O Conto Machadiano: Legados para a Narrativa Histórica

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O CONTO MACHADIANO: LEGADOS PARA A NARRATIVA HISTÓRICA

Leonam Lauro Nunes da Silva

Resumo: O presente trabalho é um despretensioso ensaio a respeito das contribuições do literato Machado de Assis para a narrativa histórica. O objetivo é estimular reflexões acerca das confluências entre Literatura e História, especialmente no âmbito metodológico. Palavras-Chaves: Literatura, História, Narrativa

Abstract:This work is an unpretentious essay about the literary contributions of Machado de Assis for the historical narrative. The aim is to stimulate reflections on the confluences between literature and history, especially in the methodological framework. Key Words: Literature, History, Narrative.

Ler os contos machadianos é um prazeroso exercício que deve ser estimulado mesmo em face das dificuldades iniciais, comuns às primeiras leituras. O jovem, quando apresentado a Machado de Assis, se depara com uma narrativa que não prima pela linearidade, o que não a torna fácil de acompanhar, se comparada, por exemplo, ao romance folhetinesco. Os escritos aqui analisados obedecem às características do gênero contista: concisão, rapidez e unidade dramática. O bruxo do Cosme Velho1, no entanto, extrapola as medidas ao conceber uma narrativa sofisticada, dotada de técnicas que exigem do leitor um amadurecimento psicológico que o permita compreender as tramas através dos seus personagens. Seus contos não seguem uma receita única. Trata-se de um “banquete” de recursos narrativos, que dotam as ações de um caráter trepidante, fazendo com que se desenrolem num crescente até atingirem o clímax. Via de regra, os receptores são remetidos ao cenário das histórias vividas. Os atores machadianos possuem personalidades complexas, como complexa é a alma humana. “Cada criatura humana 1

Bruxo do Cosme Velho é um epíteto consagrado a Machado de Assis. O termo ganhou força no meio literário quando Carlos Drummond de Andrade publicou o poema: "A um bruxo com Amor", no qual o poeta fez referência à casa (número 18) da rua Cosme Velho, situada no bairro de mesmo nome, no Rio de Janeiro, onde morou Machado de Assis. O poema toma a casa como ponto de partida, como um passaporte para a proximidade com Machado, e, a partir daí, faz um 'passeio' pela obra do autor, do geral ao particular, sem, para tanto, manifestar uma loa ao homenageado, mas uma admiração profunda e respeitosa ao "bruxo".

2 traz duas almas consigo: uma que olha de dentro pra fora, outra que olha de fora para dentro” (Esboço de uma nova teoria da alma humana). Os anseios, angústias, pensamentos, ações e reações dos personagens são compreensíveis à luz das experiências vivenciadas no meio social. A paisagem natural se confunde com a humana em Machado de Assis. Em que pese a última ser o foco de seus contos, a primeira também se faz presente, mesmo que implicitamente. As ruas do centro do Rio constituem-se em passarelas por onde desfilam vários de seus personagens, em enredos permeados pelos vícios e pela hipocrisia reinante na sociedade carioca. Passarelas de coloração acinzentada; cor correspondente ao ambiente em que viveu e trabalhou como funcionário público e por onde transitaram pessoas revelando traços sombrios, cinzas. Em contrapartida, a vegetação, a noite carioca e a presença do mar podem ser contempladas através das heroínas machadianas, que em diferentes situações, exalam o perfume das plantas, incorporam as trevas da noite ou refletem em seus olhos as verdes águas do mar. Em suma, a natureza se faz presente através da psicologia dos personagens e, mesmo, da “metáfora reveladora” contida no processo narrativo.

Como o silêncio acabasse de aterrar-me, abri uma das janelas, para escutar o som do vento, se ventasse. Não ventava. A noite ia tranqüila, as estrelas fulguravam, com a indiferença das pessoas que tiram o chapéu a um enterro que passa, e continuam a falar de outra coisa (ASSIS, Contos Escolhidos – O enfermeiro, 2004: 83).

Outro aspecto que salta aos olhos nos contos machadianos é a habilidade do autor em transitar no tempo, fazendo uso do flash-back, libertando-se das amarras cronológicas. Aparentemente de forma abrupta, ele “corta” a linearidade da narrativa, transportando o leitor ao passado para que situações sejam aclaradas. Machado de Assis faz isso de forma “natural”, e assim a trama segue o seu curso como as águas mansas de um rio correm para encontrar o mar. Mas, o “bruxo” é eclético e trabalha também com o relógio a seu favor. Não é preciso se prostrar em frente à televisão aguardando as aventuras de Jack Bauer, do seriado norte-americano “24 horas”. Com destreza, o fundador da Academia Brasileira de Letras delineia tramas extremamente densas, com personagens “ricos” a emitirem signos e idéias aos borbotões, num intervalo de apenas algumas horas. Mostra, assim, ao historiador que um “recorte” temporal curto, porém bem feito, não tolhe o potencial do enredo, gerando desdobramentos que, de acordo com

3 os objetivos pretendidos, são dignos de serem explorados. Uma boa história, muitas vezes emerge de águas turvas, bastando que se retire a sujeira de sua superfície. A percepção aguçada de Machado de Assis nos remete ao trabalho investigativo do historiador, sempre em busca de indícios, pistas, sinais. No conto intitulado “A causa secreta”, percebemos em dado momento uma descrição sobre o perfil do personagem “Garcia” que, na realidade, parece compatível com as características do próprio autor, reveladas à luz de sua escrita. Segue o trecho revelador:

Este moço possuía, em gérmen, a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo.

De forma alquímica, Machado de Assis confere à sua obra uma verossimilhança (efeito de realidade), que não é fruto senão, de experiências vividas e de um conhecimento vibrante da vida social. Sem dúvida, virtude só encontrada nos grandes narradores. Em meio à burocracia dos escritórios, desenvolveu uma capacidade “decodificadora” sui-geniris. Com certeza, lidou com gente de todo o tipo. Seu trabalho como funcionário público deve ter lhe rendido “material” farto para proceder suas análises psicológicas, ao mesmo tempo em que potencializou a sua veia irônica. Afinal, no meio em que laborava, nem tudo podia ser dito abertamente, às claras. E entender uma ironia requer conhecimento e sagacidade. Por isso, em “A teoria do medalhão” dá dicas de como se obter reconhecimento público, numa aula de marketing pessoal, recheada de idéias cínicas na conversa entre pai e filho. Uma sátira mordaz contra a mediocridade social e intelectual vigente. Os campos do público e do privado se entrelaçam de forma a forjarem os traços mentais dos indivíduos. Novamente, em “A causa secreta” vemos um profissional dedicado que ampara os doentes, cuidando-os com extremado zelo, ao mesmo tempo em que no âmbito familiar revela sua insanidade no trato com a esposa. O prazer, o deleite que sente com as dores alheias, o impeli no exercício da sua profissão. É como se a “atuação” perante o “grande público” não correspondesse à verdadeira essência do personagem. Quanto ao estilo, percebemos que Machado repudia o uso de metáforas vazias e escanteia a retórica, bem como os pormenores descritivos. Domina como poucos a

4 semântica das palavras, dotando-as de significados que enriquecem sobremaneira a narrativa. Concluímos essa breve reflexão, salientando que o historiador, ciente de seu lugar social e dominando a metodologia indicada para lidar com o manancial de fontes, pode e deve destinar atenção à forma com que pretende narrar a sua trama, objetivando cativar o leitor. Nesse ponto, revela-se salutar a interface com a literatura, pois dela advém uma série de “instrumentos” que permitem ao profissional da história estabelecer um diálogo mais fecundo não somente com seus pares, mas com todos aqueles que se interessam pela produção do conhecimento histórico. Dentro desse paradigma, a obra machadiana é fonte indispensável da qual devemos beber, tendo muito a ensinar àqueles que se dedicam ao exercício da narrativa, sejam eles escritores ficcionais ou praticantes da “operação historiográfica”.

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