleza de Santo Amaro, no Continente. Ao que tudo indica, participante eventual no comércio de animais. Deu baixa dos exércitos após cinqüenta e cinco anos de serviços, recebendo como mercê o soldo de Capitão e uma terra em sesmaria. Seria este um sobrinho de Gomes Freire de Andrade (RAPM XXIV, 1933: 119-121 e 126; AHCMPA – Autos Matrimoniais de Domingos Correia de Andrade e Isabel da Silva 1757; Autos matrimoniais de Antônio Ferreira Leitão e Maria Meireles de Menezes – 1760; Rol dos Confessados de Triunfo 1758). É clara a percepção de que laços consangüíneos ou outra sorte afinidades podiam manter-se por longo tempo a despeito das imensas distâncias. A recorrência de sobrenomes conhecidos em assuntos semelhantes ou que envolvem determinados grupos não permite pensar em coincidências, e sim em participação deliberada de vários membros de uma mesma família, distribuídos em regiões e funções distintas dentro do Império. Tanto os Menezes e Souza como os Freire de Andrade possuíam parentes no Conselho Ultramarino, em governos da Colônia e em comandâncias

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militares locais e regionais. Aparentemente eram pontos nodais da imensa rede de afinidades e poder nos assuntos da Colônia. Ao menos assim se percebe ao perseguirse os nomes envolvidos ao desse longo processo que se arrastou de 1755 a 1760.

2. A Passagem dos animais pelo Registro de Curitiba: as diferentes conjunturas, os diferentes mercados para diferentes tipos de animais e a flexibilidade deste comércio

De todos os Registros das Passagens dos Animais, o que mais informações se apresenta, como já dito, é o de Curitiba, e ainda assim, para poucos anos. As origens das informações são de fontes distintas, logo, não são passíveis de serem agrupadas. Ainda assim, por mais disparidades que entre si possam conter, servem de ilustração do crescimento do desse comércio. A informação mais antiga que se conseguiu obter sobre o fluxo dos animais em um único ano consta na Memória dos serviços prestados pelo Mestre de Campo André Ribeiro Coutinho no Governo do Rio Grande de São Pedro e nada tem a ver com o Registro de Curitiba. Em sua Memória, o comandante militar do Continente do Rio Grande de São Pedro relata que “Igual cuidado pus na condução que os homens de negócio queriam fazer de cavalhadas, para a Capitania das Minas, pela Serra dos Tapes, em direitura á vila da Curitiba, da jurisdição da Cidade e Capitania de S. Paulo, (...) e de tal modo acautelei nas cartas precatórias ao Governo de Santos, os desvios, que os cavalos e os direitos podiam ter, que se deviam cobrar daqueles com que saiam do Rio Grande, sem mais recurso que a V. Ex.a e entrando 5.551 potros e 838 bestas muares, importaram os seus direitos 6:439$000 réis.” (Memória dos serviços prestados pelo Mestre de Campo André Ribeiro Coutinho no Governo do Rio Grande de São Pedro dirigida a Gomes Freire de Andrade - 1740. In: BN–ABN v. 71, 1928: 192 331 – grifo meus).

O documento, datado de 1740, refere-se, nesse trecho, aos animais transportados no ano de 1738 que deixaram o Continente do Rio Grande de São Pedro

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rumo à Curitiba e daí para as Minas. Não faz alusão ao número de bovinos transportados, se é que estes foram conduzidos. Os cavalos faziam mais de seis e vezes e meia o número de muares transportados, sendo, portanto, os responsáveis pela maior parte da arrecadação sobre as tropas de animais nesse ano. Citada na tese de doutoramento de Helen Osório (1999) está informação sobre as tropas que passaram pelo Registro de Curitiba. As informações são um resumo do movimento entre os anos de 1734 e 1749, passados em uma certidão. Veja-se, pois: “... desde o tempo que Cristóvão Pereira de Abreu saiu a este registro com as primeiras tropas que foi em 10/06/1734 até o tempo presente tem entrado 12.575 cavalos, 4.319 bestas muares, 173 éguas, 629 cabeças de gado vacum” (Certidão passada pelo Registro de Curitiba, 29/08/1749. AHU, SP, cat., cx 16, doc 1580, apud Osório, 1999: 203 – grifo meu).

No longo período de 15 anos abrangidos neste documento, os cavalos são mais numerosos que as bestas muares, mas não chegam a três vezes mais. Aparecem nessa certidão os bovinos, com o irrisório número de 629 unidades. Tudo leva a crer que os bovinos levados para além do Registro de Curitiba mais tratavam-se de animais a serem abatidos durante as viagens para prover a alimentação de seus condutores do que para o comércio propriamente dito. Também surgiram aqui, em quantidade ainda mais irrisória, as éguas Posterior a isso, tem-se informações para o ano de 1751, emitidas pelo provedor da Fazenda Real da Vila de Santos, alertando Sua Majestade de erros na avaliação do valor do contrato do Registro, adjudicado a Manuel Cordeiro. Há uma lista com o nome e o número de animais que por lá passaram, permitindo identificar os condutores de tropas e inferir algumas conclusões acerca dos valores cobrados por cabeça de animal. Em síntese, no ano de 1751 passaram pelo Registro de Curitiba, segundo esta listagem, 6.595 cavalares, 2.280 mulas, 43 éguas e 1040 vacas. A

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arrecadação foi de 19:280$400 réis. Segundo este documento, portanto, mantém-se o número insignificante de éguas no conjunto dos animais que por lá passaram. Como aparece a listagem dos condutores com os respectivos animais, contados em separado pela qualidade, quais sejam, cavalos, mulas éguas e vacas – nessa ordem –, é possível observar que a condução de éguas não está associada ao transporte de muares. Pelo menos não era a prática no ano de 1751. Num total de 49 condutores de animais arrolados no documento, apenas 6 conduzem éguas. Desses seis, apenas dois têm mulas em sua conduta. E desse dois, apenas um as conduz um número expressivo de mulas: 179 animais. A não condução de éguas para além de Curitiba podia tratar-se de estratégia dos produtores e comerciantes sulinos, na tentativa de impedir a montagem de criatórios junto aos mercados necessitados de cavalgaduras. Os cavalos seguem mais numerosos que os vacuns, numa proporção bastante semelhante àquela dos anos entre 1734 e 1749: 2,89 cavalos para cada muar no ano de 1751. O que causa estranheza neste ano é o número de reses bovinas. Houve um aumento significativo na condução destes animais em comparação aos períodos precedentes. Arrisca-se aqui uma explicação a este fato, e que contraria boa parte da historiografia sul-riograndese acerca do comércio dos animais. Autores como Guilhermino Cesar (Cesar, 1979:10), Fernando Henrique Cardoso (Cardoso, In HGCB: 473) e Sandra Pesavento, (Pesavento, 1985: 22-23) associam o envio de vacuns para além de Curitiba com o crescimento da mineração, a qual foi acompanhada por um crescimento demográfico sem precedentes. A demanda por alimentos teria sido o motor do envio desses animais. Todavia, o observado é que nas décadas de 1730 e 1740, quando a mineração ainda possuía muito fôlego, os vacuns conduzidos eram muito poucos em relação aos cavalares e muares. Isso denota, antes, uma demanda maior por animais de transporte do que por aqueles destinados ao abate.

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Não se descarta a possibilidade de, em momentos de fome extrema, um ou mais cavalos terem feito parte da dieta dos mineradores. José Peixoto da Silva Braga, que participou da expedição montada por Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhangüera, para descobrir os caminhos para as minas dos “Guayases”, relata que num dos muitos momentos em que a expedição passou por dificuldades, o repasto proveio de um cavalo (RIHGB, tomo 69, v. 1, 1908: 221) Provavelmente cavalos não eram item essencial da alimentação das populações de origem lusa. E tampouco justificável economicamente: o preço de um cavalo suplantava o dos vacuns nos campos do sul em até dez vezes, dependendo do período. Em momento algum do lapso sob estudo uma rês custou mais do que um cavalo. Todavia, em 1751, onde os sinais do declínio da mineração já são mais do que evidentes (Zemella, 1990), os vacuns são enviados em maior intensidade que nas décadas precedentes. Logo, não é na “fome dos mineradores” que vai ser encontrada a explicação para este fenômeno. Pelo menos não diretamente. Nas obras de Mafalda Zemella (1990: 55-64) e de Maurício Alves (1999), são descritos e analisados os fenômenos de desabastecimento da capitania de São Paulo em função do ouro das Minas. Podendo abocanhar um quinhão da riqueza aurífera, os paulistas incrementaram o envio de toda a sorte de gêneros para as Minas, provocando escassez de alimentos e aumento de preços dos mesmos na capitania de São Paulo. Os rebanhos foram vendidos em uma velocidade além da que conseguiam repor pela reprodução, o que provocou drástica redução no número de animais. Deduzse, portanto, que o aumento no número de bovinos enviados do sul para além de Curitiba, muito mais do que abastecer as Minas, eram destinados a abastecer São Paulo e recompor, com matrizes e reprodutores, o rebanho dizimado. A viabilidade desta hipótese parece mais sólida se olharmos os números relativos aos últimos anos da década de 1760 e primeiros anos de 1770, quando, sem

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sombra de dúvidas, a extração do ouro dava seus estertores. No Anexo ao Parecer que por ordem do General de São Paulo D. Luís Antônio de Souza escreveu o Brigadeiro José Custódio de Sá e Faria para efeito de se formalizar o Plano que Sua Majestade tem determinado, há, a exemplo do ano de 1751, a discriminação das tropas que passaram por Curitiba entre 1769 e 1771 por tipo de animais (Ver Anexo III, documento 6). Este documento, apesar de esta bastante danificado quando de sua transcrição para os Documentos Interessantes Para a História e Costumes de São Paulo, é por demais rico. Além de dizer dos números de animais transportados, faz referência aos valores cobrados pelas suas passagens em cada um dos Registros. Concluiu o autor do documento por ser mais lucrativo para a Coroa manter a produção de muares distante do seu pólo consumidor arrecadando valores sobre estas passagens do que permitir sua produção em locais próximos aos pólos consumidores, de onde seriam cobrados apenas os dízimos. Alertava também para as estratégias utilizadas pela população das Minas em burlar a coleta dos dízimos. Vejam-se, então, sob forma de tabela, os dados contidos nesta documentação e a ilustração dela decorrente:

Tabela I – passagem de animais pelo Registro de Curitiba1769-1771 1769 1770 1771

cavalos mulas éguas reses burros 5617 1909 67 2174 5174 2140 2337 5404 3074 2437

Fonte: AESP – DIHCSP, 1946: 258.

3

180

6000

Ilustração 6 – passagem de animais pelo Registro de Curitiba 1769-1771

5000

4000

1769 3000

1770 1771

2000

1000

0 cavalos

mulas

éguas

reses

burros

Fonte: AESP – DIHCSP, 1946: 258 /Tabela I.

Observa-se, também nesse documento que o animal que teve predomínio nas rotas do Centro-sul foi o cavalo, com pequena queda no ano intermediário. As reses, ou seja, os gados vacuns, tiveram crescimento positivo nesses três anos, apesar da mineração estar em vias de esgotamento e boa parte do Continente estar sob domínio espanhol. Os muares, também foram enviados em maior número, sendo que para o último ano houve uma clara aceleração desse crescimento. Cavalos e mulas, as cavalgaduras, portanto, foram os predominantes também nesse período segundo o parecer de José Custódio de Sá e Faria para Dom Luís Antônio de Souza. Considerando que as cavalgaduras têm como emprego o transporte de homens e cargas, conclui-se que o mercado interno da Colônia demandava muito mais pelos meios de transporte sulinos do que pela alimentação que de lá poderia vir. Ainda que não se possa fazer aglutinar as informações oriundas de fontes

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distintas, sob pena de, na ingenuidade de acreditar na inocência das mesmas fazer aumentar ainda mais a distorção da realidade passada, há que considerar e comentar o seu conteúdo. Se alertará acerca dos distintos propósitos com que foram produzidas estas fontes, e, apesar das diferenças notadas e a seguir descritas, há traços comuns que perpassam todas elas que podem ser discutidos (Memória dos serviços prestados pelo Mestre de Campo André Ribeiro Coutinho no Governo do Rio Grande de São Pedro dirigida a Gomes Freire de Andrade - 1740. In: BN – ABN v. 50, 1928: 331). O conjunto de anos apresentado na Certidão emitida pelo Registro de Curitiba , provavelmente tem relação com o fato de estar assumindo, em pessoa, a sua administração, o detentor dos meios direitos das passagens, Cristóvão Pereira de Abreu. O Coronel, que já fora sonegador dos direitos, por razões mais que óbvias, a partir do ano de 1749, quando passou a detê-los, empenhara-se na correta arrecadação dos mesmos. O valor encontrado para o ano de 1751 revela ser em nada desprezível a renda obtida desse registro. Somente nesse ano foram arrecadados 19:280$400 réis. Desses, a metade competia a ele, Cristóvão Pereira de Abreu, sem que houvesse qualquer desembolso de vulto, como era o pagamento das parcelas relativas a arrematação do contrato em leilão, entregues anualmente aos cofres da Coroa. A mercê dada no ano de 1747 por Sua Majestade rendeu-lhe, somente no ano de 1751, a considerável quantia de 9:640$200 réis. O “desembolso” fora feito muito antes: os anos de serviços prestados à Sua Majestade, nos quais supostamente descuidara de seus negócios e de sua fazenda para, ao contrário, dispensá-la em favor da Coroa e por conseqüência, do conjunto de seus súditos. Não tendo recebido paga por isso, afinal, era o mínimo que se podia esperar de um bom homem e fiel vassalo de Sua Majestade nesses tempos, foi recompensado com metade da renda obtida com a passagem dos animais em uma rota que ele mesmo ajudou a abrir. Muito justo, portanto. E dispensar a justiça em todos os seus atos é o que se esperava de um bom rei.

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Este documento de 1751 era um alerta do provedor da Vila de Santos acerca do descabido valor da arrematação do contrato. O arrematador, Manuel Cordeiro, estava pagando pelo triênio do contrato dos direitos de Curitiba e Viamão menos de um terço do valor arrecadado no ano anterior (BN–DH, 1928b: 137-139). Dessa maneira, o provedor pode ter exagerado um tanto na eficiência da cobrança, não dizendo quantos dos condutores de tropas que por ali passaram ficaram em débito com o Registro, como já visto, prática bastante comum. Por último, os dados do conjunto de anos compreendidos entre 1769 e 1771, tem como origem um documento que visa alertar as autoridades da vantagem de ser mantida a cobrança sobre as passagens, em detrimento da cobrança de dízimos sobre os animais nas propriedades (AESP–DIHCSP, 1946: 254-258 – doc. 6 em Anexo II). Novamente, as despesas e os calotes dados pelos condutores de animais tendem a não aparecer no documento, o que esvaziaria o argumento de José Custódio de Sá e Faria. A esse argumento, subjaz ceder a uma chantagem ou blefe dado pelos habitantes do Continente do Rio Grande de São Pedro, através de petição envidada ao Conselho Ultramarino, querela que remonta a primeira metade da década de 1760. Em razão da proibição régia de se produzirem muares no Estado do Brasil, editada em 1761 e reeditada em 1764, em atenção aos súditos de Pernambuco, Piauí e Bahia, que sentiam-se prejudicados em seus negócios de cavalgaduras com as Minas – lá estavam chegando os muares sulinos – os vereadores de Viamão manifestaramse. Contra-argumentando não possuir outra riqueza que não a produção e comércio das bestas muares, a vida lhes seria impossível; o Continente se despovoaria; as portas ficariam abertas à entrada do inimigo espanhol. Como resultado dessa discussão, o rei retrocedeu em sua decisão. Menos de um ano depois da reedição da proibição, revogou-a para o Continente e somente para ele. Mais do que isso, uma nova ordem régia passou a regulamentar a produção desses animais, buscando garantir matrizes para a cria de cavalos para os seus exércitos.

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Naquilo que importava aos homens das boas famílias de Viamão, seguiu tudo como estava: lhes era permitido produzir e comercializar suas bestas muares. Sensibilizado pela causa dos moradores do Continente, convencido pela argumentação de José Custódio de Sá e Faria ou cedendo ao blefe e a chantagem que nos documentos da Câmara de Viamão ficaram evidentes, Dom Luís Antônio de Souza advogou por esta causa junto às outras autoridades, coloniais ou reinóis. Do ano de 1777 há uma carta de sua autoria em que alega não possuir o sul “outras minas” que não os animais, repetindo a cartilha rezada pelos vereadores de Viamão (ver documentos 3, 4, 5 e 6 em anexo III). Como se dizia, os motivos que levaram os coevos a colocar em documentos as quantidades de animais que passaram por Curitiba são inúmeros e distintos. No entanto, existem certas regularidades em todos eles. Que os documentos são meras representações da realidade, não há como discordar, nem que, como tal, a distorcem. Mas, por mais que possam tê-la distorcido, em todos os documentos citados e que são todos os que se possui sobre o movimento de tropas para o período, há coerência ao apontarem os cavalos como animal predominante no Caminho das Tropas. Mais que os muares, meio de transporte mais adequado ao relevo interiorano da Colônia; mais que os gados vacuns, alegadamente os responsáveis pelo abastecimento de carne das regiões mineradoras, os cavalos foram os animais que “reinaram” durante o período estudado. Também observa-se que houve um crescimento positivo do envio de gados vacuns em pé para além dos campos do Continente do Rio Grande de São Pedro, a despeito do declínio da mineração Como visto, o seu envio nos momentos iniciais do comércio de animais com as outras regiões era ínfima, enquanto que a exploração dos couros e seus efeitos exigiam o abate imediato dos bovinos, sem um largo aproveitamento das carnes. Os muares, inicialmente um sexto do que era enviado em cavalos, também

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cresceram em número ao longo do período. Isso bem pode refletir uma resposta dos comerciantes e produtores sulinos à demanda crescente por meios de transportes adequados, voltados para a circulação de produtos no interior da Colônia. A partir disso, não se sustenta reiterada afirmativa de que as fortunas sulinas foram feitas a partir da venda dos vacuns para as regiões mineradoras e do apresamento de bovinos para a criação em estâncias sendo posteriormente substituído este comércio de gados vivos pelo comércio do charque produzido no sul (p.ex. Cardoso, 1967: 473, Cesar, 1979: 10; Pesavento, 1985: 22-23). A acumulação dos pioneiros do Continente deve ter ocorrido antes desse apresamento. O território sulino, antes do povoamento sistemático do Continente do Rio Grande de São Pedro possuía vida. Ao findar do século XVII Os vicentinos/lagunistas, investiam ao sul na busca de animais para suas fazendas (Fortes 1941, Cabral, 1976). Estabeleceram relações com os índios guarani e com os índios das toldarias – os minuano e os charrua – (Aguiar, in RIHGB, 1908: 291-303 e ss.) e comércio com castelhanos (Fortes, 1941). Cruzavam os campos e as serras em busca dos vastos rebanhos. Nessa mesma época, os changadores e coureadores de Sacramento partiam para o norte, buscavam bovinos para o abate, para a extração de couros e sebos. Os lagunistas faziam o mesmo a partir do norte. Também se buscavam os cavalos para os exércitos de Sua Majestade, animais estes necessários à defesa de Sacramento conforme já dito nos capítulos I e II. O povoamento do Continente do Rio Grande de São Pedro se deu justamente no período em que a desenfreada caça aos gados estava para findar. A história do Continente, portanto, inicia-se antes das primeiras famílias se deslocarem para lá. Constata-se a inutilidade de iniciar este estudo com o marco cronológico da fundação do primeiro povoamento oficial. Isto significaria jogar ao limbo a primeira fase de exploração econômica das riquezas deste território.

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O próximo e último capítulo deste estudo pretende abordar as estratégias de sobrevivência da sociedade do Continente, considerando que o território pretensamente virgem, já passara por décadas de extração de riquezas.

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Capítulo IV A consolidação de uma sociedade em meio às muitas mudanças

Ao proceder uma breve análise sobre o movimento do Registro de Curitiba, constatou-se que a variação dos envios dos tipos distintos de animais oscilaram, independentes uns dos outros, assim como observou-se que, concomitante ao declínio da mineração, o envio de gados vacuns cresceu em número de cabeças enviadas. Viuse também que, a despeito da necessidade premente de muares nas regiões mais centrais da Colônia, o envio dos cavalos predominou por todo o período. Buscam-se motivos para explicar o parco envio de bovinos nos primeiros tempos do Caminho das Tropas, parte da explicação reside no período pré-ocupação do Continente do Rio Grande de São Pedro. Difícil resolver este problema sem recorrer à primeira exploração dos gados do extremo-sul, ou seja, as coureadas, cujo início se dera quarenta ou cinqüenta anos antes de estabelecerem-se os povoadores. Estas foram comentadas no segundo capítulo. Uma outra mercê concedida a Cristóvão Pereira de Abreu auxilia na compreensão dos fenômenos ocorridos na exploração dos gados vacuns. Solicitada ao final da década de 1730 e atendida por Gomes Freire de Andrade, em nome de Sua Majestade, essa mercê era correlata a um serviço ainda a ser prestado, às suas expensas.

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Tratava-se de coletar o gado reiúno disperso no istmo localizado entre a Lagoa dos Patos e o Oceano Atlântico, onde localizava-se a Estância Real de Bojuru (AHRGS, Anais 1, 1979: 78-79). Alegando que o gado conduzido para lá em tempos passados havia procriado, existindo, então, grande número de touros, vacas e terneiros selvagens. Segundo sua argumentação, os gados eram constantemente roubados pelos índios, recolhidos ou mortos por particulares, resultando em grande prejuízo para o rebanho real. Cristóvão Pereira ofereceu-se para buscá-lo. Como contrapartida, solicitava a mercê de courear os touros velhos e aqueles que excediam a necessidade de reprodutores para a procriação, extraindo-lhes também os sebos. Recolheria à fazenda real os quintos sobre estes couros. Os sebos seriam divididos pela metade com a Coroa (AHRGS, Anais 1, 1979: 78-79). O serviço oferecido foi considerado de extrema utilidade sendo que, a solicitação foi atendida de pronto, por ser aquela a estação do ano propícia ao recolhimento dos gados. Foilhe ainda exigido que amansasse os gados recolhidos e que os levasse para a Estância Real. Ficava-lhe terminantemente proibido matar vacas e terneiros. Meses após, o então Coronel Cristóvão Pereira de Abreu, comunicou que não pôde executar a tal tarefa conforme o planejado. “Curiosamente”, as vacas e os terneiros já haviam sido levadas. Encontrou, pois, apenas os tais touros. Justificando a atitude de Cristóvão Pereira ao coureá-los, escreveu o mestre-de-campo André Ribeiro Coutinho: “(...) os touros se não podem sujeitar para se domarem e estejam expostos a ter descaminhos, sendo mortos pelos passageiros e estancieiros pelo interesse do couro e do sebo, sem que à Fazenda de S. M. se lhe siga utilidade (...) como a falta não esteve da sua parte e oferece os quintos dos ditos couros e ametade do sebo que tirar, me parece estar em termos de se lhe deferir (...)” (AHRGS, Anais 1, 1979: 104-105)

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O número de animais encontrados nunca foi citado, podendo ter havido aí também um “descaminho”. Mas o que importa é que sua solicitação foi atendida e os representantes da Coroa e o Coronel das Ordenanças, ao que parece, saíram satisfeitos e sem maiores prejuízos. As circunstâncias que podem tê-lo levado a recorrer a este expediente para obter animais para a extração dos couros é que torna o documento muito interessante. Tentando aqui interpretar a estratégia de Cristóvão Pereira de Abreu em obter animais da Coroa para, talvez, uma de suas últimas coureadas, imagina-se que os rebanhos de bovinos indômitos estavam se extinguindo. Como reforço a essa idéia, tem-se um documento que cita a venda de uma caieira – depósito litorâneo de carbonato de cálcio, oriundo de sambaquis ou de concheros naturais no litoral sul-riograndense – que efetuou Cristóvão Pereira de Abreu no ano de 1743. Esta caieira havia sido adquirida no ano de 1739 e aos quatro anos de uso foi vendida (AHRGS, Anais 1, 1979: 195-196). Os motivos para esta venda, supõe-se aqui, tenha sido o declínio das coureadas desenfreadas, do fim do gado xucro. Lembrando o que já foi dito no primeiro capítulo, a cal é insumo básico no fabrico do couro curtido e dos produtos dos sebos. Sua ação calcinante propicia a queda dos pelos do couro e, tal como o sal, acelera o processo de desidratação. O couro em cabelo tinha valor inferior ao isento de pêlos. O beneficiamento dos sebos também era feito com a utilização da cal, a qual, tal como a soda, auxilia na transformação destes sebos em sabão. Witold Kula, em Teoria Económica do Sistema Feudal, ao argumentar a favor da existência de uma racionalidade nas economias pré-capitalistas faz referência a um exemplo semelhante ao desta caieira. Trata-se de um grande bosque em uma propriedade rural, para o qual o aproveitamento sob forma de lenha ou madeira para o comércio ou para ser deixado como reserva compreendia complexo cálculo

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econômico, impregnado de elementos extra-econômicos e impensável dentro da lógica capitalista (Kula, 1979: 29-30). A partir desse exemplo, pensa-se que, para um coureador, possuir uma caieira só tem significado se o seu uso reduz os custos de produção dos couros, já que nada acusa a existência de um mercado para o produto “cal” no extremo-sul da América portuguesa nem que Cristóvão Pereira de Abreu tenha sido um grande agente da construção – a outra grande utilidade da cal. Até mesmo porque havia uma quantidade razoável de concheros e sambaquis no litoral próximo aos Campos de Viamão, passíveis de exploração e mesmo de solicitação de suas posses por mercê real, caso a necessidade deste produto fosse realmente grande. O fato de Cristóvão Pereira se desfazer dessa caieira indica que a extração dos couros bovinos não mais justificavam a sua posse. Deter uma caieira não implicava mais em redução de custos de obtenção de insumos para um grande negócio, no caso a fabricação dos couros e seus efeitos. Por extensão, acusa também um declínio, ou mesmo o término, da atividade de fabricação dos produtos de origem bovina. Se a exploração dos couros entrou em colapso pelo extermínio desenfreado, pelo bloqueio à campanha do entorno de Sacramento, pela falta de preocupação em garantir a reprodução dos rebanhos. Se estes eram os recursos principais para o ingresso de receitas da região, este colapso deveria ter significado também um colapso na sociedade sulina, que tinha nos couros o vértice de sua produção comercial. Isto, no entanto, não ocorreu.

1. A crônica de uma crise anunciada: estratégias para enfrentar as difíceis conjunturas

Em vez de colapso, na década de 1740 houve um incremento na população que vivia nas proximidades do recém fundado Forte de Jesus, Maria e José, em Rio Grande e o povoado de Viamão elevou-se à categoria de freguesia. Esse crescimento

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do povoado de Rio Grande deveu-se tanto por aumento no número dos efetivos da fortificação, por migrações de populações lusas e seus escravos e pela chegada de contingentes indígenas (Queiroz, 1987: 65-78). Os novos povoadores receberam mantimentos e insumos para a produção agrícola. Isso denota a intenção de atraí-los, fixá-los nesta terra (Memória dos serviços prestados... In: BN–ABN v. 50, 1928; AHRGS, Anais 1, 1977: 46), o que dificilmente ocorreria em uma região em colapso. Conclui-se que a sociedade que explorava os produtos bovinos se utilizou de outros meios para manter o seu comércio com as outras regiões da Colônia. Pelo conteúdo da Memória de André Ribeiro Coutinho, percebe-se o destaque dado ao bom funcionamento do envio de tropas de cavalgaduras para além do Continente. Dessa nova atividade extraíram seus ganhos principalmente aqueles que já haviam lucrado com a extração e comércio dos couros. A crescente atividade de Cristóvão Pereira de Abreu na conduta das tropas e seu posterior interesse na mercê dos meios direitos de Curitiba denotam que este passara a ser o “grande negócio” do sul. As coureadas predatórias nas décadas finais do século XVII, iniciais do XVIII, e o não investimento na reprodução destes animais estavam colocando termo à sua existência. Estava por findar a época da “caça aos couros” e, concomitante a este final, se estabeleciam as primeiras fazendas no Rio Grande de São Pedro. Para corroborar a hipótese que aqui se delineia, citam-se alguns números para os couros extraídos no Continente. Na mesma Memória de André Ribeiro Coutinho consta, também para o ano de 1738 o seguinte trecho: “E deste gado [14.151 vacas] se sustentavam os oficiais de guerra, e Ordenança, os soldados, sacerdotes, povoadores, peões, índios e toda a mais gente, que pertencia à proteção Real; e remeti para a Fazenda Real desta Praça do Rio de Janeiro, 10683 couros de touro e vaca, extraídos do dito gado e dos quintos de toda a courama, que os Tropeiros fizeram naqueles campos...” (Memória dos serviços prestados pelo Mestre de Campo André Ribeiro Coutinho no Governo do Rio

191 Grande de São Pedro dirigida a Gomes Freire de Andrade - 1740. In: BN–ABN v. 50, 1928b: 330 – grifo meu),

ou seja, 10.683 couros multiplicados por cinco foram aqueles que o mestre-de-campo conseguiu quintar: 53.415 couros no total. Fora os “descaminhados”, de difícil quantificação. Um couro é igual um a animal abatido, logo, isso representa o extermínio, em um ano, de 53.415 animais. No mesmo documento, mais adiante, diz André Ribeiro Coutinho de algumas medidas tomadas por ele, com o intuito de barrar as coureadas predatórias: “E porque previ, que da desordenada e bárbara extração da courama que naqueles campos se fazia, devia naturalmente resultar a total extinção do gado; e por conseqüência infalível sobrevinha a falta daquele mantimento, para manutenção do Povo, e gente militar, tirei informações das pessoas mais práticas naquela matéria; e sabendo que já não haveria mais que de 10 a 14000 cabeças, porque vão se comendo no dito campo a carne de touros, de que se fazia a courama, se matavam as vacas, só para se comer a melhor parte e ás vezes não mais, que para lhe tirar o leite e fazer outras atrocidades, chamei a Conselho e com o parecer uniforme de todos os oficiais proibi, a 22 de dezembro de 1738 as corredorias de toda a campanha e passei ordem para que se postassem 3 guardas de Dragões, encomendados a um cabo, que as visitasse continuamente na distancia de 22 léguas, nas quais não havia entrada, pela costa da grande Lagoa de Mery e que se desse mantimento a todos os que cursassem as ditas campanhas, para irem e virem ás guardas de Chuí e Forte de S. Miguel; o que se executou enquanto não larguei interinamente aquele governo. (Memória dos serviços prestados pelo Mestre de Campo André Ribeiro Coutinho no Governo do Rio Grande de São Pedro dirigida a Gomes Freire de Andrade 1740. In: BN – ABN v. 50, 1928: 331 – grifos meus).

O Mestre-de-Campo André Ribeiro Coutinho mudou de opinião nos três anos que separam a sua Memória da carta que foi usada na abertura do primeiro capítulo. A fartura de couros e carnes acusada na sua correspondência particular revelou-se uma ilusão. O que André Ribeiro Coutinho presenciara há seis meses de sua chegada à barra do Rio Grande era o gran finale das coureadas desenfreadas. A ilusão fora dele, não da sociedade que se estabelecia no Continente. Esta, em boa parte presente,

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à partir de Sacramento ou à partir da Laguna, participara da exploração exterminadora dos rebanhos e de alguma maneira arranjou formas de não sucumbir junto com os bovinos. As medidas protetoras aos rebanhos, tomadas por André Ribeiro Coutinho refletem também o aumento das dificuldades de acesso aos gados existentes na Banda Oriental. Por força dos conflitos entre espanhóis e portugueses na segunda metade da década de 1730 nas imediações do Prata, foi estabelecido o Campo de Bloqueio à Colônia do Sacramento, por parte dos espanhóis. Este bloqueio regulava o acesso terrestre a Sacramento, dificultando o recolhimento e o trânsito de animais. Visavam com isso impedir o largo acesso dos portugueses aos rebanhos de bovinos, resguardando para si a sua exploração. Resposta sintomática a este bloqueio foi a fundação da fortificação do Rio Grande, na tentativa de restabelecer este contato terrestre e o acesso, desta vez pelo norte, aos rebanhos da Banda Oriental (Prado, 2001). A estratégia de obtenção de couros através do recolhimento do gado reiúno disperso foi resposta sintomática de Cristóvão Pereira a uma escassez da matéria-prima para a fabricação dos couros. A exploração dos couros que se fazia até este momento, além de explicar o motivo de serem os gados vacuns pouco comercializados com demais regiões da Colônia, coloca a pouca possibilidade de terem sido os gados bovinos simplesmente arrebanhados para se colocarem a procriar por particulares. Para que isso pudesse ocorrer, antes, o futuro criador deveria ter obtido terras, tomadas e/ou dadas em sesmaria, ter a mão-de-obra necessária para alzar os gados xucros para os seus campos antes que chegassem a eles os coureadores. Estes eram requisitos que nem todos os povoadores possuíam. Ao final da década de 1730, os bovinos, antes contados aos milhões, estavam reduzidos à uma sombra montante. As “corredorias” proibidas para a preservação do alimento necessário aos povoadores e aos exércitos de Sua Majestade. Ao final da

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década de 1730, portanto, as coureadas já não eram o melhor negócio que o sul oferecia. Arrebanhar gados para estocar em propriedades, ao que tudo indica, não eram possibilidades dadas a qualquer um, haja vista André Ribeiro Coutinho ter providenciado medidas que coibiam desfalques nos rebanhos reiúnos e a necessidade de deter terras, se não com carta de sesmaria, ao menos com a posse não pela sociedade sulina. Provavelmente o que subsidiou a recuperação dos rebanhos bovinos e o sustento da sociedade sulina foi a prévia acumulação durante o período das coureadas e a venda dos cavalos ao fim das caçadas dos couros. De toda a maneira, afirma-se aqui, não foram os excedentes da produção agrícola familiar levada aos tênues mercados que permitiram a acumulação aos povoadores. O lastro econômico que possibilitou a sobrevivência dessa sociedade, em conjunturas adversas era oriundo de produções de bens de origem animal ou os próprios animais. Estas, desde o início, eram voltadas para o mercado interno à Colônia ou nas boas fases, para a exportação, como foram os couros e possivelmente parte dos cavalos. O primeiro acúmulo se deu via apropriação de recursos: as terras e os animais. O enriquecimento só poderia ocorrer com a colocação de parte desse tesouro – o tesouro em quatro patas – no mercado.

Em que mãos foram parar os gados reiúnos

As terras, como já dito, pelo menos as grandes extensões, foram ocupadas por militares, agentes da Coroa ou particulares que atuaram na conquista dos territórios. Desde 1732 foram solicitadas, como mercês, grandes glebas de terras. Algumas foram concedidas. Outras terras foram simplesmente ocupadas, sem a homologação da posse (Neis, 1975: 21-24; 35-38). Sendo seus ocupantes homens importantes ou “heróis” desta conquista, pouca gente se atrevia a contestar esta tomadia de terras. Assim, mesmo que muitos tivessem a visão de que necessitavam investir na

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procriação do gado vacum, para garantir no futuro uma fonte de riquezas, poucos tinham a possibilidade de efetivamente o fazer. Talvez as décadas de 1740 e 1750 tenham sido o tempo necessário para os rebanhos se recuperarem, não mais como gado devoluto ou reiúno, mas em terras particulares, nas sesmarias dos grandes do Continente. Eram, neste novo momento, gados com dono. Seu abate não mais poderia ser feito por “camaradas do sertão” ou changadores e coureadores, pois tinha quem lhe reclamasse a posse e talvez até quem acusasse de crime de roubo os homens “avulsos” que insistissem nessa atividade. A única Câmara de Vereadores que existia no Continente, na Vila do Rio Grande, foi transferida na primeira metade da década de 1760 para o povoado de Viamão, que, sem ter estatuto de vila, passou a ter Câmara. Nos livros desta Câmara, no ano de 1767 foram registradas 225 marcas de gado (Relação dos Proprietários de Gados no Continente de São Pedro que Registraram as Marcas a Fogo de seus Gados - apud Fortes, 1941: 169-175). Os proprietários das marcas – e por conseqüência, de animais – eram os moradores de todo o Continente. Além de Viamão, aparecem as localidades da Freguesia Nova (Triunfo), Caí, Bonfim, Rio dos Sinos, Rio Pardo, Mostardas, Porto dos Casais, Santa Cruz, Botucaraí, São Borja (esta já no território das Missões Jesuíticas) (Relação dos Proprietários de Gados... apud Fortes, 1941: 169-175). O número de 225 marcas registradas em um único ano não significa necessariamente que a posse dos grandes rebanhos que tinham de ser marcados para evitar o abigeato encontrava-se disseminada. Foi possível reconhecer entre os detentores de marcas de gados vários membros de uma mesma família, a exemplo do que se verificou com a posse das terras. Os descendentes de Francisco de Brito Peixoto – Ana da Guerra, João de Magalhães (pai e filho), Cláudio Guterres, Bernardo Pinto Bandeira, Manuel Pinto Bandeira, entre outros – e seus parentes mais distantes ou por afinidade – Antônio

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José Viegas, Antônio dos Santos Robalo, Antonio dos Santos Maciel, Manuel Gonçalves Meireles, Manuel Ribeiro da Cunha, Custódio Ferreira Guimarães, Jerônimo Pais de Barros e Antônio Ferreira Leitão entre outros – registraram marca de gado (Relação dos Proprietários de Gados... apud Fortes, 1941: 169-175). Mas isto não era exclusividade dessa família. O Capitão João Teixeira de Magalhães registrou marca para si e para sua filha Florência (Relação dos Proprietários de Gados... apud Fortes, 1941: 169-175). Possivelmente algumas das mulheres que constam na listagem do registro de marcas eram filhas ou esposas de proprietários de gados. Podia ser um dote para as filhas e um pecúlio para as viúvas. Três membros da família Braz também registraram marca neste ano, assim como pelo menos dois de seus cunhados. Esta família fazia parte do grupo de primeiros povoadores dos Campos de Viamão e possuía parentesco não muito remoto com os Brito Peixoto e com os Santos Maciel de Sorocaba (Relação dos Proprietários de Gados... apud Fortes, 1941: 169-175). Já década de 1750, na freguesia de Viamão, a predominância da mão-de-obra de origem africana é evidente, sendo os indígenas numericamente irrisórios ante esta (Kühn, 2001b). Dentre os maiores proprietários de escravos da freguesia de Viamão em 1751, Kühn destaca Francisco Pinto Bandeira, como já dito, descendente de Francisco de Brito Peixoto e um dos primeiros habitantes da freguesia. Também foi Francisco Pinto Bandeira um dos maiores proprietários de animais desta freguesia (Silva, 1999; Kühn, 2001a e 2001b). Ao longo das quatro primeiras décadas da ocupação do Continente do Rio Grande de São Pedro, assistiu-se, simultaneamente, a concentração das terras, dos animais e da mão-de-obra, das patentes militares, dos cargos na Câmara, nas mãos de um punhado de famílias. Sendo o Continente um território novo, depreende-se que as famílias que vieram povoá-lo trouxeram junto consigo o know how que as possibilitou

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construir uma sociedade “nova”, hierarquizada e excludente, tal e qual aquela em que viveram. Mais ainda: o fizeram de forma que elas próprias se mantivessem nos extratos mais altos da hierarquia sulina, angariando as riquezas e prestígio. A guinada em direção ao comércio de cavalgaduras para as regiões centrais, ocorreu em um momento em que a extração dos couros na campanha já dava mostras de declínio. A mudança do tipo de produção comercial do sul está correlacionada com outras tantas mudanças. Dentre elas a propriedade da terra e dos rebanhos. Uma grande parcela dos habitantes do Continente possuía escravos. A população escrava era uma fração numericamente expressiva do total dos habitantes de Viamão. A tendência de distribuição dos escravos entre os proprietários era a de concentração das maiores escravarias nas mãos de poucos senhores (Künh 2001b). Em número bem menor que os escravos de origem africana aparecem os índios, com presença não disseminada nas propriedades e relacionados quase que exclusivamente ao grupo de povoadores aparentados de Francisco de Brito Peixoto (Garcia, 2001c). Aqueles que contavam já com algum cabedal ou os jovens sem bens ousaram pôr-se a em picadas do sertão, abrindo caminhos para um novo e lucrativo comércio que se iniciava, o das cavalgaduras. Foram estes os pioneiros dos caminhos. Pouca idade não foi empecilho para lançar-se nesta empreitada. Manuel de Barros Pereira, oriundo da Ilha da Madeira, tinha doze anos de idade quando engordou as fileiras dos pioneiros do Caminho das Tropas. Suas peripécias e sua tenra idade valeram-lhe a alcunha de “O Menino Diabo”, pela qual era eventualmente referido mesmo em idade avançada (Neis 1975). Provavelmente sua atuação nesta empreitada contou pontos para que se tornasse detentor de duas sesmarias no Continente. Aos que pouco tinham, pouco sobrava dos gados desgarrados de rebanhos em decadência, para courear, talvez, por mais uma década. Provavelmente comporiam as fileiras dos “agregados”, “camaradas” e dos que “vivem a favor” de algum proprietário. Arrebanhar gados e propiciar a sua procriação em terras próprias foi

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possibilidade dada principalmente a quem havia conseguido acumular bens e privilégios desde o início da conquista. Não parece ilusão acreditar que os mais aquinhoados tenham pressentido a crise das coureadas se anunciando. Difícil seria crer que um grupo de homens, justamente os mais aquinhoados deste Continente de São Pedro, casualmente tenham tomado as mesmas medidas, buscando a apropriação dos gados bovinos e cavalares, marcando-os com seus sinais. Este arrebanhar de gados já existia em meados da década de 1730. A petição de Cristóvão Pereira alerta que os gados reiúnos estavam sumindo dos pastos pelas mãos dos índios e dos particulares. A família de Brito Peixoto, junto com outros moradores do Continente, vendeu muitos vacuns para Sacramento, com a paga da Fazenda Real daquela praça (Monteiro 1979: 35). Ora, se tais foram vendidos, era porque alguém havia ido aos campos para trazê-los. A Coroa, se os comprou, era porque reconhecia a legitimidade da posse. André Ribeiro Coutinho, que em 1737 dissera que “a matéria de futuro é tão alheia ao pré-conhecimento dos homens”, em um par de anos previu “que da desordenada e bárbara extração da courama que naqueles campos se fazia, devia naturalmente resultar a total extinção do gado”. Assim como ele, “previram” os pioneiros do Continente.

2. Os diferentes mercados para os animais: a origem da flexibilidade e das possibilidades do mercado de semoventes

Aqui se defende a idéia da existência de mais de um mercado para os animais que partiam do sul em direção às regiões mais centrais da Colônia, calcada na ciência das diferentes utilidades que cada tipo de animal comercializado, desde o pólo fornecedor sulino, apresentava. Veja-se o trecho do documento relativo ao intervalo

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de anos de 1769-1771: “De que Se paga de Direitos de cada cabeça de Gado no Registro de Capivary, não se trata nesta Relação porque desta Capitania não costuma ir gado para a de Minas Gerais.” (AESP-DIHCSP, 1946: 257, doc. 6 em Anexo III). Ou seja, para as Minas iam cavalos e muares, mas não o gado bovino, ficando provavelmente o Registro de Sorocaba como ponto final dessas tropas de gados vacuns. Para seguir na argumentação acerca da existência de diferentes mercados para os animais, há que se ter em vista as especificidades tanto dos animais quanto das necessidades destes em diferentes contextos. Lembra-se, então, algumas das coisas já ditas no primeiro capítulo sobre três diferentes tipos de animais que partiam do sul rumo a seus mercados.

Algumas palavras sobre os gados bovinos Quanto à utilidade do gado vacum, este geralmente era empregado como alimentação ou quando manso, na tração de arados, carros-de-boi ou moendas. A presença de bois mansos, no Rio Grande de São Pedro, se encontrados em uma propriedade ou sob posse de algum homem foi considerado por Helen Osório como indicativo de agricultura, por movimentarem os arados ou o excedente da produção até os seus mercados (Osório, 1999: 72). Não vai se afirmar aqui que esta sociedade viveu somente dos animais e consumiu apenas carnes. Admite-se, isto sim, que, uma parcela dos povoadores poderia ter nos bois mansos outra função que não a força motriz de arados e moenda ou tracionar carros com excedentes de produção agrícola. Discorda-se aqui da utilização de tal indicativo como suficiente para o contexto dos primórdios da ocupação sulina e coloca-se sob suspeita seu uso peremptório para os períodos posteriores. O relevo da pampa é muito propício à utilização de bois como animais de tração de cargas e tem-se no documento abaixo, indícios de que sua utilização não era exclusiva do transporte dos produtos agrícolas:

199 “chegou a Montevidéu despachado de Cádiz em que foram doze casais para aquela nova povoação, em cujas vizinhanças nos apanharam os castelhanos treze carros carregados de couros com oitenta juntas de bois, sobre o que escrevendo ao governador de Buenos Aires não mandou restituir mais que sete negros que os guiavam” (BNDH 1951: 26). .

Tal ocorrência, comunicada ao Conselho Ultramarino se deu no ano de 1727, no entorno de Sacramento. Caso semelhante a este ocorreu entre os anos de 1722 e 1723, relatado por Simão Pereira de Sá e já citado no primeiro capítulo. A apreensão foi de sete carros carregados de couros, portanto, algo em torno de quarenta juntas de bois de propriedade de Cristóvão Pereira de Abreu. A junta de bois é composta de dois animais. Logo, no primeiro caso foram roubados cento e sessenta bois mansos e aproximadamente oitenta bois mansos foram levados de Cristóvão Pereira. Deste, tem-se ciência de produção agrícola em suas terras na região de Itambé, Minas Gerais (RAPM 1921: 389-391), mas não se encontrou qualquer referência que o vinculasse à atividade de lavoura com produção agrícola significativa nas suas terras dos Campos de Cima da Serra (RAPM XXIV, 1933: 171), ou em sua propriedade no entorno de Montevidéu. Segundo o Padron 1751 – levantamento feito nas propriedades de Montevidéu para efeitos de cobrança de uma taxa que financiaria a guerra aos minuano (Apolant, 1966: 5) – assim estão descritos o sexto proprietário listado e suas posses no local : “It. CRISTOBAL PEREYRA Militar Por uma casa y sitio..............350 – Por uma esclava ...................200 – 550 – Debe pagar 1 peso y 5 reales” (in Apolant, 1966a: 9).

Esta descrição contrasta com os bens de muitos de seus vizinhos que possuíam estância e animais. Alguns tinham também benfeitorias associadas à agricultura, como no exemplo abaixo:

200 “It. Dn; JUAN DE ACHCARRO Por una casa, sitios, y molina y tahona........8.000 – Por cuatro esclavos....................................... 700 – Por mil ochocientas cabezas de ganado vacuno a 2 pesos........................................ 3.800 – 12.500 – [sic] Por seiscientas ovejas a 3 reales del dicho...............................................................225– 12.725– Debe pagar 38 pesos y un real”. (in Apolant, 1966a: 8).

Por estes motivos, aconselha-se cuidado ao considerar a presença de bois mansos no contexto colonial sulino como indicativo seguro de agricultura. Estes podem também, ser animais de tração para os produtos de origem animal, carnes, sebos, couros, crinas e, inclusive, o charque. A comercialização dos gados bovinos, para além do Continente do Rio Grande de São Pedro, como já dito, destinava-se a abastecer os seus mercados com animais para o abate, para a tração de carros de carga, moinhos e engenhos ou, como enunciamos anteriormente, para a recomposição dos rebanhos paulistas, reduzidos em número pelo envio de animais para o abastecimento dos mineradores. O fato de não entrarem reses bovinas sulinas nas Minas, conforme o documento supra citado, reforça esta hipótese.

Algumas palavras sobre as cavalgaduras As mulas e os cavalos – as ditas cavalgaduras – conservam diferenças biológicas entre si. As mulas são animais híbridos, resultado da cruza entre um asinino (Equus asinus) e um cavalar (Equus caballus). Geralmente são estéreis e a sua existência é devida à ingerência humana no processo de reprodução. A produção de muares é um processo complexo e requer conhecimentos e habilidades específicas, não requeridas na reprodução natural de animais não-híbridos. A força física e a robustez de sua estrutura óssea faziam dos muares os animais preferidos para trilhar os terrenos irregulares e acidentados do interior da Colônia.

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Foram, durante séculos o melhor meio de transporte de cargas, capaz de cumprir certos trajetos impensáveis para os outros animais. A longevidade de sua utilização no Brasil Colônia fez com que Alfredo Ellis Júnior considerasse aquilo que denominou de “o ciclo do muar” somente inferior em longevidade à produção açucareira (Ellis Jr., 1950) . Dos cavalos, a velocidade, o trote macio e a grande adaptabilidade ao adestramento, são elementos que os qualificam para o transporte, sobre sela ou não, de seres humanos. Serviam de montaria para a população civil e militar. Característica deste tipo de eqüino é a sua fragilidade, sempre sujeitos a fraturas, se submetidos a terrenos acidentados irregulares. Uma vez sofrida a fratura, raramente o animal escapa da morte, seja ela por decorrência do acidente ou por sacrifício. Apesar do grande porte, não são animais de grande força física, em função do esqueleto delgado e da musculatura compatível com tal estrutura óssea. São, portanto, aptos ao transporte “pessoal”, de pequenas cargas e de pequenos carros com gente ou cargas mais leves. Sempre que possível eram preteridos para o transporte de cargas pesadas se haviam muares ou bois mansos para esta tarefa ou se as estradas interioranas assim o permitissem. Mais que isso, os cavalos eram e ainda são considerados equipamento bélico. Armas vivas para os exércitos, os cavalos são o elemento não humano das tropas de cavalaria, consideradas o fator que conferia a superioridade bélica das cavalarias ante as infantarias. As características dos animais, portanto, colocam nichos próprios a cada um deles dentro da economia colonial. Gado vacum para corte ou trabalho interno às propriedades rurais; gado cavalar como transporte humano, aparato bélico e transporte de pequenas cargas; gado muar para o transporte de cargas maiores dentro da Colônia. Nada mais natural que também as demandas por estes animais fossem distintas, assim como relativamente independentes eram as variações nos fluxos desses comércios.

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Para os gados bovinos, considerados aqui como mercadorias que partem do sul, os seus consumidores são agricultores, produtores e populações que consomem carnes bovinas adquiridas nos açougues dos núcleos populacionais. Para os gados muares, os consumidores são produtores rurais, mineradores e senhores de grandes propriedades que necessitam dar vazão à sua produção, conduzindo-as até os centros de consumo ou aos portos de embarque; mascates e toda a sorte de comerciantes que as necessitem para a condução de suas mercadorias variadas até as populações rurais ou urbanas. Foram os muares os viabilizadores da grande rede do mercado interno à Colônia, conduzindo ao lombo os produtos coloniais e mercadorias de luxo, numa eterna circulação pelas picadas e caminhos. Para os cavalares, além dos civis, houve os exércitos de sua majestade como consumidores regulares, tão necessários que a Coroa não descuidou de garantir sua produção nos campos sulinos através do estabelecimento de duas Estâncias Reais para garantir a sua produção. As milícias e tropas particulares também foram consumidores da mercadoria “cavalos”.

Os cavalos e as rotas inter-coloniais Para estes últimos, retomamos aqui o que foi colocado no segundo capítulo, havia uma outra possibilidade: o comércio atlântico. As guerras contra os holandeses na disputa por Angola acabaram por revelar uma das fraquezas dos portugueses: a falta de uma cavalaria. Segundo Ferreira (2001: 374), a existência de animais para a tropa de cavalaria foi preocupação constante em Luanda, existindo um rígido controle sobre estes. Como já dito, os cavalos são equipamento bélico, e os nativos de Angola não possuíam cavalaria. Logo, a supremacia lusa também dependia da existência destes animais em suas cavalariças. Apesar da longevidade do comércio de cavalos entre a América e a África, este não parece ter sido satisfatório às necessidades africanas. Reiteradas ordens reais

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foram emitidas desde o ano de 1666 até meados do século XVIII, tratando de obrigar a colocação de cavalos em cada navio que deixasse algum porto do Estado do Brasil em direção a Angola (Simonsen: 1957: 174). Segundo Simonsen, estas cartas régias e provisões correspondem aos anos de 1666, 1668, 1702, 1707, 1712, 1715, 1719, 1720, 1721, 1722, 1726, 1753, 1754 e reiteram a determinação de que não partisse navio algum para Angola sem dar lugar a cavalos entre sua carga. Ao que tudo indica, a suscetibilidade às doenças endêmicas africanas impossibilitava o estabelecimento de criadouros de cavalos neste ambiente, assim como o temor de que, existindo matrizes no território angolano, os nativos providenciassem seus próprios criadouros. Isto poria fim à já alegada supremacia da cavalaria lusa sobre os guerreiros africanos. Assim, este comércio que perdurou por cem anos ou mais, nutria-se, portanto, basicamente de cavalos machos. A sua importação era com finalidade de defesa e guerra. A guerra, como se sabe, não produz outra coisa que não a morte, seja de humanos ou animais. Segundo Ferreira, apesar de todas estas medidas para manter uma força de cavalaria permanente em Angola, o abastecimento foi inconstante e irregular. Houve uma tentativa de estímulo ao embarque de cavalos americanos em direção à África, através do oferecimento da prioridade na saída de Angloa àqueles navios que houvessem levado os animais. Mas nem assim o fluxo regularizou-se (Ferreira, 2001: 375). O tamanho pequeno dos navios era mais um complicador nesse transporte (Ferreira 2001: 375). Se a Carta Régia de 14 de dezembro de 1666 ordenava o envio do maior número de cavalos que fosse possível, a de 16 de setembro de 1668 estabelecia que para cada 100 toneladas de arqueação1 deveriam ser embarcados dois cavalos

1 Unidade de medida utilizada pela Marinha Mercante. É uma medida da capacidade dos espaços internos de uma embarcação mercante, para efeito de pagamento de certos impostos, e que é expressa em toneladas de arqueação, sendo 1 tonelada de arqueação = 100 pés cúbicos = 2,832m3. Cf. Dicionário Aurélio Século XXI.

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(Simonsen: 1957: 174). Provavelmente pelo fato de serem mercadorias vivas, e por este motivo, além dos animais, deveriam estar previstos o espaço para o embarque de alimento e a água a eles necessários, esta determinação nem sempre foi seguida à risca. Não foi possível consultar todas as determinações a este respeito, mas pelo menos a Carta Régia de 3 de setembro de 1721 (doc. 7 em Anexo III) não determina em que número os animais deveriam ser embarcados em cada um dos navios. Segundo Simonsen a Carta Régia de 1726 flexibiliza as medidas, pois traria em seu conteúdo a instrução para que os senhorios dos navios menores, que por sua pequenez não podiam incluir cavalos em sua carga, mandassem embarcar – às suas custas – os cavalos em navios maiores (Simonsen: 1957: 174). Já no ofício datado de 3 de setembro de 1755, assinado por José Antônio Freire de Andrade, que exerceu interinamente o governo do Rio de Janeiro em diversas ocasiões, percebe-se que já fora abdicada a relação cavalo/tonelada de arqueação para deixar entrever um número fixo de dois animais por embarcação que partia para o Reino de Angola, com rigorosa inspeção feita pelo Mestre da Ribeira. Alerta este documento, que de todos os navios que partiram, apenas um, com atestado pequeno porte, deixou de conduzir dois animais, ficando sua cota reduzida a um cavalo (doc. 8 em Anexo III). Este ofício dá conta do que ocorria na costa oeste do Atlântico. Todavia, a travessia do oceano não era nefasta apenas aos humanos e nem sempre ou, melhor dizendo, quase nunca os cavalos embarcados chegavam todos vivos ao seu destino. Em 1722 a cavalaria angolana estava reduzida a um total de 14 animais e “entre 1723 e 1726, por exemplo, nenhum cavalo foi transportado da Bahia para Luanda” (Ferreira: 2001: 376). A mortalidade dos animais na travessia atlântica justifica parte do problema angolano. Uma outra parte, acredita-se aqui, seria a falta de interesse dos súditos da Bahia e outras regiões, como Pernambuco e Piauí, criadoras de cavalos. Enviá-los em pequenas porções em cada um dos navios, com seu preço estipulado pelos

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representantes da Coroa, poderia não ser negócio tão bom quanto enviá-los às regiões mineradoras. De toda a maneira, a necessidade de animais do outro lado do Atlântico fezse sentir na Colônia americana. A abertura do Caminho das Tropas, ao início da década de 1730 facilitou a chegada dos cavalos ao porto do Rio de Janeiro. Isso se evidencia nos depoimentos dos Autos Matrimoniais, nos quais alguns condutores, como Francisco da Rosa, natural da Ilha do Pico, alega ter trilhado “o sertão em companhia de José da Fonseca e de Jacinto Roque e fora na dita campanha até o Rio de Janeiro e em toda esta viagem até se recolher outra vez a estes campos de Viamão” (AHCMPA - Autos Matrimoniais de Francisco da Rosa e Teódosia da Silva (ou de Siqueira) – 1759).

Um outro indicativo de que a abertura do Caminho das Tropas e o fluxo facilitado dos animais até os portos de embarque, para daí tomarem o rumo de Angola, é o que sucedeu com Rodrigo Cesar de Menezes, o governador de São Paulo que dera início às tentativas de abertura da rota. No ano de 1727, quando os Francisco de Souza e Faria deu partida à empreitada concluída nos primeiros anos da década de 1730, Rodrigo Cesar de Menezes já havia deixado o governo de São Paulo. Segundo José de Almeida Santos (Santos, s.d.) a esse tempo, em Angola, ocorreram disputas internas dos súditos lusos pelo poder da Câmara de Luanda, após a morte do Governador Caetano d’Albuquerque. Protestos e desobediências punham em risco a estabilidade. Diz este autor: “O governo do Senado da Câmara não seria suportado por muito tempo mais, pois tudo se encaminhava para uma revolta, o que seria inevitável, se não fora a chegada do novo governador do território, Rodrigo Cesar de Menezes, desembarcado em 29 de Dezembro de 1732 e empossado, com todo o cerimonial do estilo em 1 de Janeiro de 1733” (Santos, s.d.: 63)

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Ou seja, o governador que dera início à solução dos problemas do fluxo dos animais sulinos até as regiões da Colônia que dele necessitavam, fora transferido para o pólo mais distante destas rotas possíveis aos eqüinos transportados. Ao que parece, uma vez resolvido a parte sul-americana dessa equação, Rodrigo Cesar fora designado a resolver os problemas da parte africana, provavelmente recebendo as mercês e benesses reais decorrentes do cargo de governador em Luanda, mercês estas, facilitadoras inclusive do lucrativo comércio Brasil-Angola. Em 1734, Rodrigo Cesar de Menezes já estava morto. Provavelmente sucumbira aos “ares danosos” de Angola, não chegando a exercer, portanto, dois anos de governo. Seus negócios na Colônia americana foram levados adiante por um irmão, dito “o Principal Cesar”, seu herdeiro e testamenteiro (BN-BH, 1928a, 481). O problema da necessidade de existência de uma cavalaria em Angola somente seria resolvido ao início do século XIX, “com o abandono do tráfico atlântico por ingleses e franceses” (Ferreira, 2001: 377). Deixando Angola e voltando às possibilidades de mercado para os animais sulinos, reafirma-se a existência de diferentes mercados para os diferentes animais que partiam do Continente do Rio Grande de São Pedro. Mesmo se conduzidos por uma única equipe, em tropas mistas, os destinos dos vacuns, muares e cavalares eram, muito provavelmente diferentes, assim como diferentes eram as suas utilidades. As múltiplas combinações de oferta de animais aos pastos sulinos e as demandas de animais nas suas áreas consumidoras, possibilitaram jogar em meio a uma relativa, mas presente flexibilidade dos mercados.

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A diversidade no uso dos animais e a variedade de mercados: possíveis fatores da sobrevivência e da acumulação de riquezas no comércio de semoventes

A partir do que já foi dito, acerca das diferentes utilizações dos animais, pretende-se caracterizar os diferentes mercados para os quais se destinavam. Os vacuns, rememorando aqui o já explanado, serviam à alimentação, à extração de couros, sebos e outros produtos, recompunham os rebanhos paulistas já em fase de extinção pela venda exacerbada aos mineradores; os cavalares serviam para o transporte humano e de pequenas cargas, para os exércitos de Sua Majestade, deste e do outro lado do Atlântico, demonstravam poder e prestígio, sendo, portanto, objetos de luxo e ostentação; os muares faziam a integração entre litoral e interior, abasteciam as zonas mais remotas e escoavam as produções até seus portos de embarque. Parece natural pensar que para tão distintas demandas, os fluxos destas mercadorias semoventes também fossem distintos. Parece possível, inclusive, imaginar uma certa especialização das condutas em um determinado tipo de animais. A já citada listagem de 1750 mostra que apenas um dos condutores possuía tropa com dois tipos de animais conduzidos em quantidades semelhantes, no caso Bento Borges, que conduzia 157 cavalares e 179 muares. De resto, a desproporção é gritante à vista. Na maioria das vezes, o animal principal da tropa extrapola em duas ou mais o restante, quando não, o condutor levava consigo um único tipo. Também dessa listagem diz-se que a conduta de vacuns em uma tropa mista mais se assemelha aos bovinos a serem consumidos ao longo da viagem do que a animais para a comercialização (ver doc. 10 em Anexo III). Apenas um dos condutores, Francisco de Albuquerque, parece passar bovinos por Curitiba com outra finalidade que não a alimentação de sua equipe. Este homem conduzia 520 vacas, exatamente a metade do total de vacuns contados neste ano. Em

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compensação, levava apenas dezoito cavalos e dezoito muares, dando a entender que estes eram os animais de montaria e para carga dos pertences utilizados ao longo do trajeto. Antônio Francisco, condutor que executou duas passagens no Registro de Curitiba ao longo do ano de 1751, em sua primeira passagem levava 109 cavalos e nenhum animal de outra espécie. Em sua segunda passagem pelo Registro de Curitiba, passou uma tropa mista. Antônio Francisco conduziu 247 cavalos e 493 muares. Nesta sua segunda tropa constavam apenas 30 vacuns. Um outro condutor, Luís Francisco, também fez duas passagens por Curitiba neste ano. Na sua primeira viagem possuía 36 cavalos e 246 muares. Na sua segunda conduta, conduzia exclusivamente cavalos, num total de 230 animais. Isso dá sentido ao documento que frisa que para a capitania de Minas não costumavam entrar os gados oriundos do Rio Grande, pois provavelmente os vacuns do Rio Grande tinham por destino algum outro ponto, ou a meio caminho entre as Minas e o Continente, como por exemplo as propriedades rurais e o mercado de carnes de São Paulo. Podiam ir também para o abastecimento do Rio de Janeiro. Infelizmente, a listagem de 1751 é a única que nomina o condutor, quantifica e discrimina os animais por conduta. Isto é pouco para que se afirme peremptoriamente a especialização das condutas. Dessa possibilidade de especialização que a listagem permite vislumbrar os tênues contornos, também deriva a hipótese da existência para os distintos, e relativamente independentes, fluxos das mercadorias vivas. Ajudando a formular esta hipótese de diferentes mercados e fluxos para os diferentes tipos de animais, nota-se que entre os anos 1794 e 1798 houve mudanças significativas no envio de animais. Os vacuns superavam o envio de cavalos. Ainda nesta década de 1790, os gados muares também se colocaram em quantidade superior à dos cavalos (Mendonça: 1961: 247). No ano de 1798, o número de muares que passaram por Curitiba disparou para mais de onze mil animais. Os muares superaram

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em muitas vezes os cavalos enviados, que nesta década de 1790 mantiveram oscilações compatíveis com as quais puderam ser observadas nos períodos anteriores. Na última década do século XVIII o charque sul-riograndense já era mercadoria exportada, em grande quantidade, por via marítima para o Rio de Janeiro (Osório, 1999). Conclui-se, portanto, que o envio de bovinos em pé para além de Curitiba e a fabricação do charque conviveram dentro do mesmo período. Não foi, entretanto, o segundo substituto direto e imediato do primeiro. Antes, cada um destinava-se a finalidades distintas. Isso também reforça a hipótese de que as diferentes utilizações dos gados se traduziam em diferentes mercados para os mesmos. Se o propósito era a carne para a alimentação, o charque, por conservar-se bastante tempo devido ao processo de salga, era um produto adequado. No entanto, se o propósito era abastecer os agricultores de animais de canga e de carro ou ainda para restabelecer os criatórios de bovinos que supririam a necessidade de carnes frescas, tais animais deveriam ser enviados em pé, vivos, até seus compradores. O charque, produto de exportação sulino para o restante da Colônia a partir do terceiro quartel do século XVIII, pelo que se pode observar a partir dos dados relativos ao Registro de Curitiba, não pôs fim ao envio dos gados em pé, como quer majoritariamente a historiografia sul-riograndense. Fica aqui registrada a necessidade de pesquisas mais aprofundadas no sentido de trazer à luz a relação entre o comércio dos gados vacuns e a produção do charque para a exportação. Uma das causas para a longevidade do comércio de semoventes sulinos pode estar justamente vinculada a estes fluxos independentes dos diferentes tipos de animais. O mercado consumidor interno à Colônia era bastante restrito e sujeito às variações conjunturais. Sua formação recebera forte impulso somente na última década do século XVII, a partir da descoberta do ouro. Este mercado interno foi caracterizado por uma frágil divisão do trabalho. Como já visto nos capítulos precedentes, um

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sapateiro como Pedro Celestino da Cunha (AHCMPA – Autos Matrimoniais de Pedro Celestino da Cunha e Ana Maria dos Santos – 1753) ou um padre como Manuel Luís Vergueiros (doc. 8 em Anexo III), também atuavam no comércio de animais, assim como muitos outros homens com ocupações variadas (AHCMPA – Autos Matrimoniais). Numa sociedade não-capitalista, o cálculo econômico pressupunha evitar os gastos em moeda para aquisição de alimentos e outros gêneros e colocar à venda tudo o que fosse possível da produção das unidades familiares na perspectiva de captação de moedas para os gastos necessários (Kula, 1979). Interessante notar que a sociedade sulina soube, de alguma maneira, manter necessários à Colônia os seus produtos comerciais. Com certeza, o sul não era o único produtor de animais existente na América lusa. Os súditos “lavradores” da Bahia, Pernambuco e Piauí também eram produtores de cavalos e chegaram a apelar à Sua Majestade contra a entrada de muares sulinos nas Minas, tendo sido parcialmente atendidos em suas reivindicações (doc. 3 em Anexo III). Apesar das forças que jogavam contra um monopólio ou semimonopólio da produção e comércio dos animais de carga e tração, os produtores e comerciantes dos animais sulinos atuaram com muita força neste mercado. Uma das maiores fontes de renda do Continente estava ameaçada, por ordem real. Esta foi mais uma crise que teve de ser superada. A sociedade sulina debateu, argumentou, e por fim, manteve o seu direito – exclusivo, após estes eventos – de manter a produção de muares. Não evidenciou-se nenhuma crise que levasse ao colapso ou que fosse significativa a ponto de colocá-lo em xeque, haja vista que mesmo nos períodos de beligerância nos territórios sulinos, em que se necessitavam de animais para alimentação e montaria dos exércitos e transporte de equipamentos, o fluxo, ainda que prejudicado, não foi interrompido.

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Isso atestam os documentos sobre a passagem dos animais por Curitiba. O documento datado de 1752 demonstra, através dos valores recolhidos nos anos precedentes, que houve um aumento no envio das cavalgaduras, inclusive com aumento do número de muares. O redator de tal documento alerta que para o ano seguinte, já estavam a caminho tropas mais numerosas que as do ano anterior (BN-DH, 1928b: 138-141). A partir de 1751 havia se deslocado para o sul um grande número de soldados, que acompanharam Gomes Freire de Andrade na Expedição de Demarcação de Limites do Tratado de Madri. Demandavam portanto, as companhias de Dragões, de Ordenanças e de Aventureiros, por um grande número de montarias, animais de carga e de carne bovina para a sua alimentação. Nem isso interrompeu o fluxo de cavalares e muares para o Centro-sul. Entre os anos de 1769 e 1771, compreendidos no período chamado de Dominação Espanhola, onde o atual território do Rio Grande do Sul estava perdido em aproximadamente três quartos para reino de Espanha, houve saques aos rebanhos e dificuldades em suprir o abastecimento dos mercados de animais, mas ainda assim, seguiu o envio – dificultado, é verdade – de animais para além de Curitiba. Essas dificuldades, geradas pelos constantes conflitos entre as duas Coroas, se fizeram sentir no escoamento da produção da Colônia do Iguatemi de onde “Não tem baixado as partidas de Yerva por falta de Mulas e Cavalos, porque está a Província mui falta delas” (AESP-DIHCSP v. XIV, 1895: 239). Assim, de um momento para outro, uma mudança – como foi o descobrimento do ouro – podia propiciar o início de atividades econômicas e, com bastante rapidez, outras mudanças – como a falta de meios de transporte – também poderiam colocálas próximas ao fim. A flexibilidade deste mercado era bastante limitada. Todavia existia. Os comerciantes de animais sulinos souberam se utilizar dessa flexibilidade, supõe-se aqui.

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Estes comerciantes, além dos sub-produtos animais, possuíam três tipos de mercadorias semoventes distintas: bovinos para o corte e tração de arados e carretas; muares para o transportes de cargas diversas nos comboios que circulavam pelo interior colonial; os cavalos, sempre necessários aos exércitos, para o uso como montaria e por último para o escambo com a África (Hameister, 2000b). Possuíam, portanto, opções para apostar neste jogo complexo, repleto de perigos advindo dos caminhos acidentados, das intempéries, dos ataques, ameaçado pelas mudanças que podiam ocorrer de um momento para o outro. Podiam privilegiar o atendimento do mercado que pudesse lhes conferir mais ganhos ou na pior das hipóteses, menos perdas, sem descuidar de todo das oportunidades de venda dos outros animais. Justamente nesta flexibilidade propiciada pelos fluxos distintos parece residir o segredo de sua sobrevivência no tempo. Iniciada em larga escala a partir terceira década do século XVIII, ainda existiam fortes resquícios dessa atividade na primeira metade do século XX (Fonseca s.d; Pont 1986: 861-880). Como já dito, um mesmo condutor de animais podia organizar tropas com cavalos, muares ou vacuns predominando, e assim satisfazer as diferentes demandas do mercado interno, utilizando-se desta independência relativa dos mercados específicos para tornar sua atividade se não mais lucrativa, ao menos compensadora. Havendo a produção dos animais ao sul, competia ao comerciante estar atento às necessidades das populações interioranas do Estado do Brasil para realizar a ligação entre as duas áreas através do seu comércio fosse qual fosse a demanda – tração, carga e tiro, alimento ou montaria. Locupletavam-se alguns comerciantes cobrindo as distância existente entre estas áreas, negociando suas mercadorias. Um comércio de longa distância Aqui há de se comentar acerca da distância que separava o pólo produtor dos

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animais, no caso os campos sulinos, e o seus principais mercados consumidores: São Paulo, as Minas e o Rio de Janeiro. As características deste comércio foram buscadas na obra Civilização Material. Economia e Capitalismo – Séculos XV-XVIII: Os Jogos das Trocas, de Fernand Braudel. Diz este autor: “O comércio de longo curso cria seguramente sobrelucros: joga com preços de dois mercados afastados entre si e cujas oferta e procura, ignorando-se mutuamente, só se encontram por intervenção do intermediário” (Braudel, 1996: 357).

A distância é o que separa o joio do trigo no jogo do comércio nessa sociedade não-capitalista. Somente aqueles que possuem cabedal para adquirir uma quantidade de mercadorias que justifique a viagem e que tenham lastro para fazer sobreviver o seu comércio após duas ou mais viagens malfadadas. Saber colocar nos mercados as diferentes mercadorias e suprir ambas as pontas de sua rota com o que cada um deles demanda é ciência para poucos. O verdadeiro “empresário” do comércio revela-se na longa distância e na superação de seus contratempos. Como visto, à fartura de gados sulinos correlacionava-se a necessidade de animais nas regiões mais centrais da Colônia. Apesar de parecer óbvio, há que se destacar que para a locomoção dos produtos coloniais e da própria população, os animais de tração e carga eram os meios de transporte que se requeria. Com origem no comércio de gêneros diversos está a formação de um mercado próprio para os animais sulinos. A existência de um mercado interno à Colônia e demandante por produtos coloniais, surgido à partir da descoberta do ouro, foi aquilo que, indubitavelmente fomentou a economia sulina e “deu calor” à povoação do sul. Nos primeiros momentos da ocupação sulina, os gados vacuns eram aproveitados principalmente para a extração de couros e sebos. Após a abertura do Caminho das Tropas, o transporte dos animais por via terrestre pôde ser feito para as regiões não servidas pela navegação.

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Os condutores de tropas, eram muitas vezes, simultaneamente, produtores ou arrebanhadores, proprietários e responsáveis pela comercialização dos animais. Eles contavam com a vantagem da distância entre um dos pólos produtores e os pólos consumidores na valorização de seu produto. O inventário de Francisco Pinto Bandeira, morador dos Campos de Viamão, aberto em 1771, apresenta mulas aos pastos. O valor delas oscilava entre 3$000 rs e 12$800 rs. As diferenças entre os valores desses animais são devidos principalmente à idade dos animais, ao seu porte e ao fato de serem xucras ou mansas. As maiores, mansas, e com idade por volta de dois anos tendiam a ser mais valorizadas. O valor dos animais levados para os mercados de São Paulo e Minas, tinham nos campos sulinos valor que oscilava entre 3$000 rs e 8$300 rs (APRGS, Inventário de Francisco Pinto Bandeira in Silva, 1999 [anexo]). Na região das Minas há o indicativo de que as bestas muares valeriam em torno de 40$000 réis (Anexo III, doc. 6). Mesmo que não se possa quantificar o número de animas que morriam, os custos da produção e do transporte dos animais, esta diferença de valores entre o pólo produtor dos muares é muito alta. Pressupõese que o comércio entre regiões tão longínquas deveria apresentar ganhos compatíveis com o esforço em transportar os animais. É pouco provável que homens passassem quase um ano de suas vidas envolvidos em uma atividade tão ousada e que não lhes garantisse o sustento próprio e de suas famílias. “O comércio de longa distância significa riscos, porém mais ainda lucros excepcionais. Freqüentemente, muito freqüentemente, é ganhar na loteria” (Braudel, 1996: 357).

As distâncias cobertas por estes comerciantes, ainda hoje, com todas as facilidades de transporte que o despontar do século XXI apresenta, não deixam de impressionar. Veja-se o quadro que segue:

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Quadro 2 Distâncias aproximadas entre pontos da rota do comércio de animais

Campos de Viamão Campos de Viamão Sacramento

X ≅ 800 km

Sacramento ≅ 800 km X

Sorocaba/São Paulo Rio de Janeiro ≅ 1.090 km ≅ 1.890 km

≅ 1.600 km ≅ 2.400 km

Vila Rica ≅1.770 km ≅ 2.570 km

Fonte: Guia 4 Rodas Brasil 2001, mapa anexo.

Substituindo a palavra “oceano” pela palavra “continente” na citação abaixo, o comércio de animais na Colônia parece caber sob medida na frase de Fernand Braudel: “...dois mercados díspares cujos produtos se valorizam ao cruzar o oceano num sentido ou noutro, cobrem de ouro alguns homens, os únicos a lucrar com essas grandes diferenças de preços”. (Braudel, 1996: 357).

A sobrevivência dos comerciantes e seu comércio num mercado assim, dependia em muito da quantidade e da qualidade das informações obtidas sobre uma e outra ponta do trajeto, assim como do estabelecimento de uma imensa teia de relações de parentesco, negócios e outras alianças ao longo do trajeto, e também nos pólos de comercialização das mercadorias. O desgaste advindo de transações mal-feitas poderia dar fim a uma empreitada desse tipo e levar à bancarrota um negócio e o negociante. Ter a informação correta sobre as necessidades dos mercados consumidores significava pôr-se a caminho com o produto adquirido em quantidade e preços certos, com colocação neste mercado com ganhos mais vantajosos. Como já visto anteriormente, para a ligação entre Sorocaba e Viamão, as relações das famílias, suas associações e afinidades preenchiam os vazios existentes entre os núcleos populacionais, diminuindo as distâncias físicas com seus laços. Lembra-se aqui que um dos negociantes mais bem sucedidos em todos os ramos de comércio em que atuou foi Cristóvão Pereira de Abreu e que a sua rede abrangia, no mínimo, a área

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entre Buenos Aires, Rio de Janeiro e Minas Gerais, com parentes e amigos em vários postos de responsabilidade e poder. Um outro bom exemplo dessas redes de parentesco e negócios que sobreviveu ao tempo encontra-se no grupo familiar – e entenda-se aqui a família indo além dos laços consangüíneos, considerando também os de parentesco por afinidade – de Jerônimo de Ornellas. Este homem, natural da ilha da Madeira, atuou nos primórdios do comércio de tropas dos Campos de Viamão às Minas, sendo um dos primeiros habitantes de Viamão a receber carta de sesmaria, ainda na década de 1730. Obteve a confirmação régia anos mais tarde. Pelo menos três de seus genros também compartilharam da atividade da conduta de tropas (Kühn, 2001a). Um quarto genro, Luís Vicente Pacheco de Miranda, natural de Ponte de Lima, no Arcebispado de Braga, casou-se em 1755 com Gertrudes Barbosa de Menezes, filha de Jerônimo. Não se pode afirmar com certeza se ele atuou pessoalmente na conduta de animais. Nos depoimentos para o seu casamento “disse ele depoente [Luís Vicente Pacheco de Miranda] terá ao presente 25 anos e sempre vivera na companhia de seus pais até a idade de 20 anos e dela saíra para o Brasil, onde tem andado sem ter domicílio em parte alguma, tratando de seu negócio no qual se tem ocupado 5 anos pouco mais ou menos” (AHCMPA – Autos Matrimoniais de Luís Vicente Pacheco de Miranda e Gertrudes Barbosa de Menezes – 1755).

Essas andanças, sem fixar residência, podem ter sido em conduta, mas podem simplesmente constar de viagens em que comprava ou vendia animais para serem conduzidos por outrem. Luís Vicente tinha um irmão, que viera junto com ele de Portugal, José dos Santos Pacheco, que nesta ocasião disse ser “casado em Curitiba” (AHCMPA – Autos Matrimoniais de Luís Vicente Pacheco de Miranda e Gertrudes Barbosa de Menezes – 1755). Pois bem, este seu irmão foi identificado por Cecília Maria Westphalen como

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sendo ancestral de David dos Santos Pacheco. Este, tornou-se o Barão dos Campos Gerais, título da obra de Westphalen sobre o comércio de muares de Curitiba e imediações, no século XIX (Westphalen:1995). David dos Santos Pacheco foi introduzido no comércio das tropas por um padrinho seu, oriundo do Continente e estabelecido nos Campos Gerais. Supõe-se aqui ter sido tal padrinho um homem próximo à rede de relações de Jerônimo de Ornelas. O Barão faleceu ao final do século XIX, com boa parte de suas terras, escravaria e outros bens já vendidos e convertidos em títulos da dívida do Império, de tal maneira que o montante da herança que deixou às suas filhas nada ou quase nada sofrera, nem mesmo com a abolição da escravidão (Westphalen:1995). Ao puxar o fio do tecido que vinculava pontos focais da rota do comércio dos animais e as famílias que atuavam nele, encontrou-se a rede parental derivada de Jerônimo de Ornelas com algo em torno de cento e cinqüenta anos de atuação no comércio de semoventes. Isto evidencia que certas estratégias empregadas pelos habitantes do Continente do Rio Grande de São Pedro tiveram sucesso não só na sua sobrevivência como também na perpetuação de algumas ramificações dessas primeiras famílias em grupos que detinham poder econômico e político em diferentes localidades, mesmo que isto tenha redundado na falência de outras ramificações. A capacidade de “previsão”, apesar de existir é limitada. Apostar em diversas estratégias já é uma estratégia. Estas, empregadas por um tronco familiar, poderiam garantir o sucesso de algumas ramificações, malgrado lançar outros em rumos infrutíferos. Não colocaram “todos os ovos no mesmo cesto”. Certamente, muitos se quebraram com as mudanças. Contam-se aqui, apenas os sobreviventes dos abalos. No Rio Grande de São Pedro, estas estratégias bem sucedidas de Jerônimo de Ornelas – em muito devidas aos bons arranjos matrimoniais obtidos por Jerônimo e seus genros para as suas filhas – redundaram em pelo menos duas grandes fortunas:

218 “pertencentes a indivíduos ligados à família do sesmeiro de Santa Anna [Jerônimo de Ornelas]. Estes são os caso de Antônio Xavier de Azambuja, neto de Jerônimo e Antônio Ferreira Leitão, marido de uma neta sua. Estes dois indivíduos são representativos do topo da escala social, que seriam considerados como membros da ‘elite’ em qualquer lugar do Brasil colonial”. (Kühn, 2001a).

3. Montagem e consolidação de uma estrutura: do apresamento à produção de animais Ocupando territórios entre a Colônia do Sacramento (fundada em 1680) e a Vila da Laguna (fundada em 1684), o povoamento do Continente de São Pedro, iniciado na década de 1730, apresentou fases distintas num único e grande movimento de conquista da região. Relembrando aqui, os caminhos terrestres entre Sacramento e Laguna foram firmados por coureadores e changadores. Arrebanhar gados para o aumento de suas fazendas era uma das atividades dos lagunistas. Arremeter-se mais ao sul, no fabrico dos couros e no comércio com produtores e comerciantes de muares castelhanos também (Fortes, 1941: 14-15). Segundo vários autores, nenhuma dessas expedições se ocupou em formar povoados (p. ex. Neis 1975; Fortes, 1941; etc.). O bloqueio à Sacramento, na primeira metade da década de 1730 foi o desencadeador da fundação da fortificação à barra da Lagoa dos Patos em 1737 (Prado 2001). Este forte originou a vila de Rio Grande. Antes dessa fundação, algumas famílias deslocadas a partir da Laguna já ocupavam terras nos Campos de Viamão. A década de 1730 marcou, simultaneamente, o início da ocupação do Continente do Rio Grande de São Pedro – quer oficial, quer espontânea – e o declínio da atividade econômica principal da fase de pré-ocupação, qual seja, a fase das grandes coureadas. Em aproximadamente cinqüenta ou sessenta anos desde a fundação de Sacramento, os grandes rebanhos de vacuns foram exterminados na extração de couros

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e sebos. Os que não foram exterminados tornaram-se cativos nas grandes porções de terras, dadas em sesmarias ou simplesmente ocupadas majoritariamente pelas famílias que haviam deixado Laguna, pelos soldados de altas patentes que lutaram em Sacramento ou por funcionários e representantes da Coroa no extremo-sul. Ou seja, no intervalo de uma ou talvez duas gerações, a principal atividade econômica comercial da região chegou ao seu limite. Em vez de significar um colapso econômico, a sociedade que se estabelecera nos territórios meridionais, fossem eles chamados de Continente do Rio Grande de São Pedro ou de Banda Oriental, teve meios de sobreviver e superar esta crise que se anunciava. Os rebanhos apresados e marcados por seus proprietários, de caça que eram quando vagavam devolutos aos campos, passaram a ter tratamento de criação de gado. Isso requeria um maior investimento em tempo e mão-de-obra na garantia de sua reprodução, evitando o esgotamento completo e garantindo a permanência da sociedade que tão recentemente se formara. Parte da riqueza, acumulada com as coureadas e com a venda de animais preados pelos particulares aos exércitos de Sua Majestade e representantes da Coroa, fora convertida em mão-de-obra adquirida no mercado de escravos negros. Revelador nesse sentido é o Rol de Confessados de Viamão de 1751 (AHCMPA). A partir da análise do conteúdo deste documento, Fábio Kühn afirma que da população que comungava nesta freguesia e da qual foi possível a identificação da condição social, 42% era composta de escravos de origem africana. A concentração dessa mão-de-obra também é atestada a partir deste rol. Os proprietários das doze maiores escravarias, com 8 ou mais escravos, detinham 46% do total de escravos de Viamão neste ano. Além da concentração, este autor afirma a disseminação da prática da escravidão entre os vários setores da sociedade que se estabelecera na freguesia de Viamão. No ano de 1751, quando a freguesia contava

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com nove anos desde a sua fundação e com pouco mais de vinte anos desde o início do seu povoamento, tinha em 62% dos fogos deste rol a presença de escravos (Kühn, 2001b). Houve, portanto, um aumento da complexidade na produção – e reprodução – dos rebanhos decorrentes de seu apresamento e cria em fazendas particulares. Investimentos tiveram de ser feitos na marcação, que deixava a fogo no couro do animal o sinal de seu dono. A vigilância sobre os rebanhos para evitar roubos e a dispersão também teria teve ser intensificada. De maneira semelhante ao que ocorria no restante da Colônia, houve um investimento na aquisição, através do mercado escravista, da mão-de-obra necessária às atividades rurais da pecuária. Tem-se motivos para acreditar que a viagem de retorno dos condutores de tropas ao sul incluía, além da equipe, alguns escravos para seu próprio serviço e possivelmente para a comercialização. Não foram encontradas fontes suficientes para que esta afirmação fosse feita, mas há indícios dessa atividade no contra-fluxo do comércio de animais. No ano de 1746, um particular de nome Francisco Carvalho da Cunha, faz uma solicitação de isenção de fisco para 15 potros dados em esmola para a Capela de Nossa Senhora da Conceição de Viamão. Valeu-se do precedente aberto um padre que recebera isenção para uma tropa dada em esmola para os religiosos de Jerusalém. Solicitou a isenção de fisco apenas para estes potros, a despeito dos outros muitos animais seus que iam junto compondo a sua própria tropa. Diz o documento: “...e como para maior aumento do dito patrimônio intenta o Suplicante levar de Viamão para São Paulo quinze potros por conta da dita Senhora [Nossa Senhora da Conceição], para com o produto lhe comprar um casal de negros para cuidado do dito patrimônio e aumento da dita capela” (AHRGS, Anais 1, 1977: 214-215).

Aqui se estabelece também os parâmetros da troca: 15 potros, em São Paulo,

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equivaliam a um casal de escravos. Como não há inventários para o Continente do Rio Grande de São Pedro neste período, não há margem para supor a quantos potros corresponderia um casal de escravos já colocados nas propriedades sulinas. Um segundo indício desta atividade de contra-fluxo está numa reclamação feita por Cristóvão Pereira de Abreu quando estava nos Campos dos Pinhais, uma localidade situada nos Campos de Cima da Serra, junto ao Caminho das Tropas. Eis que por falecimento de um outro comerciante, este teria junto de seus bens alguns que não lhe pertenciam, e sim a Cristóvão Pereira. No teor deste documento Cristóvão Pereira de Abreu teria colocado que “juntamente o avisei e ao Juiz Ordinário da morte de Custódio da Silva para que dessem providência necessária da arrecadação de seus bens, a cuja diligência chegou aqui o dito Juiz um dia destes e fica na demarche e inventário dos bens que pretende entregar-me para os conduzir a Curitiba, menos sete escravos que por parecer meu os leva consigo para os remeter pela costa” (apud Bento apud Maestri Filho, 1979: 37).

Acredita-se ser Custódio da Silva um morador dos Campos de Curitiba, pois até o momento não encontrou-se qualquer referência a este homem como residente no Continente. Este deve ser o motivo para que os bens do falecido fossem enviados para Curitiba. Cristóvão Pereira solicitou que os escravos que lhe pertenciam fossem enviados pela costa. Sucede que, os Campos de Cima da Serra são separados do litoral pela Serra do Mar e ficam a centenas de quilômetros ao sul de Curitiba. Remeter os escravos pela costa, talvez a partir de Paranaguá, poderia representar ônus para seu proprietário. Todavia este ônus seria menor do que o causado por um retorno de Cristóvão Pereira a Curitiba. Por mais estranho que possa parecer o envio de escravos por rotas terrestres em distâncias tão grandes, há lógica nessa atividade. Em primeiro lugar, porque, como foi dito a um antropólogo, “só um tolo faria uma viagem tão longa para voltar de mãos

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vazias”. Lembrando as características do comércio de longa distância ditas por Braudel, os comerciantes deveriam achar mercadorias de alto preço de venda em dois mercados afastados e valendo-se das distâncias e da falta de contato direto entre estes dois pólos comerciais, intermediar a transação, suprindo ambos com os produtos demandados (Braudel, 1996: 355-359). “...numa época de informações difíceis e irregulares, basta a distância para criar as condições banais e cotidianas de um sobrelucro” (Braudel, 1996: 358).

Anualmente os condutores de tropas partiam para seu comércio, cobrindo distâncias de bem mais de mil quilômetros, acompanhados de sua equipe e de centenas de animais. Os homens deveriam retornar ao sul, com suas montarias e sem os meios de transporte utilizados na Colônia – as bestas. Não poderiam retornar com tecidos, fazendas e gêneros diversos pois não possuíam os meios para seu transporte. Estas eram suas mercadorias na viagem de ida. Retornar com elas significava não terem completado o “negócio da China” de adquirir os cavalares, muares e vacuns a baixo custo nos campos sulinos e revendê-los a um valor supostamente multiplicado por dez em seus mercados consumidores. Poderiam retornar com o dinheiro, com o ouro, mas também poderiam investir parte dos valores obtidos em mercadorias a serem revendidas no sul, a bom preço. Não se esqueça aqui que, os donos de tropas eram, antes de tudo, comerciantes. Visto no exemplo de Cristóvão Pereira, ele já havia comercializado couros, sebos, tabaco, muares, cavalares, vacuns. Porque não comercializar escravos? Seria ele – e qualquer outro comerciante ante este mercado – um “tolo” ao voltar de mãos vazias e ao dispensar justamente a mercadoria que mais lucros conferia aos comerciantes da Colônia (Florentino 1997, Fragoso&Florentino 2001). Às mercadorias semoventes que partiam do sul, corresponderia portanto, um

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outro tipo de mercadoria, também capaz de locomover-se e que, se adquirida no mercado de escravos do sudeste – talvez no Rio de Janeiro ou no Porto de Santos – possuiriam preço inferior aos já colocados no sul. Como a viagem de retorno se daria de qualquer jeito, com ou sem mercadorias, o valor do transporte marítimo seria economizado pelo comerciante, transformando os condutores de tropas em condutores de homens. Isso adicionaria mais valores aos ganhos destes comerciantes. Infelizmente não se pôde dar busca às fontes que confirmassem esta hipótese. As fontes relativas aos Registros de Passagens dos Animais preocupavam-se em anotar os quadrúpedes que saíam do sul e não tratam nada dos bípedes que entravam no Continente. Fica a hipótese aqui lançada para que, em pesquisas futuras, seja verificada ou lançada por terra. Nessa investigação talvez resida parte da explicação para a presença numericamente expressiva de escravos de origem africana nos povoados sulinos desde os seus primórdios, como é afirmado por Neis (1975), Queiroz (1987) e Kühn (2001b).

Um diagnóstico precoce das conjunturas difíceis: meio caminho andado para a sua superação Das coureadas às grandes tropas de cavalgaduras transcorreram apenas algumas décadas. Em uma única atividade – a condução de tropas – três tipos de mercadorias com utilidades distintas eram dispostas aos mercados. Os rebanhos de bovinos tiveram que passar pela apropriação e apresamento para que se recuperassem do extermínio provocado pelas coureadas. Para que essa recuperação se processasse foi necessário que a terra e os rebanhos se tornassem cativos dos grandes senhores dos campos sulinos. Parte da mão-de-obra, também cativa, era adquirida no mercado escravista. As tropas de animais, durante a maior parte do século XVIII tiveram o

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predomínio dos cavalares. A necessidade crescente de animais mais resistentes para o transporte das cargas não podia ser imediatamente atendida pelos produtores sulinos. Para que os muares fossem produzidos em larga escala, deveriam antes obter os reprodutores e matrizes de asininos e dominar as técnica da reprodução para a feitura de híbridos. Nos momentos iniciais, supriu-se essa necessidade de muares com o comércio, lícito ou ilícito, com as terras de Espanha. Como já dito anteriormente, a produção desses híbridos é complexa, necessitando de cavalares e asininos e a preparação das matrizes e reprodutores (Müller, 1954). A montagem de um criatório de muares não se dá de uma hora para a outra, demandando tempo, terras e mão-de-obra apta para proceder a cruza de animais de espécies distintas. Ao que tudo indica, foi nos primeiros anos da década de 1750 que esta atividade começou a ser desenvolvida nos pastos do sul da América lusa. Anterior a este período, a procedência dos muares parece ter sido as terras espanholas, onde, principalmente nas regiões de Salta e Tucuman eram criados os muares destinados ao altiplano andino e um tanto para o comércio clandestino com os portugueses (AGN Comandancia de Frontera, Arroyo del Medio, 1743 apud Canedo, 1993a: 148, nota 12). Para o período anterior a 1763, não são localizados inventários dos moradores do Continente pois tais livros de registros estão desaparecidos. Esta falta é atribuída à tomada da Vila de Rio Grande durante a invasão espanhola. Tais documentos certamente acusariam a qualidade e a quantidade dos rebanhos das fazendas dos habitantes do sul. Na falta deles, tenta-se suprir esta lacuna com algumas correspondências particulares e oficiais, assim como as disposições dos representantes da Coroa lusa, para desta forma detectar alguns indícios do surgimento da produção de muares nos campos sulinos.

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A grande mudança no fluxo de animais, ou seja, o predomínio do envio de muares sobrepujando numericamente os cavalares se daria somente na última década do século XVIII (Mendonça, 1961: 247). No entanto, seus primeiros sinais são perceptíveis já na década de 1750. Com o intento de demarcação das fronteiras sulamericanas a partir do Tratado de Madri, a relativa paz entre as duas Coroas ibéricas parecia consolidar-se. Atuações conjuntas em expedições compostas de soldados e alguns geógrafos, e posteriormente com o intuito de esvaziamento das Missões Jesuíticas, foram permissivas aos laços já existentes entre os habitantes dos territórios de Portugal e Espanha nesta fronteira. Concomitante à Expedição de Demarcação dos Limites do Tratado de Madri se verificam algumas das primeiras tentativas de trazer os reprodutores asininos para o território do Continente do Rio Grande de São Pedro. Anteriormente a isso, localizouse apenas documentos que atestam o comércio dos muares – híbridos e estéreis – entre os súditos das duas Coroas (Fortes, 1941: 13-14). Tudo parece indicar que os espanhóis, interessados em manter o mercado para os seus muares, não costumavam vender reprodutores. Também é bem provável que os súditos da Coroa lusa no Continente do Rio Grande de São Pedro, ao despontar de sua povoação, não possuíssem cabedal suficiente em moeda ou metal precioso passível de investir na aquisição dos reprodutores e matrizes para a produção de muares. Aposta-se na idéia de que o comércio dos cavalares, prolongado até seu limite, foi o que forneceu capitais e tempo para que a produção de muares do Continente do Rio Grande de São Pedro surgisse e pudesse ser posta a caminho dos mercados. Os burros e as burras, sem outra utilidade na pampa que não a de reprodutores nos estabelecimentos de cria de muares, foram, durante todo o século XVIII, os animais mais valorizados nas propriedades chegando um burro hechor a valer o equivalente a até 15 cavalos. O segundo animal mais valorizado era a burra (Flores, apud Jacobus,

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1997: 24). Sua função restringia-se a ser ventre para a geração de burros e burras. A correspondência entre Cristóvão Pereira de Abreu, engajado na Expedição e José de Andonaegui, o governador de Buenos Aires acusa a compra e transporte de burros durante os primeiros anos da década de 1750. Num castelhano trôpego e repleto de erros, antecipa o “portunhol”, arremedo de idioma que hoje grassa nas fronteiras do Rio Grande do Sul: “Cuando me bali del fabor de V.Exa. para conseguir el permiso de los burros que V. Exa. fue servido consederme, no lo procure mas amplo para puderen pasar para el Rio Grande por entendier no tendrían enbaraso por parte Sr. Gobiernador de Montebedio y entrando en esta deligencia, me responde no poder despensar en eso por estar aquel gobierno bajo la ordenes de V.Exa. a quien suplico con la más cindida beneracion se digne continuarme sus fabores dando orden para que puedan passar tanto os que V.Exa. â prometido, como media duzena más – que aqui tubo accazion de comprar por seren estes animales mui biles, y puder llegar algunos.” (AGN–BsAs, Sala IX, Legajo 3.8.2. Carta de Cristóvão Pereira de Abreu a José de Andonaegui, 15 de setembro de 1753.)

Nesta ocasião, os burros que levava eram em número de 18. Pelo cálculo apresentado por Mariana Canedo, que estudou a produção ganadeira buenairense do século XVIII, um burro hechor poderia dar cobertura a até 50 éguas, com um índice de aproveitamento da cruza de 60%. Usando este cálculo, se todos os 18 burros conduzidos por Cristóvão Pereira fossem hechores, em um ano estaria ele com aproximadamente 540 muares disponíveis ao comércio. As éguas, as outras matrizes necessárias à produção deste híbrido, eram animais muito baratos e abundantes no sul. Não eram utilizadas como montaria, sendo também apenas ventre para a geração de cavalos e posteriormente muares. Custavam praticamente o mesmo que uma cabeça de gado vacum, ou seja, bem menos de um mil réis. A intercessão de Andonaegui foi providencial para a conduta de seu amigo, Cristóvão Pereira de Abreu, que lhe enviou botijas de vinho em agradecimento. José

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Joaquim de Viana, a este tempo governador de Montevidéu (Apolant, 1966a: 6-7), atendeu ao pedido do governador e capitão-general de Buenos Aires, e não mais embaraçou a passagem da tropa de burros: “Señor Mio [...] S.M.C. le concedí licensia para extraer de esta ciudad al Rio Grande 12 burros los cuales con otros 6 que en la otra banda del Río tiene comprado mandará V.S. que al pasar pr. Los termos de esa [...] no le ponga embrazo alguno en la conducion de los 18 burros sen exceso alguno lo que participo a V.S. Joseph [...] de Viana.” (AGN – BsAs, Sala IX, Legajo 3.8.2. Anexo à Carta de Cristóvão Pereira de Abreu a José de Andonaegui, 15 de setembro de 1753.)

Se os animais eram para a venda a interessados em montar produção de muares ou se o próprio Cristóvão Pereira de Abreu intentava iniciar esta produção é coisa que não se pode saber. Não se localizaram documentos que dêem conta de suas posses à época de sua morte, em setembro de 1755. No entanto, datam da primeira década de 1750 as cartas de doações de sesmarias nas quais os requerentes faziam referência aos rebanhos e benfeitorias que possuíam sobre as terras pretendidas, surgindo muares ou reprodutores na citação das posses. Manuel de Araújo Gomes, que também foi comerciantes de cavalos, arrematador do contrato do Registro de Viamão, recebeu sesmaria em 1755, nas proximidades do Chuí. Neste documento consta possuir “fazenda de Gado vacum, cavalar e muar no sítio chamado o posto e Medanos”. Seu vizinho, o Capitão Pedro Pereira Chaves, outro veterano de Sacramento, também recebeu carta de sesmaria. Suas posses sobre estas terras incluíam gado muar (RAPM XXVI, 1933: 190-193). Além da explícita indicação da existência de muares, alguns termos são indicativos dessa produção, como as terminologias “animais de cria”, “éguas de cria” ou “éguas de ventre”. Observando estas expressões, multiplica-se o universo dos produtores de muares lusos no Continente à década de 1750. A imensa maioria das cartas de sesmaria dadas por Gomes Freire de Andrade, em cujo teor constam estes

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termos, localizavam-se nas regiões do Chuí, hoje ponto meridional extremo dos limites do Brasil, ou então um pouco mais ao sul, em Castilhos Grandes e Castilhos Pequenos, situados hoje em território uruguaio (RAPM XXIII e XXIV, 1929 e 1933 – Registros de Cartas de Sesmarias). As fazendas produtoras de muares situavam-se, portanto, muito próximos às terras espanholas, e por conseqüência, junto aos fornecedores de matrizes e reprodutores dos muares. Talvez fosse essa uma estratégia para a montagem da produção dos híbridos no território assinalado como fronteiriço entre as posses das duas Coroas ibéricas. Estas fronteiras, como já dito, antes de serem barreiras erguidas entre tais posses, eram espaços permeáveis pela cultura, pelos negócios e pelos laços de parentesco e amizade. A localização de tais montagens parecem ter sido também estratégia para a sonegação do fisco. Se o condutor das tropas, um amigo, um agregado, fosse de fala espanhola ou súdito de Espanha, dificilmente poder-se-ia provar que os animais não o eram, ficando o verdadeiro produtor luso oculto e isento dos dízimos. A última grande mudança na produção comercial do Continente do Rio Grande de São Pedro parece ter ocorrido à partir do final do terceiro quartel do século XVIII. Deu-se após os rebanhos de bovinos estarem recuperados e com a consolidação de um mercado interno para os produtos coloniais, a partir da expansão das lavouras de alimentos e de exportação. O charque, carne salgada em mantas, tornou-se um grande produto de exportação a partir da década de 1770, por ser alimento barato utilizado principalmente na alimentação da grande escravaria do sudeste (Osório, 1999:165-177). Na década de 1730 o charque era fabricado em pequenas quantidades nos campos sulinos, sendo embarcado em lanchas. Estas faziam o abastecimento da Colônia do Sacramento, à esta época atingida pelo bloqueio levantado pelos espanhóis. Apesar

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de tosca, estas fábricas contavam com um refinado cálculo de custos de produção, e o charque, ao que tudo indica, aparecia como aproveitamento das carnes das reses mortas nas coureadas e das sobras das carnes para alimentação dos povoadores e soldados. “Leva a lancha ao todo com alguma do Mestre e Marinheiros seiscentas arrobas de carne em que entram vinte e três de peixe seco e 457 @ que lhe mandei embarcar por conta da Fazenda Real e por facilitar ao Mestre esta viagem ajustei com ele dar-lhe a metade pelo frete da outra metade (...) Como nas vizinhanças deste Rio [Grande] nem de uma nem de outra parte há gados deste que tomaram os Tapes, comprei 1200 vacas pequeno e grande a 480 rs. a vaca para sustento da gente e carga desta embarcação para a qual mandei escolher 300 de que se mataram 200 que não renderam mais que as 457@ que leva a lancha, porque ao mesmo tempo comia a gente delas e feita a conta ao custo sal e 240 por charquear cada vaca com pouca diferença sairia 450 rs. a @ e suposto a poderá mandar por minha conta pois não só não tenho efeitos da Fazenda Real mas toda esta expedição levo a minha custa (...)”. (BR, 1946: 417).

Esta foi a conta apresentada por Cristóvão Pereira de Abreu aos representantes da Coroa para o charque que produzira em 1737 para o abastecimento de Sacramento. A tecnologia, os custos e o rendimento do produto, portanto, já eram por demais conhecida dos habitantes do Continente do Rio Grande de São Pedro no ano de fundação do Forte de Jesus Maria e José, no Rio Grande. Entre o Rio Grande e a Vila da Laguna, algumas propriedades também se ocupavam da fabricação deste produto, já na década de 1740. Nessa época o terceiro comandante militar do Continente do Rio Grande de São Pedro, Diogo Osório Cardoso promoveu certas diligências com brutalidade e insolência, motivo pelo qual o caso foi levado à ouvidoria de Paranaguá. Entre as faltas que teria cometido o comandante, está: “particularmente sobre a arrecadação das fazendas de uma importantíssima nau de comércio que dera à costa na praia da charqueada entre Laguna e Rio Grande” (BN-DH, 1951: 124 – grifo

230 meu).

As terras que Manuel Jorge recebeu na região do Chuí, na localidade conhecida à época como Campos da Costa dos Índios Mortos, diz a carta de sesmaria, que: “tinha Casas, Currais, três mil e tantas Cabeças de Gado Vacum, trezentas e tantas ovelhas, outras tantas éguas e crias de mulas” (RAPM XXIII, 1929: 458).

Na carta de sesmaria de um lindeiro seu, diz dos limites dessa propriedade e de sua designação: “partirão pela banda do sul com os Morros vermelhos e porteira do Carro Norte com a fazenda dos, e da parte do Norte com a fazenda de Manuel Jorge, chamada a charqueada” (RAPM XXIII, 1929: 459, grifo meu)

As charqueadas do Chuí provavelmente produziam para o abastecimento de Sacramento, onde Manuel Jorge havia estado. Também provavelmente eram produções de pequena monta, que, como o indicado no documento de Cristóvão Pereira de Abreu, não aconteciam em locais com grande infra-estrutura e sim nas proximidades das áreas de abate dos gados para a alimentação das populações ou acampamentos militares. Não parece haver uma continuidade entre esta produção quase que artesanal e as grandes charqueadas das últimas décadas do século XVIII e no século XIX. Ocorre que este produto não chegaria em larga escala ao restante da Colônia antes do final do terceiro quartel do século XVIII (Osório, 1999: 175). Uma explicação plausível para este fato é a inexistência de um mercado de vulto para este produto. Apenas com o grande aumento da população escrava no interior e nas plantations, consumidores “forçados” do charque sulino nas últimas décadas do século XVIII, é

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que, fazer carnes2 , tornou-se uma atividade comercial voltada para o mercado interno da Colônia Também o aumento do tráfico de escravos entre África e Brasil, observado neste período (Fragoso&Florentino 2001), seria o maior provedor de mão-de-obra para as charqueadas. Estas ocupavam quase que exclusivamente mão-de-obra cativa em todos as fases do processo de produção. Junto com isso, os rebanhos bovinos, também cativos, nas fazendas de particulares deveriam ser novamente grandes o suficiente para fornecer às fábricas de carnes suprimentos regulares de gado para o abate. Mas enquanto isto não ocorreu, esta sociedade sulina não deixou de explorar os recursos da região. Acreditar que ficariam de braços cruzados, esperando o dia em que o charque se tornasse rentável no mercado colonial seria atribuir-lhes resignação para com as situações adversas e dons divinatórios e de previsão do futuro para além das capacidades humanas. Fizeram o comércio daquilo que podiam produzir e das relações comerciais com o restante da Colônia, um elo de ligação bastante forte. Menos forte, apenas, que os laços familiares e de parentesco. Mas, como visto, estes também acabavam por ter um peso importantíssimo no estabelecimento dos negócios de seus membros dispersos pelo imenso território americano. O mais interessante de tudo é perceber que as rápidas mudanças são precedidas de uma percepção precoce das conjunturas, acusadas no sucesso de algumas das estratégias para a superação das mesmas. A transferência da primazia dos couros para os cavalos, destes para as montagens de produções de muares e mesmo para charque, demandou tempo de preparação. Os povoadores do sul tiveram esse tempo devido a aguda observação do grau de degradação dos recursos locais e das demandas do

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A expressão “fazer carnes” é um sinônimo sulino para a fabricação do charque.

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mercado interno à Colônia. Assim como André Ribeiro Coutinho, esta gente foi capaz de “prever”.

4. As velhas famílias e os novos tipos de fortuna e arranjos matrimoniais: a sociedade sulina consolida-se Retornando agora aos motivos que levaram a esta grande digressão acerca do apresamento e recuperação dos rebanhos de bovinos, da implementação das crias de muares, do fabrico do charque, diz-se aqui que, em curtos lapsos de tempo, mudanças importantes ocorriam nas produções sulinas voltadas para o comércio. Precedidas, entretanto, de um longo período de preparação às mudanças que se gestavam. Não se tratam, portanto, no sul da Colônia, de formas tradicionais de produção quase que imutáveis por séculos e séculos, como ocorria na Europa contemporânea à ocupação americana (Goubert, 1968). Até mesmo porque uma sociedade que se colocou em um território novo e com recursos distintos do restante do território luso-americano, pouco teria de “tradicional” na sua relação com as idiossincrasias regionais do ambiente a ser explorado nas regiões que se conquistavam. Tratava-se, antes, de um aprendizado. A sociedade colonial, refratária a certas transformações, era também criativa, maleável e adaptável às circunstâncias locais. O que havia de tradicional era a forma com que esta sociedade se organizava, cingida pelos traços que permeavam o Estado do Brasil de um modo geral: a utilização extensiva dos recursos naturais; a concentração destes recursos em poucas mãos; a hierarquização fortemente marcada e excludente; as relações de reciprocidade entre os habitantes e o poder real, a exploração de grande parte da mão-de-obra submetida a formas de trabalho compulsório – entre outras, talvez menos importantes que aqui se poderiam arrolar. O arranjo a que eram submetidos tais traços vinham sempre a

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reforçar e a reiterar a diferenciação e a hierarquização desta sociedade. Pois bem, correlatas às mudanças que se deram nas formas de produzir para o comércio nas terras sulinas, também observam-se mudanças nas famílias dos habitantes do Continente. A década de 1750 é marcada por mudanças de vulto no Continente do Rio Grande de São Pedro e mesmo no Estado do Brasil. Vários são os fatores que denotam tal mudança e serão sucintamente mencionados abaixo. Para a década de 1750, como já dito, se antevê a formação das produções de muares que abasteceriam de meios de transporte o Brasil do final do século XVIII e do século XIX. Somente a freguesia de Bom Jesus do Triunfo, no ano de 1784 tinha 857 burros em diversas propriedades. Muitos destes, destinados à reprodução com burras, mas outro tanto eram reprodutores reservados às éguas de cria (Gil, 2000). A estimativa de Tiago Luís Gil3 para capacidade de produção de muares de Triunfo neste ano, supera a casa dos 10.000 animais. Também na década de 1750 deu-se o Tratado de Madri, que estabelecia limites entre os territórios das duas Coroas ibéricas na América do Sul. Pretendia-se, após constantes desrespeitos ao Tratado de Tordesilhas, reordenar os limites das fronteiras americanas entre Portugal e Espanha. A Expedição de Demarcação de Limites deste tratado, chefiada por Gomes Freire de Andrade, foi generosa na concessão de sesmarias, a maior parte delas confirmando as terras que já estavam sob posse não oficializada de militares, representantes da Coroa ou pioneiros do povoamento. A concessão de cartas de sesmarias denota uma alta segurança na mantença dos territórios sob posse lusa. O sesmeiro que por guerras perdesse as suas terras poderia almejar nova sesmaria em território luso. Tal foi o caso de José da Silveira Bitencourt, que com a invasão espanhola de 1763 teve sua terra tomada pelos inimigos.

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Dito em entrevista com este pesquisador.

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Solicitou e recebeu mercê de nova sesmaria na região de Triunfo ou Rio Pardo. (AHRGS – cód. F 1243 – fls.182-184v Registo de uma Portaria e duas Petições digo Portaria do Governador deste Continente e duas Petições feitas ao Excelentíssimo Senhor. Conde Vice-Rei pelo Sargento Mor Jozé da Silveira Bitancourt). Sua perda fora ressarcida pela Coroa. As garantias para que os lusos acreditassem que a partir da década de 1750 manteriam seu domínio sobre as terras sulinas não estavam apenas nas mesas da diplomacia. O movimento crescente do porto do Rio de Janeiro ao longo da primeira metade do século XVIII e o crescimento da importância política e econômica desta localidade que rapidamente se urbanizava e passava a dominar o comércio do Atlânticosul, reforçava, seu poderio no Centro-sul da Colônia e ante o Império Português (Sampaio, 2000). O Rio de Janeiro, progressivamente, a partir da década de 1730, teve como bancar a presença de forças nessa fronteira meridional, malgrado o constante e sistemático atraso no pagamento das tropas e envio de reforços em armas e gêneros. Sintomas dessa presença são a substituição paulatina do Terço da Bahia pelo Terço do Rio de Janeiro nas tropas de defesa de Sacramento e a própria fundação de Rio Grande, sob os auspícios da capital da Repartição Sul (Monteiro, 1937; BN-ABN 1928 e 1951). O Rio de Janeiro assumia o posto de principal porto e ponto de referência na América lusa. O Rio de Janeiro, de certa maneira, “apadrinhava” a conquista que se iniciara tempos atrás. O que demonstra a documentação da Expedição do Tratado de Madri, que distribuiu cargos, patentes e terras – todas estas mercês reais – entre os participantes da conquista, leva a concluir que os lusos acreditavam que o Tratado seria mantido. O alto risco que representava anteriormente estabelecer propriedades e negócios num território sob constante ameaça, fora substituído por uma relativa segurança. A partir

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da década de 1750, foram atraídos para a região homens com perfil distinto daqueles dos momentos iniciais de ocupação. Os investimentos necessários para manter uma cria de gados, fossem eles vacuns ou cavalares é muito maior do que as empreitadas de “caça aos gados” que marcaram os seus primórdios. Também a abertura do Caminho das Tropas significou gastos e empenho durante anos. A posterior montagem dos criatórios de mulas e do estabelecimento das grandes charqueadas requeriam um cabedal de vulto, tecnologias aprimoradas, e possivelmente mão-de-obra mais numerosa e mais especializada. Requeriam-se, portanto, garantias para o investimento nessas atividades. O amplo braço do Rio de Janeiro e o aval das duas Coroas através de um tratado diplomático conferiam parte destas garantias. Outro tanto dessas garantias vinham da própria população que lá se estabelecera. O sucesso do povoamento e de algumas de suas estratégias de sobrevivência, conferia alguma estabilidade à sociedade que se formava. Fazia com que cada colono pudesse ser, potencialmente, um defensor dos territórios, simultaneamente posses próprias e terras d’el Rei. Com grandes porções de terras e com negócios que interessavam ao restante da Colônia, atraíram gente e investimentos de diversas partes da América lusa e do Reino. É perceptível uma mudança no perfil dos homens que vinham de fora do Continente e que se casavam com moças das melhores famílias de primeiros povoadores. Fábio Kühn detectou essa mudança de perfil na família de Jerônimo de Ornelas. Para as filhas mais velhas, os pretendentes escolhidos ou aceitos, tinham por atividade principal a conduta de tropas. Para os casamentos das filhas mais novas, “...os outros cinco genros que compõem a parentela imediata de Jerônimo, podemos perceber um outro perfil, especialmente quanto ao tipo de ocupação. Nenhum deles tinha sido tropeiro e nem todos tinham concessões de sesmarias. Dois eram militares de carreira, sendo o último

236 genro provavelmente lavrador e o menos aquinhoado de todos. (...) A família Ornellas também incorporou dois comerciantes, que certamente não eram de grossos cabedais, ao núcleo parental, que se via beneficiado pelo seu provável acesso a algumas das redes comerciais que iam se constituindo nesta região da América Portuguesa” (Kühn, 2001a).

Isto não significa que nos primeiros casamentos Jerônimo de Ornelas tenham conseguido genros de qualidade inferior ou superior aos que obtivera para as outras filhas. Pelo contrário, afirma-se aqui que Jerônimo de Ornelas, como qualquer outro chefe de família dos territórios sulinos, buscara sempre os melhores arranjos matrimoniais para as suas filhas. Esta diferença no perfil dos noivos indica, isto sim, que para os primeiros tempos de estabelecimento no Continente, o melhor casamento para uma filha sua seria com aquele homem que fosse capaz de transformar os gados sulinos em bens e moedas ao transportá-los para as regiões centrais da Colônia, que houvesse atuado na defesa dos territórios, obtendo um tanto de terra na eterna troca de favores entre a Coroa e seus súditos. Num segundo momento, o tipo de casamento ideal, seria aquele que atraísse para dentro da família – conseqüentemente para o Continente – outra sorte de alianças, relações, capitais ou cabedais que não possuíam. Não havia a necessidade de serem detentores de terras pois a família em si já obtivera, tempos atrás, quantidades significativas delas. Uma quantidade boa o suficiente para serem dadas em dote aos maridos sem que colocasse em risco o sustento do grupo familiar. As terras que poderiam ser oferecidas em dote exerciam atrativo sobre homens que perambularam pela Colônia, como Luís Vicente Pacheco de Miranda, genro o comerciante de animais. Era uma possibilidade de estabelecimento junto a um dos pólos produtores das mercadorias que negociava além de aliar-se aos demais cunhados. Manuel Gonçalves Meireles, por exemplo, um dos maridos das filhas mais velhas de Jerônimo, recebera sesmaria durante a Expedição da Demarcação de Limites

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de Madri. Situação semelhante era a de Francisco Xavier de Azambuja, também genro da “primeira leva”. Condutor de tropas e soldado, recebera sesmaria ainda em 1734 (Cabral, 1976: 134) e novamente no ano de 1754 (RAPM, 1933, 37-69). Impossível saber se eram duas cartas de posse para a mesma terra, se eram porções vizinhas ou se em localidades distintas. Ambos estabeleceram fazendas no Continente e produção de gados diversos, incluindo muares posteriormente. A aliança fundada entre produtores de animais e comerciantes se deu, portanto, interna à própria família. Mesmo que Azambuja e Meireles já não mais atuassem em conduta, sendo fazendeiros do Continente, Luís Vicente Pacheco de Miranda, genro da “segunda leva”, e seu irmão estabelecido em Curitiba viviam deste comércio. Além de atuar em vários pontos da rota dos animais, atuavam em vários pontos estratégicos deste negócio, da produção à sua venda final aos mercados consumidores. Não monopolizavam, mas dominavam toda uma rede de produção e comércio. Exemplos semelhantes são encontrados nos matrimônios das moças da família de Francisco Pinto Bandeira (Kühn 2001a). Os matrimônios dos rapazes Pinto Bandeira demonstram que era dada preferência às noivas nascidas ou moradoras do Continente ou Colônia do Sacramento, ao passo que os maridos das filhas eram gente de fora, privilegiando os nascidos na Península (Silva, 1999, anexo; Kühn 2001a). Como estas duas famílias conseguiram manter algumas de suas ramificações no topo da hierarquia social sulina, acredita-se ter sido esta uma estratégia bem sucedida. Um outro sintoma das rápidas mudanças nas vidas dos habitantes do Continente de São Pedro pode ser observada comparando os inventários de Francisco Pinto Bandeira e Rafael Pinto Bandeira. Pai e filho faleceram com um intervalo de 24 anos. Sem entrar no mérito do total das posses ou da divisão da herança, para isto há a dissertação de mestrado de Augusto Silva (1999), chama-se atenção para a qualidade de certas posses.

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Francisco Pinto Bandeira, nascido na Laguna e neto de Francisco de Brito Peixoto, fez parte do grupo de primeiros povoadores que se fixaram nos Campos de Viamão. Com seu filho primogênito, Rafael Pinto Bandeira, nascido no Continente, fazia parte de uma das melhores famílias do local. Ambos receberam o Hábito de Cristo, estiveram em Lisboa, tratando de assuntos particulares e foram negociantes e produtores de animais. Possuíram mais de uma sesmaria e suas escravarias estiveram sempre situadas entre as mais numerosas da região. No inventário de Francisco Pinto Bandeira, peças em metais preciosos estão assim arrolados: “Ouro e Prata

brincos de ouro com pedras de ametistas par de brincos de ouro com pedras de topazios anel de ouro com sua pedra amarela falça 10 garfos e oito colheres de prata - 330/8 88/8 de prata em 4 cabos de facas 1 copo de prata

8$000 4$000 2$000 33$000 8$800 42$480 68$280"

Fonte: Inventário de Francisco Pinto Bandeira in Silva, 1999, anexo.

Mais adiante, junto com as vestimentas, estão arrolados alguns poucos objetos de montaria ou pistolas ornadas com prata. Já os bens em metais preciosos de Rafael Pinto Bandeira, em seu inventário, são mais de sessenta itens, dentre os quais vários pares de brincos com pedras preciosas e semi-preciosas, jogos de castiçais de prata, dois faqueiros e meio em prata, muitos talheres avulsos neste metal, estribos e cuia em prata, bengala com castão em ouro e pedras, dois relógios – um de algibeira e um de parede – anéis, pulseiras, jarro e bacia em prata. O montante dos valores nesta categoria de bens atingiu 1:628$170 na primeira avaliação e 1:768$630 na segunda (Inventário de Rafael Pinto Bandeira in Silva, 1999, anexo).

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Também no mobiliário e utensílios de pai e filho, a diferença é expressa: são 34 os itens de Francisco Pinto Bandeira. Louças finas, pratos de Macau e outros utensílios são a maioria de seus bens. Os móveis mais refinados são um catre torneado, baú de moscóvia4 e canastra de Pernambuco com fechadura. De resto móveis toscos como “camas de vento usadas” ou “mesas pequenas de campanha de pau”. Roupas, toalhas, colchas e outros objetos de tecido estão descritos e avaliados (Inventário de Francisco Pinto Bandeira in Silva, 1999, anexo.). No inventário de Rafael Pinto Bandeira, além de guarnições de mesa, menos enfatizadas que no inventário de Francisco Pinto Bandeira, há muitos móveis, bastante luxuosos, dentre os quais poltrona, mesa e cadeira jacarandá; “poltronas com algum uso”; cama de casal em jacarandá com cabeceira de damasco; “Oratório de jacrandá [sic] com huma imagem do Senhor chruxificado, huma de São Francisco das Chagas e huma de Nossa Senhora do Socorro”; vários baús – alguns forrados com couro –, espelhos; cômodas; objetos de vidro entre outros. Nota-se o refinamento deste mobiliário em contraste com os bens rústicos de seu pai. Roupas de corpo e da casa não são arroladas no inventário, mas há uma embarcação com valor de quinhentos mil réis (Inventário de Rafael Pinto Bandeira in Silva, 1999, anexo). Assim como a “qualidade dos genros” das boas famílias, a qualidade das posses se alterou. A fortuna dos Pinto Bandeira “envelhecera” em uma geração. Sobrava dinheiro para investir em jóias, móveis de luxo. Até em uma embarcação – bem de pouca serventia para quem só comercializa gados em pé –, o que demonstra que os negócios de Rafael iam além do comércio de animais. Neste mesmo intervalo de tempo, uma geração, o Continente também envelhecera. Deixara de ser o território parcamente povoado, onde a fortuna estava concentrada nos gados, mais do que em qualquer outro lugar ou sorte de bens.

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Couro da Rússia, couro lavrado.

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Tanto Francisco Pinto Bandeira quanto seu filho Rafael, faziam parte do melhor grupo de homens que habitavam o Continente, e, imagina-se aqui, suas casas continham o que de melhor podia almejar um habitante do Continente. A segurança na manutenção do território sulino sob posse lusa e sua integração com o restante da Colônia através das redes de parentesco e do comércio de semoventes, fizeram com que, em uma geração, surgisse uma disposição para o fausto e luxo. No inventário de Francisco Pinto Bandeira, o valor dos animais que tinha ao pasto supera o valor dos bens de raiz. O contrário sucede com Rafael Pinto Bandeira. Tal valor neste inventário só bate o dos bens de raiz se somado com o valor da escravaria. O lastro patrimonial é superior às mercadorias semoventes. A fortuna de Rafael Pinto Bandeira se demonstra mais “fixa” que a de seu pai. Ou seja, em momentos de perigo, um deslocamento de Francisco Pinto Bandeira e seus familiares, levando o que conseguissem, seria menos pernicioso às suas posses, dado que os animais e os escravos por si, se movem. A liquidez dos bens acumulados resume-se na possibilidade de vender um rebanho parcelado em partes pequenas e vendido a diversos interessados. Na mobilidade ou “transportabilidade” dos seus bens de maior valor reside sua garantia de não perder tudo numa invasão ou ataque repentinos. Dificilmente poderia Rafael Pinto Bandeira, na segunda metade do século XVIII parcelar suas terras em um loteamento e colocá-las à venda para transformá-las em dinheiro de um momento para o outro. O mercado de terras existia, mas ainda era frágil, ficando boa parte das vendas restritas a grupos familiares ou de afinidade, como acusa as Relações de Moradores de Viamão e Triunfo de 1784. Neste documento verifica-se que algumas vendas de terras se davam entre pais e filhos, sogros e genros, irmãos ou, como no caso dos “casais das ilhas”, em que um açoriano comprava pequenas glebas de outro açoriano, parentes ou não. A opção de Rafael Pinto Bandeira, em manter boa parte de sua riqueza em

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terras e casas significa que não vislumbrava a perda iminente destas, ao contrário de seu pai, o qual montou sua riqueza no princípio da conquista das terras sulinas. Mas também a grande quantidade de jóias e utensílios em ouro e prata dá liquidez à parte desta fortuna. Mais de um conto e meio de réis poderiam ser obtidos em qualquer local da Colônia no momento da venda das peças do tesouro particular de Rafael. Certo é que Rafael não montara a sua fortuna a partir do zero, e sim a partir duma herança em que, apesar da divisão igualitária garantida pela legislação, foi beneficiado através de subterfúgios na partilha ou anteriores a ela (Silva 1999; Khün, 2001a). A diferença da qualidade dos bens de Francisco Pinto Bandeira e Rafael Pinto Bandeira denota as opções de investimento que Rafael fez. Investiu na qualidade de vida, em bens mais luxuosos e em objetos de ouro e prata que não, só ornavam sua esposa e sua prole mas eram também uma poupança para os maus momentos. Nestes exemplos notam-se a permanência de duas antigas famílias – ou ao menos algumas ramificações destas famílias – que mantiveram-se no topo da sociedade. Isto apesar dos altos e baixos das conjunturas sulinas. Membros desta sociedade não apenas sobreviveram ao período da conquista: alguns enriqueceram a partir dela.

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Considerações Finais

Espera-se ter demonstrado aqui, em primeiro lugar, que a sociedade sulina do período colonial, em toda a sua complexidade, ainda tem muito para ser estudada. Mostrou-se aqui uma ponta do imenso iceberg das relações sociais, redes de poder e estratégias dessa população, muito mais através de exemplos pontuais em que se pôde aprofundar alguns de seus aspectos, do que através de um estudo exaustivo de cada um destes. Vê-se que o estudo desta sociedade está longe de esgotar-se. Novas pesquisas serão muito bem-vindas e os novos pesquisadores encontrarão aí objetos em abundância para as suas investigações. Espera-se também ter demonstrado, ao longo de todo este estudo, que o distanciamento do Rio Grande de São Pedro do restante da Colônia, ao longo do período colonial, não existiu. A sociedade que se fundou neste território mantinha laços comerciais, familiais e de interesses com várias outras localidades da Colônia e de outros territórios do Império Português, inclusive com o cerne do poder deste Império. Desde a década de 1680, com as fundações da Colônia do Sacramento e da Laguna, os territórios do Continente foram sistematicamente cruzados de lado a lado e tiveram espaço nas preocupações da Coroa lusa. A ocupação e o povoamento do Continente do Rio Grande de São Pedro foi uma continuação do projeto da tomadia lusa dos territórios meridionais. Para entendê-

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los foi necessário retornar no tempo, chegar à fundação da Colônia do Sacramento e ao eterno deslocar-se de frações da elite paulista em busca de terras e recursos para a sobrevivência de um modo de vida. Disso constatou-se a impossibilidade de estudar a formação sob o aspecto da exploração dos rebanhos existentes no Continente a partir dos marcos do início do seu povoamento. A história deste território iniciou-se antes da sua ocupação sistemática e a formação de seus núcleos populacionais se deu ao declinar de uma primeira fase de exploração econômica dos recursos naturais – no caso, os rebanhos mortos e coureados até o limite da quase extinção. À fundação destes núcleos está relacionada a apropriação dos gados por particulares em fazendas e a sua exploração não mais como caça que foram, a partir de criatórios de animais. Afirma-se, portanto, que o povoamento do Rio Grande de São Pedro iniciou-se em uma segunda grande fase da exploração dos rebanhos de animais. Antes mesmo de existir enquanto tal, o Continente do Rio Grande de São Pedro, através da exploração dos rebanhos de gados vacuns e cavalares, servia ao Império Português. Dos gados do Continente foram extraídos os couros e os sebos que em boa medida abasteciam o mercado da Colônia e europeu, através do comércio – lícito ou ilícito – com outras nações européias. Os cavalos do Continente cruzaram metade da América lusa. Parte destes provavelmente cruzaram o Atlântico, na quase desesperada tentativa dos portugueses de montar uma cavalaria em Angola. A Coroa lusa tinha interesse e necessidade da conquista desses territórios meridionais para o bom andamento de seu vasto Império Ultramarino. Impossível, portanto, sustentar a hipótese de que a fronteira meridional – à exceção de Sacramento e Rio Grande, por terem sido fundadas por ordens expressas da Coroa – foi tomada pelo espontaneismo de aventureiros irrequietos. Os pioneiros da conquista agiram em consonância com todo um movimento de expansão da fronteira sul, orquestrado pelo Império, mas com espaço para soluções próprias dos

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conquistadores. Apesar das características peculiares da região, nela também foram adotadas algumas “fórmulas” presentes nas conquistas de outras localidades. Mesmo periférica, não há como contestar que seus habitantes faziam parte do mundo lusobrasileiro, embora muito marcado pela sua situação específica de fronteira entre dois Impérios. Alguns dos primeiros povoadores serviram-se da mão-de-obra indígena, em proporções ainda desconhecidas pela historiografia. Apossaram-se dos recursos naturais e os exploraram à quase exaustão. Fizeram alianças com as populações autóctones e com os vizinhos das terras de Espanha. Financiaram, através da riqueza obtida de seu comércio, a aquisição de mão-de-obra no mercado de escravos africanos, que por sua vez, drenou parte das riquezas produzidas na região. Com os espanhóis, as relações familiares, de negócios e contrabandos eram de tal forma emaranhadas que é difícil dizer o que é São Pedro do Rio Grande e o que é a Banda Oriental no período estudado. No período colonial, massas humanas fundiamse nesses territórios que, na prática, nunca estiveram divididos. A despeito dos vários tratados diplomáticos de demarcação de fronteiras e dos outros tantos rompimentos dos mesmos, a população sulina, espanhola ou portuguesa seguia a sua vida. Mesmo em períodos de beligerância, as redes pessoais que permeavam os territórios da fronteira seguiam o seu curso. As famílias de paulistas, as primeiras a fixar residência, eram frações das elites de diferentes localidades da capitania de São Paulo. Estas se deslocaram para o sul, lançando os alicerces dos primeiros povoamentos, trouxeram em suas bagagens a forma de organização da sociedade que conheciam. Vieram com seus índios, com seus escravos, com seus camaradas e com seus agregados. Trouxeram suas mulheres e filhos. Vieram com uma concepção de sociedade e, ao assentarem-se, tentaram montar uma nova, dentro desses moldes. Em parte conseguiram. Em parte tiveram de criar novas soluções.

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Ocuparam as terras. Não deixaram para trás os vínculos com as localidades aonde tinham nascido ou vivido. As relações familiares, as redes parentais e os negócios que possuíam, preenchiam todo o espaço entre o extremo-sul e seus locais de origem. Muito mais de mil quilômetros e a dificuldade dos transportes no interior da Colônia não foram suficientes para romper os laços pré-existentes. Em seu constante deslocamento movido pela necessidade de novas terras e recursos para prosperar, foram semeando núcleos populacionais, avançando mais e mais em direção às terras de Espanha. Os arranjos matrimoniais reiteravam os parentescos, não deixando que os laços de sangue e de afinidade se diluíssem com a distância e com o tempo. Também forjavam novos laços e uniam vários membros de duas descendências nas suas redes parentais. Os paulistas vinham por terra e montavam suas fazendas. Posteriormente, homologavam suas posses através do sistema de mercês praticado pela Coroa lusa na recompensa dos serviços de seus súditos. Boa parte destes deteve cargos militares, políticos e burocráticos. Obtiveram prestígio e poder dentro da sociedade nascente. As famílias dos pioneiros desenvolveram meios e estratégias para apoderaremse do melhor quinhão da conquista do Continente. Receberam sesmarias, capturaram os gados sobreviventes das coureadas e marcaram-no. Colocaram suas mercadorias no mercado da Colônia e com isso acumularam o suficiente para aplicar nas novas produções, mais complexas e caras. Para obter sucesso nos negócios ou a mera sobrevivência nesta região, havia a necessidade de uma grande e substanciosa rede de relações e de alianças. Muito principalmente de parentesco. Estes eram de tal maneira imbricados que difícil seria dizer se os negócios influenciavam nas alianças parentais ou se estas tinham ingerência direta sobre os negócios. Mais correto parece ser considerar que a família, as redes de relações e os negócios faziam parte do mesmo quebra-cabeças, partes articuladas que montavam um quadro único, qual caleidoscópio, do qual no mover de uma das peças

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significava alterar todo o conjunto. Do sul, a partir da Colônia do Sacramento, no século XVIII mantida pelo Rio de Janeiro sob posse lusa, fazia-se a sustentação militar das terras que foram ganhas aos espanhóis. A inviabilização do contato terrestre entre Sacramento e o Estado do Brasil tornou também inviável o acesso aos gados. Fundou-se Rio Grande. Em parte como base de apoio militar a Sacramento e em parte para dar acesso aos rebanhos que ainda restavam na pampa e nas Vacarias del Mar dos índios tape. Muitos homens da Coroa, oriundos de distintas partes de seu Império Ultramarino, também foram contemplados na distribuição de terras e mercês, o que facilitou-lhes a existência nos campos sulinos e propiciou a alguns deles o ingresso no comércio dos animais e seus efeitos. Os que optaram por fixar-se ao sul o puderam fazer em condições bastante favoráveis, pois colocavam-se com qualidades e graças dadas por Sua Majestade que os distinguiam da maior parte da população. O advento da mineração e a conseqüente formação do mercado interno à Colônia foi o desencadeador dos intentos de vincular o extremo-sul com as áreas interioranas do Sudeste por via terrestre. As regiões centrais da Colônia necessitavam de meios de transporte, o sul necessitava dar vazão ao tesouro animal, seu pecúlio – e aqui remontando a origem latina do termo pecus = gado – transformando-os em bens, metais preciosos e moedas para subsidiar seu sustento. O tesouro semovente posto em marcha gerou a riqueza necessária para ser investida em deixar os bovinos na reserva para recuperação dos rebanhos quase exterminados. Estes, posteriormente, constituíram matéria-prima para o charque. Talvez tenham propiciado também a recomposição dos rebanhos de bovinos de São Paulo, abusivamente vendidos para as regiões das minas. Queda por ser estudada a relação entre a montagem das charqueadas, os capitais gerados no comércio de semoventes e o aumento do envio dos gados vivos para além de Curitiba. Espera-se ter tornado claro que o charque não foi substituto

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direto e imediato das boiadas nas rotas terrestres. Também fica lançada para o futuro a explicação de como se abasteciam de escravos as unidades produtivas do Continente em seus primórdios. Se por um lado era esta mão-de-obra que produzia boa parte da riqueza sulina, por outro era ela que drenava boa parte dos recursos angariados por estas unidades. O contra-fluxo terrestres de escravos era correlato ao fluxo dos animais? Fica em aberto a questão. Também deste comércio de animais deve ter vindo o dinheiro necessário para ser investido na aquisição de matrizes e reprodutores para a montagem da produção de muares. O capital necessário à complexificação da produção sulina não veio dos gados aprisionados simplesmente. Um animal ao pasto não tem outro atributo que não ser uma possibilidade futura de negócio. Só significa riqueza quando é passível de ser vendido ou trocado por outra mercadoria. O capital necessário só foi para o sul quando a alquimia que se processa através do mercado transformou animais em crédito, moedas e metais. Se por um lado a nascente sociedade explorou os gados devolutos à sua quase extinção, por outro foi sensível aos sinais da decadência. Antes de se exaurirem todos os rebanhos, souberam como apropriar-se da terra e dos animais necessários para a sua reprodução em semi-cativeiro. Antes que as coureadas dessem o último suspiro, já estavam negociando cavalos. Antes que o comércio dos cavalos não atendesse mais as demandas do mercado interno, já estavam produzindo muares e gados vacuns. A capacidade de percepção dos primeiros indícios das novas conjunturas e a elaboração de distintas estratégias – algumas de sucesso, malgrado o fracasso de muitas – permitiu que ramificações dos troncos iniciais das famílias pioneiras superassem as adversidades, fincando sólidas raízes nas terras sulinas. Disse André Ribeiro Coutinho que “a matéria de futuro é alheia ao préconhecimento dos homens”. A julgar pelas atitudes da sociedade sulina e do próprio André Ribeiro Coutinho, ao tomarem medidas que precaviam o dia de amanhã, tal

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afirmativa cheira a mera retórica na correspondência do militar-burocrata-literato português. Num período em que havia a fragilidade de mercado e da divisão social do trabalho, as possibilidades de bons e maus investimentos e ações tiveram de ser previstas e enfrentadas com determinação. Ou isto, ou o colapso. Constatando que não houve a bancarrota, conclui-se que pensar o futuro, tal e qual o presente, era sim matéria dos homens. A exploração dos gados diversos em pé ou sob forma de produtos foram os principais bens para o comércio colonial que dessa região se extraíram. A boa aceitação destes e a demanda crescente pelos animais/meios de transporte foram os subsidiadores dos povoamentos sulinos. As estruturas de cobrança de fisco sobre os animais retinham parte do excedente produzido por esta sociedade. Podiam também fornecer crédito a pessoas de diferentes estatutos sociais, retornando à sociedade, ainda que parcialmente e sob forma de empréstimo, para financiar a sua subsistência, quiçá seu crescimento. Estas estruturas de cobrança de fisco, as Guardas e posteriormente os Registros de Passagens de Animais, foram exploradas primeiramente por oficiais da Coroa e posteriormente por particulares, que apropriavam-se de boa parte do que poderia ser a receita dos cofres reais, oriunda das transações comerciais com as mercadorias animais. São as velhas práticas ibéricas sendo aplicadas nos novos territórios conquistados. Sinais de permanências do antigo no ato de construir-se o novo. Ao fincarem-se os alicerces das estruturas que sustentavam as sociedades lusas, redes de poder que se estendiam dos mais remotos rincões e atravessavam o Continente e o oceano Atlântico. Constata-se que a capital do Império luso, nos nodos mais centrais do poder, tinha estreita relação com outras tantas partes do Império, por mais periféricas que fossem. Tudo aquilo que antes parecia confuso e disforme tomou corpo e organicidade ao serem detectadas as redes e seus participantes. De Cristóvão Pereira de Abreu, um

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comerciante/conquistador, ao Conselho Ultramarino, o grande poder em se tratando das conquistas, o caminho parece curto. Perpassa milhares de quilômetros e muitas famílias de povoadores da América e de moradores da península. Mas é a mesma teia presente em vários lugares, percorrida pela influências, informações e interesses. As mudanças na apropriação e exploração dos recursos tiveram correspondência nas mudanças de vida dos povoadores. Com o crescimento e a consolidação dos produtos sulinos no mercado interno à Colônia, alguns povoadores do sul puderam acumular e passar por um enriquecimento relativo, distinguindo-os do restante da população que vivia também em relativo estado de pobreza. Tudo, na montagem desta sociedade, apontava para a reiteração da hieraquização e da exclusão social, que não eram características sulinas, mas sim da sociedade lusa como um todo. Também é necessário dizer mais algumas palavras sobre a “velocidade” que o tempo assume nesta conquista sulina. As conjunturas se alteraram em questão de poucas décadas, fossem estas políticas, econômicas ou sociais. As alterações expressas nas diferentes formas de explorar as riquezas, recursos naturais e humanos se deram num estalar de dedos. Da caça aos gados ao apresamento e marcação destes, da exploração dos couros à venda de cavalos, da cria dos animais à montagem de produções de muares e das grandes charqueadas, não chegou a transcorrer um século. Se as mudanças aconteceram rapidamente, o seu anúncio ecoava desde há muito tempo. Tempo suficiente para que muitos dos povoadores se preparassem para elas. Em uma mesma geração, como exemplificado nas famílias que derivaram de Jerônimo de Ornelas, o padrão das alianças matrimoniais privilegiadas pelo pater familias alterou-se. No intervalo de uma geração, exemplificado nos inventários de Francisco e Rafael Pinto Bandeira, o padrão de investimentos também se modificou, acusando um acúmulo de riquezas bem como melhoria na qualidade de vida das

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principais famílias. A sociedade sulina afirmou-se e seguiu seu rumo, em meio às mudanças de muitos elementos e a permanência dos traços básicos: hierarquia, exclusão, mercês e prestações de serviços à Sua Majestade e grandes redes de relações pessoais de reciprocidade. Muitos sucumbiram às mudanças. Todavia, exemplificado nos ramos vitoriosos das velhas famílias, houve quem conseguisse prosperar. Modificaram suas formas de acumular, de casar, de fazer negócios. A tal ponto que no breve lapso entre duas, talvez três gerações, só podem ser identificados os velhos nomes, pois os perfis de comportamento das boas famílias sulinas modificaram-se a ponto de quase não mais serem reconhecidas. Muito resta, portanto, a ser estudado sobre esta sociedade.

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Anexo I

Pequeno Léxico alzar bardoto besta besta m uar

significado recolher gados à cam panha anim al resultante da cruza de um cav alo com um a burra m ula, geralm ente. P or v ezes designa tam bém cav alos. anim al resultante da cruza do burro com a égua, m ula

besta cav alar

cav alo boi castrado adestrado para as lides na agricultura ou atrelam ento em carros. N os

boi m anso burro

inv entários os bois m ansos assum em v alor superior às reses. asno, jegue asna, jegue fêm ea. M atriz para a produção de burros. O segundo anim al m ais caro

burra burro hechor burro burrero

encontrado nos inv entários do século XV III no C ontinente burro para a cobertura de éguas, para a cria de m ulas. O anim al com m ais caro encontrado burro para a cobertura de burras, reprodutor para a cria de burros.

capão capador

anim al castrado designação específica dada àquele que tinha por ofício proceder a castração dos anim ais

cav algaduras cav alo inteiro cav alo pastor

arreios. cav alo não castrado cav alo usado nas lides do cam po. S e inteiro, tam bém usado com o reprodutor

changadores conduta correr gados

hom ens que se lançav am à cam panha para proceder o recolhim ento dos gados “ dev olutos” ou a fabricar couros ativ idade de transporte de anim ais, designa tam bém a equipe encarregada do transporte recolhim ento de gados x ucros à cam panha

ir às corridas égua égua égua égua gado gado gado

participar do recolhim ento de gados x ucros para aum ento do seu patrim ônio ou de outrem égua reserv ada para a cria com cav alos de cria égua para a reprodução com burros hechores. M atrizes na produção de m uares. de v entre o m esm o que égua de cria m adrinha em geral um a égua de cria v elha, aux iliar na condução de tropas de m uares alzado gado x ucro e “ sem dono” recolhido à cam panha v acum gado bov ino, destinado ao abate para obtenção de couro, sebos e carne x ucro gado selv agem ou não am ansado

ganaderos garanhão m acho m ula nov ilho pastor

hom ens que lidav am com os anim ais, fossem recolhedores aos cam pos, fossem criadores cav alo reprodutor, reserv ado para a cobertura de éguas m ula com características sex uais de m acho o m esm o que besta m uar genericam ente ou a m ula com características sex uais de fêm ea filhote de v acum o m esm o que cav alo pastor

potro potro m anso rês

cav alo nov o, ev entualm ente o burro nov o cav alo nov o, dom ado e com freqüência já castrado gado bov ino. Q ualquer quadrúpede usado na alim entação hum ana (cf. dicionário A urélio) (do castelhano) cav alo não castrado, porém im possibilitado para a cobertura de fêm eas por

retajado

hav er sofrido cirurgia de desv io de pênis, usado para a detecção de éguas no cio, para

retalhado

posterior cobertura pelo burro hechor. A nim al com v alor bastante elev ado. o m esm o que retajado

rufião reses

o m esm o que retajado v acas ou bois, gado v acum , geralm ente indôm ito. A nim ais destinados ao abate.

terneiro

o m esm o que nov ilho

v acas

v acas am ansadas, geralm ente destinadas ao fornecim ento do leite e a algum as tarefas associadas à agricultura, tal com o arado. S e v elhas ou em quantidade ex cessiv a, ao abate.

Anexo II

Documento 1 – Carta de Bartolomeu Pais de Abreu a El-Rei. “Senhor - Do porto de Santos até o de Laguna, última povoação da comarca desta cidade de São Paulo, fazem cento e vinte léguas pela costa do mar, e se achavam nove vilas, que há muitos anos estão povoadas, sendo que entre a mais a voltada a de Santos pelo comércio dos moradores de serra acima. Da povoação da Laguna para a parte do sul serão sessenta léguas até o Rio Grande todo o deserto e Costa lavada, sem porto mais que o da barra do mesmo Rio Grande, que é para sumacas e outras embarcações pequenas. Adiante da Laguna buscam a cercanias da Costa o interior do sertão, e abeiram campos às praias até o Rio Grande, que se estende a confinar com a cidade do Sacramento da nova Colônia, que ainda estão por povoar, está habitadas estas terras de gentios bárbaros; e será distância de cento e cinqüenta léguas da Laguna até a Colônia. Toda esta campanha do Rio Grande para diante produz gados vacuns e cavalares em muita quantidade, sem mais utilidade para real coroa de vossa majestade que alguma coirama fabricada na mesma Colônia; e se não pode conseguir maiores conveniências com a saída destes por falta de caminho de terra, que pela costa não permitem a cercanias, matas e baías do mar; e só terá lugar esta extração abrindo-se caminha pelo interior do sertão vindo-se do Rio Grande a demandar esta comarca desta cidade, que poderão ser cento e oitenta léguas, mais ou menos. Esta diligência seguem-se povoarem-se as terras e aumentar-se a real fazenda no contrato dos dízimos, nos direitos dos mesmos animais extraídos; no das passagens dos rios que ficam perto sertão dentro; descobrirem-se minas de ouro ou prata, ou pedras preciosas, que todo este vão do sertão ainda em si oculta; e a experiência nos tem mostrado com as minas de ouro dos Cataguases que, em poucos anos de seu descobrimento, se acham tão aumentadas, como já divididas em três grandes comarcas, sem mais provimentos de gados e bestas que as que se extraem dos currais da Bahia, e sobretudo reduzir se a multidão dos gentios bárbaros ao grêmio da igreja, e ter Vossa Majestade nesta redução muitos milhares de novos vassalos. Acho-me com talentos e cabedais para, com forças de uma voltado corpo de armas, fazer entrada ao Rio Grande sem a menor despesa da fazenda real, talar aquele vasto sertão e abrir caminho pelo centro dele, e mandando o rumo da comarca de São Paulo, tendo por prêmio deste particular serviço, à custa de minha fazenda e riscos de vida, as mercês seguintes: ser donatário de quarenta léguas de terra, a beirando se o Rio Grande, vinte para parte do norte e vinte para parte do sul, medidas por costa, com todo o sertão que se achar pertencer a Vossa Majestade, de juro herdado para sempre, com um padrão de que 200$000 estabelecido na passagem do Rio Grande, sendo capitão-mor daquelas campanhas. Os primeiros nove anos livres de direitos e os animais que extrair por mim ou sócios meus; ser guarda-mor geral de quaisquer minas que se descobrirem nas vertentes do Rio Grande e serras anexas, com os mesmos ordenados que se conferiu ao guarda-mor das Minas Gerais de São Paulo. Para poder merecer estas e as mais honras com que a grandeza de Vossa Majestade costuma engrandecer, honrar e premiar os seus vassalos, constará em meus zelo pelos papéis de serviços, que com esta ofereço ao Conselho Ultramarino, dos quais se verifica que tenho dado à fazenda real de Vossa Majestade nesta capitania, com muitos cruzados nos contratos dos dízimos; e nesta cidade, sendo o juiz ordinário no ano de 1705 me opus a defender a jurisdição real, contravertida pelos ministros eclesiásticos, com muitos riscos da mi-

nha vida e despesas de fazenda; sustentei a causa perto de dois anos, vexado com censuras e exposto a motins entre povos ignorantes daqueles procedimentos, sendo o meu sempre interessado neste, e nas mais ocasiões ser vassalo zeloso do serviço de Vossa Majestade, que mandará o que for servido. À pessoa de Vossa Majestade, guarde Deus muitos anos, como todos os vassalo havemos mister. São Paulo 23 de Maio de 1720. Aos pés de Vossa Majestade. Bartolomeu Pais de Abreu”. (Goulart, 1961: 206-207). Documento 2 – Carta Régia sobre a abertura de um caminho de São Paulo ao Rio Grande por Bartolomeu Paes de Abreu. “Dom João por graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves, daquém e dalém mar em África senhor de Guiné, etc. – Faço saber a vós Governador e Capitão General da Capitania de São Paulo que Bartolomeu Paes de Abreu morador nessa cidade me representou em carta de vinte e três de Maio do ano passado, cuja cópia com esta se vos remete do serviço que intentava fazer-me abrindo estrada até o Rio Grande, e conveniências que disso se podiam seguir, tudo debaixo das mercês que pede e como este negócio não seja para desprezar: Me pareceu ordenar-vos informeis com vosso parecer, e se este homem tem possibilidade para esta empresa e se nesta campanha há muitos Índios. El-Rei nosso Senhor o mandou por João Telles da Silva, e Antônio Roiz da Costa conselheiros do seu Conselho Ultramarino e se passou por duas vias. Antônio de Cobellos Pra. a fez em Lisboa Ocidental a seis de fevereiro de mil setecentos e vinte e um. O Secretário André Lopes de Lavre a fez escrever. – João Telles da Silva. – Antônio Roiz da Costa.” (DIHCSP/AESP, 1896a: 25) Documento 3 – Segunda Carta Régia sobre a abertura de um caminho para o Rio Grande por Bartolomeu Paes de Abreu. Dom João por graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves, daquém e dalém mar em África senhor de Guiné, etc. – Faço saber a vós, Rodrigo Cesar de Menezes Governador e Capitão General da Capitania de S. Paulo, que se viu o que respondeste em carta de 8 de Setembro do ano passado a ordem que vos foi sobre a representação que me fez Bartolomeu Paes de Abreu morador nessa Cidade sobre se oferecer a abrir uma estrada até o Rio Grande, e das conveniências que disso se podia seguir; e mercês que por isso pedia, representando-me que depois de ter chegado a ela e tomardes posse do vosso governo mandareis chamar ao dito sujeito para saberdes dele o que eu vos ordenava e porque se acha retirado a três meses dessa terra na diligência de intentar se poderia ser-lhe fácil fazer algum descobrimento para que logo o que achar principiar a abrir o dito caminho como assim vos assegurou por uma carta sua que vos deixou feita que em quanto senão recolher não podíeis ajustar com ele cousa alguma; que em o ouvindo me informareis como eu vos ordeno. Me pareceu dizer-vos, que espero do vosso zelo concluais esta diligência como tão importante a meu real serviço, e de tão grande conveniência para os meus vassalos. El Rei nosso Senhor o mandou por João Telles da Silva e Antônio Roiz da Costa conselheiros do seu Conselho Ultramarino e se passou por duas vias. Antônio de Cobellos Pereira a fez em Lisboa Ocidental a 18 de Abril de mil setecentos e vinte e dois. O secretário

André Lopes de Lavre a fez escrever. – João Telles da Silva – Antônio Roiz da Costa. (DIHCSP/AESP, 1896a: 41-42). Documento 4 – Carta de Rodrigo César de Menezes sobre o ajuste com Bartolomeu Pais de Abreu pra a abertura de um caminho. “Sr. - depois de chegar a esta cidade e de tomar posse do governo não de chamar a Bartolomeu Pais de Abreu para saber dele o que Vossa Majestade me ordenava, e porque se acha retirado a três meses desta Cidade na diligência de intentar ver se poderia ser-lhe fácil fazer algum descobrimento para logo que o achar principiar a abrir o caminho, como assim me assegura uma carta que me deixou feita de 25 de Julho. Enquanto se não recolhe não posso ajustar com ele [—].” (Goulart, 1961: 208). Documento 5 – Registro do Regimento que leva para o Rio Grande o sargento-mor Francisco de Souza Faria para a abertura do caminho que vai fazer. Antônio da Silva Caldeira Pimentel, do Conselho de Sua Majestade, que Deus Guarde, Governador e Capitão General da Capitania de São Paulo e das minas do Paranapanema e Cuiabá, etc. - Porquanto é conveniente ao serviço de Sua Majestade que Deus Guarde e de grande utilidade à sua Real Fazenda, sustentação e aumento desta Capitania e suas minas abrir-se Caminho de Terra do Rio Grande de São Pedro da Costa do mar pela qual possam passar gados e cavalgaduras para os Campos de Curitiba, e tendo consideração a que na pessoa de Francisco de Souza Faria concorrem as circunstâncias necessárias para esta importante empresa por me constar sua grande atividade e inteligência pela experiência que tem daquelas Campanhas até a Colônia, conhecimento e amizade com os Índios com quem se tem comerciado (como fazem algumas pessoas e ainda Castelhanos que com eles conduzem gados e cavalgaduras para a Vila da Laguna) de onde por não haver caminho se não transporta para as mais partes dessa Capitania onde se faz necessário: Hei por bem ordenar como por esta Ordeno ao dito Francisco de Souza Faria possa abrir o Caminho pela paragem que achar mais conveniente, possível e fácil por ele se poder conduzir gados e cavalgaduras para os Campos Gerais de Curitiba, observando e fazendo em tudo observar as seguintes ordens e as mais que me parecer conveniente mandar: 1a Passará logo à Vila de Santos onde receberá do Almoxarifado da dita Praça as armas, pólvora, munição e ferramentas e mais coisas que ao vedor ordene lhe entregue dando fiança a Restituir no dito Almoxarifado as armas e as ferramentas; e do mais até constar tenha aberto o caminho pois para esse fim se lhe dá. 2a O logo seguirá a viagem pela Vila de Parnaguá e o Rio de São Francisco, Santa Catarina, e da Laguna das quais da de Curitiba (sendo necessário) fará que os Capitães-mores ou outros quaisquer Oficiais maiores de guerra ou de justiça lhe dêem como lhes ordeno toda a gente que achar ser necessária e precisa para esta diligência e todos os mais mantimentos, gados e cavalgaduras, ou embarcações que sejam necessárias para tudo ser pago pela fazenda real e havendo alguns Criminosos poderão

ir sem que a justiça os impeça durante o tempo da diligência e por todo o serviço que nela constar haverem feito serão atendíveis para o seu livramento perante as justiças de Sua Majestade que Deus Guarde. 3a Partirá logo da Vila de Laguna. logo que estiver aprestado do necessário com a brevidade possível no tempo mais conveniente e abrir o caminho e alistando a gente que vai e pondo-a com a melhor forma de regime que parecer mais conveniente para a marcha e me dar conta de tudo. 4a Fará uma grande observação nas marchas que fizer, fazendo assento dos Rios por seus nomes, fundos e largura para disso e de tudo o mais me dar conta, especialmente da abertura do Caminho, logo que o conseguir sem demora alguma, avisando aos Capitães-mores com toda a diligência por mar e terra me participe. 5a Haverá mui particular cuidado a que não se agrave, moleste, ou maltrate alguns Índios, ou Castelhanos, que estejam nas nossas povoações ou se encontrem em caminho, ou nas Campanhas, procurando paz e amizade com eles, expedindo para isso do que leva o que entender ser necessário, procurando mesmo que conheçam, e entendam que esta marcha se encaminha somente a ter com eles comércio de negociação conveniente a todos, e não a tirar-se coisa alguma com violência. 6a E sendo que na travessia a sair dos Campos de Curitiba se encontre algum lote de gentio sem ser do que habita o Rio Grande para lá que não queira paz e com obstabilidade de guerra impedir a passagem, fazendo algum malefício, o poderão cativar para obrigar a viver racionalmente e se tiraria o quanto para El-Rei, evitando nas partidas não haja a mínima discórdia nem entre si por outra qualquer cousa. 7a Se alguma, ou algumas pessoas desobedecer ou fizer levante ou outra qualquer coisa que mereçam Castigo poderá como Cabo maior que é desta gente levar consigo das Vilas afora, fazer prender, e remeter seguros a minha ordem a Vila de Santos sendo necessário conforme o caso pedir. 8a E quando alguns desertem ou fujam serão como tais presos para serem castigados, o que os Capitães-mores Maiores farão inviolavelmente executar, remetendo seguramente presos a minha ordem, e o mesmo se observará com os que pelos Cabos das Vilas forem nomeados pra irem a tal diligência e para elas notificados e maliciosamente o não fizerem. 9a E sendo que algum Capitão-mor ou outros quaisquer oficiais de milícia, de justiça das vilas abusem de sua obrigação, havendo-se com conhecida omissão na inteira execução das minhas ordens (o que não espero de tão leais vassalos para tão importante como conveniente diligência ao Real serviço) e se me dará inteira e individual conta para serem castigados como merecerem as suas culpas. E como do zeloso cuidado do dito Francisco de Souza Faria confio toda a boa satisfação, sendo entendido que fica obrigado a responder por qualquer omissão que haja para ser atendíveis aos meus serviços e bem assim os mais o que fizerem como bons e leais vassalos lhe

mandei passar a presente ordem e regimento que inteiramente se fará cumprir e guardar como nele se contêm sem dúvida alguma, por mim assinada e selada com o sinete de minhas armas, que se registrará nos livros da Secretaria deste Governo e nos mais a que tocar; Dado em São Paulo aos dezenove dias do mês de Setembro de mil e setecentos e vinte e sete. O Secretário Bento de Castro Carneiro o fez. - Antônio da Silva Caldeira Pimentel. (Goulart, 1961: 210-213)

Anexo III

Documento 1 - Cópia da Lista dos Devedores que deu o Capitão Francisco de Paula Teixeira “Lista das pessoas que devem a Casado falecido Mestre de Campo Manuel de Oliveira Cardoso cujas dívidas se originaram no Registro de Curitiba de cujo Continente são moradores e foram os seguintes:

[f.1] 1o José da Silva Pais, morador na Faxina de quem foi fiador Antônio Correia da Silva morador na Freguesia de Santo Antônio da Lapa devedor dos direitos de 5 Cavalos 5$000 2o Manuel Gonçalves morador de Intinguequeira direitos de 1 Cavalo 1$000 3o Miguel Rodrigues Antunes morador no Rio Verde do Campo Largo Direitos de 1 Égua $480 4o Antônio Gonçalves de Siqueira, soldado que desertou do Reino Direitos de 1 Cavalos 1$000 O mesmo de fazenda 4$475 5$475 5o Joaquim da Luz Silveira [ou Siqueira] Direito de 2 Éguas $960 6o O Tenente Estevão José Ferreira; este diz que quem deve é Fr. Antônio de Pádua por passar os Cavalos em nome do dito Frade 3 Cavalos 3$000 7 Bento Francisco morador no Itaqui Direitos de 1 Cavalo 1$000 8 O Tenente Joaquim Lopes Cascais Direitos de 2 Cavalos 2$000 9 João Pereira ourives que morou na Freguesia de Santo Antônio da Lapa, é falecido, Direitos de 1 Cavalo 1$000 10 Manuel Rodrigues Jardim que morou na Freguesia da Lapa Direitos de 1 Cavalo e 1 Égua 1$480 O mesmo de Fazenda 7$520 9$000 11 Salvador Valente morador que foi da Freguesia da Lapa Direitos de 1 Cavalo 1$000 O mesmo de Fazenda 1$920 2$920 12 Antônio Francisco de Siqueira morador na mesma Freguesia da Lapa 3 bestas e 2 Cavalos ___5$750O mesmo de fazenda 1$300 7$050 13 João Leme Comandante do destacamento deste Registro [Regimento] Direito de [corroído] Cavalos 10 Égoas _______12$800O mesmo de Fazenda_____ 54$780 [à margem: Crédito] 67$580 Continua 106$465 [f.1v] 14 João José de Vasconcellos Machado soldado que foi do destacamento deste Registro direitos de 6 Cavalos e 8 Éguas ______ 9$840O mesmo de Fazenda ________ 27$470 37$310 por crédito 15 José Cardoso Monteiro morador ao pé da Vila 17$170 o dito 16 Amaro Antônio de Ramos soldado do destacamento 6$400 o dito 17 O Tenente Manuel Soares do Vale morador na Vila 6$400 o dito 18 Silvestre Luís de Siqueira morador na Lapa 43$880 o dito 19 Máximo Antônio Camarada do sertão 31$400 o dito 20 Joaquim Machado camarada do sertão 57$270 o dito 21 Dionísio da Costa camarada dos Campos Gerais 71$545 o dito 22 Alexandre Luís Ferreira [Pereira?] Mestre Alfaiate 250$481 o dito 23 Félix José Moreira Gracia camarada do sertão 18$320 o dito 24 Floriano José de Moura Mestre Alfaiate 81$130 o dito 25 Manuel Jacinto mestre sapateiro 100$970 26 Francisco José de Siqueira [Silveira?] Mestre carpinteiro morador na Vila 4$480

27 José Francisco Soares camarada do sertão 28 O Pardo Inácio oficial de ferreiro escravo de José dos Santos Rosa morador em Tamanduá 29 José Leme do Prado Mestre Carpinteiro morador na Vila 30 Manuel Rodrigues da Mata Capataz do Comandante? do Sertão 31 Salvador Martins Leme que teve venda no Registro onde faleceu 32 O Preto João forro oficial de sapateiro faleceu no Registro 33 O mulato Joaquim Alfaiate escravo de José dos Santos 34 O Preto Joaquim forro que assistiu no Registro de onde fugiu 35 O Pardo José forro capataz morador na Freguesia da Lapa 36 João mariano cunhado de Alexandre Ferreira 37 O Preto Félix da fazenda dos Papagaios 38 O Preto Simão forro de casa de Frei José 39 Matias João Casado Campos Gerais 40 Miguel José de Faria oficial de ferreiro que morou na Freguesia de Santo Antônio da Lapa de onde fugiu para Viamão

8$090 $690 5$440 3$200 72$807 3$160 2$640 2$025 2$100 $900 1$600 1$580 4$000 11$590 953$103

[f.2] Vem somando a dívida em parte 953$103 41 Francisco José de Candia ? amansador de Bois 42 Luís Dias da Costa Mestre [incompreensível] morador na Vila 43 Domingos Ferreira Leite Mestre Alfaiate morador na Vila 44 Isabel Maria parda moradora no pé do Registro 45 José do Amaral soldado que desertou do Registro [Regimento?] 46 João de Góis Araújo comandante do Registro 47 O Pardo Manuel Oficial de ferreiro morador na Freguesia da Lapa 48 Aleixo Rodrigues da Mota [Mata?] morador nos Campos Gerais 49 O Tenente Domingos Pereira da Silva morador da Freguesia da Lapa 50 Manuel Machado de Souza morador nos Campos Gerais 51 Antônio Ferreira Amado caixeiro no Registro 52 Frei Antônio Costa frade franciscano comissário no ofício da Vila 53 Francisco José Veloso morador no Itambé 54 Francisco dos Santos por alcunha Chico Largo morador nos Campos Gerais 55 Inácio da Costa Xavier pintor 56 Ângela Parda moradora nos Campos gerais mulher do Pardo Isidório dos Papagaios 57 Joaquim Cipriano dos Reis oficial de carpinteiro morador nos Campos Gerais 58 Manuel Caboclo morador nos Campos Gerais 59 O Governador? Bernardino da Costa Filgueira morador em Lajes 60 O Falecido Marcelino Gomes da Costa que morou em Tamandua por execução que se fez 61 O falecido Alexandre Luís Monteiro morador na Lapa por crédito 62 José Pinheiro de Toledo na Ponta Grossa

7$480 40$610 10$640 8$585 16$330 12$020 2$000 87$385 77$515 84$625 135$625 5$040 20$900 14$880 68$520 6$150 6$900 5$280 261$800 734$695 1:138$935 73$570 3:710$606

[f2.v] Lista de devedores declarados na lista antecedente que têm pago as quantias seguintes à conta de seus deveres Manuel Machado de Souza 84$250 Recebi a conta em fronte 19$200 Isabel Maria 8$585 Recebi a conta em fronte 1$920 O Tenente Joaquim Lopes Cascais 2$000 Recebi a conta em fronte 2$000 Domingos Ferreira Leite 10$650 Recebi a conta em fronte 6$500 Lista dos devedores contemplados na Precatória que por não ter bens, falecidos ou ausentes 1 2 3 4

Plácido Cordeiro Manuel Gonçalves Cardoso Antônio Martins João Pereira

1$000 1$000 1$000 4$000

5 6 7 8 9 10 11 12 13

Salvador José Maria Franca Diogo Brino [?] José Pedroso de Morais Francisco Gonçalves Chaves Manuel Pereira Peres [Pires?] Francisco José Felipe da Cruz José Antunes Lima morador na Faxina e deve relação do Capitão Paula este há de pagar 14 Bento Francisco que deve na relação do Capitão Paula fica de pagar este Bran? 15 Francisco Franco o mesmo

$480 1$000 1$000 1$000 1$000 3$480 4$480 2$480 8$480 1$000 10$000

[f.3] Continuação Os devedores que pagaram 1 Floriano José de Moura 2 Antônio Correia de Almeida 3 Roberto Jacinto 4 Francisco José de Siqueira 5 Tomás José Gonçalves 6 Miguel Rodrigues Antunes 7 8 9 10 11 12

Tomé José Monteiro Braga Ana da Silva Manuel de Góis Antônia [o?] de Bastos João da Costa Alberto Barreto [?]

4$000 1$000 1$000 4$440 1$440 $480 $960 1$250 1$000 1$000 2$960 3$210

[f.3v] Verso Continuação outros devedores da relação que me deu o Capitão Francisco de Paula que não foram na relação da Precatória uns por perder de outros por me dizem haviam de pagar e o não tem feito por não terem e ausentes 1 O cabo que foi comandante deste Registro João Diniz Leme que desertou 1$960 2 Joaquim da Luz Vieira 8$960 3 O Alferes Joaquim Pedroso de Oliveira $480 4 O soldado Antônio Gonçalves de Siqueira 1$000 5 O soldado Antônio Rodrigues da Assunção 1$000 6 Manuel Rodrigues Jardim 1$000 7 O Tenente Estevão José Ferreira disse que quem deve é Frei Antônio de Pádua que ele não mandou passar cavalos 3$000 8 Salvador Valente 1$000 9 O Tenente Antônio Pereira Mendes 61$170 10 Antônio Pereira Terra 2$000 11 O Soldado José do Amaral 2$960 12 José Manuel Tabares [Tavares?] 10$780 13 Bento Ferreira [Terres] Lima 3$400 14 O Padre José Manuel por Antôniomaria, o Gotoso , hoje vigário do Pehaí [?] 5$480

Antônio Francisco de Siqueira contemplado na Precatória a qual mandei fazer seqüestro em Lajes e segundo os avisos que tenho para obram há de vir o seguido que se receber a conta do que deve são 77$000 em Relação do Capitão Paula deve 7$050.”

Observação: O arquivista datou este documento como sendo do ano de 1751 ou mais. Existem motivos para questionar tal datação: 1) José da Silva Pais regressou a Portugal no ano de 1749, estando em Santa Catarina e não no acampamento militar da faxina. Esteve na Faxina bem antes, no início da década de 40; 2) A adjudicação do contrato dos meios direitos de Curitiba iniciou-se no ano de 1743, passando a administração do mesmo das mãos dos militares para as mãos dos particulares 3) No ano de 1747 os meios direitos do Registro de Curitiba já tinham sido cedidos por mercê real a Cristóvão Pereira de Abreu, que em 1748 se propôs a assumir pessoalmente administração do Registro (Almeida, 1942: 95-96). A outra metade adjudicada por leilão no Conselho Ultramarino. Não estava, portanto, sob responsabilidade de um comandante militar o controle das dívidas deste Registro. É possível, portanto, que o documento acima seja uma espécie de “prestação de contas” do administrador militar para os novos detentores dos direitos sobre a passagem dos animais (MDH).

Documento 2 – “Sobre a mercê que fez Sua Majestade ao Coronel Cristóvão Pereira por doze anos metade dos direitos das cavalgaduras cobrados, que devem ser, por esta Provedoria.” “Dom João por graça de Deus, Rei de Portugal, e dos Algarve, d’aquem, e d’além-mar em África Senhor de Guiné etc. Faço saber a vós, Provedor da Fazenda Real da Praça de Santos, que por parte do coronel Cristóvão Pereira de Abreu, se me representou que eu fora servido em remuneração dos seus serviços fazer-lhe mercê da metade dos direitos que pagam os gados, e cavalgaduras que entram na Capitania de São Paulo pelo registro de Curitiba, por tempo de doze anos que se hão de cobrar pela fazenda real nessa Provedoria, e que para o Suplicante se poder melhor utilizar desta mercê; me pedia fosse servido mandar-vos passar ordem para que cada três meses mandeis fazer a conta aos direitos que estiverem cobrados, e se entregue ao Suplicante a parte que lhe pertencer; e sendo visto seu requerimento, e o que sobre ele respondeu o Procurador de minhas fazendas. Me pareceu ordenar-vos procedais nesta matéria na forma que o Suplicante pede o que cumprireis apresentando-vos o Suplicante a carta de mercê. El-Rei Nosso Senhor o mandou por Thomé Joaquim da Costa Corte Real e o Desembargador Antonio Freire de Andrade Henriques conselheiros do seu Conselho Ultramarino. Pedro Alexandrino de Abreu Bernardes a fez em Lisboa a quatro de Maio de mil setecentos quarenta e sete. O Conselheiro Antônio Freire de Andrade Henriques a fez escrever”. Thomé Joachim da Costa Corte Real Antônio Freyre de Andrada Henriques (BN-DH, 1928: 61-62)

Documento 3 – Carta Régia de 19 de Junho de 1761 “João Manuel de Melo, governador e Capitão General da Capitania de Goiás. Amigo: ‘Eu, El-Rei, vos envio muito saudar. – Sendo-me presente que, pelo costume que de anos a esta parte se tem introduzido no continente do Estado do Brasil, de fazerem os moradores dele os seus transportes em machos e mulas, deixando por isso de comprar os cavalos de sorte que se vai extinguindo a criação deles, por não terem saída, em grave prejuízo de meu real serviço e dos criadores, e bem comum dos lavradores dos sertões da Bahia, Pernambuco e Piauí; e atendendo ao que por eles me foi representado; sou servido ordenar que em nenhuma cidade, vila ou lugar do território desse governo se possa dar despacho por entrada ou por saída a machos ou mulas: e que da publicação desta sejam irremissivelmente perdidos e mortos, pagando as pessoas em cujas mãos forem achados os sobreditos machos ou mulas a metade do seu valor para os que descobrirem. Nas penas incorrerão as pessoas que de tais cavalgaduras se servirem, ou seja em transporte, ou em cavalarias, ou em carruagem, depois de ser passado um ano, que lhe concedo para o consumo das que atualmente tiverem já, sendo matriculados, para se conhecerem. E, para obviar as fraudes que se podem maquinar contra esta minha real determinação, vos ordeno que logo que receberdes esta e depois de a fazerdes publicar por editais afixados nos lugares públicos dessa capital, e das mais povoações dessa Capitania: passareis as ordens necessárias para que se faça um exato inventário de todos os machos e mulas que se acham nos distritos desse governo, com a declaração das suas idades e sinais, para por eles serem confrontados, os que de novo aparecerem, e se proceder na execução desta minha real determinação contra os transgressores dela, pela prova que resultar das ditas confrontações”. (Carta Régia de 19 de Junho de 1761, apud Dornas Filho, 1958: 30) Documento 4 - Registo de um decreto de Sua Magestade sobre as mulas. “Governador do Rio Grande de S. Pedro Eu El-Rei vos envio muito saudar. Sendome presentes alguns inconvenientes que se seguião ao meu Real serviço e ao bem commum dos meus vassallos do modo de execução de minha real ordem de dezenove de Junho de mil setecentos e sessenta e hum pela qual fui servido ordenar em beneficio das creações de Cavallos das Capitanias de Pernambuco e Piauhy e dos mais sertões do Estado do Brazil que em nenhuma a machos ou mullas depois da publicação da referida ordem concedendo somente o espaço de hum anno para o consumo das existentes tudo debaixo das pennas communicadas na referida ordem, sou servido declarar que suspendendo-se a execução da sobredita ordem, quanto aos machos e mullas existentes e que já tinhão dado despacho por entrada se observe, quanto de novo se despacharem d’aqui em diante o seguinte: Que porquanto não podia ser de minha Real intenção prejudicar aos meus fieis vassallos que dentro do Continente do Estado do Brazil se

tinhão louvavelmente applicado a creação das bestas muares e considerando por outra parte quanto lhes hé prejudicial a introdução destas bestas creadas fora do dito continente do Brazil. Hei por bem que todas as que forem nascidas dentro dos meus dominios sejam alistadas dentro de hum anno do seu nascimento e que quando dellas se fizer venda se entregue aos compradores um bilhete assignado pelo Ministro Juiz Vereador ou Governador do districto com as declarações das idades e signal da pessoa aquem for comprada a besta muar em primeira e segundas vendas e qual bilhete servirá para se lhe dar despacho nos registos e para defender os donos actuaes das bestas da irremissivel pena do perdimento dellas e do seu valor em dobro para os accuzadores e officiaes que as aprehenderem e não havendo accuzadores todo o dobro para os officiaes, e das bestas para se matar logo achando-se que não he nascida dentro dos meus dominios o que se haverá por verificado por essa mesma falta de bilhete sem se admitir prova em contrario. O que tudo assim cumprireis e fareis cumprir com a exactidão que de vós confio. Escripta no Palacio de Nossa Senhora da Ajuda a vinte quatro de Dezembro de mil setecentos e sessenta e quatro – Rei – Para o Governador do Rio Grande de S. Pedro. Cumpra-se como S. Magestade manda e se registe nos livros da Camara e Provedoria Capella de Viamão vinte de Agosto de mil setecentos e sessenta e cinco”. (PMPA, 1941: 471472)

Documento 5 - “Registo de um Decreto de S. Magestade a respeito das mulas” “Eu El-Rei, Faço saber a vos Governador do Rio Grande de São Pedro que tendo mostrado a experiencia a muita utilidade que se segue ao commercio das bestas muares principalmente nas comarcas das minas onde de annos a esta parte se tem introduzido para os transportes e conduções das mercadorias com preferencia dos Cavallares. Havendo destes nos sertões da Bahia Pernambuco e Piauhy tão grande Copia que antes da introdução dos muares só com a sahida que lhes davão para as minas se enrequecião os moradores dos referidos sertões ao mesmo tempo que das muares notoriamente mais uteis para todo o serviço não tem havido até o presente a abundancia que se necessita. Sou servido mandar promover nessa Capitania a creação das bestas muares em utilidade dos meus fieis vassallos e em beneficio do Commercio que nellas lucra a facilidade e commodidade das conduções e para cautellas que entregando-se inteiramente esses moradores a creação destas bestas que dezamparem de sorte a creação dos cavallares que venhão estas a faltar para os viandantes e para a remonta das tropas. Hei por bem que os vereadores sejão obrigados a terem ao menos a sexta parte d’egoas com seu Cavallo penna de lhes serem tomadas todas as bestas muares que tiverem de creação e de pagarem em dobro o seu valor tudo para quem os denunciar e se assim não

observarem o que inteiramente fazeis executar. Escripto no Palacio de Nossa Senhora d’Ajuda a vinte e dois de Dezembro de mil setecentos e sessenta e quatro – Rei – Para o Governador do Rio Grande de São Pedro. Cumpra-se como Sua Magestade manda e se registe nos livros da Camara e Provedoria. Capella de Viamão, vinte de Agosto de mil setecentos e sessenta e cinco – José Custódio de Sá Faria – Fica registado no livro do Registo dessa Provedoria afs. 5. Capella de Viamão, vinte e oito de Agosto de mil setecentos e sessenta e cinco”. (PMPA, 1941: 472-473)

Documento 6 - Anexo ao “Parecer que por ordem do General de São Paulo D. Luís Antônio de Souza escreveu o Brigadeiro José Custódio de Sá e Faria para efeito de se formalizar o Plano que Sua Majestade tem determinado” “Relação dos direitos que se pagam desde o Rio Grande de São Pedro até as Minas Gerais, de cada Besta, Cavalo e cada uma Cabeça de gado vacum.

animal

Quando o Rio Grande estava na nossa Coroa pagava na passagem da Barca cada 100 No Registro de Viamão se paga de: 1. Cada besta ou cavalo 1$000 No Registro Novo da Vacaria se paga de: 2. Cada besta sou cavalo 1$000 No Registro de Curitiba se paga de: 3. Cada besta [—] No Registro de Sorocaba 4. Cada besta[—] No Registro de Capivary de 5. Entrada de cada Besta[—] 6. E de subsídio de[—] Na passagem dos [—] 7. Cada Besta Do que pagam os Cavalos nos Registros atrás declarados o seguinte: 1$000 No 1o registro No 2o registro 1$000 o No 3 registro 1$000 No 4o registro 1$000

No 5o registro No 6o De Subsídios

1$00

1$000 cavalo 8$400

Do que paga o Gado Vacum No Registro de Curitiba, se paga de cada cabeça de gado $480 Gado No Registro de Sorocaba se paga de uma das ditas $100 $580 De que Se paga de Direitos de cada cabeça de Gado no Registro de Capivary, não se trata nesta Relação porque desta Capitania não costuma ir gado para a de Minas Gerais. *** Relação de quanto rendem as Bestas que resultam a criação que tem em Minas Gerais para a fazenda de Sua Majestade. As Bestas que nascem naquele Continente não ao pagam mais que o Dízimo e esse se estende de Cada dez uma que de pois de criada e vendida dará a quantia de 40$000 Esta mesma [—] da porque vai parar na mão [—] contrato, e não se pode iden- [—] nta ao abatimento [—] de que o mesmo [—] e nele contra [—] alguma [—] é [—] O mesmo acontece a respeito da criação dos Cavalos que é de cada dez um. e depois de criado e vendido dará a quantia de 25$600 E pelo termo que se deduz a respeito das Bestas conducentemente se colhe não pode também preencher para a Real Fazenda a mesma disposta quantia 25$600 O que comumente usam os Lavradores que tem estas criações é avençarem com os Dizimeiros a pagarem-lhe um tanto por ano, entrando neste ajuste todas as qualidades de Plantas e criações,: isto se entende daqueles criadores que não chegam a completar o no de dez crias; porque tendo-as, tem obrigação de dar uma para o Dízimo do tal ano: Outros criadores que não tem completo o número de dez crias costumam ajuntarse a pagar ao Dizimeiro por cada cria de: Bestas 1$280 Por cada Poldro $320 Por cada Poldra $240 Do que se segue maior prejuízo a Real Fazenda na conhecida desproporção da quantia mostrada de 1$280 Porque cada cria de Bestas que dá o todo de 12$800 por dez que proposta esta quantia antecedente de 40$000 Claramente se deve o desfalque de 27$200 respectivamente a cada uma das ditas Bestas.

E o mesmo se conclui no que diz respeito aos cavalos porque tirando-se um para o Dízimo de cada dez, produz esta a líquida quantia de [—] E atendendo-se ao que pagam [—] para cada cria vem a pagar em cada [—] de que também se vê o desfalque [—] respectivamente a cada Poldro [—] Razão [—] A respeito do que S. Majestade [—] valos nas Minas [—] Dez Bestas [—] Em Minas pagam estas de Direitos a Sua Majestade a quantia de 10$700 e todas a quantia de 107$000. Deixando de irem nestas Bestas aquelas Minas para se criarem nelas as mesmas dez Bestas de cujas pagam uma ao Dízimo que vendida pelo preço do País rende pouco mais ou menos a líquida de 40.000 Diferença 67.000 Esta quantia de sessenta e sete mil réis é o que sua Majestade perde em cada dez bestas que deixam de entrar em Minas respeito à criação delas no mesmo país, e por conseqüência ao que diz respeito à criação de Cavalos como já fica mostrado. *** Relação dos animais que passaram pelo Registro de Curitiba vindos de Rio Grande de São Pedro do Sul, de Bestas, Cavalos, Éguas, Gado e Burros, nos anos de 1769, 1770, 1771 1769 No ano de 1769 entraram do Rio Grande de São Pedro do Sul, pelo Registro de Curitiba cinco mil e seiscentos e dezessete Cavalos 5617 cavalos Dito ano entrou mil e nove centas e nove mulas 1909 Mulas [—] sessenta e sete éguas 67 Éguas [—] dois mil cento e quarenta e sete reses 2174 Reses [—] três burros 3 Burros 1770 [—] Dito ano entraram mais duas mil cento, e quarenta Bestas Dito ano entraram mais duas mil trezentas e trinta e sete Reses

5174 Cavalos 2140 Bestas 2337 Reses

1771 No ano de 1771 entraram na forma sobredita cinco mil quatro centos e quatro cavalos 5404 Cavalos Dito ano entraram mais três mil e setenta e quatro bestas 3074 Bestas Dito ano entraram mais duas mil quatrocentos e trinta e sete reses 2437 Reses Certidão José Bonifácio Ribas, Escrivão da Fazenda Real desta Cidade de São Paulo e Sua Capitania etc. Certifico que todos os animais que constam da Relação Supra são os mesmos que passaram nos sobreditos anos de 1769, 1770, 1771 pelo Registro de Curitiba, vindos do Rio Grande de São Pedro do Sul, segundo tudo consta dos Mapas Gerais de todos os sobreditos anos aos quais me reporto e ficam neste cartório em fé do que passo a presente Certidão em virtude de um escrito que tive do Escrivão da Juta da Fazenda Real desta Cidade, na qual me Certifica ter assim mandado o Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor D. Luís Antônio de Souza Botelho Mourão, Governador e Capitão General [—] e assinada nesta Cidade de [—] 1772 anos – José [—] zenda[—]”. (AESP – DIHCSP, 1946: 254-258).

Documento 7. “Carta Régia de 3 de Setembro de 1721” que determina a remessa de cavalos do Brasil para a África Dom João, por graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, daquem e dalem mar em África Senhor de Guiné etc. - Faço saber a vós, Governador e Capitão General da Capitania de Pernambuco que por ser conveniente a meu Serviço, e à boa defensa do Reino de Angola na guerra, que se faz nos sertões dele aos negros, nossos Inimigos, que a tropa de Cavalos que há na Cidade de São Paulo da Assunção esteja completa do número de Cavalos competentes. me pareceu ordenar-vos que não vá Navio algum desse porto para a dita Conquista, que não leve cavalos, e vos hei por muito recomendado a infalível observância desta minha Real Ordem, como matéria tão importante, e me dareis conta do que nisto obrardes. El-Rei, Nosso Senhor o mandou por João Teles da Silva, e Antônio Rodrigues da Costa, Conselheiros do seu Conselho Ultramarino, e se passou por duas vias. Dionísio Cardoso Pereira a fez em Lisboa Ocidental a 3 de Setembro de 1721. - O Secretário André Lopes de Lavre a fez escrever. - João Teles da Silva. - Antônio Rodrigues da Costa.”(Anais BN v. 28: 212 apud Goulart, 1961: 231).

Documento 8. Ofício de José Antônio Freire de Andrade, para Diogo de Mendonça sobre o transporte de cavalos para o Reino de Angola. Rio de Janeiro. 20 de abril de 1755. Farei executar o que S. Majestade é servido ordenar sobre a forma porque devem levar Cavalos nas embarcações que forem desta cidade para o Reino de Angola, para aonde até aqui tenho feito observar o que o dito Senhor tem mandado nas suas Reais ordens a este respeito, tanto assim, que todas as embarcações que têm ido para aquele porto levam dois Cavalos, e alguma que levou somente um, foi por me constar por exame que mandei fazer pelo Mestre da Ribeira, Patrão-mor não poder embarcar mais: O que participo a V. Exa. para o por na presença de S. Majestade. Deus Guarde Vossa Excelência muitos anos. Rio de Janeiro, 20 de abril de 1755. Ilmo Sr Diogo de Mendonça Corte Real - José Antônio Freire de Andrade. (AHUCA-RJ, docs. 18.276-18.277.

Documento 9. Portaria sobre as Tropas que hão de vir pelo caminho que se fez da Vila da Laguna para Curitiba. Por se me representar se não tem dado cumprimento a uma ordem que passou o Governador que foi desta Capitania [Antônio da Silva Caldeira Pimentel] em 29 de Fevereiro do corrente ano, sobre a boa ordem que era preciso observar-se na condução das cavalgaduras, e gados que entrarem das Campanhas do Rio Grande pelo novo Caminho da Serra para a vila de Curitiba, não se querendo observar a dita ordem em prejuízo notável da fazenda real, e dos particulares, a ser conveniente ao serviço de S. Majestade se dê inteiro cumprimento à dita ordem, e que Cristóvão Pereira entre em primeiro lugar com a sua Tropa, e depois se vão seguindo os demais como se determina na dita ordem e me achar empregado no Governo desta Capitania, Ordeno que se dê cumprimento à referida ordem, e que tudo o que for necessário para adiantamento do dito caminho se lhe dê toda ajuda, ao dito Cristóvão Pereira, a que se fará dar toda a Expedição o Capitão-mor da Vila da Laguna, e os mais oficiais a quem esta for apresentada. São Paulo 9 de Setembro de 1732. – O Conde de Sarzedas – (AESP-DIHCSP v. XXII, 1896: 7, apud Goulart, 1961: 227)

Documento 10. Cópia do extrato das tropas que no ano de [1]751 passaram pelo registro de Curitiba.

Tropeiros

cavalos

el

mulas

éguas vacas

direitos

M. de Moura Camargo

195

4

391$920

Domingos da Costa

101

20

211$600

Antonio Alves da Silva

114

Manuel Pinto Nunes

71

José Roiz da Silva

108

Antônio de Brito

228$000 12

147$760

1

218$500

73 os

86$000

O R. Manuel Luiz Verg.

228

19

503$500

José Pereira S. Thiago

32

154

449$000

Manuel de Gouveia

39

681

1:780$500

Ignacio Gomes

51

Jeronymo Ribeiro

211

Antonio de Almeida

97

eo

102$000 18

467$000 20

203$600

F Gonçalves Filgueira

200

72

Manuel Luiz da Fonseca

211

13

Agosto. Pereira da Silva

277

6

Simão Francisco Serra

179

358$000

José Gois e Siqueira

376

752$000

Francisco Roiz Jardim

56

112$000

Antonio de Souza Pereira

188

376$000

Luiz Francisco em 1a

36

O dito em 2a

230

460$000

Ambrosio Martins

45

90$000

João Affonso

37

74$000

José Vieira

33

66$000

o

580$000

6

12

760$260

40

598$760

246

687$000

Ant Teixeira Gomes

562

76

Bento Borges

157

179

José Caetano

173

374$800

Vicente Ferreira

62

124$000

Antonio Ferreira Silva

190

André Moreira

30

15

60$000

Manuel da Fonseca

65

15

137$200

1

100

1:290$000

90

805$660

1

382$660

Antonio Francisco

109

225$200

F....... de Freitas

53

106$000

Domingos Pacheco

37

110

74$000

Francisco Garcia

82

10

211$800

...... Gonçalves Vieira

124

5

252$800

Salvador Ribeiro

37

76$400

Pedro Vaz Pires

289

297$200

Manuol [sic] de Barretos

127

João Leal ..... na

441

João Luiz Castro

259

534$800

O Dor. Antônio Fernandes

124

248$000

Francisco Cardoso

12

200

524$000

João de Souza

12

58

169$000

Antonio Francisco [2a. vez]

247

493

30

1:740$900

Francisco Cardoso

84

14

20

212$600

João Alves

25

Jeronymo da Rocha

88

o

131

256$880

35

1:214$300

42$000

Frc de Albuquerque

18

18

TOTAL

6595

2380

(AN-DH v.II, 1928b: 139-140)

10

43

8

1:79$840

520

36$960

1040 19:280$400

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