O CONTO SIMBOLISTA NO BRASIL seguido de antologia comentada

June 4, 2017 | Autor: Marcelo J Fernandes | Categoria: Literary Criticism, Symbolism, Literary Theory, Brazilian Literature, Brazilian Novel
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O CONTO SIMBOLISTA NO BRASIL seguido de antologia comentada

Marcelo José Fonseca Fernandes

Rio de Janeiro junho de 2014

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O CONTO SIMBOLISTA NO BRASIL seguido de antologia comentada

Marcelo José Fonseca Fernandes

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira). Orientador: Prof. Dr. Sérgio Fuzeira Martagão Gesteira

Rio de Janeiro junho de 2014

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O conto simbolista no Brasil – seguido de antologia comentada Marcelo José Fonseca Fernandes Orientador: Professor Doutor Sérgio Fuzeira Martagão Gesteira Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira). Examinada por: _________________________________________________ Presidente, Prof. Dr. Sérgio Fuzeira Martagão Gesteira

_________________________________________________ Prof. Dr. Godofredo de Oliveira Neto _________________________________________________ Profa. Dra. Vera Lins _________________________________________________ Profa. Dra. Martha Alkimin _________________________________________________ Profa. Dra. Luciana de Paiva Vilhena Leite - UniRio

Rio de Janeiro junho de 2014

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FICHA CATALOGRÁFICA

Fernandes, Marcelo José Fonseca. O conto simbolista no Brasil – seguido de antologia comentada/ Marcelo José Fonseca Fernandes – Rio de Janeiro: UFRJ/ PPGLEV, 2014. xi, 306f.: il.; 30cm. Orientador: Sérgio Fuzeira Martagão Gesteira. Tese (doutorado) – UFRJ/Faculdade de Letras/ Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira), 2014. Referências Bibliográficas: f.176 1. Simbolismo. 2. Conto Simbolista. 3. Antologia de Contos Simbolistas. 4.Literatura Brasileira no período finissecular (sécs. XIX-XX). I. Gesteira, Sergio Fuzeira Martagão. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas. III. Título.

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RESUMO

O CONTO SIMBOLISTA NO BRASIL – seguido de antologia comentada

Marcelo José Fonseca Fernandes

Orientador: Sérgio Fuzeira Martagão Gesteira

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira), da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras.

A presente tese estuda a ocorrência e propõe uma antologia do conto simbolista no Brasil, levantando as causas de sua omissão nos manuais de Educação Básica e da pouca atenção pela crítica especializada. Ao examinarmos a produção finissecular em prosa curta, encontramos notáveis autores que estagnaram suas obras em primeira e única edição e que jamais tiveram seus contos reproduzidos no todo ou em parte, em qualquer seleta de Literatura Brasileira, como Nestor Victor, Lima Campos, Rocha Pombo e Alberto Rangel, além de Gonzaga Duque, Oscar Rosas, Virgílio Várzea, Medeiros e Albuquerque, Gastão Cruls, Xavier Marques e o quase desconhecido Galpi (Galdino Pinheiro).

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Assim, abordamos as críticas pouco receptivas do advento do Simbolismo e suas paráfrases na contemporaneidade, bem como a problemática da periodização literária que situa a estética de Cruz e Sousa entre as estreitas balizas de 1893-1902. Portanto, através das onze narrativas consignadas e organizadas sob forma de antologia comentada, pretende-se resgatar estes autores e trazer à luz narrativas acentuadamente simbolistas, caracterizadas pela forte andamento poético, estilo dúctil, descrições pictóricas e cromáticas, de ricos recursos estilísticos, e armadas sobre uma fabulação peculiar e notável.

Palavras-chave: Literatura Brasileira – Simbolismo – Conto

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Rio de Janeiro junho de 2014

RESUMEN

O CONTO SIMBOLISTA NO BRASIL – seguido de antologia comentada

Marcelo José Fonseca Fernandes

Orientador: Sérgio Fuzeira Martagão Gesteira

Resumen da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira), da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras.

La presente tesis estudia la ocurrencia y propone una antología del cuento simbolista en Brasil , inventariando las causas de su omisión en los manuales de la Educación Básica y acerca de la insuficiente atención por los críticos. Mediante el examen de la producción del fin del siglo XIX y comienzo del XX, en prosa corta , encontramos notables autores que tuvieron sus obras estancadas en la primera y única edición y jamás volvieron a tener sus cuentos reproducidos en su totalidad o en parte en

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cualquier coletánia de la Literatura Brasileña , como Nestor Victor , Lima Campos, Rocha Pombo y Alberto Rangel , además de los que antologizamos acá, como Gonzaga Duque, Oscar Rosas, Virgilio Várzea, Medeiros e Albuquerque, Gastão Cruls , Xavier Marques y el casi desconocido Galpi ( Galdino Pinheiro ). Por lo tanto, planteamos a la crítica poco receptiva

al surgimiento del

Simbolismo y sus paráfrasis contemporáneas , así como el problema de la periodización literaria que sitúa la estética Cruz e Sousa en los hitos estrechos de 1893-1902. A través de once relatos consignados y organizados en forma de antología comentada, intentase recuperar estos autores y traer a la luz relatos marcadamente simbolistas, que se caracterizan por una fuerte cadencia poética, estilo dúctil, descripciones pictóricas y cromáticas, ricas en recursos estilísticos, y armados en una fabulación peculiar y notable.

Palabras-clave: Literatura Brasileña – Simbolismo - Cuento

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Rio de Janeiro junho de 2014

DEDICATÓRIA

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Aos meus amados filhos Pablo Gabriel e Leonardo – porque tudo que faço é por eles.

HOMENAGEM

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Ao meu caríssimo orientador, Prof. Dr. Sérgio F. M. Gesteira mescla de probidade, humanismo, erudição e humildade segunda geração a me salvar, o meu reconhecimento e homenagem .

AGRADECIMENTOS A todos os santos, entidades e espíritos de luz que, solicitados ininterruptamente, constituíram uma falange mística que me alavancou nas horas mais duras, nas dúvidas, receios e angústias, renovando a fé em mim, na minha profissão e em todos eles – sobretudo n’O Pai e n’O Filho. À Professora Doutora Angélica Soares – in memoriam - , que tanto abrilhantou o nosso Exame de Qualificação, com observações argutas e minuciosas, contribuindo enormemente para a consecução desse trabalho.

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Aos professores doutores Maria Lucia Guimarães de Faria e Eduardo Coelho, pelo inestimável auxílio em obter autorizações que franqueassem a pesquisa em volumes raros e esgotados. À Chefe da Biblioteca da Fundação Casa de Ruy Barbosa, senhora Dilza Bastos, e à Bibliotecária responsável pelo setor de consultas, Monique da Silva Cabral, pela extrema cortesia, atenção, competência e profissionalismo, ao permitir o acesso ao precioso acervo da instituição. À senhora Maria das Graças Soares, pela inestimável colaboração em transcrever e digitalizar os contos raros e esgotados que coligimos, com raro profissionalismo, competência e imensa boa vontade. Ao desembargador Arnoldo Camanho de Assis, meu irmão, que ao me presentear com um mini-netbook, sem sabê-lo, fez com que eu pudesse escrever em qualquer parte. À professora Claudia Varella Guedes, pelo incentivo contínuo, pelo carinho, pelo coração.

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“Poderia citar os autores, bastante fáceis de comentar, que repetem e repetem ter sido o Simbolismo um movimento efêmero e sem repercussão. Aqui está a prova em contrário!” (Andrade Muricy, In: Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, Introd.)

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SUMÁRIO

Introito ................................................................................................... 1. Introdução .............................................................................................

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2. Os pontos de partida ................................................................................. 08 3. O apelo à pesquisa..................................................................................... 10 4. Os manuais do Ensino Médio ................................................................... 12 5. Algumas questões teóricas ........................................................................ 32 6. A problemática da periodização literária ..................................................... 39 7. Elenco de autores antologizados – justificativas ......................................... 49 7.1 Nestor Victor ..................................................................................... 72 7.2 Lima Campos ....................................................................................

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7.3 Rocha Pombo ....................................................................................

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7.4 Virgílio Várzea ................................................................................... 96 7.5 Oscar Rosas ........................................................................................ 104 7.6 Gonzaga Duque .................................................................................. 108 7.7 Medeiros e Albuquerque ...................................................................... 118 7.8 Gastão Cruls ....................................................................................... 123 7.9 Alberto Rangel .................................................................................... 129 7.10 Galpi (Galdino Pinheiro) .................................................................... 155 7.11 Xavier Marques ................................................................................. 165

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8. Considerações finais ................................................................................... 173 9. Bibliografia ................................................................................................ 176 10. Anexos .................................................................................................... 183 1. “Gavita”, Nestor Victor ...................................................................

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2.”A Victoria”, Nestor Victor ................................................................. 13 3. “O lilás pisado de suas olheiras...” Lima Campos ................................ 20 4. “Era alta, da linha plástica...” Lima Campos ...................................... 22 5. “A Tia Martinha”, Lima Campos .....................................................

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6. “Gato Negro”, Rocha Pombo............................................................

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7. “Sarica”, Rocha Pombo ...................................................................

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8. “Nerah”, Virgílio Várzea .................................................................

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9. “Tísico”, Oscar Rosas ................................................................................. 10. “Idílio Roxo”, Gonzaga Duque ........................................................ 46 11. “Palestra a horas mortas”, Medeiros e Albuquerque .........................

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12. “A noiva de Oscar Wilde”, Gastão Cruls .......................................... 66 13. “Inferno Verde”, Alberto Rangel ..................................................... 79 14. “O sangue do vigário”, Galpi ........................................................... 98 15. “A noiva do golfinho”, Xavier Marques ........................................... 104

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INTROITO

Não há melhor relato possível, na vida, do que a ficção. Talvez a realidade não fosse capaz de produzir personagens com a complexidade de Ulisses, Capitão Ahab, Bento Santiago, Raskólnikov, Hamlet, Riobaldo ou Medeia, ou mesmo momentos descritivos tais quais o desfile de Aquiles com os despojos de Heitor, em A Odisseia; os círculos infernais percorridos por Dante em A Divina Comédia, a brutal zoomorfização de Gregor Samsa, em A metamorfose; o desespero de Édipo antes de vazar os próprios olhos, em Édipo-Rei; os moinhos de vento de D.Quixote, as escalas feitas em paragens inóspitas por Gulliver ou as impressões de Jerônimo, ao ver Rita Baiana dançar na roda, em O cortiço. Por tudo, a literatura revela-se mágica, ilimitada, além de exceder, invariavelmente a seus propósitos, e poder configurar-se e emular a própria história da civilização, ou as desventuras de qualquer submundo ou mesmo deleitar-se com as delícias de uma viagem sem os transtornos alfandegários. Ao examinarmos essas narrativas, debruçamo-nos sobre o passado e percebemos que este tempo cunhou os valores humanos, rascunhando-os sobre amores, ódios, desejos e medos. Quando nos aproximamos desses sentimentos primais, nos apossamos, ainda que por um átimo, do real poder do pretérito. Quando focamos nosso objeto de estudo em outro tempo, nos restos de ontem, procuramos algum sentido na vida – que não é digna de ser vivida, se não houver busca, disse Sócrates. Assim, perscrutar esses caminhos, através da ficção – resgatar autores, reavivar personagens e histórias do passado e justificá-los dentro da trajetória de nossa literatura recente

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é como viajar a um outro país, estranho,

e reconduzi-los,

repatriá-los ao tempo em curso, trazê-los à tona, à vida, sem apartá-los, contudo, da dimensão ficcional, que, paradoxalmente, os torna reais.

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1. INTRODUÇÃO

Quando iniciamos o projeto de dissertação de mestrado, apresentado e aprovado em dezembro de 1999, sob o título de “Quase-macabro: o fantástico nos contos de Machado de Assis”, já pensávamos em focar nossa atenção sobre a produção finissecular – aqui, frise-se, o adjetivo reveste-se de uma especial significação, uma vez que não caberia a outro fin de siècle que não fosse o XIX. Àquela época, entretanto, não imaginávamos o alcance que o trabalho despretensioso pudesse vir a ter; contamos, posteriormente com um bom contingente de citações e pedidos de cópias,

ou

mesmo

fontes

originais,

como

referências.

Já quando da consecução do projeto primário do doutorado, ocorreu-nos a permanência no mesmo período; ali, imaginamos, há um manancial inesgotável de temas ainda por explorar – embora não o pareça ao exame superficial – e é, no nosso entendimento, uma confluência de idéias sem igual na história do Ocidente e, talvez por isso, o nascedouro de toda a modernidade que irromperia no século seguinte. Assim, ao seguirmos perscrutando aquelas décadas escassas, cotejando anotações e observações, percebemos que é exíguo ou praticamente inexistente um estudo ou levantamento sobre a ficção simbolista no Brasil. Estética que forjou um autor altíssimo como Cruz e Sousa, poeta, sobretudo; no que diz respeito à prosa, todavia, há omissões que nos fizeram retroceder, apurar as lentes das lupas e rastrear autores e obras. A condição de professor de Ensino Médio desde 1989 – portanto, há cerca de 30 anos – permitiu-nos o contato com diversos manuais e compêndios de literatura para esse segmento, com os mais variados tipos de informação, viés e aprofundamento, observados, ali, na lida diária com o conteúdo programático de Literatura Brasileira preconizado pelas diretrizes dos PCN’S – Parâmetros Curriculares Nacionais.

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Dentro de uma considerável gama de subjetivismo do autor de cada compêndio, vimos ora uma atenção maior a um determinado poeta; ora a ausência de uma informação importante; às vezes um acréscimo de um escritor esquecido; outras vezes uma superficialização de determinada estética, ou inversamente, um adensamento de determinada vertente literária, por livre arbítrio do autor. Em todos esses anos e em todas essas referências, nunca lemos uma linha sequer sobre a ficção simbolista no Brasil, em particular, a prosa curta, razão central e leit motiv para que se aventasse a hipótese de estruturarmos, então, uma antologia de contos simbolistas brasileiros, precedida, com efeito, de um estudo introdutório em que se apurassem algumas especulações imediatas como: que críticos dariam suporte à tese; quais se oporiam, de que forma e por quê; que autores, naturalmente, enfeixariam traços que pudessem admitir essa designação e, ainda, que elementos distintivos/significativos poderíamos sublinhar na análise dessas narrativas. Apenas à guisa de ilustração, é usual que encontremos, pelo menos nos seis principais manuais de Literatura Brasileira adotados no Ensino Médio – William Cochar Cereja; José de Nicola; Carlos Emílio Faraco; Samira Youssef Campedelli; Maria Luiza Abaurre e Douglas Tufano – a referência a Sousândrade, com farta informação, exercícios e reflexões, classificando-o como “romântico da 3ª geração”, posto ao lado de Castro Alves, apesar da discutível e pouco didática “enturmação” de o autor de “O Guesa Errante”, a despeito de seu inegável valor. É ainda pouco defensável a inclusão de Junqueira Freire, para continuarmos no Romantismo, ao lado de Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu, embora muitíssimo menos abordado em estudos avançados, e detentor de uma obra de pequeno vulto, sobretudo se comparado aos colegas. Citamos, ainda, a lamentável pouca frequência dos aventureiros franceses Jean de Léry e André de Thevet, um pastor calvinista, o outro frade franciscano, autores, respectivamente, de História de uma viagem feita na Terra do Brasil e As singularidades da França Antártica, onde narram e descrevem a vida no Rio de Janeiro durante a ocupação comandada por Villegaignon, entre 1555 – 1560, relatos, que, como o do holandês Hans Staden autor de suas desventuras no livro História Verdadeira e Descrição de uma Terra de Selvagens, Nus e Cruéis Comedores de Seres Humanos, Situada no Novo Mundo

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da América, Desconhecida antes e depois de Jesus Cristo nas Terras de Hessen até os Dois Últimos Anos, Visto que Hans Staden, de Homberg, em Hessen, a Conheceu por Experiência Própria e agora a Traz a Público com essa Impressão – encontram grande ressonância e interesse no jovem estudante, mais receptivo a essas leituras do que aos autos catequéticos do mesmo Quinhentismo dos viajantes. Mesmo já no século passado, é inconcebível constatar a absoluta ignorância e omissão aos nomes de Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Otto Lara Resende, mineiros, e de Mario Quintana, gaúcho, na “geração de 45”. Via de regra, representa-se por Guimarães Rosa e Clarice Lispector na prosa, e por João Cabral de Melo Neto, na poesia. Somente. Já praticamente extensivos os exemplos, ocorre-nos, ainda, o “salto” geracional que se pratica nesses mesmos manuais, onde o Realismo dá lugar ao Pré-Modernismo constituído de cinco autores – Graça Aranha, Lima Barreto, Monteiro Lobato, Euclides da Cunha e Augusto dos Anjos -, importantes, ilustrativos, que dão “passagem”, quase imediata, à primeira geração de 22. Ainda que saibamos, obviamente, que certos recortes e decupagens são de caráter e efeito didático, omite-se uma lista infinda de autores “sem rótulo”, encimados por ninguém menos que João do Rio. Acrescentemos ainda que o referido período finissecular, em nossas letras, talvez signifique o único e isolado momento em que estéticas antagônicas - como o Parnasianismo e o Simbolismo - coexistiram, se superpuseram, sem o habitual esmaecimento de uma e o soerguimento de outra, pelo menos até o triunfo artificial dos parnasianos, que, como escolhidos do cânon predominante, acabaram por, notoriamente, alhear os simbolistas – tanto os de primeira hora quanto os mais tardios - que só foram retomados, revistos e resgatados já na modernidade do século XX. Somente na transição do Barroco para o Neoclassicismo houve semelhante “coexistência”, entretanto, apenas na arquitetura, na pintura e na estatuária sacra, quando, no apogeu árcade, sob o influxo do Iluminismo e durante a Conjuração Mineira, o Barroco literário estava extinto – desaparecidos, há muito os expoentes

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Gregório de Matos e Pe. Antonio Vieira – porém, vívido e categórico nas igrejas e sobrados de Ouro Preto, Sabará, Mariana, Salvador e Rio de Janeiro, entre outras cidades. Portanto, examinar a prosa curta do Simbolismo é, inevitavelmente, “exumar” autores e narrativas que não obtiveram espaço sequer em seu próprio contexto, seja por que, como diz Massaud Moisés, “o Simbolismo, movimento poético por excelência, aborrecia a prosa”, ou por que, desafortunadamente, ombrearam, à época, com Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Raul Pompéia, entre outros, e assim, acabaram por serem relegados a um segundo plano, mantidos à sombra, apesar de obras de valor apurado e legítimas representantes do período que ilustram.

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2. OS PONTOS DE PARTIDA Nosso trabalho parte de quatro pontos, que convergem ao nosso propósito, a saber:



A ausência de qualquer índice ou sequer uma referência à ocorrência da prosa curta – sobretudo o conto – nos principais manuais de Literatura Brasileira adotados na Educação Básica e chancelados pelos PCNs - Parâmetros Curriculares Nacionais e pelo PNLD – Programa Nacional do Livro Didático;



Esta omissão talvez seja resultante de uma categórica rejeição à produção em prosa por parte dos autores de manuais e compêndios de Literatura Brasileira, para o Ensino Superior; parece-nos, em princípio, tratar-se de uma generalização que subestima a ocorrência dos contos propriamente ditos, sem distingui-los dos poemas em prosa, abundantes durante o Simbolismo – tal questão aponta, também, para uma discussão do estabelecimento do gênero;



Os autores de tais compêndios, ao fazer valer o (ab)uso das paráfrases de outros tantos críticos para elencar alguns poetas e tão raros contistas – ainda assim com ressalvas – acabam reiterando conceitos já estabelecidos sobre autores que, sem a revelação e o estabelecimento do texto, não vêm à tona. Assim, faz-se mister antologizar essas narrativas, analisá-las e enfim, trazê-las a público.

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Por fim, com objetivo didático, os manuais consagram as balizas do Simbolismo entre os anos de 1893 – data da publicação de Missal e Broquéis, de Cruz e Sousa – e 1902 – advento de Os sertões, de Euclides da Cunha. Embora, indubitavelmente, tal intervalo assinale o apogeu da estética simbolista, poética, por excelência, esses nove anos de realização nos parecem exíguos para o vulto da escola literária, que sobreviveu ainda com forte influência sobre a prosa curta, assomando-se até meados do segundo decênio do século XX, em epígonos importantes de nossas letras, que amargaram o ostracismo por estarem alocados entre o tropel do Parnasianismo e as vanguardas modernistas. É importante, assim, levantarmos as diversas leituras e propostas de periodização referentes aos arredores do fim do século XIX e início do século XX.

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3. O APELO À PESQUISA Um apelo tácito nos surgiu, apontando claramente um caminho a percorrer e pesquisar, quando nos deparamos com esse fragmento de Afrânio Coutinho: O idealismo dos simbolistas não os predispunha para a criação ficcionista. Esta tomou, por isso, também entre nós, figura e expressão inusitadas, e, com uma única exceção, não atingiu à generalidade dos leitores do gênero. Não é, contudo, desprezível a produção nesse terreno, e o reliquat existente não merece continuar esquecido ou deliberadamente omitido, como ocorre até em obras especializadas. A história do romance no Brasil continuará lacunosa e empobrecida enquanto não for estudada e situada devidamente a obra de ficção dos simbolistas. (grifo nosso)

A partir de então, o que examinamos em inúmeras obras de referência, manuais e compêndios foi a ocorrência de algumas enumerações de autores, assinalando obras e dispersos, em pequeno número. Ainda assim, verificamos dentre esses volumes, muitas das vezes, notas pouco elogiosas ou de nítido teor pejorativo, o que julgamos, sob o ponto de vista crítico, reprovável. Há que se louvar, entretanto, as óbvias e inevitáveis citações dos monumentais registros em Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, de Andrade Muricy e Decadismo e Simbolismo no Brasil, de Cassiana Lacerda Carollo, inesgotáveis fontes para qualquer estudo que venha a abordar a referida estética, ainda que, predominante e naturalmente, se incline para a poesia. Um outro aspecto que nos norteou para a organização de uma antologia de contos simbolistas precedida de um estudo crítico introdutório foi a percepção de que, nesses compêndios, o usual é apenas a citação nominal de um volume de contos ou

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mesmo a discriminação de uma ou outra narrativa; em casos mais raros, há a citação de uma passagem da obra, para ilustração de determinada característica relevante; não há a publicação sequer de um fragmento, tampouco uma breve análise. Com efeito, ao elencarmos uma gama de autores e trazermos à luz suas narrativas, transcritas integralmente de suas fontes originais, acreditamos poder, assim, estar contribuindo para outros estudos que também partam de origens semelhantes. Sob o ponto de vista da pesquisa, é quase inadmissível imaginar que não haja notícia de um exemplar sequer, disponível, de “Sala Vazia” de Gustavo Santiago (1872- ?), o ‘mosqueteiro do Simbolismo, polemista, cronista de prestígio de Claro-Escuro, poeta decadente de Cavaleiro do Luar (1898, publicado em 1901), que deixou alguns dos melhores contos do Simbolismo, comparados pelo crítico Elísio de Carvalho aos de João Barreira.’” Ou ainda, que não tenhamos digitalizado ou se tenha tornado acessível o seminal volume de contos Signos, de Nestor Victor - um dos mais importantes representantes da estética simbolista, seja como crítico, seja como poeta ou contista, além de dileto amigo de Cruz e Sousa – de onde assoma a narrativa “Sapo”, com cerca de 80 páginas. Após incessantes e infrutíferas buscas, até mesmo no setor de Obras Raras da Biblioteca Central da Universidade Federal de Santa Catarina, in loco, obtivemos a informação de que só havia um volume conhecido e disponível na Fundação Casa de Rui Barbosa. Urge que sejam republicados e passíveis de serem (re)lidos, pois.

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4. OS MANUAIS DO ENSINO MÉDIO Já apontávamos, no escopo inicial do trabalho, a problemática dos livros didáticos para a Educação Básica – notadamente do Ensino Médio -, para onde migram, naturalmente, todas as informações e pesquisas discutidas no Ensino Superior, guardadas as devidas adequações de nível e teor. Embora pareça um problema menor, entendemos que, não somente no que diz respeito ao foco de nossa tese – a prosa simbolista no Brasil –, mas no ensino da Literatura Brasileira como um todo, há inconsistências notórias, e de certa forma, uma repetição de padrões que parece ser um padrão, percebido nos principais manuais adotados no Brasil, inclusive aqueles abonados pelo PNLD – Programa Nacional do Livro Didático, do Ministério da Educação. Com prática docente há vinte e seis anos no Ensino Médio e Superior, no Rio de Janeiro, pudemos adotar diversos títulos, como livros-orientadores da condução dos programas de Literaturas de Língua Portuguesa, verificando, ano a ano, uma vasta casuística, que amealhamos durante esse período. Há várias inconsistências quanto à escolha ou à “enturmação” de alguns poetas e romancistas em determinadas escolas estéticas, bem como, muitas vezes, observa-se uma falta de critério ou uniformidade na superficialização ou aprofundamento em alguns temas, além da omissão de alguns nomes ou ocorrências. É exatamente quanto à omissão de nomes e obras na produção finissecular (século XIX) em que pretendemos nos ater, tentar aventar hipóteses e suscitar propostas. Para abordarmos essas questões, usaremos como corpus os livros mais adotados naquele segmento, que são: Português: Linguagens, de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães (2005, SP, Atual Editora, vol. único e edição em três

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volumes); Literatura Brasileira – das origens aos nossos dias, de José de Nicola ( 2011, SP, Ed. Scipione); Literaturas Brasileira e Portuguesa – Teoria e Texto, de Samira Yousseff Campedelli e Jésus Barbosa Souza ( 2003, SP, Editora Saraiva); Literatura Brasileira – Tempos, Leitores e Leituras, de Maria Luiza M. Abaurre e Marcela Pontara (2005, SP, Ed Moderna); Literatura Brasileira, de Carlos Emilio Faraco e Francisco Marto Moura (1998, SP, Ed. Ática); Estudos de Língua e Literatura, de Douglas Tufano (1991, SP, Ed. Moderna); e a antigo e muito utilizada anteriormente Antologia da Literatura Brasileira – textos comentados, de A. Medina Rodrigues, Dácio A. de Castro e Ivan P. Teixeira (1979, SP, Marco Editorial). Antes de nos debruçarmos sobre esses volumes que fazem parte do cotidiano de milhões de alunos brasileiros, cumpre lembrarmos que o boom dos livros didáticos muito bem ilustrados, pedagogicamente estruturados de forma atraente e parte de uma estratégia agressiva de marketing editorial é, de certa maneira, um fenômeno recente, datando do inicio dos anos 80 do século passado. Antes disso, lembramos que pontificou por quase um século o notável Antologia Nacional ou Colleção de Excerptos dos Principaes Escriptores da Língua Portuguesa, de Carlos de Laet e Fausto Barreto, cuja 1ª edição é de 1895 e a última, 43ª, de 1969, já às vésperas das reformas de 1971, quando a disciplina Língua Portuguesa passa a ser substituída por “Comunicação e Expressão”, com textos de diversos níveis de linguagem, tornando obsoleta a gramática vernácula de orientação predominantemente lusitana. Acresça-se a esse fato, na ocasião, o crescente mercado dos cursos pré-vestibulares que se apoiavam em apostilas próprias, mais funcionais, objetivas e adequadas à contemporaneidade. Na virada dos anos 70-80, o mercado editorial voltou-se incisivamente para os livros didáticos, encontrando neles um inesgotável filão, e, desde então, aprimora edições, incorporando temas e questão dos exames nacionais como ENEM, SAEB e SAERJ, por exemplo.

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Entretanto, o objeto de nosso estudo é a inconsistência de alguns temas e fatos literários e, sobretudo, a reincidência estanque de alguns autores e a ausência de referência à prosa curta de acento simbolista, seus autores e contextos. O primeiro livro que nos propomos examinar é o importante Antologia da Literatura Brasileira – textos comentados, de A. Medina Rodrigues, Dácio A. de Castro e Ivan P. Teixeira (1979, SP, Marco Editorial); mesmo não tendo sido largamente difundido, logrou grande êxito no final dos anos 70 e início da década seguinte, junto aos docentes de Ensino Médio, notadamente, nas escolas privadas do eixo Rio-SP. No capítulo VIII, que trata do Simbolismo, encontramos algumas pertinentes observações, tais como, a princípio, a de que O termo Simbolismo é convencionalmente aplicado para designar o último movimento do século XIX e, de certa forma, o primeiro do século XX. De todas as escolas do século XIX, o Simbolismo é a que mais relações possui com o Modernismo. De fato, e difícil encontrar um poeta da primeira fase do Modernismo que não tenha começado partir das sugestões dos simbolistas. (pág. 209, grifos nossos)

Tal pertinente afirmação nem sempre encontra eco nos demais compêndios para este segmento da Educação Básica. O usual é encontrarmos o Simbolismo balizado e contido entre o advento de Missal e Broquéis (1893) e com final na virada do século. O livro cita como autores mais representativos Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens, além de citar, rara e merecidamente, o baiano Pedro Kilkerry, “Mallarmé no Brasil”, segundo os autores. Há uma interessante biografia de Cruz e Sousa, com dados importantes, como a reverência que lhe faz Roger Bastide, e ainda algumas notas dignas de registro: a classificação de “neo-romântico simbolista”, uma vez que “trata-se, portanto, de um poeta expressivo e não de um poeta tão construtivista quanto alguns simbolistas franceses” (1979, pág. 214); e correções a sua biografia, como o fato de que perdera seus filhos cedo, e que compunha “Acrobata da Dor” após o casamento. Cruz e Sousa não perdeu seus filhos em vida, ou seja, todos morreram após a sua morte; e o referido poema foi composto e publicado antes do altíssimo poeta contrair núpcias.

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À continuação, o manual traz quatro poemas de Cruz e Sousa – “Antífona”, “Flores da Lua”, “Esquecimento” e “Pressago” – com notas e glossário minuciosos, para exercícios dissertativos de análise e compreensão dos textos. O mesmo se dá com Alphonsus de Guimaraens (“Ismália”, “A Cabeça do corvo” e “Ossea Mea”) e Pedro Kilkerry, com o extenso “Harpa esquisita”, além de uma breve biografia. Nota-se que não há qualquer referência à prosa simbolista. Em “Pré-modernismo”, capítulo seguinte, os autores sustentam que

A Belle Époque brasileira (fins do séc. XIX e início do XX apresenta, na lliteratura, um entrecruzar de várias correntes estéticas. Enquanto de um lado registra a lenta agonia da proposta realista-naturalista-parnasiana, do outro percbe-se a afirmação da poesia simbolista e de uma prosa de ficção que, ligada a uma tradição realista, vai revelar, com profundo senso crítico, as tensões da sociedade brasileira (...) (1979, p. 239)

Talvez se fizesse necessário um melhor balizamento do período a que os autores se referem; no entanto, não nos parece resistir a uma maior análise essa proposição. O Parnasianismo, eleito pelas elites, tornou-se a literatura oficial e dominante, diminuindo os espaços para os simbolistas, ainda que hibridizados, alguns, com os “helenos” do Parnaso. Quanto à ficção ligada à tradição realista, parece-nos que se referem à linha iniciada por Machado, passando por Lima Barreto, Mario de Andrade e Graciliano Ramos. Os autores a serem abordados, com os mesmos critérios do capítulo anterior são os “eleitos” Augusto dos Anjos, Euclides da Cunha, Lima Barreto, Monteiro Lobato e Graça Aranha.

Reparemos que esse notável quinteto será intocável em todos os

manuais para o Ensino Médio. E nada a respeito de qualquer ocorrência isolada de prosa simbolista. Durante muitos anos esteve hegemônico, nas salas dos colégios, o manual Estudos de Língua e Literatura, em três volumes, do professor Douglas Tufano, abarcando gramática e literaturas de língua portuguesa. No volume 2, capítulo 19, da 4ª edição, reformulada, de 1991, o autor aborda o Simbolismo, de forma concisa, feição que permeia, aliás, todos os volumes. Após introduzir e caraterizar o estilo, Tufano

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aponta o início do Simbolismo na França, com As flores do mal (1857), de Charles Baudelaire (sic). Enfoca, ainda sinteticamente, o movimento em Portugal, elencando a tríade Camilo Pessanha, Eugénio de Castro e António Nobre, antes de debruçar-se sobre a escola no Brasil. Propõe, de forma interessante, questionamentos sobre o esmaecimento do Simbolismo no Brasil, e suscita a hipótese – mais em voga – de que o Parnasianismo fora o estilo das camadas dirigentes, adotado e acolhido pela ABL e, restrito a poucos autores, em círculos pequenos, não pôde exercer a libertação da linguagem poética, nem abrir caminho para experimentações mais ousadas, o que coube somente ao Modernismo, após a Semana de 22, ao combater frontalmente o Parnasianismo. Cita, com grande propriedade, Adolfo Caminha – crítico e romancista naturalista, autor dos clássicos e polêmicos A Normalista e O Bom-Crioulo – que, em 1893, resistia ao talento inegável e à ameaça representada por Cruz e Sousa: Se me perguntassem, porém, qual o artista mais bem-dotado entre os que formam a nova geração brasileira – pergunta indiscreta e ociosa – eu indicaria o autor dos Broqueis, o menosprezado e excêntrico aquarelista do Missal, muito embora sobre mim caísse a cólera olímpica do Parnaso inteiro.

Cita ainda, além de Cruz e Sousa, Alphonsus de Guimaraens e Pedro Kilkerry, em sintonia com o livro de Medina et al., já mencionado, os poetas Dario Veloso e Emiliano Perneta, apenas listados. Cabe ainda aos primeiros poetas mencionados pequenas análises textuais e poemas para exercícios dissertativos. De Cruz e Sousa, “Violões que choram” e o poema em prosa “Região azul”; de Alphonsus, “Ismália” e “Serenada”. Uma nota curiosa é que Tufano desloca Augusto dos Anjos, propriamente, para um “lugar nenhum”, dada a dificuldade em enquadrá-lo nas “gavetas das escolas estéticas”. É digno de registro, pois, nitidamente, não o alinha ao Simbolismo, embora lhe reconheça índices acentuados, nem o enturma no período sincrético. Lamenta-se, apenas, o exíguo espaço de duas páginas dedicadas ao singular autor de Eu (1912).

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Quanto ao Pré-Modernismo, capítulo 20 do referido volume, Tufano situa muito propriamente o fato de tal rótulo não significar um movimento ou um estilo, mas uma designação do lapso de tempo da virada do século XIX e o advento da Semana de Arte Moderna, em 1922. Entretanto, a nosso ver, peca o autor em afirmar que nesse tempo “a literatura brasileira, de modo geral, não apresentava ainda sinais de renovação. Na poesia, repetia-se a gasta linguagem parnasiana, enquanto na prosa reproduziam-se os lugares comuns do Realismo e até do Romantismo” (1991, p. 215). A indiferença da crítica à diminuta prosa simbolista é que propicia juízos dessa ordem, ao deixar à margem produções significativas de escritores ditos “menores”. Elenca, ainda, no capítulo, acompanhados de seleta e excertos para exercícios, os mesmos Lima Barreto, Euclides da Cunha, Monteiro Lobato e Graça Aranha, sem qualquer referência aos prosadores simbolistas. O professor José de Nicola, autor do largamente adotado Literatura Brasileira – das origens aos nossos dias, Ed. Scipione, SP, 2011, já na 18ª edição, aborda o Simbolismo com o introito “as artes plásticas na virada do século”, e o faz com a propriedade de associá-lo ao Impressionismo, com reproduções comentadas de Monet, Van Gogh, Moreau, e ainda, com fotos de esculturas de Rodin. Situa o momento estético contextualizando concisa e precisamente, sugerindo também leituras e filmes alusivos ao referido período, de modo a ilustrar melhor e despertar o estudante para o tema. Trazendo o tema para o Brasil, Nicola demarca as balizas tradicionais e faz um comentário simples, mas de grande relevo, não usual nos compêndios congêneres: O início do Simbolismo não pode, no entanto, ser identificado com o término da escola antecedente, o Realismo. No fim do século XIX e início do século XX três tendências caminhavam paralelamente: o Realismo e suas manifestações (romance realista, romance naturalista e poesia parnasiana); o Simbolismo, situado à margem da literatura acadêmica da época; e o Pré-Modernismo, com o aparecimento de alguns autores preocupados em denunciar a realidade brasileira, como Euclides da Cunha, Lima Barreto e Monteiro Lobato, entre outros. (2011, p. 347, grifos nossos)

É importante que sejam sublinhadas essas noções de estéticas que caminhavam paralelamente, sem superposições, além da situação marginal do Simbolismo, que explica, em parte, o ostracismo também de sua prosa escassa, mas signnificativa, e o

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“entre outros” – que sugere, obviamente, a existência de um quantitativo não citado após os autores citados, mormente os mesmos Lima Barreto e Euclides da Cunha. No Simbolismo, propriamente, o autor cita Cruz e Sousa, com comentários, análises e biografia, compondo exercícios dissertativos com os poemas “Música da morte”; “Acrobata da dor”; “Primeira comunhão”; “Antífona” e “O assinalado”, todos na íntegra, com glossários e alentadas informações. De Alphonsus de Guimaraens, além de breve biografia, traz exercícios e comentários mais breves, acerca dos poemas “Ismália”, “A catedral” e o soneto sem título, reconhecido pelo primeiro verso, “Hão de chorar por ela os cinamomos”. Não há citação de outros poetas, à diferença dos demais manuais já referidos, tampouco qualquer menção à prosa simbolista. No capítulo seguinte, de número 22, o autor inova e sem denominar diretamente de “Pré-Modernismo”, dá à seção o título “O Brasil antes da Semana de Arte Moderna: a transição entre o passado e o moderno”, onde, de forma muito abrangente e enriquecedora, tece um farto painel do contexto do país à época, através das numerosas insurreições, o conturbado cenário da República Velha e a importância das revistas e periódicos que, embora efêmeros, funcionaram como trincheiras que abrigavam as novas idéias de novos poetas, escritores, críticos e desenhistas que já despontavam. Ressalte-se, ainda, a tímida inclusão de Augusto dos Anjos no grupo de autores estudados, além de Euclides, Lobato e Lima Barreto – todos com fartos excertos e atividades de análise -, e a exclusão de Graça Aranha. Não há, igualmente, qualquer menção à prosa simbolista. O tradicional manual para o Ensino Médio Literatura Brasileira, de Carlos Emilio Faraco e Francisco Marto Moura, Ed. Ática, SP, 9ª ed., conhecidos como “Faraco & Moura”, também autores de gramáticas didáticas para o mesmo segmento, é conciso e objetivo, embora suscite alguns aspectos que mereçam significativo registro. O capítulo 13 refere-se ao Simbolismo, em geral, e já propõe uma atividade de interpretação acerca do poema “Cristais”, de Cruz e Sousa. Depois, de forma resumida, em tópicos, contextualiza o panorama sócio-político na Europa e no Brasil. É,

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entretanto, no segmento referente ao “estilo” que há um diferecial notável, em relação aos demais manuais para o Ensino Médio. Os autores destacam impropriamente como obra inaugural da estética na França As flores do mal, de Baudelaire e, propriamente, o Brasil, para fins didáticos, a dupla Missal e Broqueis, de Cruz e Sousa, ambas em 1893. Nesse mesmo tópico, há a única referência à prosa simbolista dentre todos os volumes examinados aqui: Em muitos aspectos, os simbolistas retomaram valores do Romantismo, mas de uma forma mais radical, pricipalmente no que diz respeito à religiosidade e ao misticismo (disposição para crer no sobrenatural). Por outro lado, nota-se entre os simbolistas a mesma preocupação formal que havia orientado os parnasianos. Essa preocupação formal visa sobretudo a conseguir musicalidade no texto. Por isso, no Simbolismo, predomina a poesia. Mesmo a pouca prosa simbolista que se escreveu é classificada pela crítica como prosa poética. ( 1998, pág. 217, grifos nossos)

Faraco e Moura, assim, admitem, isoladamente nesse grupo de autores didáticos, a ocorrência de uma “pouca” prosa simbolista, que embora não entrem no mérito da questão, lançam luz sobre uma vertente raramente abordada e sequer citada pelos demais. Assinalam ainda, com grande propriedade, que é classificada “pela crítica” como prosa poética, abrindo a possibilidade de ser analisada e classificada de outra forma, a nosso ver. Citam, didaticamente, as características que são peculiares ao Simbolismo, com exemplos em excertos de poemas de Cruz e Sousa e Pedro Kilkerry. Dentre estas, são os únicos também a assinalar a presença recorrente da imagem do crepúsculo, denotando uma predileção por esse momento do dia em que a luz do sol, em declínio, torna-se difusa, e as tonalidades de cores do céu se mesclam, indefiníveis e vagas. Ao abordarem os autores simbolistas, Faraco & Moura incluem, além dos onipresentes nas demais obras Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens – e do também menos citado Pedro Kilkerry -

as inéditas citações de Emiliano Perneta, Mário

Pederneiras e Dario Veloso, inovando ainda, sobremodo, ao referir-se ao grupo nordestino da “Padaria Espiritual”. Na seqüência, abordam mais detidamente a obra de Cruz e Sousa, acompanhada de biografia e características predominantes de sua poética, trazendo, para leitura e análise, o poema “Violões que choram”. Alphonsus de Guimaraens encerra o capítulo,

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com breve biografia, proposição de atividades com os poemas “A catedral” e “Ismália”. Por fim, cumpre assinalarmos a seção “Permanência”, ao final do capítulo, que, como o título sugere, propõe um trabalho de intertextualidade através do cotejamento com textos de outras épocas. Neste exemplo, apresenta o poema “Música”, de Cecília Meirelles, que recupera características simbolistas já em plena vigência da 2ª fase modernista (1930-1945). O capítulo seguinte, dedicado ao Pré-Modernismo, é também conciso e objetivo; abre-se com um excerto de Recordações do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto, seguido de estudo de texto e atividades. A contextualização sócio-histórica da Europa e Brasil é feita através de tópicos curtos. Ao abordar o “estilo” desse período sincrético, os autores sublinham que os traços marcantes das obras compreendidas entre 1902 e 1922 – balizas sugeridas pelo texto - são o espaço físico focalizado; as personagens marginalizadas e a temática voltada para os problemas da realidade nacional de então, como a Guerra de Canudos (Os sertões, de Euclides da Cunha); o drama dos imigrantes (Canaã, de Graça Aranha); as questões da periferia da cidade e da sociedade (nas obras de Lima Barreto), e , notavelmente, citam – também de forma inédita e singular entre os manuais examinados – a situação do caipira paulista (Os caboclos, de Valdomiro Silveira), e do gaúcho dos pampas (Contos gauchescos, de Simões Lopes Neto). Em que pesem tais citações, o manual informa também que tal período apresentava ainda duas facetas: o caráter conservador, representado peça permanência de elementos nacionalistas e parnasianos; e um caráter inovador, representado pelo interesse crítico na realidade brasileira. Nota-se que, embora o livro faça referências também “inovadoras” e singulares, não inclui, lamentavelmente, o Simbolismo como permanência no período pré-modernista. Os autores contemplados com biografias e análises mais detidas são os recorrentes Euclides da Cunha, Lima Barreto, Monteiro Lobato e Augusto dos Anjos, excluindo-se Graça Aranha. Os excertos são das obras Os sertões, Triste fim de Policarpo Quaresma e Cidades mortas, dos autores citados acima, respectivamente, à exceção do autor de Eu, que figura com os poemas “Versos íntimos” e “Psicologia de um vencido”.

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Apesar das singulares citações de autores e obras que não figuram nos demais compêndios didáticos, e da raríssima referência à prosa simbolista, nenhum autor foi citado, ou sequer teve um fragmento transcrito. “Literaturas Brasileira e Portuguesa – Teoria e Texto” é o manual de literaturas para o Ensino Médio da professora da Universidade de São Paulo Samira Yousseff Campedelli e do professor Jésus Barbosa Souza, publicado pela editora Saraiva (1ª edição, 2000; 5ª tiragem, 2005). Em volume único de 528 páginas, o livro é largamente adotado pelas escolas de Educação Básica. O capítulo 16, dedicado ao Simbolismo, é extremamente conciso e apresenta em seu início uma atividade intertextual, com a letra da canção “Trem das cores”, de Caetano Veloso. Na seqüência, os autores abordam o contexto político-social na Europa e as características da estética, além de introduzir o movimento em Portugal. Os autores escolhidos para ilustrá-lo, com breves biografias e características principais de estilo são Eugénio de Castro, com o poema “Um sonho”; António Nobre, com “Viagens na minha terra”, e Camilo Pessanha, com “Caminho”. Uma nota importante que frisamos – não verificada em nenhum dos outros manuais aqui elencados – é a referência feita pelos autores às três doutrinas do Simbolismo, em bases filosóficas:



doutrina do incognoscível – o registro do que escapa à explicação das ciências experimentais (as coisas ligadas ao conhecimento religioso);



doutrina do irracionalismo pessimista – só é possivel superar a condição miseravel do ser humano pela libertação da vontade individual, obtida por meio de um estado estético puro, desinteressado;



doutrina do espírito inconsciente – a humanidade, fatigada de querer, ansiaria por voltar ao nada imaginário. A ‘alma do mundo’ seria o espírito inconsciente. (2005, pág. 297)

Nota-se ainda, curiosamente, que essas observações são desacompanhadas de quaisquer referências ou citações, o que as torna, sobretudo, singulares. Ao abordarem,

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de forma bastante sintética o Simbolismo no Brasil, em três breves parágrafos, os autores assinalam que a estética caracterizou-se por seguir duas vertentes:



orientação humanístico-social – linha adotada por Cruz e Sousa, que se preocupava com os problemas transcendentais do ser humano;



orientação místico-religiosa – linha adotada por Alphonsus de Guimaraens, que se preocupava com temas religiosos. (2005, pág. 298)

Embora relevante do ponto de vista pedagógico, parece-nos um tanto desproporcionais as observações dos autores, já que, além de muitíssimo concisa a parte teórica, ao mesmo tempo aprofunda-se a questão filosófica sem maiores introduções e mostra-se reducionista, ao apontar somente dois caminhos para a realização poética simbolista no Brasil. No segmento posterior, aborda-se a produção literária e a caracterização do Simbolismo no Brasil, com os poetas Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens, breves biografias, características de estilo e os seus recorrentes poemas “Antífona” e “A catedral”, respectivamente, para exercícios de análise e identificação de características. A unidade VI do volume abre com o capítulo 17, “Pré-Modernismo e vanguardas européias”, com o poema “Rua do Ouvidor”, de Arthur Azevedo, seguido de exercícios de compreensão. Na continuação, os autores apresentam o contexto político-social da belle époque no Brasil e, ao evocar a emergência da burguesia e o boom de confeitarias, cafés elegantes, lojas e teatros, cita a importância também das revistas da época, como Fon-fon!, Careta e o jornal O malho, que traziam visões críticas dessa parcela da sociedade e seu modo de vida. Com relação aos proeminentes do período, os autores mantêm os cinco recorrentemente citados, com as referências biobibliográficas e características de estilo e exercícios de análise, interpretação e identificação de traços. Os autores e os respectivos excertos são Graça Aranha (Canaã); Monteiro Lobato ( com o conto “Os perturbadores do silêncio”, de Cidades mortas); Lima Barreto (Triste fim de Policarpo Quaresma);

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Euclides da Cunha (Os sertões), e Augusto dos Anjos, com os poemas “Vandalismo” e “Versos íntimos”. Na atividade correlata aos poemas, há o notável

soneto

“Bandalhismo”, paródia de Aldir Blanc, musicada e gravada por João Bosco, para cotejamento com o original. Relevante ainda é a citação, de passagem, à preocupação pré-modernista com a paisagem brasileira e o homem regional, nas produções de Valdomiro da Silveira, Simões Lopes Neto e o pouquíssimo lembrado Hugo de Carvalho Ramos (Cidade de Goiás, 21 de maio de1895 — Rio de Janeiro, 12 de maio de 1921), autor de Tropas e Boiadas (1917). Os autores, como de hábito nesses compêndios, incluem Augusto dos Anjos como representante de uma poesia híbrida entre o Parnasianismo, o Simbolismo e resquícios românticos, embora não seja feita qualquer citação ao cientificismo e ao materialismo de sua obra, aparentados com o Naturalismo então em declínio. O livro didático de Gramática, Produção Textual e Literaturas de Língua Portuguesa Português: Linguagens, de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães, SP, Atual, 8ª Ed., 2012, é um fenômeno editorial de vendas, sobretudo por ser o mais adotado, no Brasil, pela Educação Básica, em seus dois segmentos. A primeira edição, do final dos anos 80, não trazia a exuberante apresentação que passou a ostentar a partir da 2ª edição, já no início dos anos 90, revolucionando graficamente os conceitos de livro didático para o segmento do Ensino Médio, então caracterizado por edições sóbrias, monocromáticas e pouco atraentes, além de se ater, exclusivamente, aos conteúdos preconizados pelos programas tradicionais. A segunda edição de Português: Linguagens, afora o layout vanguardista e voltado para o público jovem, ao abordar o estudo da literatura, passou a estabelecer relações também com outras linguagens artísticas, tais como o cinema, o teatro, a música, as artes plásticas, além de assinalar a intertextualidade entre a produção cultural do passado e a de hoje, com reflexos em todas as mass medias. Ao final de cada unidade, o capítulo “Intervalo” apresenta leitura organizada de uma pintura, e através de uma proposta polifônica, resgata e redimensiona o que foi desenvolvido naquela parte do programa. Também neste segmento, são propostos aos

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alunos vários projetos de pesquisa e criação, culminando na produção de um tipo de periódico, de um livro de poesia ou de prosa; na apresentação de um programa ou de uma novela de rádio, de um telejornal, num debate orientado, num júri simulado ou num show literomusical, por exemplo. O enfoque gramatical também propõe inovar, abordando a língua pela perspectiva do texto e discurso. Integram o curso conteúdos atualizados às recentes tendências, enquanto as categorias gramaticais são trabalhadas pelo viés do texto, da semântica, da estilística e da pragmática. A parte destinada à redação desenvolve-se a partir da perspectiva dos gêneros textuais. Trabalham-se gêneros como a narrativa, o relatório, a propaganda, a literatura dramática, o conto ( e suas subcategorias), o roteiro de vídeo, a carta argumentativa, os gêneros jornalísticos (notícia, reportagem, entrevista, editorial, carta de leitor, etc.), o texto dissertativo-argumentativo etc. e técnicas como intertextualidade, paródia, paráfrase, e mecanismos como coerência, coesão e progressão textual. O livro traz ainda um apêndice com questões acompanhadas de gabarito de literatura, interpretação, produção de texto e gramática dos últimos vestibulares, concursos, além do ENEM e exames de qualificação estaduais, de quase todo país. A escolha busca uma amostragem variada, dentro dos conteúdos, nas distintas concepções teórico-metodológicas em que o ensino de Língua Portuguesa nas universidades se fundamenta. A unidade 4, do referido volume, intitula-se “História Social do Simbolismo” e abre-se com reproduções de telas de Van Gogh, Monet e Degas, com um breve intróito e algumas sugestões intertextuais de vídeos, livros congêneres, quadros impressionistas e pós-impressionistas, além da seção “Intervalo”. No capítulo 38, primeiro da unidade 4, “O Simbolismo: a linguagem da música”, os autores introduzem as características da estética, confrontam-na com o Parnasianismo, através de aproximações e oposições num quadro sinóptico e há uma atividade inicial de análise e interpretação com o poema “Violões que choram...”, de Cruz e Sousa. Em seguida, em sintéticos parágrafos, é feita a contextualização sócio-política da Europa na belle époque, e nota-se uma forte influência da internet na diagramação do texto, com uma série de “boxes”, como se

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fossem hiperlinks, com ilustrações e pequenos informes trazendo quadros, fotogramas de filmes afins, tiras, HQ’s, trechos de telenovelas, pequenas biografias, capas de livros e CDs. Intercalam-se três capítulos destinados à gramática e à produção textual até o capítulo 42, “O Simbolismo no Brasil”. Há observações pertinentes na introdução do assunto, como a peculiaridade da estética em nossas letras, que, Ao contrário do que ocorreu na Europa, onde o Simbolismo se sobrepôs ao Parnasianismo, no Brasil o movimento simbolista foi quase inteiramente abafado pelo movimento parnasiano, que gozou de amplo prestígio entre as camadas cultas da sociedade, até as primeiras décadas do século XX. Apesar disso, a produção simbolista deixou contribuições significativas, preparando terreno para as grandes inovações que iriam ocorrer no século XX, no domínio da poesia. (1999, 3ª. Ed., pág. 385, grifos nossos)

Sem esclarecer quais seriam as inovações antecipadas pelo Simbolismo, os autores deixam entrever, ainda assim, duas importantes observações: uma, a que a estética avançaria – mesmo “abafada” pelo Parnasianismo vigente e tirano – pelas primeiras décadas do século XX, o que nos leva a deduzir que o Simbolismo atravessou e foi contemporâneo do Pré-Modernismo e do próprio Modernismo; e outra, para os autores, o Simbolismo teria se manifestado apenas “no domínio da poesia”, o que descarta, assim,a hipótese da prosa, seja ela curta ou longa. Os autores contemplados são Cruz e Sousa, Alphonsus de Guimaraens e Pedro Kilkerry – este, apenas a citação - , que contam, sobretudo o “Dante Negro”, com uma alentada biografia, estudo de textos e características de estilo, além de atividades para o aluno com os poemas “Cavador do Infinito” , “Inexorável” e “Cárcere das almas”. Do poeta ouropretano, além de concisa biobibliografia, há atividades de análise com seus poemas “Ismália” – onipresente nesses manuais – e “A cabeça do corvo”. Ressalte-se, como na maioria dos demais títulos aqui elencados, que não há referências à possível ficção simbolista. No capítulo seguinte, dediacado ao Pré-Modernismo – e sempre nos aproximamos também desse período, de modo a rastrear alguma centelha referente à prosa simbolista -, há uma breve introdução apresentando o contexto sócio-histórico do

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Brasil e as inovações observadas nas obras pré-modernistas, embora os autores ainda “estivessem presos aos modelos realistas-naturalistas e simbolistas”. Em um box no texto, à maneira de hiperlinks como ocorre em todo o livro, chama-se a atenção para um importante aspecto, apesar de notório, mas esclarecedor ao estudante do Ensino Médio: “Sincretismo: a luta do velho e do novo” As estéticas literárias não são estanques entre si, e, muitas vezes, se tocam, se influenciam e se fundem. Quando surgiram os autores pré-modernistas, assim como as primeiras influencias dos movimentos artísticos europeus que iriam impulsionar o Modernismo brasileiro, os autores realistas, naturalistas, parnasianos e simbolistas, ainda estavam, em grande parte, vivos e escrevendo. Sem constituir propriamente uma estética literária, o Pré-Modernismo registra esse momento de transição do velho para o novo, em que concepções artísticas diferentes ora se opõem, ora se mesclam, ora se fundem.” (2005, pág. 393, grifos nossos)

É impróprio, a nosso ver, no título “ a luta do velho e do novo”, uma vez que se admite, na sequência do texto e do raciocínio, que não houve necessariamente luta, mas também superposição, fusão, mescla, caracterizadoras do ecletismo experimentado e nítido no Sincretismo/Pré-Modernismo. Assinalamos, por outro lado, a relevância de tratar os períodos como algo não estanque ou além disso, como impermeáveis e refratários a contaminações estéticas. E, sobretudo, observar que os autores finisseculares, em sua grande maioria, estavam vivos e ativos; assim, infere-se, obviamente, que durante as primeiras décadas do século XX houve Realismo, Parnasianismo, Naturalismo e Simbolismo! Portanto, no que diz respeito ao nosso foco, em particular, é absolutamente admissível, do ponto de vista literário, que houvesse simbolistas em vigência – ainda que distanciados do apogeu da escola - , não epígonos. Na continuação do capítulo, os autores elencam os quatro autores “de praxe”, seguidos de breves biobibliografias e atividades de análise de texto, interpretação e ilustrações. Assinalamos também a importante intertextualidade presente: de Euclides da Cunha, figuram excertos de Os sertões, que dialogam com o filme Canudos, de Sérgio Rezende; Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, com o filme Policarpo Quaresma, herói do Brasil (1986) de Paulo Thiago e com o livro Ataque do

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comando P.Q., de Moacyr Scliar; um fragmento de Urupês, de Monteiro Lobato, contraponta com a série infantil de TV “Sítio do Pica-pau Amarelo”, baseada na obra do autor, e “Versos íntimos”, poema de Augusto dos Anjos, dialoga com o livro A última quimera, de Ana Miranda, e com o disco “Ninguém” (BMG, 1995), do poeta e compositor popular Arnaldo Antunes, em que musica os versos de “Budismo moderno”. Na continuação do capítulo não há referência à ficção simbolista. . O manual Literatura Brasileira – Tempos, Leitores e Leituras, de Maria Luiza M. Abaurre e Marcela Pontara (São Paulo: Moderna, 2005), tem despontado, desde essa sua primeira edição, como uma nova preferência dos professores de Literatura Brasileira da Educação Básica. Também trazendo um moderno e amigável layout, fartamente ilustrado e apontando para midias transversais à literatura como cinema, teatro, pintura, música, TV, através de indicações, além de livros de temas congêneres e sites da internet, o livro explora muito adequadamente os períodos literários e suas respectivas produções e autores, através de atividades de interpretação, análise e identificação de estilo, decalcadas de concursos vestibulares e de diagnose e qualificação como ENEM, SAEB, além dos mais tradicionais de universidades de todo o país. O capítulo 22, dedicado ao Simbolismo, é aberto com uma reprodução de “O bulevar dos Capuchinhos” (1873), óleo sobre tela de Monet, além do soneto “A uma passante”, de Baudelaire, traduzido por Ivan Junqueira. Ambos são acompanhados de atividades de interpretação de imagens, correlação com o texto e com o ideário simbolista, que é inicialmente introduzido. Há ainda, pequenos boxes com concisas biografias e imagens dos artistas citados, além de uma reprodução de Van Gogh e uma cronologia, em linha, com referências aos contextos sócio-políticos na Europa e no Brasil. No subcapítulo “O projeto literário do Simbolismo”, as autoras trazem, ainda que de forma concisa, considerando-se um volume alentado cobrindo todas as estéticas

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em 664 páginas, dados muito importantes, tais como: o Decadentismo; a participação de Baudelaire, Verlaine e Mallarmé na antologia O Parnaso contemporâneo, 1866, na França, o que atesta a origem comum do Parnasianismo e do Simbolismo, embora se antagonizem em diversos aspectos; o advento do termo “Simbolismo”, somente em 1886, criado por Jean Moréas, e diversos traços distintivos da estética, suas justificativas e contextualizações na Europa. Ao tratar da transposição e adaptação do Simbolismo no Brasil, Abaurre e Pontara também o fazem notavelmente, ao trazer informações não usuais nos congêneres manuais destinados ao mesmo segmento de Ensino Médio, como as razões, ainda que concisamente, da falta de espaço do Simbolismo frente ao Parnasianismo. Para as autoras, a estética de Cruz e Sousa não logrou êxito porque as indagações místicas simbolistas eram por demais complexas para um leitor ainda incipiente; e o Simbolismo se opunha frontalmente ao desenvolvimento trazido pela industrialização, pelo progresso, pela máquina, colidindo, portanto, com os valores da elite da época, encantada com os adventos que adviriam dali. Lembram ainda um fato emblemático: a Academia Brasileira de Letras, fundada em 1896, reunindo os mais prestigiados intelectuais de então, não contou, entre seus primeiros membros, com um único representante do Simbolismo, embora bem mais adiante viesse a admitir tardiamente Rocha Pombo (1933), Medeiros e Albuquerque (1897) – aqui presentes nesse estudo - , Graça Aranha (1897), Afrânio Pexoto (1910), Félix Pacheco (1912), Antônio Austregésilo (1914) e Olegário Mariano (1926), por exemplo. Relevante ainda é o dado de natureza editorial, pouquíssimo citado, referente à publicação de Cruz e Sousa. As editoras Garnier e Lammert dominavam o mercado, editando os principais escritores do Cenáculo nacional. A editora Magalhães e Cia., do início dos anos 1890, precisou buscar autores inéditos, a fim de obter visibilidade e projeção; assim, julgou que, editando Cruz e Sousa, um autor negro – cinco anos após a Abolição – obteria grande retorno comercial, o que, infelizmente, não correspondeu às suas expectativas, já que a recepção da crítica a Missal e Broqueis foi fria e até mesmo, negativa.

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Há , ainda na contextualização, duas importantes e raras contribuições. A primeira é a citação de Emiliano Perneta, Gonzaga Duque e Nestor Victor, como jovens entusiastas do Simbolismo, que ajudariam a incensar e promover o “Dante Negro”, alcunha elogiosa recebida por Cruz e Sousa, à ocasião. A segunda é a referência à região Sul, onde melhor se instalou o Simbolismo, e aspecto jamais notado em publicações do mesmo nível. Abaurre e Pontara assinalam, coerentemente, que as províncias sulinas do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul tornam-se a sede simbolista, à diferença do Rio de Janeiro, que hospeda o Realimo e o Parnasianismo:

Fora do eixo cultural, distantes do centro do desenvolvimento econômico, eles criam um foco de resistência à exaltação das virtudes do progresso e do materialismo, mas pagam o preço alto de serem incompreendidos pelo público, entusiasmado com a perspectiva de desenvolvimento por fazer parte da elite que se beneficiava dele. (2005, pág. 450)

Na sequência, abordam aspectos estilísticos da estética, para fins naturalmente didáticos, estabelecendo conexões pertinentes, para ilustração e análise, com o soneto “Correspondências”, de Baudelaire, traduzido por Álvaro Cardoso Gomes, além de abordar traços como a concepção mística do mundo, a alienação social e, no campo de recursos de linguagem, os efeitos sonoros obtidos, por exemplo, em “Antifona”, de Cruz e Sousa. Ainda no mesmo subcapítulo, o poema “A E I O U”, de Alphonsus de Guimaraens, é objeto de exercícios de compreensão de texto, análise e identificação de traços distintivos. Os dois poetas usualmente citados nos demais manuais merecem biobibliografias e levantamento de características de estilo, imagens e efeitos sonoros peculiares, além de um importante box intertextual, transcrevendo referências de Mario de Andrade e Oswald de Andrade, em que demonstram sua admiração e reconhecimento pela obra de Alphonsus de Guimaraens, em encontro de 1919.

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Para as atividades com os alunos, os poemas são “Dilacerações”, de Cruz e Sousa, e “A catedral”, do poeta mineiro. As páginas seguintes contemplam uma seção (“A tradição”) dedicada à permanência do ideário simbolista em nossas letras, e diversas referências e links intertextuais com filmes, sites, livros e música, no subcapítulo “Conexões”. O segmento é encerrado com dezoito questões dos principais vestibulares e do ENEM, todas contemporâneas e pertinentes ao Simbolismo. A unidade 7 – que contempla os capítulos 23 a 27 – foca o Modernismo em geral, englobando o Pré-Modernismo e as Vanguardas Europeias, usualmente merecedoras de seções autônomas. Tal tratamento nos dá a franca impressão de tratar-se de um bloco único, não subdividido em compartimentos estanques. O capítulo 23, dedicado ao Pré-Modernismo, abre-se com uma foto da rendição dos conselheristas em Canudos e um excerto de Os sertões, para atividades de interpretação e análise textual. Acompanham ainda uma breve biografia de Euclides da Cunha e uma contextualização sócio-histórica do Rio de Janeiro, destacando-se a europeização da cidade, o “bota-abaixo” e o surgimento das favelas. Um interessante box, com um fragmento de Recordações do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto, revela a crítica do autor à pretensão do então prefeito Pereira Passos de emparelhar o Rio à altura de Buenos Aires. O mesmo segmento aborda ainda a situação crônica da seca no Nordeste, uma interessante intertextualidade com a canção “Sobradinho”, de Sá e Guarabira, que trata da concretização da profecia de Antonio Conselheiro, de que “o sertão iria virar mar” e a prosperidade da Amazônia, no mesmo período, em plena fase áurea da extração do látex, além de uma linha do tempo com os as turbulências ocorridas entre 1896 e 1917. Uma relevante observação das autoras trata dos “agentes do discurso”. Assinalam que, no período, as inovações tecnológicas contribuíram de modo a favorecer uma circulação mais rápida dos textos, com o advento do telégrafo e a modernização no parque gráfico dos jornais. Acrescentam-se ainda o avanço da fotografia e a invenção do cinematógrafo, que fariam, direta ou indiretamente, com que a literatura deixasse a ficção um pouco de lado e passasse a oferecer pontos de contato mais intensos com a realidade, através da agilidade da linguagem jornalística, ocupando-se em retratar o

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“verdadeiro” Brasil para os brasileiros, e retomar o viés do romance regional romântico, dispensando, naturalmente, a idealização dos cenários e personagens, observada na prosa pioneira de José de Alencar. Antes de ocupar-se mais detidamente na análise de fragmentos de Os sertões, as autoras ainda ressalvam o sucesso editorial desse título, o que atestava o interesse do público por uma mudança de enfoque, em relação aos folhetins românticos de décadas anteriores. O trecho dedicado a Lima Barreto traz também uma concisa biobibliografia e é enriquecido de diversos diálogos intertextuais, aludindo à influência de Dostoievski sobre sua obra, a citação da rara revista Floreal, da qual Lima foi diretor, além da Revolta da Armada, durante o governo de Floriano Peixoto, pano de fundo para o moderno Triste fim de Policarpo Quaresma, fundindo realidade e ficção. Cita-se também a denúncia do preconceito racial vigente, através das obras Recordações do escrivão Isaías Caminha e o inacabado Clara dos Anjos, ambos menos estudados nos manuais destinados ao Ensino Médio. As atividades de interpretação de textos e análise de características contemplam um excerto de Triste fim de Policarpo Quaresma. A seção destinada a Monteiro Lobato se abre com um trecho de Cidades mortas; citam-se ainda as suas maiores influências: Jonathan Swift, Camilo Castelo Branco, Machado de Assis, Euclides da Cunha e José de Alencar. O texto destinado às atividades de análise é um fragmento de Urupês (“Jeca Tatu”). Embora não haja menção maior sobre sua vertente infanto-juvenil, na parte referida à sua biografia, citam-se as personagens Emília, Narizinho, Pedrinho, Visconde de Sabugosa etc, surgidas em Narizinho arrebitado, de 1918. Encerra o capítulo o poeta Augusto dos Anjos, acompanhado da biografia resumida e da observação da grande dificuldade da crítica em rotulá-lo como pré-modernista, simbolista, parnasiano ou naturalista, por abarcar as três estéticas em sua obra, fundindo-as desigualmente. Apresentam-se ainda as maiores características de sua poética, a divagação metafísica e a angústia existencial, calcadas num vocabulário científico, técnico, portanto, não-poético ou lírico, atípicos a seu tempo. Os poemas utilizados para exercícios são os onipresentes “Versos íntimos” e “Psicologia de um vencido”, e o ainda não visto nesses manuais, “ O Deus-verme”. Seguem-se o

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subcapítulo “A tradição do Pré-Modernismo” com fotos e charges, além de poemas de Oswald de Andrade e Paulo Mendes Campos, todos apontando para a reflexão isenta sobre a realidade do país, sem idealizações de outrora. Os variados diálogos intertextuais com recomendações de filmes, músicas, sites e livros estão na seção “Conexão”, que fecha o capítulo. É importante que assinalemos, à guisa de encerramento desse capítulo, que o livro Literatura Brasileira – Tempos, Leitores e Leituras, de Maria Luiza M. Abaurre e Marcela Pontara, embora prime pela concisão, comum a volumes únicos e portanto condensados, é significativamente o que apresenta as informações mais essenciais ao estudo da Literatura Brasileira pelos estudantes da Educação Básica. Consegue aliar três difíceis vertentes: a necessária contextualização sócio-histórica; dados primordiais sobre os autores e obras, e a pertinência na escolha dos poemas e excertos de romances para análise e reflexão.

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5. ALGUMAS QUESTÕES TEÓRICAS Antes de expor o elenco de autores escolhidos em prosa curta simbolista para leitura e análise, impõe-se uma pequena digressão. O conto brasileiro foi Inaugurado, para Edgar Cavalheiro, em sua Evolução do conto brasileiro, por Joaquim Norberto, com “As duas órfãs”, de 1841. Em Precursores do conto no Brasil, Barbosa Lima Sobrinho registra, no final do ano de 1836 – portanto muito próximo das balizas iniciais do nosso Romantismo – algumas publicações na imprensa local do Rio de Janeiro, um tanto avizinhadas com a crônica jornalística e ainda pautadas por modelos europeus – “A caixa e o tinteiro”, de Justiniano José da Rocha, no diário O Cronista, vindo a repetir a experiência com o texto “Um sonho”, no ano seguinte. Outros autores, tais como Hernan Lima e Afrânio Coutinho preferem situar a gênese do nosso conto – como já concebemos – nas narrativas que Álvares de Azevedo enfeixou em Noite na Taverna (1855), lembrando ainda a importância de Bernardo Guimarães (Lendas e Romances (contos – 1871); e História e Tradições da Província de Minas Gerais ( 1872). Contudo, um pouco antes despontaria, em 1869, com Contos fluminenses, aquele que viria a deixar, indubitavelmente, o maior volume de obras de primeira grandeza na forma narrativa do conto, tais como “Miss Dollar”, de Contos fluminenses; “O alienista”, “Teoria do medalhão”, “A chinela turca”, “O espelho”, de Papeis avulsos; “A igreja do diabo”, “Cantiga de esponsais”, “Noite de Almirante”, de Histórias sem data; “A cartomante”, “Uns braços”, “Trio em lá menor”, “O enfermeiro”, “Um apólogo”, “O cônego ou metafísica do estilo”, de Várias Histórias e “Missa do galo”, de Páginas recolhidas, somente para citarmos alguns, sem contarmos os volumes de publicação pseudônima, organizados por Raymundo de Magalhães Jr., além de esparsos e póstumos, totalizando, assim, mais de duas centenas de contos. A partir daqui, então, já nos acercamos da ocorrência da prosa simbolista, e uma vez, para efeito de recorte, descartamos o possível romance, representado em primeiro plano por Mocidade morta (1897), de Gonzaga Duque; Amigos (1900), de Nestor Victor

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e No hospício (1905), de Rocha Pombo. Em segundo plano, Aristo (1889), de Rodrigo Otávio; Malsinado (1906), de Alfredo de Sarandi, e Emi (1925), de José Henrique de Santa Rita, segundo Massaud Moisés. Para Coutinho, entretanto,

“O único êxito franco beneficiando obra por certo modo ligada ao ficcionismo simbolista foi o de Canaã (1901), de Graça Aranha. Talvez porque marcadamente de transição. Os seus elementos estruturais apresentam-se não somente díspares, como, até, isolados; ilhas de naturalismo em estado quase puro, apesar de repassado de poesia, como na lenta abertura do livro, ou do pinturesco direto, como no episódio do inventário, que poderia ser de Aluísio Azevedo, não fosse a beleza expressional. Esta, de caráter dir-se-ia sinfônico, é de virtuosidade afim com a de D’Annunzio ou Barrès, e ainda hoje plenamente vivaz nas suas páginas de passionalidade exaltada, de ideação ardente e por fim alucinatória.”

Outro gênero fadado não exatamente ao descarte, mas apenas posto à parte, pela natureza desse estudo, é o poema em prosa, que viveu, talvez, o seu apogeu durante o Simbolismo. No entanto, sua própria constituição híbrida ou quase mesmo ilustrando um oximoro, por fundir vetores opostos, conceitualmente já desgarraria do escopo do trabalho. É fundamental que o abordemos, justificando sua ausência e, sobretudo, sua existência e importância. Aloysius Bertrand, em 1842, publica na França o seu Gaspar de La Nuit ou Fantaisie à La Manière de Rembrandt et de Callot, influenciando a Baudelaire, que publicaria em periódicos, entre 1853 e 1865, os Petits poèmes en prose, e em livro, em 1869. No Brasil, a primazia é de Raul Pompéia, que publica no Jornal do Commercio, de São Paulo, a partir de 1883, suas Canções sem metro, compiladas em um volume somente quase duas décadas depois, em 1900. Entrementes, Virgílio Várzea e Cruz e Sousa publicam Tropos e Fantasias (1885). João Barreira, em Portugal, causa frisson com a edição de Gouaches (Estudos e Fantasias), em 1892: consta que era recitado de joelhos por neófitos adoradores e entusiastas do “Concílio Feérico”, como Guy Michaud denominou o Simbolismo francês. No ano seguinte, Cruz e Sousa lançava Missal, conquistando em definitivo uma legião de admiradores, de quem se tornou mentor estético.

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Foram vários os cultores do poema em prosa, em nossas letras, nesse período. O Simbolismo,

por

sua

natureza

e

feição

própria,

inclinava-se

essencial

e

fundamentalmente para a poesia, onde cunhou suas mais belas páginas; entretanto, a ocorrência da prosa criara-lhe um nó górdio estético: uma vez que engendra duas formas, não haveria de ser uma fusão de divisão exata; se se buscasse o ideal simbolista, ou seja, se o texto se curvasse mais à poesia, ao subjetivismo, corria o sério risco de não plasmar uma história, um enredo em torno de personagens. Por outro lado, se tendesse mais à prosa, e se acercasse mais dos elementos romanescos, acabaria por tangenciar o Realismo ou retroceder até a estética romântica. Assim, pela aparente indefinição dessas proporções, o formato talvez tenha criado algumas resistências e rejeições que perduram na crítica até hoje, e, a nosso ver, contaminou a recepção ao conto simbolista, que ocorreu paralelamente aos poemas em prosa, muitas vezes sem uma definição precisa. Era usual que alguns autores carimbassem sua produção como conto, quando eram, de fato, poemas em prosa, crônicas, reflexões, devaneios ou apenas fragmentos subjetivos com alguma costura narrativa. Esse cenário permitiu uma abundante produção, portanto, de qualidade duvidosa e rótulo incerto, como sublinha Afrânio Coutinho:

Foi o poema em prosa o gênero que o caráter ornamental da estética decadentista mais atulhou de acessórios medievalistas, litúrgicos, cabalísticos e de joalheria. O ato poético defrontava-se, como em quase inibitório steeple-chase, com as guirlandas, os paramentos, os saltérios, a imagética bíblica.

Tal observação oportuna de o autor de A literatura no Brasil talvez encontre ressonância – e acrescemos alguma aspereza – nas palavras de Alfredo Bosi:

Confessor Supremo ( 1904), de Lima Campos, contos fantásticos ou oníricos, mas elaborados em uma prosa frouxa e retórica que dilui o impacto da mensagem psicológica; e Horto de Mágoas (1914), de Gonzaga Duque, livro de contos nefelibatas.[...]

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Enfim, prova cabal do vezo de referir sublimes demências encontra-se no romance No Hospício, cujo autor foi, curiosamente, um dos nossos mais conspícuos historiadores, José Francisco da Rocha Pombo. (grifos nossos).

E vale-se, ainda, apoiado na forte argumentação de Brito Broca, por ele citado: (...) as boas heranças da poesia simbolista poucos as colheram, enquanto as más heranças da prosa encontraram terreno fértil e propício para desenvolver-se entre nós. Desde o começo do século que se implantou em nossas revistas literárias e mundanas, com vinhetas e ilustrações, um gênero de crônica meio poemática, espécie de divagação fantasista sobre motivos abstratos, mero jogo de palavras, em que se exercitavam a habilidade e o engenho verbal dos autores. Era a assimilação do pior Simbolismo pelo pior Parnasianismo, e o tipo perfeito desse mal da literatice, que se tornou um dos principais alôs dos modernistas. (grifos nossos).

Trata-se, literalmente, dos poemas em prosa, aqui lembrados como a “pior herança” e, muito provavelmente, embaçaram toda a crítica da época, ultrapassando-a, ainda, criando, assim, uma espécie de “contaminação” e rejeição extensiva a toda ocorrência de prosa do período, e tal pecha chegaria aos modernos. Pouco anteriormente, manifesta-se de forma ainda mais sucinta, o modernista Ronald de Carvalho:

A prosa de ficção dos simbolistas, de que o Missal e as Evocações, de Cruz e Souza, dão bem a medida, é despicienda e de valor duvidoso. Nesse particular, a não ser na obra de Gonzaga Duque, pouco se encontrará digno de estudo e consideração dos poemas em prosa, ou nas novelas abstrusas dos decadentes. O próprio Gonzaga Duque, embora seja um escritor de ficção estimável, teve relevo maior como crítico de arte, que, propriamente, como novelista. Como em França, o simbolismo, no Brasil, deu frutos mais consideráveis na poesia que na prosa. Nem um prosador, ao menos, poderá comparar-se com Cruz e Souza. (grifos nossos).

E ainda, a observação de José Verissimo, que sequer cita o Simbolismo: Não houve no Brasil, como não houve em parte alguma, poesia a que se possa chamar de naturalista no mesmo sentido em que se fala de romance, e ainda de teatro, naturalista. É que não existe poesia sem certa dose de idealismo, incompatível com tal naturalismo. Enganavam-se redondamente, como ao tempo lhes mostrou Machado de Assis, os imitadores indígenas de Baudelaire que nas Fleurs du mal buscavam justificação do seu realismo ou naturalismo. E

sua inteligência os condenou à imitação pueril e falha.

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Para cambiarmos essas citações, Araripe Júnior, em A Semana, nº 67, de 10-4-1886, sob o título de “Enfermidades estilísticas da nova geração”: (..) Victor Hugo injetou esse veneno em altas doses nas gerações que se sucederam. Nos países latinos, desde 1830, através das tendências dos otimistas, de pessimistas, de diletantes, romanticistas, realistas, impressionistas, naturalistas, etc., etc., tem sido a mesma nota hugoana a que tem predominado.

É inútil fugir; daqui, dali, desfibrado qualquer poeta, no fundo, é V.Hugo. E Baudelaire? É Hugo com a máscara de Edgar Poe. (...) E Richepin? Hugo no deboche, Hugo embriagado e obsceno. (...) “Pois bem: essa seleção hugoana, um choque com as operações do espírito moderno, tem degenerado num patois literário que não pode constituir ainda uma língua forte, lógica e concisa. (grifos nossos).

Embora seja incontestável e haja uma unanimidade quanto ao valor e a disparidade da obra do “Dante Negro” em relação aos seus pares, nota-se, num átimo, uma aversão à prosa simbolista, de uma forma geral, e aos poemas em prosa, em particular. São vários os exemplos, e a eles retornaremos, adiante, com mais vagar e propriedade. Apenas indicamos aqui, nesse breve cotejamento, já uma oposição quanto ao valor da obra de Gonzaga Duque, rechaçado por Bosi, ali, e acolhido, com parcimônia, aqui. Oportunamente, ainda observaremos as posições abalizadas e polêmicas de Lúcia Miguel-Pereira, Otto Maria-Carpeaux, Alceu Amoroso Lima, , Afrânio Coutinho, José Verissimo, Silvio Romero, Antonio Candido, Massaud Moisés, Antonio Soares Amora, José Aderaldo Castelo, José Guilherme Merquior e Araripe Junior, não nesta ordem, para que situemos melhor a questão. De qualquer maneira, minimizar, ignorar ou classificar pejorativamente a prosa simbolista é, a nosso ver, uma forma de negá-la, dizer que não houve narrativas sob tal primado estético, o que, de antemão, é um equívoco. Analogamente, então, poder-se-ia dizer que não houve teatro árcade no Brasil, porque O parnaso obsequioso, de Cláudio Manoel da Costa ou as peças de Antonio José da Silva, o Judeu, não possuíam força

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dramática. Ou, por extensão, e mais além, que O auto de Santiago, de Afonso Álvares – primeira encenação no Brasil, em 1564 – e as demais peças catequéticas do nosso Quinhentismo não foram teatro, porque não havia público e possuíam somente cunho doutrinário. Como conceber o gênio de Gregório de Matos – cultor da lírica amorosa, encomiástica, filosófica e sacra – satírico, obsceno e amoral sob o véu da Contra-Reforma, como puro Barroco? Cultivaram, portanto, os poemas em prosa, além de Raul Pompéia, já citado, que teve a primazia com suas Canções sem metro (1883 – 1900) – embora sem a percepção do influxo simbolista -, Medeiros e Albuquerque, com Canções da Decadência (1887), que - como ressalta Afranio Coutinho e bem ilustra uma “encruzilhada” estética finissecular – “dedica a sua “Proclamação Decadente” a Olavo Bilac, que por então parafraseava, quase num decalque, o poema manifesto de Théophile Gautier, L´Art”. Coutinho observa que Albuquerque homenageia o “príncipe dos poetas brasileiros”, que decalcará de Gautier seu poema Profissão de Fé, arte poética e manifesto dos parnasianos. A título de curiosidade, cabe uma digressão: Villiers de L’Isle-Adam, simbolista francês influenciado por Edgar Allan Poe e Wagner, amigo de Mallarmé, Huysmans e Victor Hugo, tendo exercido enorme fascínio sobre nossos autores, através de suas obras Contes cruels (1883), Histoires insolites (1888), Nouveaux Contes cruels (1888), L’Ève future (1890), entre outras, teve que renunciar, por falta de recursos, à mão de Estelle, filha mais nova de ninguém menos que Théophile Gautier, pai do Parnasianismo francês! Seguiram-se, em sequência, Cabral de Alencar (1877-1915), com Rosa-Cruz; César de Castro (1884-1930), com notas de gongorismo exacerbado e neologismos helenistas nos livros Péan-Ampolas de Escuma (1906), Frutos do Meu Pomar (1910), O esquife de Palissandra (1914); Colatino Barroso ( 1873-1931), com Anátemas (1895), Jerusa (1896), Da Sugestão do Belo e do Divino na Natureza (1917), A Beleza e as suas Formas de Expressão (1918); Oliveira Gomes (1872-1917), autor de Terra Dolorosa, Livro de Impressões e Fantasias (1899); Nestor de Castro (1867-1906), autor de Brindes (1899); Julio Perneta (1869 – 1921), autor de Bronzes (1897) e Malditos (1909); o seu irmão, poeta Emiliano Perneta, autor de O Inimigo (1899) e do apólogo Alegoria (1903); Dario Veloso (1869-1937), hermético e ocultista, com influências da

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Cabala e Magia, autor de Esquifes (1896), Psikês e Flauta Rústica (1941); Antônio Austregésilo (1876 -1960), médico neurologista, autor de Manchas (1898) e Novas Manchas (1901); Pedro Vaz, pouco citado em compêndios, escreveu Crepúsculos (1898); e José Vicente (de Azevedo) Sobrinho, autor de Contos e Fantasias (1898), que embora traga a denominação de “contos”, na verdade enfeixa poemas em prosa, crônicas e reflexões. Assim, uma vez estabelecido este recorte, cumpre que apresentemos e justifiquemos o elenco que comporá o corpus do trabalho.

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6. A PROBLEMÁTICA DA PERIODIZAÇÃO LITERÁRIA Uma vez que não contemplamos os poemas em prosa e optamos pela prosa curta de ficção – os contos propriamente ditos - , elegemos para que figurassem nessa pequena antologia anexada à tese os seguintes autores e obras: 

“Gavita”, de Nestor Victor;



“O lilás pisado de suas olheiras...”, de Lima Campos;



“Idílio roxo”, de Gonzaga Duque;



“Tísico”, de Oscar Rosas;



“Nerah”, de Virgílio Várzea;



“O sangue do vigário”, de Galpi (Galdino Pinheiro);



“O gato negro”, de Rocha Pombo;



“Palestra a horas mortas”, de Medeiros e Albuquerque.



“A noiva do golfinho”, de Xavier Marques;



“Inferno verde”, de Alberto Rangel;



“A noiva de Oscar Wilde”, de Gastão Cruls;

Inicialmente, descartamos Pedro Vaz e sua obra Crepúsculos (1898), volume embora por ele denominado de “contos”, de fato figuram páginas de poemas em prosa. Pelo mesmo motivo, José Vicente Sobrinho, com Contos e Fantasias (1898, mesmo ano da obra de Pedro Vaz, citado acima), também não pode ser aproveitado nesse estudo. Seu volume, com notas de orientalismo, algumas referências

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indianistas – um tanto românticas -, apresenta-se também em poemas em prosa, e, sobretudo, justificando o título, em fantasias, sem a presença obrigatória dos elementos da narrativa que a tornam, conceitualmente, um conto. Júlio Pernetta, que citáramos no trecho referente aos que cultivaram o poema em prosa, em Bronzes (1897) e Malditos (1909), embora também aplique o título de contos aos volumes, enfeixam, a rigor, crônicas, reflexões, memórias e confissões em prosa. Mereceriam inclusão nessa antologia os autores

Júlia Lopes de Almeida,

Afrânio Peixoto e Afonso Arinos, que embora não sejam simbolistas “legítimos”, apresentam, em suas narrativas, significativos influxos da escola em diversos momentos, o que justificaria nossa escolha. Entretanto, como um de nossos principais argumentos e critérios é o levantamento e estabelecimento de autores e textos quase esquecidos e, portanto ausentes de compêndios e manuais, não se trata do caso dos referidos autores, usualmente publicados em edições escolares – Afrânio Peixoto e Afonso Arinos - e Júlia Lopes de Almeida, há pouco, foi merecidamente lembrada em Os cem melhores contos brasileiros do século (2001), organizado por Ítalo Moriconi. Outro problema no levantamento dos contos e escolha dos autores sob o primado simbolista reside exatamente no lapso de tempo coberto – de 1893, baliza inicial unânime em torno da publicação de Missal, de Cruz e Sousa, até um pouco além da Semana de Arte Moderna (1922), onde o Simbolismo ainda chegava, em contágio cada vez mais rarefeito, mas ainda significativo. Essa é uma questão fulcral sob o ponto de vista didático, principalmente. Vários críticos se debruçaram sobre esse ponto polêmico, e é fundamental para que situemos os autores elencados na antologia. Alceu Amoroso Lima, o “Tristão de Ataíde”, talvez tenha sido aquele que mais se aprofundou sobre a questão, dedicando-lhe mesmo uma obra na íntegra, a Introdução a literatura brasileira, propondo, através de longas ilações e um ilustrativo retrospecto, a sua periodização, aqui resumida: Escola Clássica – séculos XVI a XIX; 1º ciclo: de 1550 a 1600; 2º ciclo: de 1600 a 1750; 3º ciclo: de 1750 a 1830; Escola Romântica – de 1830 a 1870; Escola Naturalista – de 1870 a 1890; Escola Simbolista – de 1890 a 1920; e

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Escola Moderna – de 1920 até hoje*. Observemos que, mesmo aqui de forma muito concisa, Amoroso Lima destaca o Simbolismo da “Escola Naturalista”, abarcando, a seu ver, o Realismo-Naturalismo-Parnasianismo. É notável, ainda, o histórico do problema e seus proto-críticos. O alemão Bouterwek (1765-1828) publicou, em Göttinge, em 1801, sua obra, História das Artes e ciências desde a restauração da mesma até o final do século XVIII (Geschichte der Künste und Wissenschaften seit der Wiederherstellung derselben bis an das Ende dês achtzehnten Jahrhunderts) em que se refere a Antonio José, “o Judeu”, embora não o nomeie, e a Claudio Manoel da Costa, sem citá-lo, na íntegra. Ferdinand Denis publica na França, em 1825, três anos após a Independência, portanto, seu “Resumo histórico”, que segue o mesmo padrão de idéias de Bouterwek, porém já destacando, pela primeira vez, dois critérios: um cronológico e outro genérico, considerados aqui a poesia, a oratória, a história, a geografia e as viagens. Centra-se, sobretudo, no grupo árcade de Vila Rica. A primazia no Brasil coube a Januário da Cunha Barbosa, em 1831, com o “Parnaso Brasileiro”, onde arregimentava os registros de atividade literária nacional até então, em caráter primordialmente antológico. Joaquim Norberto, em 1841, com Bosquejo da História da Poesia Brasileira, é o primeiro a adotar a distinção entre “épocas literárias”, cronologicamente divididas em seis, situando-as em recuo anterior ao nosso descobrimento histórico. Francisco Adolfo de Varnhagen , o visconde de Porto Seguro, notável historiógrafo do império, publicou em 1850, em opulentos três volumes, o Florilégio da Poesia Brasileira - cujo título já advoga etimologicamente o caráter antológico – endossando, apenas com a ressalva da inclusão de pequenos traços biográficos dos autores, a orientação que adotara Januário Barbosa em Parnaso Brasileiro. Em 1863, o Imperador convidou o professor austríaco Ferdinand Wolf, que não adotou nenhum critério pessoal ou inovador, apenas fundindo o 4º e o 5º períodos num só bloco, desconsiderando a hipótese de a independência constituir um marco também literário.

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O cônego Fernandes Pinheiro – parente de Galpi, Galdino Fernandes Pinheiro, antologizado aqui - , professor de literatura do Colégio Pedro II, apresenta, em 1872, uma redução a três períodos, a saber: o da formação (séculos XVI e XVII); o do desenvolvimento (século XVIII) – e o da reforma (século XIX), subdividindo esta em três épocas: a 1ª, do início do século à proclamação da independência; a 2ª desde então à maioridade de D. Pedro II, e a 3ª abrangendo os seus dias. Uma vez que, na ocasião da publicação de Fernandes Pinheiro, o romantismo já estava em seus estertores, dez anos após, Sílvio Romero inovava significativamente, o que consolidaria em 1888, ao publicar os cinco volumes de sua “História da Literatura Brasileira”, modificando, sobretudo, os aspectos cronológicos: período de formação (1500-1750); período de desenvolvimento autonômico (1750 – 1830); período de transformação romântica (1830 – 1870) e período naturalista (1870 – até seus dias). José Verissimo, contemporâneo de Romero, negara-se a uma sistematização e a uma classificação literária apoiada em critérios apenas estéticos ou cronológicos, em seus Estudos de Literatura Brasileira (1901-1907) e na História da Literatura Brasileira (1916). De espírito individualista, de inclinação francesa e em oposição ao humanismo alemão, baseara-se praticamente em uma divisão política, ou seja, Brasil colonial e Brasil emancipado, intermediado por um período de transição (1769 – 1795), admitindo, porém, em sua dicotomia simplista, movimentos destacados e notórios, como “o grupo baiano” (no Barroco), “a plêiade mineira” (no Arcadismo), “a tríplice geração romântica” (indianista, ultra-romântica e condoreira) e o “naturalismo e parnasianismo”, ignorando, praticamente, o Simbolismo. Ronald de Carvalho, em sua Pequena História da Literatura Brasileira (1919) embora dê notícia dos novos de seu tempo,retoma as proposições de outrora de Silvio Romero e do cônego Fernandes Pinheiro, ao classificar os três períodos em “de formação” (1500-1750), de “transformação” (1750-1830) e “autonômico” (1830 a 1919), subdividindo este em “romantismo”, “naturalismo”, “reação espiritualista” e, por último, “ceticismo literário” e “reação nacionalista”. Ronald, que ingressaria nas primeiras fileiras do que viria a ser o Modernismo de 22, não atua propriamente como um crítico, mas como um aficcionado, permitindo-se ilações um tanto carentes de

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método, ao iniciar o compêndio citando o mito de Atlântida, Meg-Meld e as Ilhas Verdes. Voltaria ainda às questões literárias em Estudos Brasileiros, em 1924 e em 1931,em três séries, hoje reunidas em único volume. Artur Mota, em minucioso estudo, apresentou sua História da Literatura Brasileira (1930) e apesar de não contrariar a tripartição a que já propunham, anteriormente Fernandes Pinheiro e Silvio Romero, acrescia subdivisões num parcelamento talvez exagerado. Dotado de grande erudição biobibliográfica, o autor faleceu antes de dar cabo à laboriosa tarefa, o que não o impediu de tomar lugar de honra na historiografia literária brasileira. No decênio seguinte, as contribuições de Afrânio Peixoto, Manuel Bandeira e Bezerra de Freitas são as mais relevantes. O primeiro adotou a mesma tríplice divisão dos antecessores, cuidando com esmero de um cotejamento com os contextos sócio-políticos (“imitação da Metrópole”; “reação contra a Metrópole”; “literatura emancipada” e “influências estrangeiras”); o grande poeta – o “São João Batista do Modernismo”, como o cognominara, jocosamente, Oswald de Andrade -, também catedrático interino do Colégio Pedro II, inovou ao adotar uma divisão por séculos para o período colonial e outra por “escolas”, para o período dito nacional, em seu ao mesmo tempo sintético e abrangente manual, uma vez que aborda, inclusive, a história de literaturas estrangeiras. Curiosamente, aparta Machado de Assis das escolas de seu tempo, não o inserindo em nenhuma delas. Bezerra de Freitas, em 1939, publica seu compêndio História da Literatura Brasileira em que também posiciona-se pela tripartição: “fase de formação” (do Quinhentismo à plêiade mineira de Ouro Preto); “fase de desenvolvimento” (dos primórdios românticos aos naturalistas); e a “fase de reação crítica” (do parnasianismo até seus dias). Antonio Soares Amora, em História da literatura brasileira, de 1954, divide as nossas letras em duas “eras”, a princípio: “Luso-Brasileira (1549 – 1808)” e “Nacional (1808 – contemporaneidade)”, subdividindo-as em “épocas” (“Quinhentismo” e “Seiscentismo” (1549-1724); “Setecentismo” (1724-1808), na primeira “era”, e “Romantismo” (1808 – 1868); “Realismo” (1868-1893); “Simbolismo” (1893-1922) e

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“Modernismo” (1922-1945), na seguinte “era”. Interessante notarmos a longevidade que atribuii ao Simbolismo, bem como a forma de vir apartado do Realismo. Em História da Literatura Brasileira, do emblemático ano de 1964, Nelson Werneck Sodré, em abordagem precipuamente socioeconômica, embora também adote a divisão tríplice, a faz de forma distinta: “Literatura Colonial” (de origens a romantismo); “Esboço da Literatura Nacional” (de romantismo a “interpretações do Brasil”, passando pela “transição do fim do século”) e, finalmente, “Literatura Nacional”, de 1922 até seus dias. Massaud Moisés, já anteriormente citado em outras vezes aqui, em sua obra O Simbolismo, volume IV da série “A literatura brasileira”, aborda, de forma abrangente a questão das balizas dos períodos estéticos. Suscita pontos delicados como a extensão e a longevidade do Simbolismo. Para ele, se é unânime e indiscutível o marco inicial com Missal e Broquéis, de Cruz e Sousa e a estética já dê sinais de fadiga por volta de 1902, ocasião das publicações de Canaã, de Graça Aranha; Os sertões, de Euclides da Cunha, e História da Literatura Brasileira, de Silvio Romero – e portanto balizas, por seu turno, já do que viria a se chamar “Pré-modernismo”, não se pode negar a sobrevida do Simbolismo até as cercanias de 1922. Se considerarmos o marco final em 1902 teríamos apenas nove anos de florescimento simbolista; se o estendermos até 1922, a estética respiraria por quase três decênios, suplantando, assim, o próprio Realismo. Massaud aventa a plausível hipótese de a escola realista também ter coexistido com o Simbolismo e o Parnasianismo até o marco modernista. Tal proposição já encontrara ressonância também em Alceu Amoroso Lima, ao chamar o período Pré-modernista de “Sincretismo” – a nosso ver, mais coerente, uma vez que os autores, então, não vaticinaram um porvir “moderno”, mas anteciparam traços que se consolidariam posteriormente, sem se desligar dos liames de seu tempo – e, sobretudo, ao denominar o período finissecular compreendido entre 1890-1910 de “fase simbolista-impressionista-decadente brasileira” e de “Ecletismo”, aquele assinalado entre 1910-1922, também referido por alguns com rótulos variados e às vezes imprecisos, como “literatura art-nouveau”, liberty, “dandismo” e congêneres.

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Não podemos deixar de citar, ainda - apesar da extensa lista, mas necessária – quatro autores, para concluir esta introdução. Domício Proença Filho, que com sua obra Estilos de Época na Literatura chega à perene 20ª edição, neste ano, ora pela Editora Prumo, estende-se à literatura portuguesa, anterior ao “Quinhentismo”, que, curiosamente, omite: “Classicismo”; “Idade Média”; “Renascimento”;

“Barroco”;

“Neoclassicismo”;

“Romantismo”;

“Realismo”;

“Simbolismo” (n.b.: também destacado); “Impressionismo”; “Modernismo” e “pós-modernismo” (grifo nosso). José Guilherme Merquior, em ensaio de 1975 na notável coletânea Teoria Literária, organizada pelo professor Eduardo Portella, monta um minucioso quadro sinóptico de toda a periodização literária no ocidente: “O Classicismo humanista de renascença (começos de 1340/começos de 1550)”; “Maneirismo (começos de 1530/começos de 1620)”; “Barroco (começos de 1570/começos de 1730)”; “Rococó (começos de 1715/começos de 1800)”; “Neoclassicismo (começos de 1700/começos de 1830)”; “Romantismo (começos de 1800/começos de 1850)” e o complexo estilístico pós-romântico, em que inclui: “Realismo, Naturalismo, Parnasianismo, Impressionismo e Simbolismo (começos de 1850/começos de 1920)”; “Modernismo (começos de 1910/começos de 1950)” e o “Pós-modernismo (começos de 1940...)”. Posteriormente, o crítico e diplomata ainda nos brindaria com De Anchieta a Euclides - Breve história da Literatura Brasileira, propondo a seguinte periodização: “A literatura da era barroca no Brasil (até começos de 1770)”; “O Neoclassicismo (começos de 1760 – 1836)”; “O Romantismo (1836 – começos de 1875) e “O segundo Oitocentismo (1877-1902)”, focando, neste, o naturalismo, o Parnasianismo, a poesia “decadente” e simbolista, Machado de Assis e a prosa impressionista. Importante ressaltarmos dois aspectos: o primeiro é a pertinência do crítico em “imprecisar” as balizas, isto é, ao optar por “começos”, não finca o marco em ano estanque, a rigor, além de entremear os períodos, de modo a que haja sobreposições,naturais e coerentes. O segundo é o “isolamento” de Machado de Assis, nota que só percebêramos, curiosamente, na apreciação de Manuel Bandeira em seu compêndio já citado.

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Não obstante sua percepção e juízo de valor sobre a prosa simbolista venha de encontro à proposição central de nossa tese, é inestimável a contribuição de Alfredo Bosi em sua História Concisa da Literatura Brasileira, de 1979, onde propõe a seguinte periodização: “A condição colonial”; “Ecos do Barroco”; “Arcádia e Ilustração”; “Romantismo”; “Realismo”; “Simbolismo”; “Pré-modernismo e Modernismo”, e “Tendências Contemporâneas”, esta abarcando até o Concretismo dos anos 50, do século passado. Por fim, citamos a professora Helena Parente Cunha, com o notável ensaio Periodização e História Literária, em que, sinteticamente, assim dispõe a sua divisão: “Idade Média” (Alta, Média e Baixa); “Humanismo”; “Renascimento”; “Maneirismo”; “Barroco”; “Classicismo”; “Correntes do século XVIII (subdivididas em Iluminismo, Neoclassicismo (este em Rococó e Arcadismo) e Pré-romantismo)”; “Romantismo”; “Realismo, Naturalismo e Parnasianismo”; “Impressionismo”; “Decadentismo”; “Simbolismo” e “As vanguardas”. Cabe registrar a pertinente partição particular no interior do século XVIII e as distinções entre as estéticas finisseculares, sobretudo entre “decadentismo” (ou “decadismo” na preferência de alguns) e “simbolismo”, à maneira também de Merquior. Não temos a pretensão de esgotar o assunto aqui; pensamos apenas na pertinência dos enfoques múltiplos ao se abordar a periodização da história da literatura, de maneira que se torne nítida a confluência de estéticas no fim do século XIX que transbordam para o seguinte. Porque ainda que o Simbolismo se apresente esmaecido e já um tanto inerme a partir de 1902, como sustentam alguns críticos, é preciso dar conta, não somente do ponto de vista didático, de autores não somente simbolistas, bem como parnasianos e realistas que ultrapassaram essas balizas então estanques, coexistiram e se influenciaram mutuamente, uma vez que ainda estavam doutrinária e ideologicamente vinculados a suas escolas. Cumpre

ainda

ressaltarmos

que

o

Simbolismo

não

se

sobrepôs

ao

Realismo-Naturalismo-Parnasianismo, mas contituiu-se numa espécie de “ilha” viva, ainda que interseccionada, aqui e ali, por aquelas estéticas. Não é plausível a hipótese do esgotamento do Simbolismo na imediata virada do século, bem como a do Realismo, ou

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do Parnasianismo ou Naturalismo. Esses tiveram sobrevida e interviram até o advento do Modernismo, não necessariamente na baliza de fevereiro de 1922, mas até 1928, quando, efetivamente, o influxo das vanguardas européias já se hibridizara e se aclimatara nos trópicos. Lembremos ainda que próceres do Modernismo (fase heróica) como Mario de Andrade, Graça Aranha e Manuel Bandeira advieram do Simbolismo; o acento naturalista vívido em prosadores como Valdomiro Silveira, Afrânio Peixoto, Afonso Arinos e os menos lembrados Amândio Sobral, Berilo Neves e Adelpho Monjardim; poetas como Amadeu Amaral, Afonso Schmidt, Bastos Tigre, Goulart de Andrade, Humberto de Campos, José Albano, Martins Fontes e, sobretudo, Olegário Mariano, ultrapassaram em muito os limites do Modernismo, como categóricos parnasianos e nítidos adversários. Portanto, nos parece cabível admitir – ainda que para fins didáticos – a vigência do Simbolismo (e seus derivados diretos, como o Decadentismo) entre os marcos de 1893 e 1928. ⃰

Uma vez esclarecidas as escolhas imediatas de simbolistas de primeira água como Nestor Victor, Lima Campos, Virgílio Várzea, Oscar Rosas, Gonzaga Duque, Medeiros e Albuquerque e Rocha Pombo, buscamos justificar, assim, as eleições do epígono Gastão Cruls, dos regionalistas Xavier Marques e Alberto Rangel, e por fim, do do pouco conhecido Galdino Pinheiro, lembramos ainda que, dos dois primeiros, só havia notícias de uma única edição e mesmo assim, em exemplares de dificílimo acesso, além de jamais terem sido transcritas, ao longo de mais de um século. Nos capítulos seguintes, além da retomada e aprofundamento de pontos já levantados, iremos listar os autores, transcrever os contos a serem antologizados na íntegra, estabelecermos os textos e analisá-los, comparando-os ainda, entre si, através de excertos e passagens notáveis. São importantes, ainda, dados como dedicatórias a

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autores de influências estéticas distintas, o que ilustra bem essa coexistência e mescla; interessantes coincidências de títulos ou constantes temáticas e ainda, uma inclinação ao fantástico, avizinhado ao maravilhoso, permeia o lote de narrativas que abordaremos à sequência.

7. ELENCO DE AUTORES E OBRAS – JUSTIFICATIVAS Ao lecionarmos na Universidade Católica de Petrópolis durante mais de uma década (2000-2013), em diversas disciplinas de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira para as faculdades de Pedagogia, Direito e, sobretudo, a de Letras, tivemos a idéia de elaborar uma ementa para uma disciplina eletiva, que contemplasse os autores “menores” do período entre o final do século XIX e início do XX. Levantados os autores, apartados os grupos, quer por motivos estéticos, genéricos ou mesmo por épocas, houve a grande surpresa, entre mim e os alunos, em atestarmos um lote

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considerável de autores quase desconhecidos, ignorados pelos manuais e sequer estudados, portanto, nos cursos de Letras. Uma vez percebidos os inúmeros matizes que compunham o chamado – impropriamente – Pré-Modernismo, já que não se sabiam pré-modernos, fomos, em equipe, perscrutando e analisando esses autores notáveis que, por força de superposições estéticas, desagrado ou mesmo omissões involuntárias, jaziam no ostracismo. As vertentes várias, todas sob a égide deste tempo sócio-politicamente conturbado e instável no Brasil, foram observadas detidamente, e ao fim do semestre, foram feitos seminários sobre autores escolhidos, resultando em trabalhos minuciosos e de excelente nível, sobretudo por trazer à luz obras que não haviam merecido o devido exame e olhar acadêmico, em nível de graduação. Chamou-nos particularmente a atenção a ausência de quaisquer referências – e as muito poucas, negativas – à prosa simbolista, natural conseqüência durante a instalação e vigência da estética. Assim, interessamo-nos em buscar esses isolados autores, buscar fontes e aprofundar a investigação. Não sabíamos, ainda, que ali estava a primeira semente deste trabalho. A primeira impressão, nos teóricos e nos manuais contemporâneos, foi negativa. Os prosadores simbolistas sequer eram admitidos, já que ao Simbolismo, uma escola poética por excelência, não seriam possíveis narrativas, de qualquer subgênero, salvo os poemas em prosa, a maioria, de caráter artificial, gongóricos e de mau gosto. Não satisfeito com esta pouco acolhedora condição, voltamos às pesquisas e verificamos uma espécie de desdém pela hipótese da prosa simbolista, e até mesmo, um tom pejorativo. Na condição de docente na Educação Básica por quase três décadas, chamou-nos a atenção, ainda, a falta de referências a qualquer escritor pré-modernista que não fosse Euclides da Cunha, Monteiro Lobato, Lima Barreto, Graça Aranha e Augusto dos Anjos – sem qualquer menção a João do Rio! - , considerando a vasta gama de autores “menores” coetâneos que ultrapassariam as curtas balizas didáticas aplicadas ao Simbolismo: 1893-1902. Mesmo admitindo-se que tais marcos sejam apenas para

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critérios pedagógicos, então, a estética só teria Cruz e Sousa como vulto máximo e único, cabendo a todos os demais o papel de menores, e vencida a faixa limítrofe desses escassos nove anos, epígonos. (Cabe uma digressão: interessante percebermos que a mesma didática da Literatura que nos impõe essas balizas impermeáveis e pouco dúcteis, admite, no Simbolismo português, o “início” com a publicação de Oaristos (1890) de Eugénio de Castro e o “final” com Clepsidra, de Camilo Pessanha, já em 1920, ou seja, após a irrupção do Modernismo além-mar; tal hipótese não se aventa aqui: o nosso Modernismo cubo-futurista da fase “heróica” “varreu” qualquer vestígio anteriorista, passadista, condenando-o ao degredo estético.) Considerando que já abordamos a questão dos manuais destinados ao Ensino Médio, tabulando as maiores incidências de autores e temáticas, e, ainda, analisando suas peculiaridades, pontos fortes e fracos; considerando que o tema das balizas estéticas também já foi analisado cronologicamente, por varios autores, no capítulo anterior, passemos, assim, à questão da pouca receptividade da crítica pelo Simbolismo, e em particular, pela sua prosa curta. O registro mais antigo de que dispusemos é a crítica de Araripe Jr. a Tropos e Fantasias, de Cruz e Sousa e Virgílio Várzea, publicada originalmente em “A Semana”, Rio de Janeiro, nº 34, agosto de 1885, págs. 3-4, republicada em Obra Crítica de Araripe Júnior, que assim se inicia:

É o título (Tropos e Fantasias) de um pequeno livro escrito com estilo, em Santa Catarina, por dois moços que nunca de lá saíram, Virgílio Várzea e Cruz e Sousa. Neste fato está o seu maior elogio. Em verdade, publicar um trabalho literário em uma terra onde a imprensa mal serve para o escoamento do expediente das repartições públicas e da intriga, já significa alguma coisa, muito mais ainda se esse trabalho tem colorido e recomenda-se por uma forma até certo ponto nova, cuidadosamente rebuscada. Os Srs. Várzea e Cruz e Sousa deram, pois, uma prova de vitalidade, não sucumbindo à ação de um meio tão ingrato como é aquele dentro do qual se acham mergulhados; mostram talento, pondo-se, através de tantas dificuldades físicas e morais, em contato ou em relações de simpatia com os espíritos que dominam o nosso século literário. Os Tropos e Fantasias, quando outra qualidade não tivessem, seriam ibjeto de curiosidade pela audácia que revelam. Seus autores, filiando-se à escola naturalista, atiram-se às formas literárias cultivadas por E. Zola e Eça de Queirós com um entusiasmo frenético, só

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comparável à ansiedade e aos deslumbramentos de pionnier que pela primeira vez penetra em uma jazida aurífera.(...) As páginas, os pequenos contos do livrinho que tenho em cima da pasta, não passam, portanto, de fragmentos de talentos que ainda não tiveram tempo de comportar-se.(...)

Assim é recebido o belo volume de poemas em prosa de Virgílio Várzea e Cruz e Sousa. Dispensamos os grifos e demais realces, porque o teor do texto – que merecia ser transcrito na íntegra – já fala por si só. Apenas gostaríamos de assinalar algumas observações. É categoricamente pejorativa a recepção à obra, sem dúvida, expressa por vários termos no diminutivo, por exemplo; entretanto, o que mais se assoma é o preconceito pela origem dos autores, Santa Catarina – acrescido pelo fato de jamais terem deixado a capital -, como se o provincianismo fosse um obstáculo ou um impedimento à ilustração, à erudição e ao acesso a esferas mais altas. Notamos ainda o deslize pela classificação de “naturalistas” – jamais o foram, e os acentos, se houve, quase imperceptíveis – além da notória inclinação determinista de toda a crítica! Araripe Jr., talvez sem sabê-lo – e nossa posição é confortável, distantes quase 130 anos de sua posição – vale-se de um método à Taine para defenestrar supostos naturalistas, por sua vez, deterministas, também. Nota-se, por fim, que o crítico rotula os poemas em prosa de “contos”, equívoco genérico que será ainda recorrente entre seus pares, contaminando mais de uma geração e, lamentavelmente, condenando a prática já no seu infeliz nascedouro. José Verissimo, por seu turno, sequer aventa a hipótese simbolista em seu consagrado compêndio História da Literatura Brasileira – de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908), ainda que considerasse este último como baliza, a estética de Cruz e Sousa já se espraiava há mais de uma década, e para alguns críticos-demarcadores,

agonizaria cedo, antes disso, em 1902. No referido livro,

Verissimo desanca a escola ainda sem nome, equivocando-se nos referenciais, mas acertando no tom desdenhoso: Não houve no Brasil, como não houve em parte alguma, poesia a que se possa chamar de naturalista no mesmo sentido em que se fala de romance, e ainda de teatro, naturalista. É que não existe poesia sem certa dose de idealismo, incompatível com tal naturalismo. Enganavam-se redondamente, como ao tempo lhes mostrou Machado de Assis(139), os

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imitadores indígenas de Baudelaire que nas Fleurs du mal buscavam justificação do seu realismo ou naturalismo. E a sua inteligência os condenou à imitação pueril e falha. (grifos nossos)

E ainda o mesmo tom pejorativo em relação ao provincianismo dos novos autores sulistas observado em Araripe Júnior, vem à tona , acentuadamente, pelo mesmo Veríssimo em 1907, oito anos antes da publicação acima, na obra Que é literatura? – e outros escritos, reeditada em 2001 pela Landy Editora, de São Paulo, com introdução do crítico João Alexandre Barbosa. No capítulo “Letras Brasileiras”, há o artigo emblemático “Literatura Provinciana”, de onde retiramos o excerto a seguir, em absoluta sintonia com Araripe Jr.:

Convém não esquecer nesta recordação da vida literária provinciana o Paraná. Curitiba rivaliza com Fortaleza neste aspecto. As revistas e jornalzinhos literários surgem e morrem ali com a abundância de rosas de todo o ano. Há naquela pequena capital, como na do Ceará, um grupo relativamente numeroso de poetas, todos ou quase todos “novos”, nefelibatas, satânicos, que se incensam uns aos outros, com a ingênua convicção e a imodéstia descerimoniosa que caracteriza a escola. O trabalho cearense, mais sério e de mais valor, é também mais variado. Não deixa de ser curioso ver rebentar no sertão paranaense um galho peco da árvore do

decadentismo europeu, produto de civilizações refinadas.

A mesma nota, o mesmo teor, a mesma lamentável predisposição em acolher mal os “novos”, aqui, em acento ainda mais pejorativo do que em Araripe Júnior. O grupo a que se refere Verissimo, no Ceará, é o da “Padaria Espiritual”, nome que ele julga mais “afeito ao riso”. Silvio Romero, último nome desta trindade que pontificou na crítica finissecular, em sua monumental História da Literatura Brasileira, em 5 volumes, publicada em 1888, é, dos três, quem acolhe com maior receptividade, embora pontue ressalvas sem eufemismos. No capítulo 14 do volume V, “Reações anti-românticas na poesia – evolução do lirismo”, Romero sublinha o Simbolismo como “a última expressão do lirismo”, cita Cruz e Sousa, muito bem recebido, com excertos de seus poemas, ultrapassado, talvez, em seu tempo, por Luis Murat, em sua opinião.

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Ao enfocar o Dante Negro, equipara-o a Alphonsus de Guimaraense a B. Lopes, pondo estes em plano muito inferior. Transcrevemos os fragmentos: É o nosso simbolista puro, o rei da poesia sugestiva; e , cousa singular, nele não se encontram uma só vez os tais versinhos imitados d’Os Simples, cheios de balão, balão, Belém, Belém, e outras gafeirices da espécie. É o último poeta que temos de rapidamente notar; porém dá prazer ao crítico avistar-se com um homem destes, um íntegro, um nobre espírito de eleição.

Na sequência, porém, as observações – guardadas as proporções e o contexto sociocultural de seu tempo – assumem um tom preconceituoso: Ele é o caso único de um negro, um negro puro, verdadeiramente superior no desenvolvimento da cultura brasileira. Mestiços notáveis temos tido muitos; negros, não, só ele; porque Luís Gama, por exemplo, nem tinha grande talento, nem era um negro pur sang. Assim outros. Sofreu os terríveis agrores de sua posição de preto e de pobre, desprotegido e certamente desprezado.

Após transcrever a quase totalidade de “Antífona” , Silvio Romero encerra o referido capítulo com as seguintes observações, reafirmando a condição singular de Cruz e Sousa, embora ressalve um elemento essencial ao nosso trabalho: Sentimos nada poder dizer de muitos jovens poetas mais ou menos filiados à escola de Cruz e Sousa. Para findar: o simbolismo, nome por certo mal escolhido para significar a reação espiritualista que neste final de século se faz na arte contra as grosserias do naturalismo e contra o dilentantismo epicurista da arte pela arte do parnasianismo, é, nas suas melhores manifestações líricas, uma volta, consciente ou não, ao romantismo naquilo que ele tinha também de melhor e mais significativo. No Brasil, porém, para que ele caminhe e progrida, será preciso que, deixando de lado as ladainhas de Bernardino Lopes e Alphonsus de Guimaraens, deixando, em suma, as afetações d’Os Simples, prossiga na trilha que foi aberta por Cruz e Sousa, não o Cruz e Sousa da prosa abstrusa do Missal e das Evocações, porém o Cruz e Sousa dos Faróis e dos Últimos Sonetos, e essa há de ser uma das mais belas porções da lírica nacional, que irão ainda florescer nos primeiros anos do século que vai entrar.(2) (grifos nossos)

Sublinhamos a “prosa abstrusa de Missal e Evocações” para ressaltar a perene e recorrente resistência à prosa simbolista, já em seu nascedouro. Parece ser incompatível ou inconveniente à escola, obviamente pela sua forma fluida, vaga e não apresentar , de forma clara, ou mesmo omitir, elementos tradicionais da narrativa curta, e portanto, não

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resistirem à análise e medições com as lentes e réguas de seu tempo, vezo este que contaminará, a nosso ver, alguns críticos posteriores, levando-os à desatenção, à negligência ou à omissão em registrar a ocorrência da prosa curta simbolista. E há ainda dois axiomas que se organizam a partir dessas ilações da crítica finissecular: o primeiro, inconteste, Cruz e Sousa é o maior de todos; logo, todos os demais serão menores e estarão à sua sombra; segundo: a prosa simbolista é abstrusa ou informe; se houver, será iniciativa pífia, uma anomalia e não merecedora de atenção. Há notas a relevar, ainda, em relação às atentas observações do mestre Silvio Romero. No capítulo derradeiro de seu compêndio, no quinto volume, portanto, apresenta-se o “Quadro sintético da evolução dos gêneros na Literatura Brasileira”

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curiosamente encimado por um triptico, a bico de pena, com as efígies de Cruz e Sousa, Castro Alves e Olavo Bilac (seus favoritos?) - , disposto em oito categorias: Poesia; Teatro; Romance e Conto; Eloqüência; História; Filosofia, e a Prosa como Arte. Para nossa surpresa e satisfação, um razoável lote de autores que contemplamos nesse trabalho, é citado no item III, Romance e Conto, assim classificados: no subitem IV, “O meio-naturalismo (N. “meio” em oposição a naturalismo “puro”)

tradicionalista”,

aparece o raríssimo Galdino Pinheiro, o Galpi, de quem coletamos “O sangue do vigário”, de suas Narrativas Brazileiras; no subitem V, “o meio-naturalismo das cidades”, temos, de nossa antologia, Xavier Marques e Medeiros e Albuquerque; do subitem VIII, “psicologismo idealista com tendências simbólicas”, Nestor Victor e Gonzaga Duque, e por fim, no subitem IX, “o ecletismo universalista”, o parceiro de Cruz e Sousa em Tropos e Fantasias, Virgílio Várzea. Antes de “dobrarmos” efetivamente o século e levantarmos a crítica já “academizada” dos anos 40, portanto, pós-moderna, é importante que estabeleçamos algumas questões acerca da presumida origem do mau acolhimento da prosa simbolista. Além do rótulo “prosa abstrusa”, cunhado por Silvio Romero, e que talvez já predispusesse os pósteros, havia uma natural tendência, na produção do entorno simbolista, à classificação imprópria do gênero conto, muitas das vezes, confundindo-se com o que Massaud Moisés chama, com pertinência, de “cromos ou reflexões”, ou mesmo cenas, embriões de romances, etc. Aliás, a nosso ver, Moisés esgota

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definitivamente a questão, de forma categórica e absoluta, ao abordar o tema, apoiando-se no seminal estudo sobre o assunto de Suzanne Bernard, Le Poème en Prose – de Baudelaire jusqu’à nos jours, Paris, Nizet, 1959. Partindo do princípio que a grande distinção entre o poema em prosa e prosa poemática é o conteúdo e não a forma, o crítico disserta longamente e com grande acurácia, constituindo, neste aspecto particular, em nosso Simbolismo, um pequeno tratado desbravador. Acrescentemos ainda que, lembra Moisés, houve uma significativa produção de “contos” no período, que, entretanto, não o seriam, ao pé da letra, mas, propriamente, poemas em prosa, os quais, efetivamente, não trazem o intuito da fabulação em princípio, mas o influxo da poesia, desconectada dos liames formais da versificação, do metro, das cesuras. Assim, Moisés de antemão descarta alguns autores da época como contistas, conduzindo-os à classificação de poetas-prosadores, ou em muitos casos, apenas criadores de páginas de reflexões. Entendemos, sobretudo, que a questão é ampla demais para que nos alonguemos por aqui; o tema, por si só, justificaria outra tese, discutindo-se esses limites entre um gênero e outro, até que ponto se tangenciam, se superpõem ou se interseccionam. Parece-nos escopo de outro novo fôlego, embora creiamos piamente que a questão encontra bom termo no abalizado crítico, apoiado este pela especialista francesa. O que julgamos necessário não acrescentar, mas apenas contribuir, é que não se deve, a priori, e esse talvez seja um vezo da crítica menos atenta e urgente, no Brasil, discutir o gênero conto cotejando-o com o romance, e ver naquele a ausência ou o esmaecimento de elementos estruturadores do outro. E ainda supor uma forma intermediária, como a novela, que carece, forçosamente, por seu caráter impreciso, de aspectos delineadores, tornando-a híbrida, vaga ou informe. É preciso, de forma ponderada, olhar essas produções a partir da modernidade, sem que rasguemos tratados ou ignoremos princípios clássicos canônicos, norteadores. Embora o problema da classificação persista e seja pertinente lembrá-lo e mesmo apontá-lo com a propriedade e embasamento com que Massaud Moisés o faz, cumpre ler esses contos – os que efetivamente o são – à luz do século em que vivemos, entendendo-os circunscritos ao feitio da escola a que pertenceram. É evidente que um

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conto dito simbolista, ou de forte acentuação simbolista, não poderia se comportar ou apresentar-se estruturalmente como uma das páginas célebres de Machado de Assis. Não! A narrativa simbolista, obviamente, primará pela prosa poemática, esmaecendo ou mesmo omitindo diálogos, a própria ação e o conflito, privilegiando a descrição fluida, pontilhista e vaga, a sugestão, o transbordamento de imagens e figuras sensoriais que são peculiares à estética. O conto, por definição, não é o “simulacro da sociedade” como o romance vem a ser; pela sua natureza e configuração, é uma faceta, uma lâmina do tempo, e, sobretudo busca retratar a si mesmo, um fato, um traço, um momento, passível de ser, até mesmo, transposto pela oralidade, o que o aproxima de sua própria gênese, com os mitos, as lendas, as histórias imemoriais, as fábulas, os chistes e até mesmo os “causos”, como alguns que aqui elencamos e analisamos, dados por verídicos e narrados em “rodas em torno de amigos, com café e charutos, na sala”. Depois de Mario de Andrade buscar novas classificações genéricas para suas obras – propondo o termo “rapsódia” (conhecedor que era do assunto, no sentido musical de colagem, mosaico de peças e movimentos) para Macunaíma, ou “idílio” para Amar, verbo intransitivo, e após Clarice Lispector não saber do que se tratavam, em tipologia textual, suas narrativas em Laços de família - não eram crônicas, não eram contos, não eram reflexões; o que eram? o que são? - ; ou mesmo a recente antologia Os menores contos brasileiros do século (org. por Marcelino Freire, São Paulo: Ateliê Editorial, 2004), em que figuram cem “contos”, de autores notáveis, todos com menos de 50 palavras, é possível tentar buscar a compreensão da produção em prosa curta simbolista, ou o que se tentou plasmar como narrativa curta, especialmente contos. O mau acolhimento da crítica a essas primeiras tentativas – algumas equivocadas, outras incipientes – no terreno do conto simbolista, isolaram e exilaram muitas dessas obras, a maioria estagnada em primeiras edições, quando muito, duas ou três, devido às diminutas tiragens. A aclamada obra Signos, do importantíssimo Nestor Victor, por exemplo, ficou em única edição, de 1897; Confessor supremo, de Lima Campos, ativo intelectual do grupo, partícipe de inúmeros periódicos e de tertúlias de então, é seu livro único, e também, de única edição, de 1904; Contos e pontos, de Rocha Pombo, de 1911, também é de única edição; Horto de Mágoas, do aclamado Gonzaga Duque, é de 1916, obra de compilação póstuma, só encontrou reedição oitenta anos

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depois, em publicação da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, acompanhada dos primorosos estudos e ensaios de Vera Lins e Julio Castagnon; Mãe Tapuia, do “polígrafo”e polêmico Medeiros e Albuquerque, idem, 1899; Inferno verde, de Alberto Rangel, volume bem recebido pela crítica e prefaciado com um inédito estudo de Euclides da Cunha, chegou à 4ª, edição, em 1927, apenas; Galdino Pinheiro, desconhecido e de obra pouco extensa, chegou à segunda edição de Narrativas Brazileiras, em 1897; Gastão Cruls teve reeditadas suas narrativas em Contos reunidos ( Coivara, 1920, 3ª Ed.; Ao embalo da rede, 1923, 1ª Ed., esgotado; História puxa história , 1938, 1ª Ed., esgotado) em 1951, também em única edição. De todos nossos antologizados, apenas Xavier Marques, cujas primeiras histórias são de 1899 ( Jana e Joel e outros, como A noiva do golfinho), teve-as reeditadas sob o título de Praieiros, pelo INL/Ed. GRD, SP, em 1983; Virgílio Várzea teve sua obra em prosa reunida em Contos completos (Mares e Campos & Contos de amor, tomo I; Histórias rústicas e Nas ondas, tomo II), edição da Academia Catarinense de Letras e Fundação Catarinense de Cultura, com organização e estudos de Lauro Junkes, em 2003; e Oscar Rosas, pela mesma Academia e Fundação, teve suas Poesias, contos e crônicas reunidas e reeditadas em 2009, muito recentemente. Considerando que a grande maioria destas narrativas – entendendo que é uma pequena amostragem, em meio a uma produção significativa – não passou da primeira edição e as tiragens, reduzidas; considerando que foram escritas por autores “menores”, quase todos à sombra de Cruz e Sousa, muito superior a eles; considerando que houve diversos equívocos por parte de muitos outros autores em classificar como contos poemas em prosa, de qualidade discutível, o que teria gerado uma prévia rejeição por parte da crítica; e considerando, por fim, o rótulo de “prosa abstrusa” que se implantou desde então, queremos dizer que, provavelmente, muitos destes autores sequer tenham sido lidos devidamente, passando a ser meramente citados, como exemplos natimortos de experiências inócuas. E, como resultado, passaram ao ostracismo imposto pela modernidade, com o agravante de terem se tornado praticamente inéditos, jamais transcritos no todo ou em parte, em nenhuma reunião, compêndio, seleta ou antologia referente ao Simbolismo e suas adjacências.

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Isso posto, passemos à “nova crítica”, que a partir dos anos 40 do século XX, passa a produzir os manuais que doravante nortearão os estudos acadêmicos, chegando até nossos dias. É de Andrade Muricy o estudo mais completo sobre a estética simbolista já empreendido por nossos críticos. Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, publicado em 1948, em dois monumentais tomos, com cerca de 1300 páginas e dedicado “à memória de Nestor Victor”, é item obrigatório em toda biblioteca de estudantes e estudiosos de Literatura Brasileira. Minucioso, acurado, atento e isento de qualquer subjetivismo de seu autor, o compêndio abarca se não todos, quase todos os autores – 131 – embora a observação arguta de Rodrigo Octavio Filho, em “Reflexos do Simbolismo na Poesia Brasileira”, dedicado ao próprio Muricy, apontasse uma única omissão: Bueno Monteiro (!). Afora esses preciosismos, o Panorama estende-se, naturalmente, desde os pródromos do movimento até o seu esmaecimento, nos anos 40 do século XX, pós-moderno e, portanto, já neo-simbolista. Muricy, apesar de compreender todas as realizações da estética, debruça-se, sobretudo e naturalmente, sobre a poesia. De sua opulentíssima introdução, com o feitio já de um tratado sobre o tema, dedica à ficção duas concisas páginas, ainda que liste, esmiúce e analise, com propriedade, as ocorrências na prosa. Assim inicia:

De todas as grandes tendências criadoras da Literatura moderna, o Simbolismo terá sido provavelmente a que menos favoreceu o surto da prosa ficcionista; não direi da prosa viva, porquanto, tornadas indefinidas as fronteiras com o território poético, esta se afirmou de validade e versatilidade inegáveis. Não propriamente a simbolização, mas o processo alusivo e de sugestão, considerado como elemento de sondagem e devassamento da interioridade, refletindo-se na representação e na expressão, interdizia aos criadores do romance e do conto qualquer critério descritivista. Repelia o apoio seguro e objetivo da narração direta. Pelo menos, tirava-lhes a facilidade de usar dos velhos recursos.

Muricy, neste brevíssimo parágrafo, aponta para três questões essenciais, que serão realçadas por uns e rechaçadas por outros: houve, de fato, produção na prosa simbolista, quer seja no conto ou no romance, embora em menor incidência do que nas demais estéticas modernas; nota a “indefinição” da fronteira com os territórios da poesia, o que justifica a inconsistência do julgamento e rotulação por parte de alguns

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críticos e a incerteza de alguns autores desse tempo em classificar sua produção; e por fim, essencialmente, a preponderância da descrição e o esmaecimento da narração direta como elementos fulcrais da prosa simbolista. Quanto aos autores, Muricy lembra que “Cruz e Sousa não escreveu ficção”; cita Nestor Victor, assinalando que em Signos, escrevera a “melhor novela simbolista que possuímos: ‘Sapo’”, tendo ainda escrito o romance Amigos, cuja apreciação inicial teria sido feita por Massaud Moisés, fato que confirma a nossa percepção de que o crítico foi o que melhor investigou e analisou a prosa do Simbolismo, esclarecendo ainda a lábil tríplice fronteira entre o poema em prosa, a prosa poemática e o conto, embora os dois últimos se interseccionem.

Virgílio Várzea também figura na lista, tendo escrito

“contos idealizadíssimos”; de Lima Campos, autor da obra única Confessor Supremo, Muricy destaca “Tia Martinha”; apesar da abalizada opinião do insigne crítico, optamos por analisar “O lilás pisado de suas olheiras...” e “Era alta da linha plástica de uma státua antiga..”, além de transcrever o conto por ele referido. Lamenta, ainda, de passagem, a perda de “Sala Vazia”, obra-prima de Gustavo Santiago, hoje inencontrável; Emiliano Perneta, Julio Perneta e Dario Vellozo; dos primeiros, o crítico ressalta o acentuado tom regionalista. Mendigos, de Alphonsus de Guimaraens, é lembrado, com a ressalva de não “lhe ter acrescentado à grande glória de poeta”. E sobre Gonzaga Duque,

“É, no entanto, no livro Horto de Mágoas que Gonzaga Duque imprime caracterização simbolista indo até o decadentismo, em páginas que são das melhores no seu gênero em todo o movimento brasileiro da tendência.”

Otto Maria Carpeaux, na importantíssima Pequena Bibliografia Critica da Literatura Brasileira, de 1949, ressalva, ao fim da apresentação do Simbolismo, “mas antes deles e logo despois dos poetas, ainda convém citar um dos poucos prosadores de algum valor que o simbolismo produziu: Gonzaga Duque (grifos nossos). Infere-se, naturalmente, que houve prosadores, poucos, e o melhor teria sido o autor de Horto de

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Mágoas, o que coincide com a opinião de Andrade Muricy. Os demais “poucos” sequer são citados. Lucia Miguel-Pereira, crítica contemporânea dos dois citados anteriormente, e a quem Carpeaux dedica o seu livro, no seu clássico História da Literatura Brasileira – Prosa de Ficção – de 1870 a 1920, de 1950, em que disseca a produção no referido período, retoma, de certa forma, o posicionamento refratário de Araripe Júnior, José Verissimo e Silvio Romero em relação ao Simbolismo, de forma geral, e em particular, à realização da ficção. Reúne uma coleção de observações com forte dose de intransigência em relação à estética de Cruz e Sousa, a partir de um referencial que nos parece impróprio e de difícil cotejamento: Gasto o naturalismo, afastadas da literatura ou mortas as suas principais figuras, só um homem, nos fins do século passado, estaria em condições de reunir em torno de si os jovens: Machado de Assis, cuja glória crescia sempre.

E ainda, “o novo romantismo trouxe um travo de morbidez e de delírio, uma abstrusão muitas vezes voluntária”. Note-se que o termo “abstrusão” é o mesmo que se utiliza por Silvio Romero, citado anteriormente, e que, a nosso ver, rotularia, peremptoriamente, a prosa de ficção simbolista. Segue a crítica: Aqui, feita a redução para a escala indígena, as mesmas proporções foram guardadas. O movimento que deu Alphonsus de Guimaraens e Cruz e Sousa não suscitou nenhum romancista de mérito equivalente. Na verdade, foi, na prosa, uma tentativa frustra. (grufos nossos)

Seguem-se, ainda, citações necessárias, como essa, que confirma o alinhamento refratário da crítica com os nossos teóricos finisseculares:

José Verissimo acoimou o nosso simbolismo de ‘imitação intencional e, em muitos casos, desinteligente’. De fato, sob o nome de simbolismo, o que campeava era uma verbosidade difusa e pernóstica. Pulularam revistas efêmeras, armaram-se e desarmaram-se capelas literárias, procurou-se freneticamente o raro, o estranho, o misterioso. (...) Abolia-se tudo o que fosse claro, arejado, sólido, numa atitude explicável como reação contra a vulgaridade em que haviam chafurdado os naturalistas, mas que sufocava a força criadora. (...) A mesma preocupação de

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fugir à normalidade levava as mulheres a se apertar em incríveis espartilhos e os escritores a se fechar em sonhos e a se deleitar em serem incompreendidos.

Na sequência, Lucia Miguel-Pereira cita diversos autores – assinalaremos apenas os que se dedicaram à prosa curta: Alphonsus de Guimaraens, com Mendigos; Nestor Victor, com Signos; a crítica transcreve um fragmento do conto inaugural do volume, “As serenatas”, sem, contudo, nomeá-lo. Lembra-se ainda de Julio Perneta e inclui Coelho Netto, “que adeja pelo simbolismo”, e cita Gonzaga Duque, “certamente o mais lúcido guia desse surto efêmero”. Ao referir-se em nota de pé de página a Confessor Supremo, de Lima Campos, Lucia Miguel-Pereira comete, a nosso ver, um lamentável deslize – talvez por equívoco, omissão ou descaso. Eis a transcrição e a nota: Embora ainda fosse dar este e outros frutos tardios (299) – é simbolista o romance de Lima Campos, muito citado no momento, Confessor Supremo, Laemmert, Rio.

Se é “muito citado no momento” – 1949-50 - , ainda que distante meio século de sua única edição, a crítica não poderia tê-lo classificado equivocadamente. Trata-se, a nosso ver, de uma citação que provavelmente foi mais uma paráfrase, em que se perdeu a oportunidade de debruçar-se sobre um notável volume de contos simbolistas, embora “fruto tardio”, em 1904... Cita ainda, à sequência, Emiliano Perneta, Julio Perneta, Dario Vellozo e Silveira Neto, todos à frente da revista Cenáculo, ressaltando-lhe a longevidade de três anos, em meio a tantas iniciativas fugazes. Por fim, a crítica dedica um alentado capítulo a Tristão da Cunha, o qual, muito embora se notem suas indiscutíveis qualidades, somente publicou em prosa em 1936 (Histórias do Bem e do Mal), constituindo-se assim, um “fruto bem mais tardio” do que o próprio Lima Campos, trinta e dois anos antes. Afrânio Coutinho, a quem devemos o pavio da idéia desse trabalho, é o crítico que enfeixa as questões concernentes à prosa simbolista com maior equilíbrio, acurácia

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e isenção, esta, sobretudo, capaz de desinflamar juízos subjetivos, tantas vezes caros e responsáveis por injustiças. Em A Literatura no Brasil, compêndio obrigatório a todo estudante e estudioso de Letras, Coutinho deslinda a ficção simbolista – sem antes abordar o espinhoso busilis do poemas em prosa e seus congêneres, de forma diacrônica e esclarecedora itemizando autores encabeçados por Nestor Victor, e seu livro Signos, lembrando que este foi (...)discutido com agressividade juvenil pelos simbolistas da segunda geração, e na própria roda dos íntimos de Cruz e Sousa. Isso malgrado o importante artigo do Poeta Negro, do Dante Negro, tão admirado que quase adorado, e respeitado nessa proporção. Cruz e Sousa publicou em A República, tendo aparecido durante três dias, entre 16 e 23 de agosto de 1897, uma apologia sem sombras de Signos. Cada conto é evocado e como repensado e retrabalhado num autêntico poema em prosa,formando uma serie digna de ser incorporada à sua obra em prosa.”

A incensada apreciação crítica de Cruz e Sousa – da qual transcreveremos alguns excertos quando abordarmos os contos de Nestor Victor – foi, de fato, posteriormente, incorporada à sua obra em prosa, em “Dispersos”, Obras completas de Cruz e Sousa, organizada por Andrade Muricy, Ed. Aguilar, 1961, comemorativa pelo centenário de nascimento do autor. E mais uma vez, estranhamos o fato de que, uma obra tão bem acolhida, se mantivesse em única edição até os nossos dias, e tendo merecido, posteriormente, tão poucos estudos. Coutinho refere-se a Signos retomando aspectos de alguns contos, como a peça liminar, “As serenatas”, e, sobretudo, se dedica à novela “Sapo”, considerando-a “a mais representativa no conjunto do movimento simbolista”. Cita Virgílio Várzea, em seguida, sua produção em prosa, sua parceria com Cruz e Sousa, e cognomina-o “o Loti brasileiro”,

devido

às

suas

narrativas

marinhistas.

De Lima Campos, o autor menciona seu (único) livro Confessor Supremo, assinalando, com grande propriedade e conhecimento, os contos “A tia Martinha” ( que incluímos aqui) e “Velha Mangueira”. Lembra ainda Gustavo Santiago, também poeta de prestígio, que teria nos legado um conto notável, “Sala Vazia”, verdadeira obra-prima, dado como perdido e inencontrável por Massaud Moisés.

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Depois de arrolar alguns prosadores como Alfredo de Sarandi, José Henrique de Santa Rita e Carlos Dias Fernandes – autores de novelas e romances -, Coutinho dedica alentados parágrafos ao exame e análise da obra de Gonzaga Duque. Para ele, é em Horto de Mágoas (1914, póstumo), “que a fusão dos elementos formais e de sensibiliadde imaginativa conjugam-se de modo mais íntimo. Destaca “Sob a estola da morte”, entre as narrativas: “romantismo, decadentismo, goncourtismo, tudo isso ganhou elegância aristocrática, preciosismo extremo, nas mãos de Gonzaga Duque”. É, no entanto, sobre Rocha Pombo a mais extensa apreciação. Aponta-nos o crítico que em Contos e Pontos (1911) – também em única edição e do qual incluímos narrativas nessa antologia, (...)tem duas peças curiosamente sintomáticas da indistinção e, no mais das vezes, da interpenetração dos gêneros em mãos dos ficcionistas-poetas do Simbolismo. Os limites entre o conto-narração e o poema em prosa são pouco marcados. Frequentemente esses gêneros fundem-se numa vagueza de sonho, que já não é mais propriamente poesia em prosa, e ainda não chega à prosa impressionista.

O crítico refere-se às narrativas “A Boa Nova” e “Sarica”, esta, “um conto, um verdadeiro conto, contruído sobre um ‘instantâneo’ admirável de psicologia infantil, e que poderia ser de Machado de Assis.” A seguir, Coutinho dedica-se longa e detidamente à análise do romance No Hospício (1905), tido, por ele, ao lado de outros dois grandes romances simbolistas brasileiros: Canaã (1901), de Graça Aranha, e Mocidade Morta (1897), de Gonzaga Duque. Tal romance de Rocha Pombo seria ainda abordado com grande propriedade por Cassiana Lacerda Carollo em sua reedição, quase um século depois, pela Prefeitura Municipal de Curitiba, na coleção “Farol do Saber”, em 1996. Massaud Moisés, em sua obra singular O Simbolismo (São Paulo: Cultrix, 1966), já citados ambos aqui anteriormente, expõe, examina e analisa a prosa simbolista – bem como todas as formas literárias do movimento - de forma categórica e definitiva, a nosso ver, uma vez que esmiúça as narrativas, uma a uma, ainda que concisamente, dando provas cabais de tê-las lido, com efeito, e não parafraseado. Já nos estendemos

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sobre suas abalizadas colocações em outros tópicos, mas ainda é importante que acrescentemos um ou outro ponto. Moisés itemiza as tipologias narrativas, separando-as em poemas em prosa, conto e romance. Quanto ao conto, objeto de nosso interesse fulcral, o crítico destaca inicialmente Gustavo Santiago, autor do lendário e inencontrável “Sala Vazia”; segue listando Virgílio Várzea, com propriedade; de Soares de Sousa, autor de Estepes (1894), Massaud ressalta que suas narrativas “que ele denomina de contos, consistem algumas das vezes de simples cromos ou de reflexões (...)”. Segue tratando de autores denominados “figuras menores”, como José Vicente Sobrinho, com Contos e Fantasias (1898), chama a atenção em classificá-lo como “poemas em prosa, essa dúzia de trechos vazados numa linguagem translúcida, justifica o segundo termo do título da obra.” Pedro Vaz, autor de Crepúsculos (1898), também enfeixaria “narrativas por ele denominadas de contos”; ressalte-se que Moisés, embora cite um a um, e de certa forma, os descarte como contistas a rigor, refere-se detidamente a várias das narrativas ali presentes, delineando aspectos intrínsecos de cada uma. Sobre Julio Perneta, autor de Bronzes (1897) e Malditos (1909), Moisés sublinha que “embora intitule suas narrativas de contos, a rigor seriam classificadas de crônicas, poemas em prosa, reflexões e páginas de memória”, mesmo assim, procedendo com o mesmo denodo e isenção, ao exame e levantamento das narrativas. O cimo é ocupado por Lima Campos, Gonzaga Duque e Nestor Victor. Lembra Moisés a atividade intelectual de Lima Campos, como jornalista militante, fundador de revistas, sobretudo a longeva Fon-Fon!, juntamente com Mario Pederneiras e Gonzaga Duque, a que já nos referimos anteriormente. Ressalta, num poder de síntese notável, que o autor de Confessor Supremo traz no bojo de suas narrativas “um contorno indeciso e vago como a poesia simbolista, destituída de ossatura episódica e de personagens”. Tal observação, a nosso ver, talvez seja a mais cabível leitura e classificação do que viria a ser a prosa curta simbolista. Na seqüência, analisa detidamente alguns contos da obra única de Lima Campos, como “Na Fronteira”; “Amor”; “Boca”; “Natal”, e intitulados.

“Ave Estranha”, citando ainda aqueles que não são

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Sobre o autor de Mocidade Morta, Moisés dedica-lhe nada menos do que oito páginas de seu alentado compêndio, de que retiramos uma observação lapidar e caríssima ao nosso trabalho: “Gonzaga Duque conseguiu, como raros dentro do nosso Simbolismo, escrever autênticos contos, e contos simbolistas. Quer dizer: alcançou a harmonia entre a fabulação estruturada, coesa, dotada de começo, meio e fim, e a linguagem poética, segundo os mais extremados processos decadentes e simbolistas” (grifos nossos).

Ressaltando os aspectos e pormenores atentíssimos, Moisés refere-se aos contos “Posse Suprema”; “Morte do Palhaço”; “Ciúme Póstumo”; “Confirmação”; assinala o antecipador complexo de Édipo em “Agonia por Semelhança”; “Idílio Roxo” – este, incluído em nossa antologia; “Miss Fatalidade”; a erudição de Gonzaga em “Aquela mulher...”, citando versos de Samain, Wilde – também referido por Gastão Cruls, como assinalamos em “A noiva de Oscar Wilde”, também antologizado -; suscita ainda uma intertextualidade provavelmente involuntária entre “Miss Fatalidade” com A cidade e as serras e A Correspondência de Fradique de Mendes, de Eça de Queirós, e por fim, “Sapo”, evocando o homônimo texto de Nestor Victor, de quem passa a analisar, também detidamente, o livro Signos (1897). Moisés, analogamente ao procedimento com Gonzaga Duque, dedica a Nestor Victor seis páginas de análises aos seus contos. E frisa, de antemão, que houve, tanto em um quanto em outro, a “osmose entre a ficção narrativa e descritiva e a poesia, e franca adesão aos fundamentos estéticos e culturais do Simbolismo”. Com relação a “As serenatas”, conto inicial do volume, o crítico assinala que se trata de um “chamariz para o banquete verbal que virá”, constituindo, propriamente, uma profissão de fé simbolista, prenhe de características peculiares inerentes à estética, como o tédio, o alegórico, o desalento e o mistério. Cita ainda “Olvério”, narrativa exótica e orientalista, com toques de maravilhoso e fantástico. É, entretanto, em relação à novela “Sapo”, peça que encerra o volume de Nestor Victor, que Moisés, analogamente à condução de Afrânio Coutinho, mais de detém, com propriedade, lembrando a consecução pioneira do autor na introspecção do “eu

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profundo”, estabelecendo um monólogo interior cuja introdução ainda era recente, através da obra Les lauriers sont coupés (1887), de Edouard Dujardin. Conclui seu exame crítico assinalando categoricamente que (...) força é afirmar que todas essas características fazem de Signos um livro importante não apenas para a historia do nosso Simbolismo mas mesmo da nossa prosa de ficção. Quando menos, ostenta merecidamente o lugar de precursor, mais do que nenhum outro ficcionista de seu tempo, em matéria de monólogo interior. (grifos nossos).

Com relação ao mestre Antonio Candido, curiosamente, não encontramos maiores subsídios que o fizessem figurar aqui, com referência às suas argutas observações. Dentre as suas obras de que dispomos, pesquisamos na seminal Formação da Literatura Brasileira, além de Na sala de aula; A educação pela noite e outros ensaios e Literatura e sociedade, os quais muito embora aprofundem análises sobre variados períodos literários, autores, obras e temas, não obtivemos, ali, elementos para embasar nossas questões, especificamente sobre o conto simbolista, sem que desmereçamos, sob qualquer hipótese, as inestimáveis contribuições deste notável crítico de nossa literatura. De Literatura e Sociedade, extraímos o seguinte trecho, único referente ao Simbolismo,no capítulo VI, “Literatura e Cultura de 1900 a 1945 (panorama para estrangeiros), sintético e pertinente, assim:

O Simbolismo projeção final do espírito romântico, constitui desenvolvimento mais original, limitando-se, porém à obra de Cruz e Sousa (ainda próxima dos parnasianos a despeito de tudo), à de Alphonsus de Guimaraens, pouco conhecida antes dos nossos dias. Como movimento estético e ideológico, o Simbolismo serviu de núcleo a manifestações espiritualistas, contrapostas ao naturalismo plástico dos parnasianos.

Alfredo Bosi, a quem devemos o mais profundo respeito acadêmico pelas suas notáveis contribuições como crítico literário contemporâneo, posiciona-se - como já assinalamos antes - negativamente em relação à possibilidade da ficção simbolista, assumindo, de certa forma, um tom pejorativo e até jocoso, o que nos parece uma franca injustiça.

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Talvez por desatenção ou desdém pela produção simbolista em prosa – transparecendo mesmo a nítida confusão entre as tênues fronteiras dos poemas em prosa e a prosa poemática, já deslindadas clara e definitivamente por Massaud Moisés - o professor Bosi, em sua apreciação a Xavier Marques, autor que antologizamos aqui, equivoca-se duas vezes, ao analisar o conto “Jana e Joel” ( um conto extenso e estruturado quase como um “mini-romance”) e confundi-lo com “A noiva do golfinho” ( nossa escolha para esse trabalho), tanto em História concisa da literatura brasileira quanto em O pré-modernismo, levando-nos a considerar um deslize de revisão, ou mera paráfrase de compêndios congêneres. Wilson Martins, no prefácio a reedição de No hospício, de Rocha Pombo, ressalta que A ficção simbolista foi escrita em versos – nos longos poemas narrativos e nos poemas em prosa, popularizados por Baudelaire (Petits poèmes em prose, 1869) pelo modelo paradigmático de Aloysius Bertrand (Gaspard de la nuit, 1842), embora, bem entendido, a prosa poética tenha tradições mais antigas. É por conseqüência, claramente errônea a verdade aceita da crítica, segundo a qual o simbolismo foi particularmente pobre na ficção.

Isso posto, elencados os críticos mencionados, investigada a produção finissecular embebida do teor simbolista, entrecruzadas tendências e aspectos caracterizadores e peculiares, traços estilísticos notáveis e questões contextuais, chegamos à lista de autores e suas respectivas narrativas. As características que os afinaram, em nossas escolhas, talvez pudessem todas ser extraídas implícita ou explicitamente do poema “Antífona”, de Cruz e Sousa, de fato, a “profissão de fé” simbolista: 

misticismo/espiritualismo;



pessimismo, melancolia;



forte subjetivismo;



estados de delírio/ alucinação/ fantasia;

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expressão da realidade de forma vaga;



intensa adjetivação (dupla e às vezes tripla);



notas de erotismo;



emprego abundante de sinestesias;



musicalidade – através de sugestões, instrumentos ou como trilha;



morbidez (ultra-romântica); e



crepúsculo como cenário ( conferindo, assim, com pouca luz, a imprecisão de contornos e sugerindo um cromatismo exuberante e de muitos matizes).

As omissões

Antes de listarmos os autores, cumpre ainda que registremos uma lista também de omissões e suas justificativas. Muitos dos autores abaixo foram consignados em alguns dos compêndios já citados, e por razões que assinalaremos sucintamente, foram dispensados do elenco final da antologia, uma vez que se fizeram necesários ajustes para o recorte do corpus final. Alphonsus de Guimaraens, incontestável poeta simbolista e citação obrigatória e unânime nos manuais do Ensino Médio, como vimos, legou-nos o volume com 45 narrativas Mendigos ( Typographia Casa Mendes, Ouro Preto, 1920), examinado em nossas pesquisas. Embora ali tenhamos encontrado algumas importantes amostras com fabulações evidentes, eram, em sua maioria, poemas em prosa, todos muito concisos. Há, em meio a esses, alguns títulos interessantes, mais acentuadamente inclinados à estrutura de contos, como “Espectro” e “Ronda de bêbedos”, e ainda, uma curiosa versão em prosa do célebre poema “Ismália”. Entretanto, pelo conjunto apresentado, optamos pela sua ausência.

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Acompanhamos a abalizada posição de Massaud Moisés, ao classificar a produção prosaica de Julio Pernetta e Emilio Pernetta de “crônicas, cromos, poemas em prosa, reflexões ou páginas de memória”, não obstante a grande importância dos referidos autores como poetas ( em prosa, também).

Gustavo Santiago, autor do

“inencontrável” conto “Sala Vazia”, por motivos óbvios. Adquirimos, para melhor pesquisarmos, o volume Obras II ( Curitiba: Instituto Neo-Pitagórico, 1969 – edição comemorativa do centenário de nascimento do autor) , parte das obras completas de Dario Vellozo, que enfeixa a seção em prosa de suas produções - Primeiros Ensaios (1889); o célebre Esquifes (1892-1895); No Sólio do Amanhã (1903-4); Da Tribuna e da Imprensa (1915); No Limiar da Paz ( 1919- 1923); Livro de Alyr (1902-1920); Flauta Rústica (1924-5) e Psiquês (1924-1932) – em que pese a presença de alguns contos bem tecidos – sobretudo em Esquifes, pareceu-nos

que a temática

místico-esotérica, algo doutrinária, assoma-se sobre a própria poiésis que deveria ser, talvez, a força motriz literária. Um dos critérios de nosso trabalho para a escolha de autores é o ostracismo, a ausência de reedições e releituras. Assim, Simões Lopes Neto, Afrânio Peixoto e Afonso Arinos, embora citados nos compêndios pelo acento simbolista em seus contos, além de, a nosso ver, estarem mais inclinados ao regionalismo, e, portanto, o referido acento tornar-se um tanto esmaecido, são autores consagrados, reeditados por varias vezes, em seletas escolares e coleções de clássicos de nossa literatura. Coelho Netto, o autor mais prolífico de nossa literatura, encontrando companhia somente junto a Josué Montello, apesar de ser citado por Andrade Muricy e Lucia Miguel-Pereira por pender ao Simbolismo aqui e ali, parece-nos, pelo conjunto da extensíssima obra, mais afinado aos propósitos do Realismo, especialmente ao Parnasianismo, o que pode ser ilustrado pela sua célebre declaração, em 1924, em sessão da Academia Brasileira de Letras, “eu sou o último heleno!”. Não obstante o auto-título que o filiaria menos aos princípios simbolistas, sua obra também é notavelmente difundida, mesmo tendo recebido forte oposição modernista, por muito tempo.

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Em nossas pesquisas, encontramos também a cearense Emília Freitas (Aracati, 11 de janeiro de 1855 - Manaus, 18 de outubro de 1908), autora do romance fantástico (mais avizinhado à novela) A rainha do ignoto (1889). De curta e interessantíssima obra, com fortes notas simbolistas, entretanto, como não produziu contos, não integra esse corpus. Adelino Magalhães, recebido com ressalvas por Nestor Victor na ocasião da publicação de Casos e impressões (1914), é percebido pela crítica como um “impressionista”, e apesar de tal rótulo não esmaecer ou rechaçar o acento simbolista, muito ao contrário, entendemos que a inclusão de um de seus contos destoaria dos demais antologizados, pelos traços estilísticos do autor. Buscamos produções em prosa curta de Batista Cepelos (Cotia, SP, 10 de dezembro de 1872 — Rio de Janeiro, 8 de maio de 1915), autor de O vil metal (1910); Carlos Dias Fernandes (Mamanguape, PB, 20 de setembro de 1874 — Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1942), amigo de Cruz e Sousa e autor de Fretana (1936), romance mencionado por Massaud Moisés, em que mescla memória e ficção com vultos simbolistas, e Faria Neves Sobrinho (Recife, 2 de abril de 1872 — Rio de Janeiro, 4 ou 24 de janeiro de 1927), autor de O hidrófobo (1896), cuja primeira edição encontramos na Biblioteca Nacional e na Hathi Trust Digital Library (meio digital), e além de não encontrarmos títulos, pareceram-nos, todos, mais inclinados ao Naturalismo, com temática regional. As ausências mais sentidas foram as de Eduardo Guimaraens (Porto Alegre, 30 de março de 1892 — Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 1928), que formara com Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens a “trindade simbolista”, publicou em 1912 o volume de contos Arabela e Atanael, que não foi encontrado em nossas pesquisas junto à Biblioteca Nacional, Fundação Casa de Rui Barbosa, Biblioteca Central da UFSC, Acervo Brasiliana da USP – Coleção José Mindlin, nem em outro meio digital. Também

de

Lúcio

Leocádio

Pereira (Paranaguá, 5

de

maio de 1860 - Curitiba, 1933), autor de Contos Paranaenses (1896), mencionado por Andrade Muricy, não encontramos um exemplar sequer,nas mesmas instituições citadas

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acima, para que pudéssemos examiná-lo; porém, imaginávamos, por pesquisas iniciais, que poderíamos consignar uma de suas narrativas em nossa antologia.

7.1 VICTOR dos Santos, Nestor. (Paranaguá, PR, 12/4/1868 – Rio de Janeiro, 13/10/1932). Professor, jornalista, poeta, escritor e crítico. Fez seus estudos primários ainda no Paraná, e os secundários no Rio de Janeiro, para onde se mudou em 1890 e passou a se dedicar ao magistério de Língua Portuguesa. Dois anos antes, ainda em Curitiba, tomara conhecimento da obra Flores do mal, de Baudelaire, através de Emiliano Perneta, quando este cursava Direito em São Paulo, e viera passar as férias na capital paranaense. Em 1889, em sua primeira passagem no Rio de Janeiro, encontrou-se, no Café Londres, com Cruz e Sousa, que lhe mostrou versos que o extasiaram. Mudou-se para o Rio no ano seguinte, juntando-se aos “novos” que se formavam em torno de Cruz e Sousa; quando este publicou Missal, em 1893, Nestor publicou-lhe a primeira crítica favorável, publicada no número 6 da revista do Club Curitibano. No ano seguinte foi nomeado pelo marechal Floriano Peixoto Vice-Diretor do Internato Ginásio Nacional, no qual lecionavam também Silvio Romero e João Ribeiro. Em 1896 concluiu sua monografia sobre Cruz e Sousa e no ano seguinte publicou o volume de contos Signos, hoje muito raro e elogiadíssimo pelo “Dante Negro” nas páginas de “A República”,posteriormente reunidas em “Dispersos”. Tendo a saúde cada vez mais debilitada, o altíssimo poeta, embora auxiliado financeiramente por Nestor Victor de modo que se tratasse em Minas Gerais, veio a falecer a 19 de março de 1898. Publicou, um ano depois, a sua monografia sobre Cruz e Sousa, que a conhecera três anos antes. Em 1900, começou a compilar suas anotações criticas, muitas delas em prol do Simbolismo, que viriam a ser editadas sob o título de As folhas que ficam (1914), subdivididas em Horas heróicas (1900-1902); A sabedoria do exílio ; A esperança da volta (1902-1905) e A serenidade (1906-1914). Graças a ele, no mesmo ano, editou-se Farois, de Cruz e Sousa, e o seu romance Amigos. Ainda abalado com a perda de seu grande amigo e sentindo-se apartado dos círculos simbolistas, seguiu para a Europa, acompanhado de seu irmão, Francisco Norberto. Em 1902, em Paris, estagiou, lecionou,foi preceptor do filho do Barão do Rio Branco, tornando-se lá correspondente

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dos jornais O País e O Correio Paulistano, além de tradutor e revisor da editora Garnier. No mesmo ano, escreveu vários ensaios que seriam concluídos em Crítica de ontem e publicou a obra poética Transfigurações – 1888-1889. Em 1903 traduziu e publicou Sabedoria e o Destino, de Maeterlinck. Publicou, em 1905, em Paris, pela Aillaud, Os útimos sonetos de Cruz e Sousa, retornando ao Brasil no final do ano, quando passou a colaborar como crítico literário em Os Anais, de Domingos Olympio. Em 1906 retomou o magistério no Brasil, lecionando no Colégio Pedro II e na Escola Normal. Nessa ocasião, deu o Simbolismo como um movimento esgotado, caracterizando o poeta Mario Pederneiras como “neo-simbolista”. Em 1911 veio a público Paris – impressões de um brasileiro, com introdução de Maeterlinck, e considerada por Silvio Romero a obra clássica sobre viagem da literatura brasileira. A segunda edição saiu em 1913, editada já pela nacional Livraria Francisco Alves, mesmo ano em que publica A Terra do futuro e passa a colaborar na Folha da Manhã, da capital carioca. O conjunto de ensaios, escritos e reunidos entre 1898 e 1914, que deveriam resultar no livro O que fui, o que sou, recebeu o título de Crítica de ontem, sendo publicado seis anos depois, devido à eclosão da I Grande Guerra. O estudo sobre Xavier Marques – aqui antologizado com “A noiva do golfinho” - , Rodolfo Teófilo e Pápi Jr., Três romancistas do Norte saiu em 1915, junto com Elogio da Criança. Na ocasião, passa a frequentar a Livraria Garnier, no Rio, na companhia de Humberto de Campos, Melo Morais Filho, Rocha Pombo – também presente em nossa antologia – Graça Aranha, Farias Brito, e outros. Em 1917 o Congresso Legislativo do Paraná elegeu-o deputado. Em 1919 colaborou assiduamente com a revista América Latina, dirigida por Tasso da Silveira e Andrade Muricy; lembramos que as iniciativas profícuas e de caráter inovador do periódico culminariam na incensada Festa - Revista de Arte e Pensamento (RJ, 22 números em 2 fases, 1927/29 e 1934/35, dirigida por Tasso da Silveira, Andrade Muricy e o chamado "Grupo de Festa"). No ano seguinte, publicou Folhas que ficam -- Emoções e Pensamentos; em 1921, veio a público O Elogio do Amigo. Em 1923, ocasião do 30º aniversário de morte

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de Cruz e Sousa, Nestor Victor esteve a frente da organização dos festejos, que culminariam com a primeira edição da Obra Completa de Cruz e Sousa (assim, no singular), assinando o estudo introdutório. Cartas à Gente Nova, compilação de críticas e recensões a autores novos e antigos, com prefácio de Jackson de Figueiredo, é publicada em 1924. No ano posterior, começou sua carreira em O Globo, como crítico literário titular do jornal. Em 1928 foi eleito membro titular da Academia Paranaense de Letras; nesse mesmo ano, passou a integrar o quadro de colaboradores regulares do jornal O Estado de São Paulo. Em 1930, prestou exames para professor titular de Literatura Brasileira da Escola Normal – hoje Instituto de Educação do Rio de Janeiro -, logrando êxito e, assim, deixou o posto em O Globo, passando-o a Elói Pontes. Acometido de fortes anginas de peito, Nestor Victor falece a 13 de outubro de 1932, aos 64 anos, em sua residência, na rua Humaitá 155, no bairro do mesmo nome, Zona Sul do Rio de Janeiro. .

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Nestor Victor inscreveu seu nome na história da Literatura Brasileira como o primeiro – e o maior - crítico do Simbolismo, cuja atividade, de predomínio francamente estético – talvez um precursor da “Nova Crítica”, revelou e incentivou os autores novéis, abrandando os defeitos com elogios fundamentados e comedidos, bem como lhes sugerindo outros rumos e direções. Reagia, portanto, à “crítica cientificista”, então em voga, deslocando-a para o subjetivismo. Ele assim o faz, por cartas, ao abordar as obras Casos e impressões (1917) e Visões, cenas e perfis (1918) de Adelino Magalhães, que são transcritas em suas Cartas à gente nova (1924), em cujas notas introdutórias confessa sua plena satisfação por ser essa obra, até sua época, “o quadro mais numeroso que apareceu de gente nova do Brasil nas letras.” De riquíssima bagagem erudita, que o fez singrar também pelos bravios mares da ensaística, ao abordar em seu tempo, com argúcia e pertinência, Ibsen, Proust,

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Maeterlinck – com quem chegou a se corresponder e lhe fez uma introdução – e Nietzsche – que viria a revolucionar suas idéias -, Nestor Victor teve sua existência marcada, essencialmente, pela amizade com Cruz e Sousa, de cuja perda jamais se recompôs, como assinala Andrade Muricy: Morto este, em 1898, foi terrível o golpe recebido, e que sangrou até o fim da sua vida. Confessava que nenhuma amizade pudera proporcionar-lhe o alimento substancioso, o alto inebriamento espiritual que lhe valia o trato com o Poeta Negro. Este confessou idêntico sentimento, no referente a Nestor Victor, nos sonetos intitulados “Pacto das Almas” (1987, vol.1, pág. 337).

Transcrevemos, a seguir, o primeiro dos três sonetos denominados de “Pacto das Almas”, aliás, os três últimos de Últimos Sonetos, editados pelo próprio Nestor Victor pela Aillaud, no ano de 1905, em Paris :

PACTO DE ALMAS A Nestor Victor Por devotamento e admiração. 12 de outubro de 1897. I PARA SEMPRE! Ah! para sempre! para sempre! Agora Não nos separaremos nem um dia... Nunca mais, nunca mais, nesta harmonia Das nossas almas de divina aurora. A voz do céu pode vibrar sonora Ou do Inferno a sinistra sinfonia, Que num fundo de astral melancolia Minh’alma com a tu’alma goza e chora. Para sempre está feito o augusto pacto! Cegos serenos do celeste tato, Do Sonho envoltos na estrelada rede. E perdidas, perdidas no Infinito As nossas almas, no Clarão bendito, Hão de enfim saciar toda esta sede... (...)

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A morte de Cruz e Sousa – perda de que Nestor Victor jamais se recuperaria – ocasionou o longo poema “A Cruz e Sousa”, composto por 51 quadras em alexandrinos, das quais transcrevemos as três primeiras:

“A CRUZ E SOUSA † Não Gemem na minh’alma árias langues de morte, Antes vibram clarins e há alvoroços de guerra; Somente, um tal tremor faz-me vibrar tão forte Que sou, todo, um soluço a ansiar sobre a Terra!

Não! os que, como tu, morrem sacramentados Com a Extrema-Unção da glória, e andaram impolutos, No casulo do Sonho, esperando, calados, A Vida após a Morte, a Pompa Real nos Lutos,

Não nos fazem pensar na frialdade ao peito De uma laje medonha, ao cair exausto; Vê-se neles o gesto augusto de um Eleito... Ouvem hosanas no ar, abrem-se céus em faustos! .................................................................

Ao citarmos Andrade Muricy em seu magistral Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, de onde extraímos o fragmento acima, cumpre assinalarmos que a referida obra é dedicada a Nestor Victor. Antes de abordarmos o seu raríssimo volume Signos, objeto central desse capítulo, é importante observarmos também que o ilustre simbolista paranaense viveu a transição do século XIX ao XX, período dos mais críticos de nossa história, participando dela ativamente, seja na política ou nas artes. Apoiou o contragolpe de 23 de novembro de 1891 que levou o Marechal Deodoro da Fonseca à renùncia; foi

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florianista no episódio da Revolta da Armada, em 1893; foi caloroso aos feitos de Santos-Dumont em 1906; durante a I Guerra Mundial, foi Secretário e fundador da Liga Brasileira dos Aliados, presidida por Rui Barbosa e José Verissimo como vice-presidente. Signos (1897, Rio: Typographia Correia, Neves) é um aparente enigma da criação de Nestor Victor. Como pode um livro ter sido recebido com uma opulentíssima recensão de Cruz e Sousa – publicada em capítulos, no jornal A República entre 16 e 23 de agosto de 1897, e, para muitos, constituiria um longo poema em prosa – jamais ter merecido uma segunda edição? E nenhum de seus contos, ali reunidos, foi sequer transcrito ou reeditado. De sua diminuta tiragem inicial, hoje há raríssimos exemplares à disposição de pesquisadores no país, nem mesmo figurando na vastíssima Coleção Brasiliana, da USP, acervo originalmente do bibliófilo José Mindlin. Quando estivemos em pesquisa na Universidade Federal de Santa Catarina, obtivemos a informação de que somente a biblioteca da Fundação Casa de Ruy Barbosa disporia de um exemplar, passível de consulta mediante agendamento e prévia autorização. Obtivemos a licença para examinar o volume, na referida instituição, conseguindo o objetivo maior de poder reproduzir algumas de suas páginas. O exemplar, único, encontrava-se em excelente estado, encadernado, com poucos índices de manuseio, e, para nossa felicidade, trazia nas folhas de rosto uma dedicatória a Gonzaga Duque, que reproduzimos, ao lado da capa original, nos anexos:

“À bizarra aristocracia de espírito que caracteriza Gonzaga Duque Estrada, offereço um affecto para este exemplar dos Signos, que julgo de meu dever offerecer-lhe, não só por motivos mentaes, como pelo doce captiveiro que me impõe sua camaradagem carinhosa e distincta. Nestor Victor Rio, 6 de Outubro, 1897.”

Signos apresenta-se em 208 páginas com dez narrativas e a célebre novela “Sapo”, esta dividida em 11 partes e 79 páginas. Os contos são: “As serenatas”, um conto mais à feição de poema em prosa, longa reflexão do autor sobre a estética que

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abraça, ou mesmo, como “profissão de fé”; “Fatalidade”, conto incensado por Cruz e Sousa como um dos “quatro pilares” do livro; “Hyranio e Garba”, conto fantástico ambientado num mundo exótico, “Morkoma”, revelando hábitos e modos estranhos aos nossos ; “Agonias”, escrito em tópicos, revela, em traços concisos, o breve cotidiano de alguns sacerdotes, em um convento; “O Máscara”

- único conto a ostentar uma

epígrafe, de Villiers De L’Isle Adam, importante simbolista francês, autor de Contes Cruels (1883) - tem a estrutura de caso (“causo”), história narrada na sala, entre amigos, com intenção de conferir verossimilhança; “Olvério”, com ambientação também exótica, trata de um romance entre um príncipe oriental e sua amada, Fenema, com final não feliz; “A Victoria”, com notas de erotismo sutil, trata do idílio entre um jovem casal, em que uma moça, não correspondida, exige o amor ardente do noivo, que enfim cede aos seus caprichos, amando-a (situação muito próxima a de “Idílio Roxo”, de Gonzaga Duque); “Humour” é um conto dividido em três partes – o que o torna o mais longo do livro – e tem também a estrutura de “caso”, um tanto avizinhado com a introspecção

machadiana, com final aberto e inusitado; “Alegria fúnebre” é uma

narrativa notável, estruturada com grande destreza pelo autor, e trata de um inusitado casal de mendigos – uma indígena paraguaia e um negro ex-combatente da Guerra do Paraguai – já envelhecidos e com a relação desgastada pelo tempo, o adoecimento do velho soldado, sua morte e um final absolutamente improvável e surpreendeente (note-se que o desfecho inusitado também se verifica em Oscar Rosas, Virgílio Várzea, Lima Campos, Rocha Pombo e Medeiros e Albuquerque; e a temática da mendicância também é enfocada por Rocha Pombo, em “Sarica”, citado por Afrânio Coutinho, e em “Mendigos”, do livro homônimo de Alphonsus de Guimaraens); “Sapo”, novela extensa e minuciosamente analisada por Massaud Moisés, em que dois amigos, Bruce e Ernesto, desfazem a amizade quando o segundo se enamora de uma moça leviana, levando Bruce a um processo de degradação psicológica, que passa a assumir a identidade e o modus vivendi de um batráquio; e por fim, “Gavita”, bela narrativa que enfoca a vida de uma jovem alegre, altruísta, e um amor não correspondido, com um desfecho surpreendente, em engenhosa manobra do narrador. É este o conto que elegemos para análise e para figurar em nossa antologia.

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A primeira impressão do conto é suscitada pelo seu título, com o nome da personagem, Gavita, homônimo da esposa de Cruz e Sousa, sugerindo uma homenagem, embora não haja, na narrativa, quaisquer elementos que permitam fazer correlações com a pessoa de Gavita, além de seu nome, que pela singularidade, torna plausível a referência. O narrador-onisciente descortina a história com o apóstrofe “Gavita!”, que se repetirá como um mote, vocativo, ao longo do enredo, anaforicamente, como uma saudação laudatória. O primeiro parágrafo a descreve como uma menina-mulher de 15 anos, mesclando traços diáfanos, alvos e angelicais, a contornos da mulher que já se insinua e desperta o desejo. Não há referências iniciais explícitas às suas formas, cabelos, rosto, olhos; é irrequieta, e “suas mãozinhas aristocráticas”, de dedos finos, são pouco hábeis no teclado do piano, onde executa peças fáceis como árias, barcarolas ligeiras e “valsas vaporosas” e, bela imagem, tange as teclas “como um pássaro tira ardentias nas ondas com a ponta das asas, noctambulando pelo mar.” Importante ressaltar, nestes parágrafos iniciais, os recursos estilísticos que serão enfáticos ao longo da narrativa, como as aliterações:

“Seus quinze annos são como os quinze degráos de ouro de um pedestal que ella levou a subir sorrindo – visão estranha, – adelgaçando-se melhor, definindo-se melhor, absurdamente, quanto mais subia. Foi como um encanto que, anciando em si mesmo, forçasse e se fosse corporificando n´um encanto maior. Sorriso que se fizesse luz. Anjo, cujas vestes curtas, como elle ia subindo, desdobrassem-se em delgada tunica, e cujo perfil, afilando, affinando, se fizesse um perfil de mulher, para ser o de um anjo mais seductor e mais meigo.” (ortografia original, grifos nossos, Anexos, pág. 6)

São ainda notáveis as repetições de ordem estilística (dupla sublinha, no texto) em apenas um parágrafo, tais como epanalepses (“quinze annos”/ “quinze degráos”; “adelgaçando-se melhor, definindo-se melhor”;

“Foi como um encanto (...)/n´um

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encanto maior(...)”; “Anjo, cujas vestes curtas(...)”/ “(...)anjo mais seductor e mais meigo”); “(...)cujo perfil, afilando(...)”/ “(...)se fizesse um perfil de mulher”, e as antanáclases “(...)ella levou a subir(...)” / “(...)quanto mais subia(..)”/ “(...)como elle ia subindo(...)”; “(...)que ella levou a subir sorrindo (...)”/ “Sorriso que se fizesse luz.”, e “(...)adelgaçando-se melhor,(...)” / desdobrassem-se em delgada túnica.”.

Gavita veste rendas alvas e sua descrição sublinha a diafaneidade de suas formas angelicais, com adjetivação e símile significativas: Ella sabe unicamente fazer encanto em redor. Roupas brancas, cobertas de rendas, cabellos louros em caixos frouxos e negligentes, perfil delicioso, grandes olhos azues com raios de ouro, e um passo alado, de ave meio selvagem á beira de um rio. ( Anexos, pág. 7, grafia original, grifos nossos).

São reincidentes, desde já, as imagens e símbolos que aludam ao branco, à alvura e à claridade, além do ouro, dourado, quer sejam nos “caixos” de Gavita, ou nos frisos e ornatos. Notem-se, também, os vocábulos associados ao campo semântico do ar, que ainda reincidirão ao longo da narrativa: “aéreo”, “angelical”, “anjo”, “vaporoso”, “ave”, “asas”, “alado”. Gavita é uma “creança” que todo pai adoraria ver crescer, em casa. Entretanto, sua voz é feminina, ainda com uns “restos longínquos de tom infantil”, o que a torna uma menina-mulher, híbrido que antecipa a possibilidade do desejo a ser instalado. Em dois trechos escolhidos, à seqüência, alguns traços distintivos caros à estética simbolista: o cromatismo, a música – já expressa pelos dotes ao piano – , as impressões sensoriais/sinestésicas e o onírico:

Passa-lhe o mundo através de finos stores, todo azul, como uma canção que se ouve de noite, ao longe, advinhando-se que lá fóra, tudo adormece sob os philtros do luar! Idéas... Modos de seu ser harmonioso e angelico, simplesmente, para que os ouvidos se encantem, como o perfume é um modo de ser da flor, d´essa essência de delicadeza e frescura, para fazer a delicia do olphato.

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Ella falar, ou ella rir... Musicas, musicas sómente... Apenas, uma se deu ao luxo da lettra, que, no emtanto, nem se ouve, ficando-nos adormecida a razão, como a de um chim opiado, a imaginativa batendo azas para um mundo de vaporosos coloridos, em sonho. (ortografia original, Anexos, pág. 7)

O agente que transmutará Gavita de menina à mulher é a assistência a um sobrinho e afilhado, bebê, que carece de cuidados. A mudança é notada em seus passos, antes alados, ora mais próximos do chão, e notavelmente “musicaes”; a face assume a palidez ultra-romântica. Note-se, também, as epanalepses nos dois trechos: “passos” e “vigília”, respectivamente:

Os passos alados délla são hoje, de tão leves, de tão cautos, sombras apenas de seus passos, vividos e musicaes ainda hontem. Ella tem nas faces as rosas pallidas da vigília, como uma doce enfermeira. Porque passou em vigília, insistente, toda a noute, em verdade. (ortografia original, Anexos, pág. 8)

Gavita-mulher, metamorfoseada pela dor da pequena criança, no entanto, chega a essa condição com o status de santa. O misticismo religioso se instala, através da pureza, da fé, e alça Gavita a uma maternidade que a “deserotiza”:

Sobre a cabeça da menina de ha tão pouco parece que fulge o resplendor de uma santa. Na serenidade que lhe inunda o semblante já não se lê a feliz despreoccupação de seus dias risonhos, lê-se a fé, essa rosa mystica que só viceja nos corações fecundados pela dor. D´esta, como do casulo sae a borboleta, sahira mais aquella mulher. No anjo, em que a adolescência ainda não marcara bem firme os seus traços, havia agora reverberos de maternidade. (ortografia original, Anexos, pág. 8)

O parágrafo seguinte é um “festim” de indicadores simbolistas, com vários itens superpostos: elementos musicais; vaguidade; devaneios; o onírico; seres aéreos e diáfanos; o “outro mundo”; . Note-se ainda que há a reincidência do campo semântico

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do ar, e também a implícita informação de que a cítara é, simbólica e tradicionalmente, o instrumento tocado pelos seres angelicais (na iconografia):

Ella fazia hoje pensar nos processos estranhos do poema da vida. Seres aéreos ahi vem dançando, pouco a pouco visíveis, como quem vem de outros mundos, approximando-se lentos, ao som de bandolins e cytharas, – figuras vaporosas em paizagens de fundas perspectivas risonhas. Parece que todo o mundo é uma festa, que a vida é uma simples e deliciosa canção. No emtanto, muitas vezes estas bayadeiras, tão graciosas nos vortices, são tambem as que sabem ter mais graça, profundamente emocionantes, o receber de mãos ignotas, com um leve inclinar de cabeça, d´ahi a momentos, quando de súbito o scenario se transforma, viçosas e pesadas corôas de martyres. (ortografia original mantida, grifos nossos. Anexos, pág. 9)

Surge, na seqüência, o antagonista de Gavita, um rapaz sem nome, um primo, próximo e íntimo da família, notado pela onisciência do narrador. Como a heroína está entretida pelo zelo ao pequeno sobrinho doente, quase não o percebe. O primo, então, interessado pela moça, passa a ter ciúmes da criança, que ocupa plenamente o coração de Gavita. O narrador, então parece deixar de ser heterodiegético, quando hesita em sabê-los, além de primos, amigos. Além desse ponto, ao relatar as cogitações do rapaz acerca do desinteresse de Gavita por ele, também não parece conhecer as respostas às dúvidas dele. A moça é sempre cotejada aos elementos do ar: “Quem ama fortemente, elle raciocinava, não tem aquelle ar aéreo e descuidoso, não anda como um passaro a gorgeiar todo o dia” (grafia original). O desinteresse de Gavita em contraste ao desejo do primo assume o foco da pequena trama. Após tentar esquecê-la, o primo resolve voltar à carga, manifestando-se através de cartas, o que demonstra o seu caráter introvertido e discreto. Neste ponto, o narrador dá voz direta ao rapaz, pela primeira vez, e novamente, revela-se menos onisciente e seletivo, já que conhece apenas os pensamentos de Gavita e não desvenda as elucubrações do primo: – Mas não está ahi, n´esse sacrificio por uma creança, a prova tão clara da sua natureza affectiva? elle interrogava, para dar-se a si mesmo uma esperança qualquer. N´esse dia em que voltou entregou-lhe tremulo uma carta coberta de queixas. – Quem sabe? agora que ella é toda emoção, talvez comprehenda a crueldade que tem tido até hoje, elle pensou. (ortografia original, grifos nossos, Anexos, pág. 10)

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O primo envia a Gavita uma nova carta, em que se declara. Ela não entende bem os sentimentos dele, tampouco as “idéas” que preenchem as missivas. Considera-o confuso, vago, estranho, pouco claro. Não tem por ele qualquer afeição maior,

talvez

uma indiferença singela.

Entrementes,

o

primo

desespera-se

progressivamente; ela, entretanto, recupera o seu ânimo “alado”:

“Gavita radiava. Voltara-lhe toda aquella graça de passaro meio selvagem. A casa inteira acordara com a sua ruidosa alegria, como de madrugada, com o passaredo, a floresta.” (ortografia original, grifos nossos. Anexos, pág. 12)

O aniversário do sobrinho toma a casa de Gavita de alegria e rumor festivo; a família, amigos, todos os convivas celebram a recuperação da criança neste dia especial. A ausência do primo enamorado sequer é notada por ela. Assim, em um recurso de extraordinário domínio do texto, Nestor Victor permite - valendo-se ainda de metalinguagem, ao coincidir as últimas linhas do conto com as linhas do discurso do personagem



revelar

que

o

narrador

onisciente,

era,

na

verdade,

um

narrador-personagem, homodiegético, e, portanto, o conto, assume uma notável introspecção psicológica percebida somente neste ponto, sugerindo, ainda, por fim, o suicídio do desditoso rapaz. E o apóstrofe anafórico – Gavita!, é o nome vulgar das aves charadriiformes, da subordem das laras ou gaivotas, daí tantas recorrências ao campo semântico do ar – que pontuou a narrativa em tom laudatório, assume, na última linha, a feição de apelo desesperado.

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7.2 LIMA CAMPOS, César Câmara de. (Rio de Janeiro, 1872 – 1929) Iniciou seus estudos no Colégio Aquino e posteriormente na Escola Militar, e embora tenha se desligado ainda no 3º ano, revelou-se escritor ali, colaborando no jornal estudantil “A Cruzada”, assinando com o pseudônimo de “Pampa”. Tornou-se um dos simbolistas de primeira hora, e formou a denominada “Trindade”, com seus grandes amigos Gonzaga Duque e Mario Pederneiras. Publicou, em 1904, seu único livro, em única edição, o volume de contos “Confessor Supremo”, de onde extraímos as narrativas “O lilás pisado de suas olheiras” e “Era alta...”, ambas sem título expresso, figurando no índice de tal forma. Em 1912, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, foi encenada, pela Companhia Nacional e dirigida por Eduardo Vitorino, sua peça “Flor Obscura”, em ato único. Jornalista atuante, colaborou em diversos periódicos de suma importância para o movimento, como em “Cidade do Rio”, “O País”, “Galáxia”, “Rio-Revista”, “Mercúrio”, “A Gazeta de Notícias”, “O Malho”, “Kosmos”, “A Noite” e “Fon-Fon!”, esta o “quartel-general” dos simbolistas de então. Foi ainda redator de debates do Conselho Municipal do Rio de Janeiro. Casado com uma sobrinha, com quem teve cinco filhos, faleceu aos 57 anos, balbuciando os nomes de seus inseparáveis

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amigos Gonzaga Duque e Mario Pederneiras. Deixou um volume inédito de contos e crônicas, “Vitrais” (1915). Dele assim escreve Rodrigo Octavio Filho, em “Simbolismo e Penumbrismo”:

“Lima Campos é o autor de um só livro: Confessor Supremo. Dele poucos se lembram. Trata-se, no entanto, de livro cuja leitura é necesária ao conhecimento de uma época de nossa literatura. Livro de esteta, escrito em prosa poética, um tanto preciosa, na qual o estilo simbolista, com a neblina de suas metáforas, se infiltra em quase todas as páginas, testemunhando e documentando o espírito da época de transição em que foi escrito. Lima Campos deixou, porém, muitos outros trabalhos de valor literário, esparsos em vários jornais e revistas, que merecem perpetuidade em páginas de livro; faltou-lhes, até agora, a paciência de um devotado pesquisador.” (1970: págs. 92-93, grifos nossos)

Instados inicialmente pela referência que a ele fazem Afranio Coutinho e Alfredo Bosi – este em tom pejorativo, fomos pesquisar seu livro único. De difícil acesso, também, encontramos um exemplar na Biblioteca Nacional, na seção de raros e esgotados. Para nossa surpresa, à maneira de Nestor Victor e sua obra “Signos”, “Confessor Supremo” também só mereceu uma única edição, em diminuta tiragem. Temos assim, através desse trabalho, o dever acadêmico de trazer à luz, depois de quase 120 anos, textos primorosos, praticamente inéditos, esquecidos e, sobretudo, lídimos representantes da prosa simbolista no Brasil. Da dificuldade em obtê-lo, frisa também Rodrigo Octávio Filho: “A impossibilidade do encontro de textos de Lima Campos justifica mais uma citação, necessária ao conhecimento de outro aspecto de seu estilo.” O autor refere-se ainda a vários outros contos do único livro, transcrevendo excertos de “Mestre-Rio” e “Trio da Vida”, citando a ocorrência de outros, como “Na Fronteira”; “A expressão mais exata”; “O grande Sataninium”; “Esta urbis arcaica”; “A tia Martinha” , e “Há o aboo longínquo”. Ao examinar detidamente o volume, em mau estado e único – cujas folhas de rosto reproduzimos no anexo – atestamos a edição de Laemmert & Cia, 1904, Rio de Janeiro, assim como a ocorrência de 25 narrativas. À guisa de curiosidade, ao término dos textos, o autor data, jocosamente: “Cariocópolis, agosto de 1904”. Trata-se de um dado importante, uma vez que, como frisa Rodrigo Octávio, Lima Campos, associado a

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seus inseparáveis amigos Gonzaga Duque e Mario Pederneiras, foi também um cantor de sua cidade, a quem alcunhou “Mestre-Rio”, louvando-lhe as ruas, as árvores, os hábitos – note-se que as referências são, sobretudo, à cena bucólica, não necessariamente aos teatros, cafés e avenidas recém-abertos. Duque dedicou muitas páginas às praias e enseadas mansas e Mario encantava-se com as montanhas, as cigarras no verão, os quintais caseiros, enfim, tudo que dissesse respeito à bela rotunda da capital carioca na virada do século XIX-XX. Ao citarmos a cidade e seus cantores, cumpre que registremos a vital importância da revista “Fon-Fon!” – dentre as demais, surgidas à época, de natureza efêmera, foi a mais longeva - que circulou entre 1907 e 1958, fundada pela “Trindade simbolista”. De propriedade de Giovanni Fogliani e Alexandre Gasparoni, e tendo como secretário da redação o escritor paraense Vitório de Castro, a revista instalada na rua da Assembleia, a poucos metros da Avenida Central – hoje, Rio Branco - reunia, em suas dependências, além de Gonzaga Duque, Mario Pederneiras e Lima Campos, os escritores Hermes Fontes, Olegário Mariano, Rodolfo Machado, Adelino Magalhães, Gilka Machado, Álvaro Moreyra, Felippe D’Oliveira, Homero Prates, Eduardo Guimaraens, Ronald de Carvalho, além dos pintores Antonius e Correia Dias. Registram-se vários estudos, monografias e teses a respeito do fundamental papel dos periódicos nesse período finissecular. Quase todos de caráter pouco duradouro, atuaram como veículos notáveis à efervescência intelectual da época, mecanizando as rotativas em sincronia com a velocidade das idéias e manifestos que se multiplicavam, muitos dos quais, também efêmeros. Entretanto, foram fundamentais à oxigenação dessas novas irrupções, chegando mesmo a mesclar tendências, certas vezes, e em outras, a funcionar como trincheiras estéticas. Embora possa parecer óbvia e não menos surpreendente, chama-nos a atenção a analogia entre as revistas “Fon-Fon!” e “Klaxon”. Pouco distanciadas no tempo – chegaram a coexistir – e apartadas nos ideais estéticos, têm, entre si, a notável coincidência simbólica de trazer estampados os títulos alusivos – um onomatopaico - à buzina dos automóveis, ícone da modernidade nascente, da industrialização, da velocidade dos tempos, da urbanidade, embora o Simbolismo

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não se afinasse a esses propósitos, como é notório, tampouco lograsse espaço junto à vertente cubo-futurista que alçaria vôos a partir de 1922. Cumpre registrar também que João do Rio – injustiçado nos manuais da Educação Básica, por ser omitido do período sincrético, Pré-Modernismo ou de qualquer classificação finissecular – em seu pitoresco livro Momento literário ´(1908), em que, a partir de um questionário enviado a uma galeria de notáveis da nossa literatura, ele traçava um painel de opiniões e curiosidades; este livro representa hoje um documento significativo, um retrato documental do Cenáculo carioca, no início do século XX. Dedicado a Medeiros e Albuquerque – também aqui presente -, além do homenageado, entrevista Lima Campos, Nestor Victor, Gustavo Santiago – autor do “inencontrável “ conto simbolista “Sala vazia” -, Olavo Bilac, Raimundo Correia, Coelho Neto, Júlia Lopes de Almeida, Filinto de Almeida, Padre Severiano de Resende, Félix Pacheco, João Luso, Guimarães Passos e publica cartas de João Ribeiro, Clóvis Beviláqua, Sílvio Romero, Raimundo Correia, Garcia Redondo, Frota Pessoa, Mário Pederneiras, Luís Edmundo, Curvelo de Mendonça, Silva Ramos, Artur Orlando, Sousa Bandeira, Inglês de Sousa, Afonso Celso e Elísio de Carvalho. Registra, ainda, os “que não responderam”: Machado de Assis, Gonzaga Duque – aqui antologizado -, Graça Aranha, Aluísio Azevedo, Artur Azevedo, Alberto de Oliveira, Emílio de Menezes e o crítico José Veríssimo. Do exemplar do raro Confessor Supremo examinado, extraímos “O lilás pisado de suas olheiras...”, “Era alta da linha plástica de uma estátua antiga” (primeiras frases de contos sem títulos) e “A tia Martinha”, este citado por Massaud Moisés e Afrânio Coutinho. “O lilás pisado de suas olheiras” é, escandido, um decassílabo heroico (O / li / lás / pi / sa / do / de / suas/ o / lhei/ ras ), não sendo um mero acaso. Lima Campos, em prosa poética, o faz outras vezes, em outros contos do volume, como em “(...)à / bo/ca um/bro/sa/ de u/ma/ ma/ta es/pe/ssa e à / mar/gem/ quie/ta/ de u/ma es/tra/da /tris/te (...)”, e “(...) seus/ for/tes/ bra/ços/ de/ cer/ra/das/ ra/mas (...), os três sáficos. O parágrafo inaugural delineia atributos a uma personagem ainda não mencionada; esse recurso vem expresso através de reiteradas catáforas, que assinalamos

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abaixo, na transcrição. A adjetivação significativa sugere uma heroína ultra-romântica – o “bistre” das olheiras e a “pálida de imagem de altar” - , sublinhada, entretanto, por características evocadoras do Simbolismo, quer pelo pontilhismo dos traços, quer pelo viés da linguagem. Note-se, ainda, no plano gramatical, que os pronomes demonstrativos e indefinidos, são exofóricos e antecipadores de uma nomeação que não virá, aqui, nem no transcurso da narrativa. Por fim, os pronomes indefinidos “tudo”, “todo” e “toda” funcionam sintaticamente como apostos resumidores do tanto que se declarou anteriormente; o pronome oblíquo “a”, em “olhares que a fitassem” é a única designação expressa da protagonista apenas sugerida e anônima. O lilaz pisado das suas olheiras, como se fossem bistradas pelo soffrimento; o doloroso meio rir da sua bocca triste, derramando expressões dormentes, de uma melancolia impressionadora, no seu semblante de linhas suaves; a simplicidade sympathica do seu aspecto, dos seus gestos, dos seus dizeres e, sobretudo, os seus olhares pensivos, cheios de uma uncção piedosa de consolo e conforto, communicativos de scismares romanticos e provocadores de affectos brandos; a negligencia encantadora das suas maneiras e a sua beleza digna e pallida de imagem de altar – tudo isso, todo esse delicado e insinuante feitio, toda essa ineffavel graça – prendia embaladoramente os olhares que a fitassem, perturbava sonhadoramente os espiritos e empolgava, emfim, as sentimentalidades que se lhe approximavam. (ortografia original, grifos nossos, Anexos, pág. 20)

O antagonista enamorado é “Marcos d’Alba”; importante assinalarmos o sobrenome, que indica, com nitidez, a alusão à claridade, à alvura do tom simbolista. A moça não cede, inicialmente, às investidas do rapaz, e estabelece um simulacro de inacessibilidade ao seu amor, através de dissimulações e pequenos ardis, à feição romântica. A seqüência sinestésica que opõe sonoridade ao silêncio impõe-se nessa passagem também alusiva à musicalidade:

Nelle, porém, a affeição cantava no olhar, sonóra e clara, visível e ingênua, o hymno do bemquerer que Ella ouvia, e traduzia-se-lhe nitida na mudez expressiva da perturbação de Marcos, sempre que, onde elle estava, ella estivesse presente. (ortografia original, grifos nossos, Anexos, pág. 20)

A imagem construída pelo narrador-onisciente é pictórica, de notável simbolismo, ao sugerir a moça no cume de uma montanha, inatingível:

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E a luta, o embate, o encontro era então, como a de todo um exercito, mascarado na grimpa de uma montanha, alvejando um camponio simples, a avançar, exposto, sem abrigos, pela razura sem bordas de uma planicie. (ortografia original, Anexos, pág. 20)

A moça enfim cede aos enleios de Marcos d’Alba, e assim, as faces pálidas e as olheiras bistradas dão lugar aos contrastivos rubores, iluminações, claridades, em uma coleção de sugestões de imagens que poderiam, com efeito, compor um story-board de um roteiro cinematográfico, decupadas as imagens e a seqüência de “tomadas” trazidas pelo narrador. Notem-se, ainda, a bela imagem dos braços como “asas de ânfora”; a sensualidade no ritual da retirada do estilete dos cabelos; a feminilidade do conjunto da indumentária de dama – luvas, chapéu e leque; a religiosidade e a liturgia cristã no “missal de chagrin”, a oração, as antífonas e os santos; e a fragrância das folhas secas de malva. Em um corte temporal e abrupto, marcado por reticências machadianas, o narrador dá um salto avante, dividido em dois momentos: logo em seguida e dez anos depois. Respectivamente, casaram-se e a tuberculose vitimara Marcos, deixando-a, em um final anti-romântico, insólito, surpreendente e diametralmente oposto ao enredo de toda a narrativa: “(...)gorda, anafada, negligente, mal fallada dos visinhos, com cinco filhos magriças e uma divida na pharmacia.” (mantida ortografia original). Terá sido ela a própria “Alba”? E “Marcos d’Alba”, portanto, dela?

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7.3 POMBO, José Francisco da ROCHA. (Morretes, PR 4/12/1857 – Rio de Janeiro, 26/6/1933) Professor em sua cidade natal desde os 18 anos de idade, tendo iniciado a propaganda republicana em 1879, no seu periódico “O Povo”, abolicionista e republicano.. Morou em Curitiba e em Castro, no Paraná, dirigindo órgãos de imprensa, em intensa atividade política. Deputado provincial pelo município de Castro, durante a Monarquia (1886/87), deve-se a ele, em 1892, a iniciativa da criação da Universidade do Paraná, que foi aprovada e teve a sua pedra fundamental em 1912. Em 1893, passou a freqüentar as reuniões promovidas por Dario Vellozo, a frente do grupo simbolista “Cenáculo”, de cunho esotérico e místico. Em 1896 começou a escrever o seu romance “No hospício” (que concluiria em 1900 e o publicaria em 1905). Transferiu-se para o

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Rio de Janeiro em 1897, onde se reuniu a Nestor Victor e aos demais simbolistas paranaenses, como Silveira Neto, Tasso da Silveira e Andrade Muricy, da nova geração. Em 1905 deu início à redação de “A História do Brasil”, em dez volumes, tarefa que lhe tomou doze anos. Em “Os Annaes”, Nestor Victor faz calorosa recensão ao primeiro volume , lançado em 1906. Em 1911, publica “Contos e Pontos”, do qual extraímos para análise e composição nessa antologia a narrativa “O gato negro”. No ano seguinte, bacharelou-se, aos 55 anos, em Direito e passou a fazer parte do corpo docente da Universidade Popular do Rio de Janeiro, fundada por Elísio de Carvalho, na cátedra de História Geral. Foi novamente deputado estadual (1916/17), pelo Paraná, já em plena República. Em 1917, publica os dois últimos volumes de “A História do Brasil”, obra que se tornaria referência, através de inúmeras reedições. Em 1933, após duas derrotas, Rocha Pombo, já muito adoentado, foi eleito para a cadeira de nº 39 da Academia Brasileira de Letras, vindo a falecer pouco depois, a 26 de junho, em sua residência, a rua Joaquim Távora, nº 39, tendo sido enterrado no cemitério de Inhaúma. Em 1940, seus restos foram transladados para uma praça em Morretes, onde jazem sob uma herma em sua homenagem. Bibliografia: ROMANCE: “A honra do barão”, 1881; “Dadá ou a boa filha”, 1882; “Petrucello”, 1892; “No hospício”, 1905. POESIA: “A Guaíra” (poema em doze cantos), 1891; “Marieta” (poemeto), 1896. CONTOS: “Visões, contos e poesias”, 1888; “Contos e pontos”, 1911. ENSAIOS E OBRAS DIDÁTICAS: “A supremacia do ideal”, 1882; “Religião do belo”, 1883; “Nova crença”, 1887; “O Paraná no Centenário”, 1900; “O grande problema”, 1900; “Dicionario de sinônimos”, 1914; “Instrução moral e cívica”, 1927. VIAGEM: “Notas de viagem”, 1918. HISTÓRIA: “História da América”, 1900; “Nossa Pátria”, 1914; “História do Brasil” 1915-1917, 10 vols.; edição do Centenário: 4 vols., 1922; edição Jackson, 5 vols.;

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“História de São Paulo”, 1918; “História do Brasil”, 1921; “História do Rio Grande do Norte”, 1922; “História do Paraná”, 1930. Para nosso estudo e foco, elegemos o volume “Contos e Pontos”, de 1911, e para figurar na antologia, o conto “O gato negro”, pelo forte acento simbolista presente na tessitura narrativa, muito embora em “A literatura no Brasil”, Afranio Coutinho apreciasse “A boa nova” e “Sarica”. Analisando-os, achamos ainda mais modelar o primeiro citado, divergindo, portanto, do grande mestre. O exemplar em que pesquisamos, do acervo da Biblioteca Nacional, apresentava-se em estado bastante deteriorado, com nítidas ações do tempo e manuseio. Verificamos, mesmo assim, a ocorrência de 42 narrativas, divididas em duas partes: a primeira, com 23 itens de ficção; e a segunda, com 19 textos dedicados a vultos e questões históricas. O autor esclarece, no intróito da obra, que os textos não eram inéditos e foram compilados de “jornais e revistas da Capital”, entre os anos de 1901 e 1905, portanto, uma década antes de sua publicação. “O Gato Negro”, alude, naturalmente, pelo título, à célebre narrativa homônima “The black cat”, de Edgar Allan Poe, um de seus “contos de mistério, terror e morte”, originalmente publicado em uma edição do Saturday Evening Post de 19 de agosto de 1843, e embora não haja coincidências nas tramas, as conexões se dão em outra ordem. O conto de Rocha Pombo é iniciado com uma reflexão do narrador, em primeira pessoa, logo à primeira vista, autodiegético. Psicologicamente introspectivo, discorre sobre a chegada da noite e a imersão no sono profundo, que segundo ele, o leva para o “além”. Tal citação, apoiada pelo reincidente vocábulo “espírito”, em oposição ao “corpo”, nos faz crer que o narrador quer evidenciar uma cisão desas duas instâncias, e ainda, segundo doutrinas espiritualistas, que o sono propiciaria essa divisão corpo/espírito. Assomam-se, assim, no primeiro parágrafo, um viés metafísico e outro de ordem mística. Na seqüência, o narrador-personagem invoca a noite, a quem se dirige, na segunda pessoa do singular, exaltando os seus atributos em apóstrofes: Amiga suave e carinhosa das almas – noite sonhadora e amargurada! – tu és a imagem do mundo em que vive meu espirito. Pois que tu, noite amargurada, és o mysterio que envolve a

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vida e tens no teu seio immenso, bem sensiveis, todas as duvidas do universo moral. Tu és como o chaos informe e indefinido de que vai sahir daqui a instantes o prodigio da Creação, restituida á nossa anciedade e ao nosso espanto. (ortografia original, grifos nossos, Anexos, pág. 27)

No parágrafo seguinte, o narrador desfila, além da atração pela noite – tema caro aos simbolistas -, uma galeria de imagens afinadas com a estética: o misticismo, o insondável, o inefável, as diafaneidades, a vaguidade, o intangível, o indefinido e as sombras. E ainda, “as palavras augustas”, de sentido dúplice:

“Bemdita a noite que nos faz novo o universo! Bemdita a noite que me fecha de todo a alma no insondavel escuro, onde erra meu espirito, á busca de signos indecisos e como si estivesse á espera de palavras augustas que vão ser faladas. A natureza está para mim numa attitude e numa pompa mystica de cerimonia cultual. Ha pouco em torno de mim havia tumultos e eu suspirava; havia todas as manifestações ruidosas da vida, e eu inquiria o destino numa sagrada ancia de viver. E é só agora que meu coração se apercebe de que está no mundo onde se creou e em cujos paramos silenciosos tem vivido – mundo feito de sombras, de luares ineffaveis, de horizontes sem limites como as voragens; mundo de seres intangiveis, de existencias sem fórmas, de vultos sem contorno; mundo do vago extenso, da cor indefinida; mundo da nevoa, da solidão e do assombro – ideal paragem das almas a vagar anciosas neste oceano do tempo... “ (ortografia original, grifos nossos, Anexos, pág. 27)

Em meio a seus devaneios e reflexões que a treva lhe propicia, surge, em sua frente, um gato negro, injusto símbolo de malefícios e associações com feitiçarias. Há a referência explícita a “O Corvo”, “a ave do poeta” e ao “Nunca Mais!” (“never more!”) de Poe. Notem-se, ainda, os duplos e triplos adjetivos, complementos nominais e apostos explicativos, enfáticos na composição da cena:

Eu ia absorto nas profundezas do meu pensamento, quando sobre o peitoril da janella aberta ergue-se o vulto sinistro de um gato negro, enorme, immovel, a fitar-me, como um duende vindo do mysterio. Tive impetos de fugir, de buscar alguem que me falasse, alguma voz humana que me restituisse a minha consciencia. Depois, estaquei. Veio-me á lembrança o corvo do poeta – a ave da desillusão, ave que sabe de todas as linguas apenas aquellas duas palavras que gelam as almas: – o nunca mais! apavorante e desesperador. ( ortografia original, grifos nossos, Anexos, pág. 28)

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Entendendo o gato negro – que, tal qual uma ave, pende no peitoril da janela, analogamente ao corvo, que na cena do poema, posta-se em um busto de Palas sobre o umbral da porta - como um emissário das trevas, o narrador passa a inquiri-lo a respeito de suas questões existenciais, sobretudo ao que há no Inferno, se lá existem as mesmas monstruosidades de cá, os mesmos crimes, as mesmas insânias. Há ainda alguns paralelos importantes, sobretudo com o poema de Poe, a assinalar: o narrador quando diz ao gato “tu és mais do que as aves, por que (sic) mais do que as aves já amaste e hoje odias mais do que as aves” (ortografia original), alude a “O Corvo”, bem como ao citar nominalmente a amada do eu-lírico do poema, em “Não te inquiro sobre as Leonoras que se foram(...)”, e, obviamente, pela inquirição a um animal-símbolo, longamente justificada por Poe em sua Filosofia da Composição: (...)dize-me apenas se o inferno de onde vieste é mais horrivel do que a terra. Dize-me se lá também ha crimes e si os crimes lá chegam a ser monstruosos como aqui... Si os entes lá tambem detestam Deus e aborrecem os homens... Si tanto como aqui a perfidia, a soberba e a impiedade estão no seu imperio... Dize-me si as almas lá vivem tambem de perseguir as almas... (ortografia original, Anexos, pág. 29)

Na seqüência da narrativa e do interrogatório sem respostas que se instala, o narrador arrola casos e exemplos de algozes da humanidade e, sobretudo, de injustiçados célebres da história:

(...) – Mas ouve-me, gato negro. Nas lendas deste mundo, tu figuras como o disfarce preferido no inferno e sem duvida, esse conspecto e essa côr escondem alguma coisa da cidade do pranto e do ranger de dentes... Vem dizer-me si lá nas entranhas do Orco ha tambem Neros e Denys; si ha juizes que condemnam innocentes e absolvem culpados; si ha lá consciencias capazes de crear Lesurques e Dreyfus; si ha lá Marats e Herbets e si a liberdade é horrenda como os feros Molochs daqui. Vem dizer-me, tu que vieste do inferno, si lá os bons tambem padecem e si o premio da virtude é tambem lá o martyrio eterno...” (ortografia original, grifos nossos, Anexos, pág. 29).

O narrador pergunta ainda ao seu interlocutor se há, nas profundezas, o “castigo do sonho”; nesse ponto, ligamos os dois vértices da narrativa, seu final e início, quando ele, extra-corpóreo, em espírito, é levado ao além, em sonho. Tal condição onírica – tão

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cara ao Simbolismo - não lhe é confortável, como se supunha, porque o leva à reflexão existencial, e talvez, à uma revisão de culpas: (...)castigo que põe as almas, sob o silencio das noites, num grande estatellamento em face do céu, sem saber por que vieram, sem saber como vivem, sem saber por que suspiram... (idem, idem, Anexos, pág. 30)

Por fim, indaga ao gato – em bela imagem, com a sua silhueta projetada e ampliada pela luz do gás do poste - se há, em seu mundo, o amor. A resposta é um onomatopaico miado, acompanhado de sua saída da cena, deixando indefinida a interrogação. Além das conexões com “O Corvo”, mais numerosas talvez do que com o próprio “The black cat” ( que por seu turno, alinha-se a “Tell-tale heart” – “O coração revelador”, em português, com a mesma temática de assassinato e ocultação de cadáver), com este, sobretudo pelas citações a tantas iniquidades cometidas, impunes ou erroneamente acoimadas, assoma-se a questão da psicologia da culpa, revelando, dessa forma, pelo teor do enredo da narrativa notável de Rocha Pombo, uma injustiça perpetrada pelo narrador-personagem.

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7.4 VÁRZEA, Virgílio. (Canavieiras, SC,1863 – Rio de Janeiro, 1941). Do grupo original que se desenvolveu e esteve no entorno de Cruz e Sousa, de quem era amigo e com quem publicou Tropos e Fantasias (1895), Várzea viveu da magistratura, da docência e do jornalismo, em Santa Catarina, e depois no Rio de Janeiro, onde se radicou, enquanto participava ativamente da cena literária, atuando em periódicos importantes como a Gazeta de Notícias, capitaneada por Dermeval da Fonseca e José do Patrocínio, e a revista Fon-Fon!. Em 1881, fundou com Cruz e Sousa e Santos Lostada, o jornal literário “Colombo”. Foi oponente combativo do resquicial romantismo em seu estado, ainda na década de 80, do século XIX. Publicou romances e novelas de cunho marinhista,

inspirados em sua

experiência como marujo, aliada à fértil imaginação na composição de cenas e personagens, quase sempre de origem e ambientação catarinense, como George Marçal (Rio, 1901); A Noiva do paladino (Rio, 1901) e o mais conhecido deles, O brigue flibusteiro (Rio, 1904).

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Como um dos fundadores e difusores do Simbolismo, as notas que transparecem sua filiação ao movimento aparecem nítidas em sua poesia e na prosa curta, além da preocupação com a fidedignidade e verossimilhança na elaboração das cenas e na tessitura do enredo próprias do Realismo, fusão comum à produção finissecular em nossas letras. Embora prevaleça em sua obra a temática marinheira, Várzea também focalizou o ambiente campestre, notadamente o interior de seu estado natal. Além das obras citadas, publicou Traços azuis (poesia, SC, 1884); Miudezas (contos, SC, 1886); Rosa Castle ( novela, RJ, 1893); Mares e campos (contos, Rio, 1895); Histórias rústicas (contos, Rio, 1905); Os argonautas (contos, Rio,, 1909); Nas ondas (contos, Rio, 1910) e Contos de amor ( Rio, 1901) , de onde retiramos “Nerah”, para esta antologia. Em 2003 , após longo tempo sem reedições, a Academia Catarinense de Letras, em associação com a Universidade Federal de Santa Catarina, lançou, em 2003, os Contos completos de Virgílio Várzea, com estudos analíticos e organizados por Lauro Junkes. “Nerah” é um exemplar típico do estilo de conto simbolista, um verdadeiro “hino” à estética empreendido por Várzea, observável também em Oscar Rosas e Gonzaga Duque, por exemplo. Embora apresente elementos essenciais à composição da narrativa, como personagens, narrador, tempo e espaço, o conflito é implícito ou esmaecido, privilegiando-se a estrutura descritiva, plena de adjetivações duplas, sugerindo traços, cenas, com certa vaguidade e imprecisão, peculiares ao Simbolismo. A personagem principal, que dá título à narrativa, não é nomeada uma vez sequer, levando o leitor a deduzir que se trata de um raro nome próprio, de mulher. O enredo desenvolve-se basicamente entre as impressões do narrador-personagem ao conhecer Nerah, sua musa, o idílio entre os dois, e seu abrupto adoecimento e morte. A epígrafe de Henri Heine, poeta romântico alemão - muito admirado por seus contemporâneos, no Brasil, incluindo até mesmo Machado de Assis – “O gracieux fantôme, enveloppe-moi de tes bras. Plus ferme, plus ferme encore! Presse ta bouche sur ma bouche; adoucis l'amertume de la dernière heure” ( Ó fantasma gracioso, envolva-me em seus braços. Mais firme, ainda mais firme! Aperte sua boca sobre a

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minha boca; adoce/suavize a amargura da última hora” ), já anuncia o provável desfecho à feição um tanto ultra-romântica do conto. Várzea estabelece um painel descritivo rico e sugestivo, organizado pelos parágrafos, como um roteiro ao leitor, e diríamos que se trataria de uma moderna câmera focalizando a musa em travelling. Inicia detalhando seu físico, à distância, estabelecendo altura, porte e perfil; é curioso atentar para um aspecto gramatical logo no primeiro parágrafo, ao descrever Nerah, o narrador, ao referir-se “às virgens de balada”, o pronome relativo que o retoma, na sequencia, introduz uma larguíssima descrição, quase uma digressão, com um quadro pitoresco e medieval ocupando quase a totalidade do trecho. À continuação, o narrador-personagem ocupa-se do detalhamento de seu rosto, usando estruturas com duplas ou triplas adjetivações:

O seu pescoço alvo, de uma pureza de alabastro, por onde desciam os longos cabelos esparsos em ondulações de ouro ardente, como uma esteira de astros, tinha a contornação pura, a veludez seráfica, a doçura açucenal e celeste do das virgens de Velásquez. Seus olhos azuis, grandes, magníficos, de uma candidez espiritual, imersos sempre numa umidês de langor e numa ternura inefável, tentavam com atração irresistível, venciam e algemavam as almas. Notava-se neles como que o desejo acariciador e sutil de um aconchego ou de um enlace. (grifos nossos, Anexos, pág. 36)

Tal procedimento se repete nos demais parágrafos. Note-se, ainda, de novo, a referência a “virgens”, nessa passagem, de uma tela de Velásquez. Importa ainda salientarmos uma espécie de dualidade que permeia toda a narrativa: Nerah é, ao mesmo tempo, virginal e tentadora, como explicita-se no fim do parágrafo anterior, seus olhos são de uma “candidez espiritual”, mas “venciam e algemavam as almas”. A seguir, aborda a sua “existência”, caracterizando-a como a de um ser inatingível, “imaterial”, “(…) conduzindo luminosamente a sua aspiração e sonhares pelos vagos céus azulados, onde o seu espírito fantasioso e místico se fora amorosamente aninhar.”

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Entretanto, no mesmo segmento textual, aparece de novo a face “Calibã” de Nerah, didaticamente introduzida pela conjunção adversativa:

Mas, por vezes, no seu olhar quente e transparente, flutuava uma langorosidade meridional de morena, que anseia e freme nas palpitações de uma paixão mundanal, e então, em sua face nevada e límpida de remota origem escandinava, acendia-se a carminação ardente dos frutos tropicais. (Anexos, pág. 37)

Tal descrição, sucinta e notável, faz lembrar, guardadas as proporções de extensão e gênero narrativo - da célebre passagem naturalista, em O cortiço, de Aluísio Azevedo, quando Jerônimo, imigrante português, vê a sensualíssima dança de Rita Baiana, também morena e comparada aos frutos tropicais, como justificativa do desejo ardente de seu observador. Há, ainda, uma passagem entre o onírico e o alucinatório, também típicas das narrativas com acentuadas notas simbolistas, como em “Inferno verde”, “Tísico”, “Idílio roxo” e outras aqui abordadas, introduzida pela “saudade estranha do Infinito”, m maiúscula, a gosto da estética. Ao tratar de sua “vida”, a descrição é primorosamente musical. E o dualismo que permeia a caracterização da índole de Nerah fica explicitado pela divisão “dos naipes” da orquestra. Faz-se necessária a transcrição integral, alertando-se para o ponto-e-vírgula que separa uma condição da outra, oposta:

“A sua vida era como uma orquestra de violinos e órgãos, cheia, umas vezes, de surdinas aéreas, muito altas, arrebatadoras como hinos religiosos de catedrais saxônias, que enterram as flechas no céu; e outras de turbilhões convulsos, fantásticos, como coruscações de relâmpagos cortando o escuro molhado das noites invernosas.” (Anexos, pág.37, grifos nossos).

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O encontro com a musa é saudado com uma torrente de imagens sinestésicas: “maviosidade saudosa”; “azul fresco”; “ voz dulcíssima”; “ficou-me a cantar (...) nas células rútilas”; “olhos de uma doçura e brilho de sacrário iluminado”; “ luz de turquesa ideal”, para cair “docemente na imobilidade de um êxtase ou de um sonho constelar”, onde ainda pode-se assinalar o elemento onírico ou alucinatório, já mencionados. O parágrafo que contempla a consumação do amor carnal, enfim, traz a anotação de que o narrador-personagem prostra-se de joelhos à Nerah, como se ela fosse uma real divindade. A conjunção se dá intensamente por semanas a fio, em idealização profunda e intensa:

(..)todas as delícias humanas se idealizaram como em um vasto ninho eteral, suspenso do céu no meio de uma clareira de astros, o meu ser arrebatado incessantemente se expandiu rolou nas alucinações de um delírio divino e de um bem incomparável!... (Anexos, pág. 37)

O delírio extático do prazer do narrador é interrompido abruptamente pela instalação de uma doença irreversível em Nerah, estabelecendo agora um novo dualismo, entre o prazer e a dor. Ressaltem-se as adjetivações, à oposição dos parágrafos anteriores, ora todas dentro do campo semântico negativo, e sobretudo, ao fim da descrição do calamitoso cenário, uma definição é emblemática e resolve, a nosso ver, a bipartição de Nerah: “Astarte alvinitente”. A divindade fenícia representava a fecundidade e a sexualidade, o erotismo – como a Afrodite grega – e “alvinitente”, etimologicamente, de albus nitens, significa imaculada, alva, sem mácula. Um oximoro, portanto, em que se fundem traços antagônicos, perfeito para sintetizar a representação da musa-título do conto. Há ainda a imprópria designação “Diana boreal”, em que suspeitamos que o autor deva ter se equivocado, uma vez que, no Sul, o termo correto seria “meridional”, e a referência cristã ao “Caminho de S. Tiago”, também representativo por sua alusão à peregrinação obstinada e dolorida, com uma recompensa mística em seu termo.

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O desenvolvimento da moléstia, entretanto, não apaga a sua beleza, imponência; muito ao contrário, converte-a , entre luzes e sombras vaporosas, numa divindade diáfana:

(...)E este definhar contínuo, que lhe dava às formas uma diafaneidade sutil, tornando-a como uma dessas visões nebulosas que flutuavam outrora em legiões alvíssimas na imaginação evocativa dos místicos, à meia luz esfuminhada das celas e cárceres, fazia com que o seu talhe delicado adquirisse mais e mais a doçura sofredora e angélica, a contornação leve e vaga, a divinização inefável que exornavam de graça sagrada as monjas medievais. (Anexos, pág. 38, grifos nossos)

O narrador-personagem prepara-se para a chegada da morte de sua musa e antevê sua transcendência para outro plano metafísico, expresso pela interrogação que se faz, ao ver findar nela algo distinto entre o “espírito” e a “alma”, e à feição simbolista, com iniciais maiúsculas, usa as antonomásias “Derradeiro Suspiro” e “Pátria Sepulcral”, para a morte e a vida além-túmulo, respectivamente. Importa ainda salientar para a presença de dois vocábulos: spleen, característico dos ultra-românticos, e “plangentíssimo”, notando que essa palavra ocorre, peculiarmente, por quatro vezes na narrativa. “Plangente”, (lat. plangēre > plangēns, plangēntis) na sua primeira acepção, e é a utilizada aqui, tem o sentido de “lastimoso”, “lamentoso”, “choroso”, “murmurante”, “pungente”, “triste”, enfim, e torna-se, assim, um termo emblemático da narrativa, dado o seu desfecho infeliz. Nerah manifesta-se, então, pela primeira vez, e assinalamos que o faz somente em outra ocasião, em tom de lamento e queixume, por despedir-se da vida tão jovem e plena, e de forma tão sofrida. O narrador, à continuação, contempla a sua agonia tendo como pano de fundo o crepúsculo - tão caro aos simbolistas – que se funde magicamente à dor da musa que se despede da vida, em belíssima e pictórica descrição, construída em adjetivações sublimes, metaforizando as suas hemoptises introduzida pelas badaladas do Angelus.

nos diversos matizes do vermelho –

até o momento final, em que triunfa a paz,

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O cadáver de Nerah é belo, diáfano, níveo, em vários matizes do branco, significativamente. Nota-se, nessa passagem, que a impressão virginal que o narrador tivera, inicialmente, e que se interrompera após travar o relacionamento, é recuperada após a morte. A descrição de seu cadáver levou-nos, inevitavelmente, à comparação com esse belo soneto de Alphonsus de Guimaraens:

Ossa Mea II Mãos de finada, aquelas mãos de neve, De tons marfíneos, de ossatura rica, Pairando no ar, num gesto brando e leve, Que parece ordenar mas que suplica. Erguem-se ao longe como se as eleve Alguém que ante os altares sacrifica: Mãos que consagram, mãos que partem breve, Mas cuja sombra nos meus olhos fica... Mãos de esperança para as almas loucas, Brumosas mãos que vêm brancas, distantes, Fechar ao mesmo tempo tantas bocas... Sinto-as agora, ao luar, descendo juntas, Grandes, magoadas, pálidas, tateantes, Cerrando os olhos das visões defuntas...

Ao final, a dor do narrador-personagem é dilacerante, mas com o enredo totalmente centrado em Nerah, ele não se atém a descrever seu sofrimento e sai a vagar pela noite, dando desfecho ao belíssimo conto. À guisa de curiosidade, encontramos, após a análise, um soneto de Cruz e Sousa com o mesmo título, o que nos chamou a atenção. Trata-se de uma homenagem ao conto homônimo, dedicado a Victor Lobato, e que figura em “Livro Derradeiro – Primeiros Escritos”, in Obras Completas, organizada por Lauro Junkes; Jaraguá do Sul, SC, Avenida, 2008, vol. 1, pág. 66 : NERAH

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(Inspirado no elegante Conto de Virgílio Várzea) A Victor Lobato

Nerah não brinca mais, não dança mais. – E agora Que vão-se apropinquando os tempos invernosos, Nerah traz uns receios tímidos, nervosos, De quem teme mudar-se em noite, sendo aurora.

Seus sonhos de cristal, translúcidos, antigos Se vão embora, embora à vinda dos invernos, Seguindo em debandada os úmidos galernos – – lembrando um roto bando informe de mendigos.

Não canta o sabiá que triste na gaiola, Parece, com o olhar, pedir-lhe a casta esmola De um riso – aquela flor que esvai-se, branca e fria.

Em tudo a fina seta aguda de aflições! Na própria atmosfera um caos de interjeições! Em tudo uma mortalha, em tudo uma agonia.

E ainda, no mesmo compêndio de Muricy, outra versão de “Nerah”, às páginas 222-223. Contudo, por estar fragmentada, não conseguimos esclarecer se as partes que figuravam seriam “consertos” à versão que transcrevemos, de Contos Completos, ou se seria a original, de fato. De qualquer forma, não vimos alterações significativas que promovessem uma nova leitura e análise divergentes da empreendida.

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7.5 ROSAS, Oscar. ( 12/2/1862, Florianópolis – 27/1/1925, Rio de Janeiro). Amigo de Cruz e Sousa, como Virgílio Várzea e Nestor Victor, foi defensor ardoroso e um dos primeiros simbolistas em nossas letras. Jornalista, especializou-se em editorialismo político. Foi poeta e

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prosador inédito, até a publicação de Poesias, Contos, Crônicas - Obras completas de Oscar Rosas, org. por Uelinton Farias Alves, Florianópolis: Academia Catarinense de Letras, 2009, que reúne sua obra esparsa em periódicos de seu tempo. Sua poesia, afinada com o Simbolismo, apresenta notas epicuristas, com certa irreverência, à maneira de Cesário Verde e João Penha, que notadamente o influenciam, ao contrário de sua prosa curta, em que manifesta um tom de desalento e amargura, representados no conto que escolhemos para análise e para compor a antologia, Tísico. Este conto, originalmente publicado em O Correio do Povo,

a

16/4/1890, foi um dos vencedores do concurso realizado pelo jornal carioca, recebendo “Menção Honrosa”. À diferença de alguns de seus contemporâneos aqui elencados, observamos nos cerca de cinqüenta contos disponíveis na edição que Rosas não os encima com epígrafes, e caracteriza-se ainda por apresentar parágrafos muito extensos, e consequentemente, dispondo períodos muito longos. À maneira dos demais autores citados, suas adjetivações são também duplas ou triplas, há uma preferência categórica por minuciosa descrição, ausência de conflito no enredo, e um tom também ultra-romântico, alinhando-se, assim, a Várzea e Victor. “Tísico” – o título é auto-explicativo - trata dos últimos dias de um doente, a descrição pictórica do que vê de sua janela – uma paisagem próxima ao cais do Rio de Janeiro - , suas impressões da vida e suas expressões finais. Um fragmento do desmedido parágrafo inicial já é ilustrativo:

Pelos bons dias de sol, anilados, claros, gloriosos e transparentes, ele deixava sempre o quarto, confortável aposento que sua mãe enchia de cuidados e de amor, e, trôpego, esgazeado e verde, lento como um caramujo lesmando a relva de um parque, encolhido e vergado em bodoque, com olhos cheios de fulgor e de saudade, uma menta azul ao pescoço, queimado a iodo, a barba crescida e um cigarro de palha à boca, ia para o jardim, acompanhando o criado que lhe levava o livro e a cadeira. De grande sombra larga de uma folhuda mangueira da chácara fidalga em Santa Teresa via o mar, facetado e espelhento, rendendo-se em alvas espumas filigranadas sobre arrecifes à tona, amargo absinto de suicida, pátria adorada do marujo virulento da Albion, que o recorta, alta noite, silencioso e cauto(...)” (pág. 41, grifos nossos)

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E muito embora siga descrevendo o quadro que vê quase à exaustão, com minúcias de pincéis pontilhistas, o narrador, “quase distinguindo feições”, esbarra num detalhismo de quem assiste à cena de binóculos, pois, “os marinheiros pelas vagas, o piloto ao leme, gritando, forçando tudo para encher o velame que batia, e o capitão, um mexicano sardento, de cachimbo aos dentes, a observar a perícia da tripulação(...)”(grifos nossos, pág. 41). A cena marinhista, aproximada dos tons cultuados por Virgílio Várzea em quase toda a sua prosa, é também entrecortada por impressões fortemente sinestésicas, como no trecho:

(...)bronzeado à luz do Equador e cheirando a pesca, fazer a festa de Netuno, entre aclamações de uma maruja ruiva e forte que nos embebeda a baforadas de aguardente e a exalações alcatroadas de peixe; levantou então os seus encovados olhos cheios de febre e delírio e olhou a terra, embandeirada de tons, com linhas gigantescas de montanhas azuis no horizonte, cheia de rumor, cortada em casarios formando a cidade, com as suas casas de todas as cores, tão colorida, (...) (págs. 41 e 42, grifos nossos).

Ao descrever o pano de fundo, é interessante observar que o narrador o faz traçando dois planos, à maneira cinematográfica: há um mais próximo da “objetiva”, em que traça a movimentação intensa do cais, seus atores, sua ação e as manobras das embarcações, o içamento de suas velas e amarras; e um segundo, próximo à linha do horizonte – provavelmente do outro lado da Baía da Guanabara - onde vislumbra até mesmo pastos, rebanhos e até mesmo casarios e suas chaminés, apesar da distância relativamente grande de seu observador. O contato visual com a natureza arrebata-o, ainda, fazendo-o dar-se conta de sua vida próxima do fim, celebrando num raro breve parágrafo suas impressões também sinestésicas: Tudo isso que ele via era a vida e ele sabia que ela estava para acabar, que não mais a cor, o aroma, a luz e o som o fariam vibrar, sentir, gritar intimamente, como um apunhalado. (pág.42).

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É o pitoresco e harmônico da cor local, no entanto, que faz o personagem tísico recordar-se de sua amada. São os flamboyants, as abelhas, que trazem à sua mente uma “dançarina trêfega e fresca, que incendiava as plateias”. Nota-se ainda a antitética concepção da sua musa que antes lhe inspirava a suavidade das flores campestres, e depois do contato, a lascívia e o erotismo, com adjetivações de teor negativo:

(...)a princípio todo um amor platônico ponteado de bouquets de cravos e camélias enredou-os; depois veio o beijo, o primeiro beijo dos amantes, fatal e inolvidável, que lhe levou a saúde, a força, o sangue e a vitalidade para aquela loba, que o estrangulava por noites consecutivas, nodoando-lhe a boca com chupões de tigre e afogando-o em louras goladas de champagne frappé, tomado com alarido pelas alcovas dos hotéis de crápula de bebedeira(...) (Anexos, pág. 42, grifos nossos).

Assim como observamos em “Nerah”, de Virgílio Várzea, a idealização amorosa inicial, cede espaço para a luxúria, a partir da consumação do amor. Se uma “cigarra” o fez lembrar-se de sua dançarina, é um coleiro que o “desperta” dessa divagação, estabelecendo balizas, portanto, sonoras e musicais. Nota-se também na frase “ele sorriu, a espetar, num sorriso ósseo de caveira”, a construção de uma belíssima hipálage. A mãe – personagem episódico e sem falas - o chama para entrar, porque a tarde cai e com ela, a temperatura, o que faz mal a seus pulmões fracos. A chegada da noite anuncia a morte a meio caminho. O médico vem visitá-lo e atesta seu fim iminente. Chegam parentes e amigos, para ampará-lo em seus derradeiros momentos. Seu vulto magro jaz na cama e o narrador vê semelhanças “com um Cristo arrebatado à cruz”. O início de sua agonia é descrito em imagens grotescas: “De vez em quando tossia e expelia esverdeados catarros nauseabundos com os íntimos fragmentos dos seus pulmões, que a lesão espedaçava.” (Anexos - pág. 43)

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A morfina que lhe administram não impede que, atiçado pela orquestra que tocava na casa vizinha, dê início a um longo delírio, onde não lhe sobrevém a sua musa, mas um grupo de mulheres, vestidas sumariamente, a dançar freneticamente:

Vestindo gases e filós prateados, dourados de lantejoulas, polvilhado à poeirada de ouro, que caía de cima, um fulvo bando alegre de aéreas mulheres cor de rosa, mas nos braços e no colo, nas pernas e nas coxas, ao ritmo estrelejado de compassos de música harmoniosa e doce, surgia-lhe, descrevendo pela cena, toda iluminada, passos difíceis de uma tarantela divina. (Anexos, pág. 44)

Então, a “orquestra colossal” que invade o seu quarto, funde-se como trilha sonora de sua alucinação, e faz as dançarinas “sibilar, rugir e gemer histericamente”, ainda “cancaneando” – interessante neologismo para o passo can-can, das coristas – diabolicamente. A composição de seu delírio é quase cenográfica, como se as imagens compusessem um quadro de palco teatral, ou set

de filmagem, uma vez que há

“maquinismos de palco”, com luzes cênicas “verde, branca, amarela, azul, roxa e encarnada”, enquanto o naipe musical segue terçando violinos regidos – embora mal visse as feições – por um maestro saxônico. O grand finale do espetáculo é uma página macabra: o tísico, estertorando, entoa um canto gutural e sinistro – uma “ave-maria” – até ser silenciado pela protopineia, agitando os braços “como caudas de serpentes”, e ao som de uma última clarinada, cai “enrijado e podre”, simultaneamente à chegada de um padre ao seu quarto,

brandindo a “cristalina e metálica” campainha (sineta) do Santíssimo

Sacramento. Note-se, no final em clímax, os categóricos índices simbolistas tais como a música (o canto de morte, os clarins e a sineta), o delírio, a morte como libertação metafísica e a liturgia cristã.

7.6 DUQUE Estrada, Luís GONZAGA

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(Rio de Janeiro, 21/6/1863 - idem, 8/3/1911). Romancista, contista, pintor e crítico de arte, foi um dos primeiros simbolistas, atuando, sobretudo, nos periódicos de seu tempo;os dezessete anos fundou, com Olimpio Niemeyer, O Guanabara. Em 1882, colaborou em A Gazetinha, de Artur Azevedo, e, no ano seguinte, com José do Patrocínio, em A Gazeta da Tarde. Em 1895, fundou a Rio Revista, com Lima Campos, e dois anos depois, com o mesmo companheiro, a importante e efêmera publicação simbolista Galáxia. Em 1901, tomou parte em Mercúrio, e a partir de 1908, também com Lima Campos e Mario Pederneiras, na Fon-Fon! e ainda em outros periódicos como o jornal A Gazeta de Notícias e as revistas Rosa Cruz e Vera Cruz, e com menor freqüência - alguns de pequena circulação e curtíssima duração na virada do século XIX ao XX - em Pierrot, Revista dos Novos, Renascença, A Avenida, Revista Americana, Rua do Ouvidor, Kosmos, Brasil Moderno, O País, Os Anais, Diário de Notícias, Ilustração

Brasileira,

Revista

Americana,

Diário

do

Comércio,

Revista

Contemporânea, Atheneida e O Globo, nos quais assinava sob os pseudônimos André Resende, J. Meirinho, Amadeu, o Risonho, Diabo Coxo e Alcindo Palheta, o que nos dá uma mostra de sua intensa atividade literária. Foi servidor público durante toda a sua vida, iniciando-se como 2º Oficial da Diretoria do Patrimônio Municipal, tendo sido promovido a 1º Oficial da Fazenda da Prefeitura, permanecendo nesta repartição, durante longo período, como secretário da Direção Geral. Em 1910 foi designado para exercer a direção da Biblioteca Pública Municipal. De todos os prosadores simbolistas, é o único a desfrutar, junto aos manuais de literatura, de uma unanimidade quanto à filiação estética de seus contos e romance, que se caracterizam pela enorme riqueza imagética, fluência verbal plena de neologismos, um vigoroso cromatismo aliado a descrições pictóricas – oriundas certamente de sua observação de artista plástico – um forte acento mórbido e ainda estrangeirismos bem colocados, próprios de sua condição e época. No terreno da ensaística, onde também fulgurou, publicou o importante compêndio Arte Brasileira (Rio, 1888); Revoluções Brasileiras (Rio, 1898); Marechal

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Niemeyer” (Rio, 1900) Graves e Frívolos (Rio, 1910) e Contemporâneos (Rio, 1929), este, post-mortem. Como desenhista, participou como ilustrador de Dona Carmen, de seu contemporâneo B. Lopes. Por sua vez, também foi registrado pelas paletas de grandes pintores como Belmiro de Almeida, Presciliano Silva, Eliseu Visconti e Rodolfo Amoedo, e caricaturistas como K. Lixto (autor de ilustrações de alguns de seus contos) e Raul Pederneiras. Em literatura, embora tenha participado ativamente dos periódicos mencionados, publicou somente o romance Mocidade Morta (Rio, 1899), em que são retratados os hábitos, tipos e o modus vivendi da boemia carioca, em plena vigência do dandismo da Belle Époque, e mesmo com algumas notas críticas aos contemporâneos flâneurs. Horto de Mágoas (Rio, 1914) , volume de contos e poemas em prosa compilados de suas publicações em jornais e revistas, editado postumamente e jamais republicado até 1996, pela Divisão de Editoração da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro , enfeixa 12 narrativas – oito delas anteriormente publicadas - que abordam episódios místicos, metafísicos e ocultistas, em cenários sofisticados e com fartas remissões eruditas. “Posse suprema”, título dedicado a Roberto Mendes e que abre a obra, em que se mesclam desejos proibidos, delírios e uma relação entre imagem real e a desenhada, nos fazem relacionar imediatamente com O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde – já evidenciado em “A noiva de Oscar Wilde”, de Gastão Cruls – e com “O retrato oval”, de Edgar Allan Poe. “Agonia por semelhança”, narrativa sem conflito explícito, como um painel, em moldes que já observamos e assinalamos em outros contos dessa antologia, foca a busca do personagem Paulo pelo reencontro/reconhecimento de uma mulher desejada, que ele supõe ser sua própria mãe. Com elementos antefreudianos como o Complexo de Édipo e

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referências a Péladan – simbolista e esotérico francês – e a Nadar, célebre fotógrafo amigo de Baudelaire e responsável pelas imagens fúnebres de D. Pedro II, em Paris, o conto evoca numerosas simbologias e associações. Em “Morte do palhaço”, cuja publicação em 1907, na revista Kosmos, contou com desenhos satânicos e fantasmagóricos de K. Lixto - um artista de circo busca algo inefável que o justifique existencialmente, em sua arte no trapézio, e se vê boicotado por seus colegas. “Ciúme póstumo” trata da metempsicose, vida além-túmulo, a exemplo de “Confirmação” e “Miss Fatalidade”, com notas macabras e lúgubres, onde femmes fatales falecidas aparecem a seus amantes em espírito, e qual súcubos, os arrastam também para a morte, em delírios como os já assinalados em “Tísico”, por exemplo, de Oscar Rosas, tema clássico simbolista (Cf., ainda, com Salomé, de Wilde). “Sapo” – título também da célebre e extensa novela de Nestor Victor, em Signos – alegoriza a própria condição do poeta, repelido pela sua condição: “Ah, triste vivente, asqueroso batráquio, horrendo sapo!... que triste alma de poeta tu possuis!”. “Benditos olhos!” é o único que traz uma epígrafe, à guisa de explicação. O personagem-narrador retoma o caro tema do olhar – ponto de partida e chegada de toda descrição pictórica, peculiar a Gonzaga Duque, em particular, e a todo o Simbolismo - , a partir de um sonho com os olhos verdes de uma mulher desconhecida. Posteriormente, o personagem supõe encontrá-los e reconhecê-los; porém, a amada morre, e ele vive então a celebrar e remoer a lembrança desses olhos. A narrativa, em linguagem poética, é uma reflexão, um pensar alto sobre suas impressões e reminiscências daquela dolorosa perda. “Aquela mulher” é um verdadeiro hino simbolista, dada a riqueza de imagens e traços representativos daquela estética. Trata da dupla personalidade em uma mulher, em que convivem a inocência e a lascívia, com referências explícitas aos “versos de Wilde como um revólver de pérolas”; aos “sonetos de Mallarmé, serenos e misteriosos como deuses de pedra na sombra roxa de um bosque” e às “quadras de Samain que parecem escritas sobre veludo negro com estilete de ouro candente...”, como

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percebemos também em “Nerah”, de Virgílio Várzea, o hibridismo entre a personalidade virginal e a de forte apelo erótico. A mesma fatalidade, a condenação e a irrealização do amor em “Nerah” se dá ainda em “Sob a estola da morte” – dedicado ao também poeta simbolista Dario Vellozo - e “Idílio roxo”, onde o prazer e a dor se sobrepõem e velam os limites de cada um. “Ruínas” conta a história de Pero Roiz, que expressa seus sentimentos através de um velho cravo do tempo de D.João VI, frouxo, corroído e sem conserto possível pela modernidade que o aposentara. O instrumento – cujas teclas mostram-se com o cromatismo invertido, com as notas naturais de ébano e os sustenidos de marfim – chega à deterioração absoluta e seus marteletes não mais fazem soar, sendo ouvido somente pelo nostálgico Pero, em bela alegoria da persistência da arte em face do novo que desmantela e nega o passado. Desses doze contos aqui resumidos, escolhemos “Idílio roxo” para análise e para integrar a antologia. Conta a história de Sara, típica representante da alta burguesia de seu tempo, tecida por um narrador-personagem, heterodiegético. Ela sofre de tuberculose – a exemplo de outras narrativas aqui elencadas como ‘Nerah” e “Tísico” – que não é nomeada, a princípio. Paronomasticamente, e através de gradações e eufemismos, o narrador não declara a tuberculose: “tosse irritante”; “resto de vida”; “acessos de tosse”; “suas pequenas narinas de nervosa resfolegavam”; “havia no seu respiro o rítmico siflo, do soprar dum fole” e a “alacridade aromática do seu bafo”. A apresentação de Sara e sua dama de companhia, Dona Maria, é acompanhada das adjetivações duplas e triplas, e retratam a partir da observação do narrador-personagem – um flâneur nas rodas burguesas que desfrutavam os ares da região Serrana do Rio de Janeiro, já referidas nas narrativas de Gastão Cruls – toda a ambientação com requinte e afetação. Notem-se os estrangeirismos típicos com um acento irônico, crítico de todo o pedantismo artificial que envolve a conduta da tísica Sara. Ao apelidar a acompanhante inglesando seu nome para “Mary”, o recurso utilizado por Gonzaga Duque assemelha-se a José de Alencar em Sonhos d’Ouro, quando, para efeito satírico e pejorativo, nomeia a governanta de Guida, também arrogante e burguesa, de “Mrs. Trowshy”, fazendo soar, foneticamente, como “senhorita Trouxa”:

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Não lhe retorqui. De um salto apanhei a casquette, e pronto! Partamos, Sara. Ela desceu, como sempre, acompanhada, respeitosamente, da velha, da ereta e grave D. Maria, que nós, nas parlendas da serra, para afetar vilegiatura nobre de touristes da nata, da upper cream, carismamos por conta própria, inglesando seu nome n´aspereza acre de Mary. Caracterizávamos, por esta forma, o seu tipo esquelético de loira quinquagenária, penteada de bandós românticos, e dávamo-nos, pretensiosamente, ares galantes d´europeísmo n´agrestidade daquelas alturas verdes. Demais, para o forçado coquetismo de Sara, era isso uma nota chic um traço elegante de viver superior, porque essa pobre rapariga pálida, de olhos veludosos d´uvas negras – turgindo da volúpia morna de um morno quebranto – a cabeleira encaracolada, que lhe esculpia a cabeça com uma cariciosa expressão de criança romântica, possuía o elevado requinte da futilidade numa irradiação moderna e histérica de formas. (Anexos, pág. 46, grifos nossos)

O vocabulário é aspecto mais visível e peculiar à prosa fluida de Gonzaga Duque, quer pelo uso de palavras raras, ou pelos numerosos e criteriosos neologismos, e ainda pelas reincidentes contrações ( apócopes, elisões e aféreses). No excerto acima, são ocorrências “n´aspereza”, “d´europeísmo”, “n´agrestidade” e “d’uvas”. Uma vez descritos a protagonista, a sua acompanhante e o ambiente, a fútil donzela é, mesmo assim, encantadora, e preenche os sentidos do leitor com construções sinestésicas: Quando ela aparecia ao sol das dez, na sala de hotel, agitando rendas sobre rendas, numa feliz ilusão de se fazer menos magra, e mais polipétala que uma rosa branca, a encher o ambiente com trescalos fidalgos de crab-apple, não havia pupila que não cintilasse de desejos acesa, nem percepção que se enganasse com a saúde artificial daquela criatura, esvelta e solerte, que siflara, angustiosa, nos acessos da tosse, durante o silêncio pesado das noites. (Anexos, pág. 46, grifos nossos)

Decorrido um mês, após uma pequena execução musical de Sara, o narrador flerta com ela, após chamá-la, indevidamente, de mademoiselle.

Estreitaram o

relacionamento, sem que o narrador-personagem – que em nenhum momento é nomeado – se sinta, de fato, atraído por ela. Registre-se, de passagem, a notável hipálage no primeiro parágrafo transcrito a seguir: Desd´esse momento, mesmo diante da gravidade ossuda da respeitável Mary, jamais meus lábios titubearam postiçarias de formalidades. Sara passou a ser a minha meiga e íntima camaradagem, insexualizada como as Visões, apenas lembrando um vago de mulher pelo aroma de suas cambraias rendilhadas e pela insídia amolentadora de seus olhos, luminosamente negros. (Anexos, pág. 47, grifos nossos)

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Na sequência, o narrador nos brinda com uma notável descrição do crepúsculo, também elemento obrigatório nas narrativas simbolistas que aqui reunimos. Assinala-se, sobretudo, além dos traços feitos a pincel, a forte presença musical e uma espécie de louvor à natureza, quase uma rediviva descrição romântica, quando então a cor local era um traço delineador. Observemos que essas pausas na ação da narrativa, descrevendo-se a opulência do cenário natural é também ocorrente nos contos que integram essa antologia, como em Alberto Rangel, Xavier Marques, Oscar Rosas, Virgílio Várzea, Gastão Cruls e Galpi. O traço mais relevante, no entanto, é o cromatismo que permeia toda a narrativa, desde o próprio título, sob diversos tons e matizes, direta ou indiretamente através de simbologias: Março extinguia-se numa viuvez serena de quaresmas florescentes e vesperais crepúsculos agoniados de violetas machucadas. À margem do caminho, na ramaria alta das velhas árvores, por onde cigarras, ao mormaço equatorial das sestas, sanfoneavam em pós prelúdios de cicios longos, nevavam pulverizações suaves de ametistas trituradas, como se uma triste flor invisível abandonasse, no desalento dos repúdios, o pólen ressequido e inútil. E esse brando colorido de melancolias vivas derramava-se do céu pela extensão queda dos vales, alastrando-se no círculo enorme de toda a paisagem, distendendo os planos pelo esbatimento das distâncias, envolvendo a longitude num afago dormente de lágrimas ainda não enxutas, e lilaseando a faixa do horizonte, lá-baixo, numa tenuidade de zainfe sagrado, aberto sobre a remotíssima paragem dos prometimentos fugitivos. ( Anexos, pág. 47, grifos e negritos nossos)

“Quaresmas”, “violetas”, “ametistas” e “lilasear” são tonalidades da cor roxa, que predomina no cenário e em toda a narrativa. “Quaresmas” – no conto, em itálico não justificado – ou “quaresmeiras”, são as denominações genéricas para árvores do gênero das Tibouchina, que compreende ainda o “manacá-da-serra”, além de suas flores serem roxas, têm essa denominação popular por mostrarem-se em floração mais exuberante normalmente durante a Quaresma – período litúrgico do calendário cristão que se inicia na Quarta-feira de Cinzas, após o Carnaval, e se encerra na Páscoa, sendo celebrado pelas igrejas católica, ortodoxa, luterana e anglicana. A cor roxa significa, nesse tempo quaresmal, a interiorização, penitência, jejum e conversão. Por anteceder a Sexta-Feira da Paixão, por extensão, pode simbolizar, também, luto. Note-se, também, os demais tons, em gradação, que o narrador, detalhadamente, nos pinta: as violetas, do

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mesmo tom; as ametistas – pedras semipreciosas de tom púrpura, e a própria tonalidade do lilás, mais claro dos matizes aqui. Ao descansar no braço do narrador-personagem, Sara deixa-se absorver por devaneios e delírios, em momento também reincidente nas demais narrativas que compilamos. É nessa passagem que o narrador nomeia, pela primeira vez, a moléstia que consome a protagonista:

Sara descansou mais sobre o meu braço a leveza do seu busto. Muda, pisando serena e certa, pupilas absortas e brumosas das sugestões sentimentais deste vagaroso crepúsculo d´Endoenças, suas pequenas narinas de nervosa resfolegavam; havia no seu respiro o rítmico siflo, quase imperceptível, do soprar dum fole. Pelo langor do seu corpo percebi que o recolhimento da paisagem a envolvia, possuindo-a, fazendo-a penetrar o seu mistério, alentando-a pel´acridade aromática do seu bafo... E silêncio, extensões, hálitos mornos de folhas, emanações da terra, embriagavam-na, excitavam a sua imaginativa, fazendo-a construir, mentalmente, com a nostalgia da hora, o romance de tristezas que as tuberculosas soem compor, tecidos de ilusões e lembranças vagas, como uma música que espira sob a dormência de uma volúpia ( Anexos, pág. 48, grifos e negrito nossos)

Notem-se ainda a referência às “Endoenças” – designação antiga e católica da Quarta-Feira de Cinzas, marco inicial da Quaresma, quando os paramentos litúrgicos da Igreja Católica são roxos; e a presença da música, quer no “rítmico siflo do soprar de um fole”, que nos remete a “Tísico”, de Oscar Rosas, ou na “música que expira sob a dormência de uma volúpia”. Ao ficarem a sós, idilicamente, a composição da cena traz vibrantes aliterações no parágrafo transcrito: A estrada resvalava em curva, ao sopé da macega baixa da chapada. Estávamos na base do pendor, onde denegria a legendária Ponte dos Suspiros, cujos barrotes repercutiam o rumorejo fresco do córrego, refrangendo-se nos pedregulhos soltos da socava. ( Anexos, pág. 48, grifos e negritos nossos)

Na seqüência, o próprio narrador-personagem esclarece a simbologia da cor onipresente: “Paramos. Sara declarou que sentia fadiga, e queria penetrar-se da solidão que amodorrava o tom viúvo da tarde tristíssima.” (Anexos, pág. 48, grifo nosso) E a

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tarde segue caindo, variando as nuances da mesma cor. Reparemos ainda a aférese, o neologismo onomatopéico e a inicial maiúscula, ao gosto simbolista:

(...)olhos postos na planície violácea, estendida para além, rasa e ampla, ‘té o aglomero tufoso dos matos, já roxeando no fusco das trevas. E nesta quietitude espasmódica de natureza adormecida, pressentia-se que de asas espalmas, plasplaceando ondulantes e esgueiradas, passava teimosa, persistente repassava, a Saudade longa das deserções eternas. (Anexos, pág. 48, grifos nossos)

Sara, ciente de seu fim iminente, lamenta-se de sua condição, tal como Nerah, no conto homônimo de Virgílio Várzea. Então, pede ao seu acompanhante um beijo único e final, uma vez que jamais tivera tal experiência. Irrompe, assim, uma atmosfera de erotismo, inesperado e irrecusável. O narrador-personagem tenta justificar sua aquiescência, mas, impulsivamente, rende-se ao desejo ardente de Sara:

Mudamente, obedeci. Era a vontade de uma condenada, e eu, por mais que me repugnasse a satisfação desse lascivo desejo, que a impudicícia de uma alucinação trazia à boca de uma criança, não tinha energias para a cruel negativa. Ao curvar-me para ela, procurando sua fronte, encontrei a febre de seus lábios sôfregos à espera dos meus. E unimo-los docemente, demoradamente, numa junção noival, premindo as nossas mucosas na umedecência dos mesmos anseios; eu – perdida razão, animalizado pelo contacto ofertante da imácula carne febril; ela – dominada pelo seu gozo, radiando nas faces, esfuziando no olhar, aceso o hálito fremente, que lhe punha no respiro compassado a delonga sugada dos prazeres primeiros... ( Anexos, pág. 49, grifos nossos)

Cumpre notar que a “junção noival” acaba por equalizar os desejos, anteriormente desequilibrados, em face do desinteresse do personagem por uma tísica, e o afã dela, virginal, por um beijo ardente e inaugural. Ele submetera-se às pulsões, e irracionalmente, “animalizado pelo contato ofertante da imácula carne febril”, cede ao pedido de Sara, por sua vez, “dominada pelo seu gozo”.

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Após a consumação do amor urgente, o rubor das faces e o brilho dos olhos dão lugar a traços que a caracterizam como um quase cadáver. Observa-se a identificação também com Nerah, já citada:

Por fim, vencida, cerraram-se-lhe as pálpebras, exaustas; uma palidez de luar morrente alastrou-se por suas faces, marmorizando-lhe a linda cabeça de bambina, e um acesso de tosse rouca sacudiu-lhe a escoriada caverna do busto. (Anexos, pág. 49, grifos nossos)

A noite cai, “franzindo a quietude roxa do espaço”, e com ela, esvai-se a vida de Sara. Uma última hemoptise anuncia o seu desfecho, com as variações acerca da mesma coloração:

(...)de seus lábios escapou-se, de jato, uma golfada de sangue, que estalou, surda; no chão, e ficou-se coagulhenta, estriada em lágrimas solidificadas, sulferina e refulgente, na roxidão do dia extinto. (Anexos, grifos nossos, pág. 50)

Solferino (ou sulferino ) é um tom de rosa arroxeado e muito vivo, brilhante, somando-se aos demais matizes já incorporados. Os parágrafos finais marcam a melancólica partida do narrador-personagem, ressentido da perda de sua noiva. O céu, como fundo da cena, parece acompanhá-lo, também em luto, escurecendo os tons de roxo, quase negro: (...) a natureza aerizava-se nesta melancolia quaresmal de Março, toda ela roxa, mas, agora, de um roxo turvo, tingindo de saudades tumulares a tristeza imensa da Terra. ( Anexos, pág. 50, grifos nossos)

Uma galeria de notáveis sinestesias assinala o desfecho do conto, onde, bela e dramaticamente, liturgicamente ungido por óleos de uma âmbula, recebem os últimos sacramentos, fundem-se as agonias e os finais do dia e de Sara. Mantém-se, assim, a idealização do “noivado sem mácula” – outro item recorrente nas narrativas

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simbolistas, e encerra-se, em grand finale com uma nítida alusão a Edgar Allan Poe, “padroeiro e ditador das leis do Simbolismo francês”:

Só, infiltrante e dulçoroso, o aroma virgem dos brancos lírios vivia no ar, como se o óleo perfumado e purificador de uma âmbula houvesse escorrido sobre nós para a extrema-unção do nosso noivado sem mácula, e – assim, confundindo-se com a Natureza, lembrava d´algum modo, n´agonia silenciosa da tarde, o hálito de um resignado sorriso à ilusão inefável de um gozo que nunca mais voltaria... nunca mais!... nunca mais!...” (Anexos, pág. 50, grifos nossos)

Por fim,

“Ninguém falou melhor de Gonzaga Duque do que Mario Pederneiras, nos versos que publicou no pórtico do livro Ao Léu do Sonho e à Mercê da Vida, e dedicados a Lima Campos: Nessa trindade irmã Que formamos na Vida, Para a rude escalada à mansão da quimera, Era Dele que vinha O estímulo eficaz para o esforço da lida, Se, às vezes, um de nós o seu passo detinha No inglório caminhar dessa rota malsã. Ele era, de nós três, o mais velho de idade E se tinha, talvez, O aspecto de quem acha esta vida um deserto, Entretanto, em vigor de trabalho e vontade, Ele era, de certo, O mais moço dos três.”

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7.7 MEDEIROS E ALBUQUERQUE, José Joaquim de Campos da Costa. (4/9/1867, Recife, PE – 9/6/1934, Rio de Janeiro, RJ). Realizou seus estudos primários no Colégio Pedro II e na Escola Acadêmica de Lisboa, regressando de Portugal em 1884, ao Rio de Janeiro, onde passou a tomar parte, ativamente, do movimento abolicionista, e depois, do republicano. Dedicou-se, então, ao jornalismo, magistério, diplomacia e à política. Em 1889 publicou suas Canções da Decadência, introduzindo o gosto decadente em nossas letras, e inovando com os poemas em prosa, com feição e temática baudelairiana. Entre 1910 e 1916 – durante a vigência da Primeira Guerra Mundial – viveu na Europa, sobretudo na França. Foi fundador do periódico Fígaro, redator de O Tempo, e colaborador, como cronista, em A Gazeta, de São Paulo, e como crítico e literato n’A Gazeta de Notícias e n’A Notícia, no Rio de Janeiro. Também foi membro-fundador da Academia Brasileira de Letras. Estreou na poesia como parnasiano, migrando, em seguida para os versos livres, o que lhe custou, à época, duras críticas.Como contista, variou entre os temas urbanos e rurais, plasmando um estilo muito peculiar, já com acentuadas notas simbolistas. Foi ainda um pioneiro das ciências ocultas e do Esperanto, além de trazer, como memorialista –

gênero em que obteve grande êxito – suas experiências no

polêmico campo da hipnose, numa época em que esta prática era auxiliar dos estudos

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iniciais da psiquiatria e da psicologia. É ainda tido, com o romance Marta (1920), como um dos introdutores dos conceitos freudianos na literatura brasileira, ao abordar questões como o “Complexo de Electra”, e a assimilação de símbolos, situações e atos falhos que parecem denotar um prévio aprofundamento da psicanálise. Por mesclar elementos do Parnasianismo, do Simbolismo e do Naturalismo, a narrativa talvez mereça mais a designação de “eclética” do que qualquer outro encaixe estético, tão exigido pela crítica. O conto mais conhecido de Medeiros e Albuquerque é “As calças do Raposo”, dedicado a José Verissimo. Jerônimo Monteiro, ao compilar narrativas fantásticas em Panorama do conto brasileiro – o conto fantástico (Rio, Civilização Brasileira, 1959) incluiu “O soldado Jacob”; entretanto, ao obtermos acesso à Coleção Brasiliana, de José Mindlin,atualmente no acervo da USP, selecionamos para análise e integrar essa antologia “Palestra a horas mortas”, retirado do volume Mãe Tapuia, de 1900, esgotado há muito, não reeditado - embora a narrativa esteja datada de 1889, que já é acentuadamente de inclinação simbolista, o que denota, pelo viés decadentista, uma notável antecipação. A estrutura da trama é a de “causo”, ou seja, há uma roda de cinco amigos – Heitor, Lúcio, Andrade, Carlos e Caldas, colegas de faculdade, divertindo-se, fumando, bebendo, contando anedotas e lendo histórias, quando aquele último resolve narrar um caso “inverossímil”, mas “triste e verdadeiro”. Note-se aqui, também, uma similaridade com o intróito de “A noiva de Dorian Gray”, de Gastão Cruls. O início do conto, ao tratar dos diálogos travados entre os colegas, não apresenta significativas marcas do Simbolismo; entretanto, ao dar início ao “causo” envolvendo Lucas,

a estrutura do texto adquire intenso teor descritivo, e consequentemente,

instaura-se um espaço propício aos índices daquela escola estética. Há índices de verossimilhança – resquício romântico, notável em José de Alencar, por exemplo

- muito claros no início da história, de modo a transmitir

convencimento dos fatos: Lucas, além de ser um colega de faculdade, namorava “Virginia Barros, filha do Barão de Souza Barros”. E embora mantenha esse viés, as críticas ao romantismo se revelam também desde o início da narração, quando há

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protestos por partes dos colegas que repelem a possibilidade de ouvir declamações na tertúlia que tomam parte: “era preferível a morfina”, e a nota irônica referente às donzelas que ficaram como a “belle au bois dormant” (“A Bela Adormecida”). No mesmo tom, há a impossibilidade de se entoarem alguns versos, visto que não havia “luar”, tema das cinco “quadras” que o colega queria “impingir” aos demais. Ao caracterizar Lucas, a crítica vem desvelada, uma vez que “alambicava” demais as palavras, “imprimindo-lhes um estilo de mau gosto, avesso à naturalidade”. Enfim, a definição que o encerra: “um romântico, um sonhador de ideais”. Ao descrever a heroína Virgínia, assoma-se um painel pictórico, acentuadamente sugestivo, sublinhado por duplas e triplas adjetivações: «... Era alta e magra, de uma magreza aristocrática. Piso de garça real: flexível e garboso. Meneios de castelã vaporosa, comandando pelos gestos a admiração e o respeito à sua estranha beleza — beleza, em que, si não bastasse o perfil correto e amadonado, a boca pequenina e rubra, seria de sobra o olhar. (Anexos, pág. 53, grifos nossos)

Avulta na descrição a idealização da figura feminina, além do emblemático adjetivo “vaporosa”. Importa, ainda, uma característica do autor que será reincidente: o uso da figura anadiplose, como em “(...)estranha beleza — beleza, em que, si não bastasse (...)”.

É a música o pano de fundo para o primeiro encontro entre Lucas e Virgínia – note-se ainda o relevo para o antropônimo – Virgínia, virginal, virgem, à feição dos ultra-românticos - sublinhado pelos floreios dos instrumentos. Há ainda uma notável impossibilidade de se definir os traços da amada, acrescida de notas sinestésicas: Nem voz de contralto e tenores, nem harmonias quérulas de violoncelos tinham a intensidade d'aquele olhar, misto talvez — por uma extravagância indefinível — de luz, de som e de perfume. (Anexos, pág. 54, grifos nossos)

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À continuação, o mar, lá fora, acompanha a música da festa, e observa-se a presença relevante do verbo “planger” – normalmente associado à música, já citado no conto “Nerah”, de Virgílio Várzea, e recorrente no Simbolismo. Transcrevemos a bela passagem ( e paisagem, também):

O mar plangia, lambendo, no desânimo da vazante, as pedras limosas do sopé do paredão. Longe — como luzeiro de vagalumes — batiam pálpebras trementes os lampiões da cidade. O céu, varrera-o alguém de nuvens. Havia, como a poeira esquecida por um criado descuidoso, o esbranquiçado da via-láctea, enquanto ao derredor um anjo pródigo atirara inconsideramente punhados de astros, chispando fagulhas... (Anexos, pág. 54, grifos nossos)

No parágrafo que indicamos abaixo, além da indefinição do sentimento, denotando uma vaguidade simbolista, além das anadiploses e anáforas de Medeiros e Albuquerque: O Lucas saiu dali cambaleante, não sabia bem se de tristeza, se de ventura. De um desses sentimentos deliciosamente martirizantes, que são sofrimento e são gozo, que são gozo e são sofrimento. Conquistara uma alma de eleição: alma branca, alma de arminho. Mas arminho ensopado em pranto. (Anexos, pág. 54, grifos nossos)

Uma vez que se instala a noção de que Virgínia é tísica – bem como algumas das heroínas que já assinalamos em outras narrativas - ela experimenta uma espécie de perturbação alucinatória, associada a motes ou estribilhos – note-se a referência musical e as sinestesias, que ainda reincidirão:

(...)ela, na obsessão da idéia que a dominava, supôs que os olhos estranhos viam claramente o seu estado. Parecia que dos seus gestos, da sua voz, dos seus olhares saía um rumor de canto-chão, um cheiro de cemitério, uma visão de espectros... Se a olhavam muito, era como se dissessem, gritando por toda a parte, no rasto de seus passos: «Esta é a que vai morrer!».

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E dançou e folgou loucamente, acelerando a hora fatal, mas encobrindo o seu tormento, o seu naufrágio irremissível. (..)ela queria cair enrolada em estendais de flores, em músicas de galanteios, em perfumes capitosos de salas de bailes...(...). (Anexos, pág. 55, grifos nossos)

Virgínia, em desejo bizarro e obsessivo, pede a Lucas que lhe consiga um microscópio: quer ver os “micróbios da tuberculose”, que aniquilam seus pulmões, definidos por ela, grotescamente, como um “queijo sangrento”. A passagem, entretanto, apresenta-nos uma notável semelhança com o posterior poema “Psicologia de um vencido”, de Augusto dos Anjos, publicado no volume Eu, de 1912:

Novas turmas de operários, os vermes, se abateriam sobre o seu corpo. (...) A sua carcaça podre vibraria com a festa dos vermes tripudiando sobre as carnes decompostas! (Anexos, pág. 57)

Próxima da morte, Virgínia entra em franco delírio, onde em belíssima composição descritiva, irrompem elementos da liturgia católica, associados também à música sacra, instrumentos musicais, hinos e sinestesias, ambiente e elementos também simbolistas, além das recorrentes anadiploses e anáforas do autor:

A moça delirava. Via-se noiva. Ia entrar na igreja. Quando dava os primeiros passos, o órgão imenso, com um trovão de apocalipse, fazia-a parar aterrorizada. A música assombrosa cantava: «Esta é a que vai morrer! Esta é a que vai morrer!» Apesar de tudo, um padre celebrava a missa. Quando ele ergueu a hóstia, — a hostia, iluminada vivamente, (...) As linhas do missal eram cordões negros de vermes. Cada vez mais forte, o órgão clamava ensurdecedoramente: «Esta é a que vai morrer» — Então, como uma surdina, como a visão dos que do inferno enxergam o céu aberto, mas irreparavelmente perdido, surgiam-lhe reminiscências de festas: valsas languescendo ao compasso da musica em espirais tortuosas... voo estonteante de perfumes... hinos de ventura, hinos de amor... hosanas de gloria e mocidade e vida... (...)E as flores pareciam despeitadas da sua beleza!... Bailes, festas, pompas de teatro, sedas e veludos, rubis, diamantes...

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Mas agora, dominando tudo, os tubos do órgão mugiam o estribilho formidável: «Esta é a que vai morrer! Esta é a que vai morrer!». (Anexos, pág. 58, grifos nossos)

Lucas, tomado de enorme desalento com a iminência do fim de Virgínia, desiste de sua colação de grau em Medicina e junto ao leito de morte, em gesto inesperado e macabro, colhe numa taça de cristal uma hemoptise de sua musa e a bebe, como em um pacto sinistro, que inevitavelmente, aludimos à imagem vampiresca. Na descrição do sangue, sinestesias em duplas adjetivações: “Era um liquido puro, de uma cor sonora e triunfal, um vermelho cantante, de saúde e mocidade.”

Virgínia morre, e seu aspecto é virginal, imaculado, como convém às heroínas ultra-românticas. Lucas a segue uma semana depois, acometido de uma galopante tuberculose que sorvera de sua amada.

A metalingüística narrativa é encerrada por Caldas, emblematicamente à meia-noite, em noite de luar, em desfecho notável. A imagem da luz que emula uma projeção e as aliterações no último período formam um conjunto quase cinematográfico e acentuadamente simbolista:

O luar, já então esplêndido, coando-se de um orifício da janela sobre o tapete junto ao sofá em que estava o Lucio, parecia pendurar ao pescoço de leão, bordado a lã vermelha, um largo medalhão de prata... (Anexos pág. 60, grifos nossos)

7.8 CRULS, Gastão (Luís). (Rio de Janeiro, 4/5/1888 – 7/6/1959). Médico sanitarista formado pela Faculdade de Medicina do Brasil em 1910 (Rio de Janeiro), passou a se dedicar somente à literatura a

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partir de 1926. Dois anos depois, acompanhou a expedição do Marechal Rondon à Amazônia, resultando dessa viagem o livro de impressões, sob forma de diário, A Amazônia que eu vi (1930), tendo ainda influenciado extensiva e fortemente sua obra, como por exemplo, em Hileia amazônica (1944), estudo abarcando a flora, fauna, arqueologia e etnografia da região, tema que já despontara anteriormente no romance de ficção científica A Amazônia misteriosa (1925) – que parece ter sido inspirado, livremente , pela A ilha do Dr. Moreau, de H.G. Wells (1896) - escrito apenas com impressões obtidas através de leituras e imagens, já que Cruls, curiosamente, somente visitaria a região três anos depois. Anteriormente, publicou seus primeiros contos na Revista do Brasil, dirigida, então, por Monteiro Lobato, em 1917. Estreou em livro enfeixando essas primeiras narrativas no volume de contos Coivara (Rio, 1920), muito bem recebido pela crítica, à época, e que é sua única obra escrita fora da vigência modernista, a considerar a baliza da Semana de 22. O regionalismo amazônico permeia parte de sua produção, percebido ainda nos livros de contos No Embalo da rede (Rio, 1923); História puxa história (Rio, 1938), bem como o romance citado A Amazônia misteriosa (Rio, 1925). A introspecção psicológica e a pintura de costumes sobressaem nos romances Elza e Helena ( Rio, 1927) onde a protagonista apresenta um drama de dissociação de personalidade; Vertigem (Rio, 1934), focalizando um pungente drama passional na terceira idade; De pai a filho (Rio, 1954), páginas de costumes tipicamente cariocas, e o interessante A criação e o criador ( Rio, 1928) esta com uma inclinação acentuada ao macabro, ao sobrenatural e a temas bizarros – que transparecem também amiúde, distribuídos entre seus contos – focalizando um escritor que, demiurgicamente, converte seus personagens ficcionais em reais. A obra de Gastão Cruls, polifacetada, múltipla e, portanto, heterogênea quanto aos propósitos e resultados - é importante também registrar que traduziu as biografias de Nijisnski e Isadora Duncan - , foi forjada no período situado entre o chamado Sincretismo e a vigência de um Modernismo de primeira hora. Entretanto, pela temática fantástica, avizinhada, como já assinalamos, com o bizarro e o macabro, com notas de

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cientificismo, pela sobriedade da prosa, com esmero vocabular, um gosto pela análise e pela introspecção psicológica, aliados a uma pintura minuciosa de costumes sobre um pano de fundo às vezes emoldurando uma cena regionalista e pitoresca, enfim, fazem com que o autor seja, exemplarmente, uma de nossas eleições primeiras para a composição desse estudo e da antologia que é seu objeto. Nossa escolha recaiu naturalmente sobre Coivara, obra de estreia, que depois reuniu-se às outras três subseqüentes, na edição Contos reunidos (Rio, José Olympio, 1951). E dentre as narrativas que figuram em Coivara - nove, no total – tivemos alguma dificuldade em escolher apenas uma, que se sobrepusesse às demais, apresentando os índices da presença do Simbolismo. Importa ainda assinalar dois importantíssimos: primeiro, o livro é dedicado a Alberto Rangel, autor de Inferno verde, já abordado aqui, discípulo e amigo de Euclides da Cunha, que prefacia aquele livro e é também citado por Cruls na epígrafe ao conto “No templo de Palas”, na obra No embalo da rede; segundo, Coivara recebeu uma recensão crítica de Lima Barreto, “À margem do ‘Coivara’, de Gastão Cruls”, na ocasião de seu lançamento, em 1920, e publicada na coletânea Marginália, de 1953, que reproduzimos, na íntegra (Anexos, pág. 61 ). “O Noturno nº 13”, que abre o livro, quer pela sugestão musical, quer pela temática sobrenatural e sobretudo pela escolha vocabular e condução da narrativa, já nos faria inclinar para a escolha; “G.C.P.A.” também, bem afeito à feição do autor, assim como “Noites Brancas”, em que um hóspede de um fazendeiro encontra-se às escuras, diariamente, à noite, e ama uma mulher hanseniana ( tratada, na ocasião, pelo impróprio termo “morfética”), sem sabê-lo. Entretanto, são mais vívidas as notas simbolistas em “A noiva de Oscar Wilde”, cujo título já nos apontaria um atalho natural. A história se passa em Petrópolis, numa casa de veraneio, onde um grupo de amigos, em roda de alta burguesia, sorvendo chás, licores e degustando charutos, é chamado a atenção para os nomes de dois gatos da casa, Dorian e Sybil, personagens de Oscar Wilde. Raul, anfitrião, justifica que a homenagem se deveria a um provável affair entre o autor de O retrato de Dorian Gray e sua tia solteira, Belinha.

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Abre-se, assim, um “metaconto”, pois há um conto dentro de outro, com estrutura de “causo”, dado por verídico, ou levado a esse fim, uma vez que a narrativa propõe e tece outra narrativa. Os índices de verossimilhança cruzam dados entre a realidade e a ficção, como as datas em que Belinha estivera em Londres, a prisão de Wilde e elementos que estariam presentes em cartas e no texto De Profundis. As descrições, ricas e ornamentadas, são, em sua maioria, sugestões, e estruturadas em quadros sinestésicos. Vejamos duas ilustrações, dentre outras tantas, que elegemos. No primeiro parágrafo, quatro dos sentidos são evocados, em grifos nossos: – Dorian e Sybil… Mas por que diabo deste aos teus bichanos o nome das personagens de Wilde? disse eu, afogando os dedos na pelagem fulva de um dos angorás, e avivando na memória a imagem do escritor admirável, em cujas páginas, como num jardim encantado, tanta vez fôramos juntos colher o fruto de ouro das idéias novas e dos paradoxos perturbadores. Raul, que me ouvia a dois passos, estirado numa cadeira de vime, a machucar entre os lábios a ponta da sua indefectível piteira, soergueu-se a essa minha pergunta, e apontando para uma janela próxima, em que ainda havia luz, segredou-me de indicador sobre os lábios: “Os gatos são dela; mas nunca fales em sua presença no nome de Oscar Wilde”. E como o meu olhar o interrogasse, na curiosidade daquêle mistério, Raul travou-me do braço e ambos fomos ter ao fundo da varanda, onde o luar penetrava a furto, escoando-se pela ramagem olente de umas glicínias em flor. (Anexos pág. 66, grifos nossos)

A descrição de “D. Isabel Sleed de Andrade e Melo”, assim por extenso para ilustrar o seu relevo social, embora rica em detalhes, é evasiva e sugestiva, não delineando, paradoxalmente, seus traços físicos:

(...)era uma senhora ainda vistosa, alta e esbelta, de cabeça magnífica e porte airoso, conservando no seu todo essa qualquer coisa de indefinível que exigem as individualidades. Trazia-lhe um particular encanto à fisionomia, resplendente de resignação e doçura, o contraste criado entre uns olhos, não sei se verdes ou castanhos, mas luminosos e inquietos, e a tonalidade dos cabelos já brancacentos, que lhe desciam pelas têmporas em ondas mortas. Vestidos de cores sóbrias, quase sempre voltados ao pescoço por altas gorgeiras de renda, completavam-lhe a grande distinção de maneiras. Por única jóia, e eu sabia-a possuidora de belas, às vêzes, um camafeu antigo abotoando-lhe o corpete. Não sei por que, mas sempre me pareceu que a suavidade do seu perfil admiravelmente se enquadraria na penumbra misteriosa de certas telas de Whistler. (...)Uma figura vaporosa e frágil, transbordante de graça e mocidade, irradiando sedução e frescura. O seu colo, alto e ondeante, emergindo de um tufo de filó branco, ia abrir-se na curva delicada de um rosto, em que brincava o mais ingênuo e acariciante dos sorrisos. Os cabelos, colhidos singelamente à nuca, e que deveriam ser de um negro profundo e quente, não lhe

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quebravam então o queimor dos grandes olhos, que rasgados entre cílios longos, conservavam ainda a mesma indizível e vaga coloração. (...) (Anexos pág. 67)

É notável e reincidente a dupla – e às vezes tripla – adjetivação, em inúmeras passagens da narrativa, observação que fazemos também à maioria dos contos que aqui antologizamos, o que nos parece, de antemão, uma marca comum aos demais. O surgimento e introdução de “Oscar Fingal O’Flahertie Wills Wilde”, assim, também por extenso, na primeira ocorrência da narrativa, é acompanhado de um verdadeiro louvor à sua figura e pessoa, em que vários parágrafos o descrevem de diversos ângulos e perspectivas, focando o espírito, o físico, a indumentária, hábitos, gestos. Elegemos uma passagem também sinestésica e relevante:

A palavra de Wilde, a perfumá-la, não carecia dos jardins de Academo, e era quase sempre em torno à mesa de um café, entre espirais de fumo louro e diante de um copo de whisky and soda, que ele reunia os discípulos, para ditar-lhes o novo evangelho, em que se tinha a beleza por bem supremo e se fazia o elogio do vício e da indolência, da vaidade e do egoísmo, da inconstância e da mentira. A mocidade ouvia-o atenta, na fascinação daquela prosa, tecida de parábolas suaves e paradoxos impenitentes, como se numa panóplia extravagante o aço das adagas e sabres sarracenos descansasse sobre a seda frouxelada de um xale de Tonquim. Por vezes, tal a esfinge que de garras cravadas no deserto assustava o viajor, ele a súbitas interrompia a narração, para fazer perguntas aberrantes, que também ficavam sem resposta. (Anexos, pág. 71, grifos nossos)

A atração pelos temas orientais e exóticos também é presente no seguinte parágrafo: Falava-se na quinzena de seda azul-pavão com que ele, para escrever, se sentava à mesa que fora de Carlyle; discutia-se a sua coleção de turquesas e ametistas, capaz de despertar inveja a Diocleciano; comentavam-se os caprichos da sua inspiração, que tinha exigências de Califa, e só se sentia bem entre tapeçarias persas e dalmáticas bizantinas, maiólicas de Gubbio e marfins hindus; e elogiava-se o escaravelho de lápis-lazuli, que lhe adornava o anular, e fôra arrancado ao dedo milenário de uma múmia. (Anexos, pág. 71, grifos nossos)

É importante também fixarmos a excessiva lista de ocorrências que transparecem erudição e sofisticação, bem ao sabor simbolista, ao longo da trama, tais como: “Antinoo” (efebo e catamita do imperador romano Adriano); “Calibã” (personagem

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shakespeareano de A tempestade, simboliza a impulsividade, o materialismo, o Mal, em oposição a “Ariel”, que representa a espiritualidade, a cultura, a leveza diáfana do Bem); “Beardsley” (Aubrey, pintor art-noveau, ilustrador de Salomé, de Wilde); (maiólicas de) Gubbio (cerâmicas medievais, ricamente adornadas, nesse caso, são famosas as dessa cidade italiana) ;

“Whistler” (James Abbot McNeill, pintor e litógrafo realista

americano, radicado na França);

“Carlyle” (Thomas, escritor e ensaísta escocês);

“jardins de Academo” (bosque sagrado onde Platão fundou a Academia de Atenas); o “jardim das Hespérides” (o pomar de Hera,ou o jardim dos imortais, segundo a mitologia grega); “xale de Tonquim” (cidade do atual Vietnã, na época notabilizada por suas sedas); “André Gide” (André Paul Guillaume Gide, escritor libertário francês, Prêmio Nobel de 1947);

Krafft-Ebing (Richard Von, neurologista e sexólogo alemão,

estudou o sadismo, o masoquismo e o fetichismo em sua obra Psycopathia Sexualis (1886);

as cidades inglesas de Bernewal, Wimbledon e Piccadilly;

“vitória de

Salamina” ( célebre batalha naval entre a frota grega e a armada persa, em outubro de 480 a.C., cuja vitória grega passou a simbolizar o triunfo da razão sobre a barbárie); “Carpeaux” ( Jean-Baptiste, pintor e escultor francês);

além de referências que

dispensam maiores explicações, tais como “Diocleciano”, “Nero”, “liteira de Cleópatra” e “Vênus de Milo”. Há, ainda, esparsas mas significativas referências ao misticismo religioso, como a citação ao drama bíblico de Jezabel e Acab – que trata da insubordinação da mulher ao marido – aludido aqui como hipótese do fracasso do relacionamento entre Wilde e Izabel, uma isolada “coroa de espinhos” (Anexos, pág. 76), assim como o possível hábito adquirido pelo autor de Salomé que “(...)o faria ir, por várias vêzes, à bênção do Papa e lhe daria a morte com todos os sacramentos católicos.” (Anexos, pág. 76). Por fim, a epígrafe – todos os contos de Coivara, assim como os de Ao embalo da rede são precedidos de epígrafes e dedicatórias - de Samuel Johnson retirada de Life of Addison, “I begin to feel myself walking upon ashes under which the fire is not extinguished” (trad.: “Eu começo a me sentir caminhando sobre cinzas sob as quais o fogo não se extinguiu”), embora seja um intróito, pode ser somente entendida após a leitura integral do conto. Aparentemente laudatória à figura que Wilde representa na

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narrativa, a obra a que pertence o excerto é, na verdade, uma compilação da vida de 52 poetas britânicos dos séculos XVII e XVIII, tratando, sobretudo, da iminência categórica da passagem do tempo, da inutilidade dos esforços do homem em ser eterno da futilidade e da vaidade humana. Ora, isso não é exatamente o que se opõe à O retrato de Dorian Gray e à conduta e ao comportamento de seu autor? Trata-se , a nosso ver, de uma chave um tanto hermética, para a compreensão do alcance do conto de Cruls, o que demonstra sua grande erudição e capacidade para tecer uma trama de alto grau de elaboração e complexidade! Outra chave importante para a compreensão e interpretação do texto está na velada crítica e possível rejeição do narrador à orientação sexual de Wilde - que absurdamente o levou à prisão em Reading - uma vez que em nenhum momento da narrativa fala-se abertamente em homossexualismo ou pederastia, mas a questão aparece cifrada, através das citações ( ou símbolos) à “taça de Alcibíades” – referência a um provável amante de Sócrates, sugerido em O banquete ; a “Antinoo”, jovem amante do imperador romano Adriano, e finalmente, a André Gide, escritor francês que assumiu publicamente sua orientação sexual e militava abertamente em favor dela, em atitude pioneira ainda no final do século XIX e início do século XX, período sobre o qual elencamos essas narrativas simbolistas. O conto, ou metaconto,

verossímil, mesclando antecipada e modernamente

ficção e realidade, chega ao desfecho com o anunciado suicídio de Raul, deixando apenas a sugestão dos motivos que o teriam levado ao gesto extremo, e se Belinha – que socorre o sobrinho moribundo – teria ou não se relacionado com Wilde, fato que só poderia ser deslindado com a liberação integral do texto epistolar De Profundis, o que só aconteceria no distante ano de 1960...

131

7.9

ALBERTO

RANGEL

(“Inferno

Verde”,

1904)

(29/5/1871, Recife; 14/12/1945, Nova Friburgo RJ). Engenheiro militar, desligou-se do Exército um ano após a sua formatura, indo para o Amazonas, onde assumiu a diretoria geral de Terras e Colonização, além da Secretaria de Governo. Foi ainda diplomata, servindo na Europa, onde se valeu de sua condição para colher farto material de pesquisa sobre fatos e figuras de nossa História. Na prosa de ficção, Rangel publicou o volume de “cenas e cenários do Amazonas” Inferno verde (Rio, 1904, 1ª ed; Tours, Typographia Arrault, França, 1927, 4ª. ed. ), com grande repercussão à época de seu lançamento, tendo suscitado, até mesmo, imitadores. Euclides da Cunha, seu mestre e amigo, assina o opulento prefácio, ou “preâmbulo”, como parece preferir. A nosso ver, já se configura um notável e pouquíssimo citado ensaio não somente sobre o pequeno volume – embora Euclides não fosse necessariamente crítico literário – dadas as argutas observações sobre o abrangente tema do livro, e que extrapolam os assuntos sobre os quais Euclides era mais afeito, tratando aqui até de Literatura, Estética, questões sobre a modernidade que se acercava, em páginas que não havíamos visto, nem sequer citadas, em suas Obras Completas (Rio de Janeiro, Aguilar, 2 vols., 1966), sobretudo na seção “Ensaios, Estudos e Artigos”, do volume I. É importante, portanto, que transcrevamos algumas partes, não as que se apóiam sobre a Historia Natural, Geografia, Geologia, Botânica, onde Euclides sempre transitou com desenvoltura conhecida; revelemos, pois, o crítico literário, o ensaísta que esmiúça, com propriedade, os onze contos que Alberto Rangel enfeixa em seu livro de 1904. Citando vários naturalistas como Von Martius, Jacques Huber e Walter Bates a suportar seus argumentos, Euclides inicia-se demonstrando erudição, e aponta para a escassez, então, dos estudos sobre a Amazônia, ressentindo-se, também, de não terem ido muito além da “estreita listra litorânea desatada entre Belém e Teffé”. De alguma maneira, o autor de “Os sertões” também deseja, agora nos arredores do Equador, que nos estendamos além da ourela à beira-mar e que penetremos na imensidão da floresta tropical, com seu vasto mundo de águas fluviais, flora e fauna peculiares e de

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incontáveis espécies. Além disso, ressente-se dos estudos “parcelados”, ou seja, não totalizantes, da região imensa, o que leva a noções também fragmentadas, com prejuízo da compreensão do conjunto, do todo, agravada pela dificuldade de se cobrir o espaço devido à amplitude gigantesca, continental, daquele espaço. Notamos uma interessante analogia com a preocupação demonstrada por José de Alencar em “Bênção Paterna”, intróito de seu romance urbano Sonhos d’Ouro, em que expõe as suas razões em criar o que viria a ser nomeado “romance sertanejo”, de modo a que a Corte pudesse estar a par de todos os Brasis que havia no Nordeste, no sertão, no Sul, além do litoral. E sobretudo essa percepção de que haveria um país “além da faixa litorânea” inicia-se com Alencar, torna-se mais aguda com Euclides, já no século XX e consolida-se na 2ª geração modernista – romance social de 30 – capitaneada por Graciliano Ramos.

Pelo

ineditismo de Euclides e pelo valor do texto, transcrevemos longos excertos:

(...)Linhas nervosas e rebeldes, riscadas ao arrepio das fórmulas ordinárias do escrever, revelam-nos, graficamente visíveis, as trilhas multivias e revoltas e encruzilhadas lançando-se a todos os rumos, volvendo de todas as bandas, em torcicolos, em desvios, em repentinos atalhos, em súbitas paradas, ora no arremesso de avances impetuosos ora, de improviso, em recuos, aqui pelo clivoso abrupto dos mais alarmantes paradoxos, além desafogadamente retilíneas, pelo achanado e firme dos conhecimentos positivos de uma alma a divagar, intrépida e completamente perdida, entre resplendores. O Inferno Verde, a começar pelo título, devia ser o que é: surpreendente, original, extravagante; feito para despertar a estranheza, o desquerer e o antagonismo instintivo da crítica corrente, da crítica sem rebarbas, sem arestas rijas, lisa e acepilhada de ousadias a traduzir, no conceito vulgar da arte, os efeitos superiores da cultura humana. Porque é um livro bárbaro. Bárbaro, conforme o velho sentido clássico: estranho. Por isto mesmo, todo construído de verdades, figura-se um acervo de fantasias. Vibra-lhe em cada folha um doloroso realismo, e parece engenhado por uma idealização afogueadíssima. Alberto Rangel tem a aparência perfeita de um poeta, exuberante demais para a disciplina do metro, ou da rima, e é um engenheiro adicto aos processos técnicos mais frios e calculados. A realidade surpreendedora entrou-lhe pelos olhos através da objetiva de um teodolito. Armaram-lhe os cenários fantásticos nas redes das trianguladas. O sonhador norteou a sua marcha, balizando-a pelos rumos de uma bússola. Conchavam-se-lhe os mais empolgantes lances e os azimutes corrigidos. E os seus poemas bravios escreveram-se nas derradeiras páginas das cadernetas dos levantamentos. Inverteu, sem o querer, os cânones vulgaríssimos da arte. É um temperamento visto através de uma natureza nova. Não a alterou. Copiou-a, decalcando-a. Daí as surpresas que despertará. O crítico das cidades, que não compreender este livro, será o seu melhor crítico. Porque o que aí é fantástico e incompreensível, não é o autor, é a Amazônia... A sua impressionabilidade artística tentou abranger o conjunto da terra e surpreender-lhe a vida maravilhosa. Deve assombrar-nos. Não lhe entendemos o exagerado panteísmo.

133

O escritor alarma-nos nas mais simples descrições naturais. O que se diz natureza morta, agita-se-lhe poderosíssima, sob a pena; e imaginamos que há fluxos galvânicos nas linhas onde se perde a passividade da matéria e as coisas duramente objetivas se revestem de uma anômala personalidade. Matas a caminharem vagarosamente, viajando nas planuras, ou estacando, cautas, à borda das barreiras à pique, a refletirem, na desordem dos ramalhos estorcidos, a estupenda conflagração imóvel de uma luta perpétua e formidável; lagos que nascem, crescem, se articulam, se avolumam no expandir-se de uma existência tumultuária, e se retraem, definham, deperecem, sucumbem, extinguem-se e apodrecem feitos extraordinários organismos sujeitos às leis de uma fisiologia monstruosa; rios pervagando nas solidões encharcadas, à maneira de caminhantes precavidos, temendo a inconsistência do terreno, seguindo “com a disposição cautelosa das antenas dos “furos” ...” São a realidade, ainda não vista a despontar com as formas de um incorrigível idealismo, no claro-escuro do desconhecido... Um sábio no-la desvendaria, sem que nos sobressaltássemos, conduzindo-nos pelos infinitos degraus, amortecedores das análises cautelosas. O artista atinge-a de um salto; adivinha-a; contempla-a d’alto; tira-lhe, de golpe, os véus; nos desvendando-a na esplêndida nudez da virgindade portentosa. Realmente, a Amazônia é a última página, ainda a escrever-se, do Gênesis. (...) Ora, entre as magias daqueles cenários vivos, há um ator agonizante, o homem. O livro é, todo ele, este contraste. Assim, o assunto se engravesce. A atitude do escritor delineia-se, forçadamente, em singularíssimo destaque. O seu aspecto anômalo de fantasista, acentua-se no ajustar-se, linha por linha, às aparências terríveis da verdade. Mas desculpemo-lo aplaudindo-o. Alberto Rangel, agarrou, num belo lance nervoso, o período crítico e fugitivo de uma situação que nunca mais se reproduzirá na história. Esta felicidade compensa-lhe o rebarbativo dos assuntos. No Amazonas acontece, de feito, hoje, esta cruel antilogia: sobre a terra farta e a crescer na plenitude risonha da sua vida, agita-se, miseravelmente, uma sociedade que está morrendo... Não a descreveremos. Temos este livro. Ele enfeixa os sinais comemorativos das moléstias. E melhor do que o faríamos em maciços conceitos, vibram-lhe os comoventes lances de uma deplorável agonia coletiva, em onze capítulos, que são onze miniaturas de Rembrandt, refertas de apavorante simbolismo. Contemplando-as vereis como se sucedem se revezam – entre as gentes pervagantes no solo, que lhes nega a própria estabilidade física, escapando-lhes nas ‘terras caídas’ e nas inundações – todos os anseios, cindidos de proditorias (sic) esperanças, que as trabalham e as aviventam, sacrificando-as. (...) Um botânico descrever-nos-ia, certo, com maior nitidez, a maligna morácea, começando por inquirir-lhe, gravemente, o gênero (fícus fagifoglia?... fícus pertusa?) Porém não no-la pintaria, tão viva, nos seus caracteres golpeantes. Por outro lado, um sociólogo não depararia conceitos a balancearem a eloqüência sintética daquela imagem admirável. Aquele extrato resume o estilo do livro. Vê-se bem: é entrecortado, sacudido, inquieto, impaciente. Não se desafoga, distenso, em toda a amplitude das ondas sonoras da palavra, permitindo a máxima expansão aos pensamentos tranqüilos. Constringe-se entre as pautas, cinde-se numa pontuação inopinada, estaca-se em súbitas reticências...

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Na interferência acústica os pontos silenciosos explicam-se pelo próprio cruzamento dos sons. Há interferências mentais naqueles períodos breves, instantâneos, incompletos, às vezes, feridos constantemente pelas próprias incidências de idéias, numerosas demais. Sente-se que o escritor está entre os homens e coisas, uns e outras dúbios, mal aflorando às vistas pela primeira vez, laivados de mistérios. O pensamento faz-se, adrede, vibrátil, ou incompleto, a difundir-se de improviso no vago das reticências, por não se desviar demasiado das verdades positivas que se adivinham. As imagens substituem as fórmulas. Realmente, fora impossível subordinar a regras prefixas, efeitos de longos esforços culturais, as impressões que nos despertam a terra e as gentes, que mal se descortinam, agora, aos primeiros lampejos da civilização. Além disto, Alberto Rangel é um assombrado diante daquelas cenas e cenários; e num ímpeto ensofregado (sic) de sinceridade, não quis reprimir os seus espantos, ou retificar, com a mecânica frieza dos escreventes profissionais, a sua vertigem e as rebeldias da sua tristeza exasperada. Fez bem; e fez um grande livro. Vão respingar-lhe defeitos. Devem-se distinguir, porém, os do escritor, dos do assunto. Quem penetrou tão fundo o âmago mais obscuro da nossa gens primitiva e rude, não pode reaparecer à tona, sem vir coberto da vaza dos abismos... Ademais, o nosso conceito crítico é de si mesmo instável e as suas atuais sentenças, transitórias. Antes de exercitá-lo em trabalhos desta espécie, cuja aparência anômala lhes advém de uma profunda originalidade, cumpre-nos não esquecer o falso e o incaracterístico da nossa estrutura mental, onde, sobretudo preponderam reagentes alheios ao gênio da nossa raça. Pensamos demasiado em francês, em alemão, ou mesmo em português. Vivemos em pleno colonato espiritual, quase um século após a autonomia política. Desde a construção das frases ao seriar das idéias, respeitamos em excesso os preceitos das culturas exóticas, que nos deslumbram – e formamos singulares estados de consciência a priori, cegos aos quadros reais de nossa vida, por maneira que o próprio caráter desaparece-nos, folheado de outros atributos, que lhe truncam, ou amortecem, as arestas originárias, O que se diz escritor, entre nós, não é um espírito a robustecer-se ante a sugestão vivificante dos materiais objetivos, que o rodeiam, senão a inteligência, que se desnatura numa dissimulação sistematizada. Institui-se uma sorte de mimetismo psíquico nessa covardia de nos forrarmos, pela semelhança externa, aos povos que nos intimidam e nos encantam. De modo que, versando as nossas coisas, nos salteia o preconceito de sermos o menos brasileiros que nos for possível. E traduzimo-nos eruditamente, em português, deslembrando-nos que o nosso orgulho máximo deverá consistir em que ao português lhe custasse a traduzir-nos, lendo-nos na mesma língua. De qualquer modo, é tempo de nos emanciparmos. Nas ciências, mercê de seus reflexos filosóficos superiores estabelecendo a solidariedade e harmonia universais do espírito humano, compreende-se que nos dobremos a todos os influxos estranhos. Mas nenhum mestre, além de nossas fronteiras, nos alentará a impressão artística, ou poderá sequer interpretá-la. A frase impecável de Renan, que esculpiu a face convulsiva do gnóstico, não nos desenharia o caucheiro; a concisão lapidária de Herculano depereceria inexpressiva, na desordem majestosa do Amazonas. Para os novos quadros e os novos dramas, que se nos antolham, um novo estilo, embora o não reputemos impecável nas suas inevitáveis ousadias. É o que denuncia este livro. Além disto, enobrece-o uma esplêndida sinceridade.

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É uma grande voz, pairando, comovida e vingadora, sobre o inferno florido dos seringais, que as matas opulentas engrinaldam e traiçoeiramente matizam das cores ilusórias da esperança. EUCLYDES DA CUNHA.

Próxima do rebuscamento vocabular de Os sertões, a obra de Alberto Rangel, no entanto, envereda-se por outros caminhos, quer sejam temáticos, quer sejam formais, e talvez o ponto de contato com a obra de Euclides talvez se reduza àquele único. São várias as disparidades, a começar pelo gênero: aqui, o autor opta pela concisão da prosa curta - conto, enquanto em Os sertões, ainda há quem discuta se seria um ensaio, um romance ou se contemplaria, ainda, estudos antropológicos e geomorfológicos. A prosa de Alberto Rangel, não somente no conto que dá título ao volume – o último da coletânea, de número XI - , bem como nos demais, compostos por “ I. O Tapará”; “II. Um conceito do Catolé”; “III.Terra Caída”; “IV. Hospitalidade”; “V.A decana dos Muras”; “VI.Um homem bom”; “VII Obstinação”; “VIII. A teima da vida”; “IX. Maibi”; e “X. Pirites”, atém-se, sobretudo, ao drama do homem, aqui no cenário exuberante, inóspito e novo da Amazônia recém-explorada. É nesse ambiente de diversidade impressionante, ainda causando impacto depois de mais de um século de escrito, que o autor encontra um universo fortemente sensorial, isto é, (bem) tra(du)zido para a literatura, compõem-se páginas de forte apelo literário, imagens de grande vigor descritivo, trazendo belíssimas construções de estilo, notadamente as prosopopéias e as sinestesias, essas últimas caríssimas ao Simbolismo. A prosa um tanto emaranhada e rica em neologismos (v. nas notas na edição comentada do texto) o aproxima do regionalismo amazônico de Euclides; entretanto, o viés científico não se verifica em Rangel, mas afeito à introspecção psicológica, duelando, muito propriamente, com a imensidão da floresta, e ainda, vendo-a vencer. Na edição princeps, que obtivemos, os contos são encimados por espécies de guirlandas ou sancas, ao topo da página. Na abertura do conto, uma epígrafe de Victor Hugo, extraída de Han d’Islande ( Han de Islândia, em português), Son coeur, sur qui pèse une stupeur morne, se soulève en proie à des tortures convulsives. Il semble qu`il vienne d`entrevoir l`enfer dans sa vie, et qu`il se soit révélé à lui quelque chose de plus que le désespoir.

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(Seu coração, que carrega um estupor triste, se eleva preso a torturas convulsivas. Parece que ele irá entrever o inferno em sua vida e que lhe será revelado algo mais do que o desespero).

romance de juventude do autor (1821-1823), seu primeiro a ser publicado, porém, já de natureza emblemática, uma vez que foi considerado por H. P. Lovecraft, em seu O horror sobrenatural na literatura, como pertencente ao gênero gótico, pela força de suas imagens e sua ambientação. A narrativa transcorre num reino hipotético da Islândia, em 1699, onde vive Han, bandido violento que é encarcerado e que passa a se alimentar de ossos e sangue humano , funcionando, ainda, pelo teor, como um portal do que será focado no transcorrer da narrativa. À guisa de intróito, o narrador descortina, quase literalmente, uma paisagem luxuriante, que às vezes, parece trazer, no detalhe, na minúcia da cor local, um redivivo romantismo. É acentuado, na caracterização, por força de ênfase, um dualismo nos atributos e predicados: “... espetado... ou embicado.” ; “ganho e fortuna” ; “lembranças de sua terra e dos seus, na raiva e no pesar” ; “na imitação e no abatimento, o choro irresistível e infantil em que seus nervos se sacudiam, vibrando...” ; “companheiros e família/ noutro planeta, noutra vida...” ; “desembarcara suscetível e dolorido” . Quanto ao vocabulário rico em neologismos e de etimologia indígena, reforça a entonação do verniz de tom romântico tardio, tais como nos exemplos de *cananaranas; *sororocas; *carapanãs; *paxiúbas; *piuns; *coatipurus; * panacaricas, e tantos outros, que se impõe, desde já, o estabelecimento de um glossário de pé de página, junto aos esclarecimentos e notas que se fizerem necessários ao estabelecimento do texto. Releva-se ainda, no que diz respeito ao uso da linguagem, uma nota de curiosidade que observamos na abertura do conto “A decana dos Muras”, do mesmo volume, esse com epígrafe de Almeida Garrett - “Aos escarnados pés se apinham, jazem/ Infindas gerações em cinza e vermes” (Lyrica, Livro Primeiro) – é a significativa e inevitável comparação com Augusto dos Anjos, logo em seu primeiro parágrafo: Encarar a carta física da Amazônia é ver a rede vascular contínua à epiderme do limbo de uma folha inequilateral. A imagem pormenoriza-se na generalidade flagrante. O Amazonas, rio, é como o feixe líbero lenhoso da nervura principal e os afluentes são as nervuras secundárias, curvivenervas. Ainda estas se ramificam no prodígio da rede

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hidrográfica, excepcional e única, apertando em malhas o parênquima das terras florestais. A nervura secundária do Urubu não se insere imediatamente no Amazonas, mas no entrefolho do lago de Saracá, ao pé de Silves, onde Inglês de Souza pôs a roupeta revolta de um agitado “missionário”, que beijos pecaminosos de mulher sacramentaram na “confirmação”do Homem.(Inferno Verde, págs. 117-8)

Nota-se ainda, além da antropomorfização da floresta, através das mesclas dos campos semânticos dos sistemas dos animais e dos vegetais, com o intuito de vivificar e animar a floresta,

que também o faz em outras narrativas, Alberto Rangel traz

comentários literários à sua narrativa como se ela mesma não fosse, também, de natureza ficcional, ao citar dois romances lançados e publicados no mesmo ano (1888): o contemporâneo e conterrâneo Inglês de Souza e O missionário , romance com influências de Eça de Queirós e Émile Zola; e A carne, de Julio Ribeiro, romance naturalista polêmico, de relativo valor literário e notabilizado, sobretudo, pela crueza das cenas eróticas e pelo determinismo que acentuara o seu curto horizonte narrativo e também a previsibilidade de seu desenlace, a que critica contundentemente. Quanto

aos

aspectos

intrínsecos

da

narrativa,

Euclides

aponta,

em

prefácio-ensaio inédito, talvez pouco lembrado, uma vez que sequer figura em suas Obras Completas , algumas notas dignas de figurar nos mais elevados compêndios de nossa literatura. Discorrendo franca erudição sobre o então estado da arte, o autor de Os sertões lembra que o livro – não somente o conto, frise-se – Inferno Verde é “bárbaro” e feito para antagonizar-se à crítica de então, o que revela, de antemão, que plasmava-se uma nova narrativa. Muito embora distante do corpus aqui presente, quer pela temática, quer pela estrutura narrativa, Euclides aponta para uma novidade, algo que se inaugurava, distinto dos ares realistas-parnasianos que pontificavam como canônicos, ao assinalar que “inverteu, sem o querer, os cânones vulgaríssimos da arte.” Quanto à forma, lembra o prefaciador que “tem a aparência perfeita de um poeta, exuberante demais para a disciplina do metro, ou da rima, e é um engenheiro adicto aos processos técnicos mais frios e calculados”, o que se traduz no seu apuro inclinado à prosa poética, como se pode depreender, também, dos demais aqui antologizados. Ressalta o teor da fabulação descolada da realidade, que abarca o tom simbolista, em “o seu aspecto anômalo de fantasista, acentua-se no ajustar-se, linha por linha, às

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aparências terríveis da verdade.” E mais uma sublinha francamente indicadora do acento simbolista: “O pensamento faz-se, adrede, vibrátil, ou incompleto, a difundir-se de improviso no vago das reticências, por não se desviar demasiado das verdades positivas que se adivinham. As imagens substituem as fórmulas.” Notamos que as fortes tintas regionalistas não arrefecem o tônus simbolista, que aparece diluído em Inferno Verde. Os delírios do protagonista, a forte introspecção psicológica, os painéis ricamente descritivos – pictórica e sinestesicamente – da natureza exuberante (como um resquício romântico da cor local), o conflito íntimo, a doença aniquiladora (aqui a malária ocupa o lugar da tuberculose), o fantástico avizinhado ao maravilhoso (na antropomorfização final da natureza), e, ainda, uma belíssima página de referências musicais, aparentemente inusitada, realçando o acento simbolista que se assoma na densa e opulenta narração. Transcrevemos uma verdadeira “sinfonia” das aves noturnas, repleta de referências à música erudita, em meio a um delírio do protagonista: O engenheiro não podia dormir. A acuidade dos seus ouvidos parecia ter aumentado na solidão, O vento, que entrava à vontade pelas brechas da choça, fazia provavelmente distúrbios na floresta rodeante. Havia sons de quedas e assovios, zumbidos, tropear de patas e rechinos... Ora se diria que a mata toda crepitava incendiada e que tombavam, estalando, os troncos portentosos; ora, rolamento de avalanches, pizzicatos em bordões de violoncelos, arcadas em violetas e contrabaixos; ora, machadadas, guinchos, pipilos e cicios. Nesse concerto distinguia-se o concurso feral das corujas. As gargalhadas, despedia-as a «mãe da lua» – a irutaí sarcástica. Acompanhavam-na em módulos vários, os murucututús, «rasga-mortalhas» bacuraus, ducucus e acuraus... A floresta sofria, a floresta ria... Dedos convulsos de um gênio em delírio tangiam as cordas infinitas dessa grande harpa de esmeralda, arrancando-lhe acordes e síncopes harmoniosos ou incoerentes, na execução confusa da mais aterrorizante das sinfonias. Acentos schumannianos, a solene gravidade de Berlioz, dissipados em dissonâncias loucas, em descompassos chocantes... Houve um instante, em que Souto ouviu, a principio indistintamente no sussurro, um grande ofego de muitos peitos humanos esbofados, que respirassem demoradamente. Depois se acentuou o corpo dos sons roucos e sfogatos. E a esse estertor enorme, mas abafado, os outros sons morreram. No tumulto ficou somente esse arfar monstruoso, que se pensaria ser de todos os troncos, em ressono, na dormência da vasta noite: – era o regougo dos guaribas, de certo à beira de um igapó central. O magote saltigrado e estentórico dos símios, em mugido coral, acabou adormentando o engenheiro, que acordou diante do café matinal, ao ameaço do alvor crastino. Urús trinavam melodiosamente, imitando trilos de frautas rústicas de faunos, concertando um scherzo. (grifos nossos, Anexos, pág.83 )

É importante ainda que se dê relevo à referência a Schumann e Berlioz, presentes no meio de uma tapera amazônica, às margens de um igapó inundado (inevitável

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associar, de passagem, ao filme Fitzcarraldo (1982), de Werner Herzog). Ao qualificar de “peças aterrorizantes” os pios da floresta, o protagonista alude, diretamente, às Peças fantásticas

de

Robert

Alexander

Schumann

(8

de

junho

de

1810,

Zwichau,Saxônia(Alemanha) -29 de julho de 1856, Endenich (Alemanha)), compositor romântico, crítico musical e também poeta em prosa, fortemente influenciado por Byron. A “solenidade grave” de Berlioz (Louis Hector Berlioz (La Côte-Saint-André, 11 de dezembro de 1803 — Paris, 8 de março de 1869)), compositor romântico francês, deve aludir, também à sua

Sinfonia Fantástica (1830). Também ligado às letras,

Berlioz era amigo de Alexandre Dumas, pai, Victor Hugo e Balzac. Théophile Gautier – pai do Parnasianismo francês – alinhou Berlioz a Victor Hugo e ao pintor Eugène Delacroix, cognominando-os de “A Trindade Romântica”. Para examinarmos os demais elementos constitutivos de Inferno verde, procederemos a uma análise mais detida, estrutural, à diferença dos demais contos do corpus da antologia, sobretudo pela sua maior extensão. Nos Anexos, o texto, na íntegra, foi ortograficamente atualizado e estabelecido para esse estudo.

7.9.1 ELEMENTOS DA NARRATIVA 7.9.1.1 Personagens Quanto ao papel desempenhado no enredo: a) Protagonista: “Souto” A caracterização do herói: Era mister, contudo, continuar a lide. O Souto não se desvanecia. Fôra um acesso, sem conseqüências talvez. Ele precisava vencer tudo. Coragem era ainda a melhor terapêutica. Bem comuns casos fatais, filhos do medo. Evitar a receptividade mórbida, era o problema. Desde que o Souto conseguira dominar os vagos receios da alma, para chegar ao alto desse sertão, onde lhe tinha sido dado buscar a fortuna para gozá-la entre os seus, no Sul, não seria na cumeada que desanimasse. Sentia-se bem melhor... E deu ordem aos camaradas para aprontarem as montarias. (Anexos, Pág.86 )

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b) Antagonista: o espaço, o “Inferno Verde”, e a febre terçã: A floresta inóspita: (...)Salteando os passageiros, os galhos das articulosas tabocas penduravam-se, suspendendo anzóis. Os acúleos traiçoeiros podiam rasgar o fato, lanhar a pele, ou vazar os olhos. “Tudo conspirava para aumentar de pungência o sacrifício do Souto. Os piuns supliciavam a jornada; e, com os piuns, irritando-lhe a epiderme das mãos, que a nuca a resguardava um mosquiteiro de cabeça providencial, a lembrança obsedante da lagoa letal... (idem, pág.86)

E o grande solilóquio final, quando a floresta, antropomorfizada, brada, perante a morte do herói: «Perdôo-te e compreendo o estigma que me lanças. Fui um paraíso. Para a raça íncola nenhuma pátria melhor, mais farta e benfazeja. Por mim as tribos erravam, no sublime desabafo dos instintos de conservação, livres nas marnotas pelas bacias fluviais afora. Ainda hoje, o caboclo, sobra viril desvalida nos destroços da invasão, vive renunciado e silencioso, adorando-me e bendizendo: – seu repouso edênico, sua plaga abençoada, seu recanto pacifico, na herança fetichica (sic) e venerativa dos povos autóctones de onde proveio. Diante os insucessos da avidez do «branco», o nativo murmurará: «Contudo aqui se sofre, mas ainda se agüenta...» Si não paraíso, ser-lhe-ei um purgatório, no qual ele expia conformado a sua impotência, na dilação impiedosa da Justiça, que o reabilitará em suma, rememorando a sua historia de heroísmos obscuros, na luta com as fatalidades sociais que o esmagarão completamente. Inferno é o Amazonas... Inferno verde do explorador moderno, vândalo inquieto, com a imagem amada das terras donde veio carinhosamente resguardada na alma ansiada de paixão por dominar a terra virgem que barbaramente violenta. Eu resisto á violência dos estupradores... Mas enfim, o inferno verde, si é a gehenna de torturas, é a mansão de uma esperança: sou a terra prometida ás raças superiores, tonificadoras, vigorosas, dotadas de firmeza, inteligência e providas de dinheiro; e que, um dia, virão assentar no meu seio a definitiva obra de civilização, que os primeiros imigrados, humildes e pobres pionnieri do presente, esboçam confusamente entre blasfêmias e ranger de dentes.(...) (idem, pág. 96)

A febre: (...)À noite, na Nova Vida, o engenheiro foi sentido o corpo machucado e de juntas doloridas. Apressou-se a ingerir uma cápsula de quinino. Uns leves calafrios lhe trespassavam seguidamente os músculos fatigados. Aquela dormida na véspera, na barraca da «Carne» e da poça lodosa! Um calor lhe subia à cabeça, em estranha queima... a boca seca...

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Souto despertara tarde. Ao esmaecer da manhã sentira-se melhor, saltara nervosamente da rede. O Miguel trouxera-lhe macaxeiras cozidas e um guisado de anta; tocara de leve no repasto, mas saboreara uns goles de café fumegante” ( págs. 86)

(...)Souto prostrado na rede sentia o latejo das fontes, a secura dos lábios crestados do fogo interior que o abrasava todo. Enquanto o caboclo e o Simeão escortaçavam o porco, e certa agitação animava a turma diante do «fresco», Souto resistia num combate formidável aos pensamentos de desânimo, que procuravam invadi-lo na febre. Toda a noite ele viu, no entretanto, horrores; ora em fogo, ora em gelo, no algor, o seu corpo parecia precipitar-se em abismos, ou achatar-se por desabamentos formidáveis; o plácido igarapé corria ao fundo da terra, por uma helicóide, escortinada em fila dupla de monstros, que vomitavam chamas... A noite toda se lhe cortou de enregelamentos, incêndios e pavores do delírio. O Miguel aproximava-se, de vez em vez, a examinar e cuidar do patrão: – Sossegue – doutor, aconselhava num carinho curto. Pela manhã os olhos do Souto se emolduravam num bistre forte, no rosto entalhado em linhas ásperas de magreza lívida. (idem, pág. 88)

Quanto à caracterização: Souto, como protagonista, é, propriamente, dados os exemplos já demonstrados nos excertos, um personagem redondo, complexo, apresentando algumas características classificadas como:

Físicas: Não há uma descrição sequer dos traços físicos de nenhuma das personagens, isto é, pormenores que levem a uma composição pictórica, a um retrato de qualquer uma delas. De Souto, protagonista, recolhemos apenas alguns índices, quase metonímias de sua inteira figura, em processo de degradação da doença até a morte:

“(...)a sua ativa ambição de moço(...) “ (pág. 80)

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“(...)Souto prostrado na rede sentia o latejo das fontes, a secura dos lábios crestados do fogo interior que o abrasava todo(...)” (pág. 88) “(...)Pela manhã os olhos do Souto se emolduravam num bistre forte, no rosto entalhado em linhas ásperas de magreza lívida(...) (pág. 88) “(...)Souto, apoiado em Miguel, pôde galgá-la, tomado de uma penosa debilidade. Foi-se arrastando pelo aclive forte, como uma rês exangue(...)” (pág. 93)

Até a cena da morte: Mãos e face ensanguentadas, dando a idéia de que a luta com adversário invisível e execrável tinha sido corpo a corpo e a unhadas, o engenheiro, no meio das rosas, na ocasião de ser erguido, morria num sorriso de alívio, à frenesiada crispação dos seus músculos atrictos.(...) (Anexos, pág. 95)

Psicológicas: Sendo a personagem complexa e densa, o autor inclinou-se, preferencialmente, à descrição da personalidade, seus estados de espírito e ânimo, na narrativa, em particular, acompanhados pela derrocada física - acometimento de malária – e pelo malogrado empreendimento nas terras amazônicas. O seu abatimento moral já é delineado nos primeiros parágrafos, tão logo o “gaiola” o deixa no Alto Juruá:

Esse retorno deixava-o, pois, de face estuporada, que lágrimas lavavam amargamente. Alguma coisa partia de si ou lhe era deixado, no mistério do abandono e da saudade. ( Anexos, pág. 79)

E uma longa citação, necessária, ainda para sublinhar a caracterização de Souto, logo no primeiro volteio do enredo:

(...)Mas aquela imagem do vapor voltando, dera-lhe o golpe na armadura, e foi, como um dardo, romper-lhe o coração. Lembranças amadas de sua terra e dos seus vieram, em coro triste, dizer-lhe adeuses, abraçá-lo, desanimando-o. E a cada evocação, o Souto afogava-se num soluço irreprimível. Só! Considerava o engenheiro, na raiva e no pesar indefiníveis. Na irritação

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e abatimento, o choro irresistível e infantil tudo confundia na crise única em que seus nervos se sacudiam, vibrando (...) (idem, pág.80)

A obstinação, coragem e a resistência lhe são exigidas e aparecem vez e outra:

Desde que o Souto conseguira dominar os vagos receios da alma, para chegar ao alto desse sertão, onde lhe tinha sido dado buscar a fortuna para gozá-la entre os seus, no Sul, não seria na cumeada que desanimasse. Sentia-se bem melhor... E deu ordem aos camaradas para aprontarem as montarias. (Anexos, pág. 86)

Sociais : As características que denotam propriamente a sua condição social, ou seja, o seu status, já se encontram, de certa forma, bem descritas ao longo da narrativa pela sua condição de engenheiro, moço, oriundo e residente no Sudeste, com ambições e anseios aventureiros a empreender na inóspita e misteriosa Amazônia, que, por fim, o devora, metaforicamente. Achamos importante sublinhar passagens em que fiquem nítidos os contrastes entre o protagonista e as personagens secundárias, no caso os remeiros Chico Brabo, Simão e Miguel, ou mesmo nos parágrafos iniciais, em que, ao descrever a disposição das redes em “quincôncio” no barco, não hesita em comparar as duas centenas de homens no convés a um rebanho, em analogia muito próximo àquelas utilizadas largamente por Aluizio Azevedo, em O cortiço:

Duzentos homens se comprimiam, onde não haveria lugar para cem, na disparatada promiscuidade, com sacos, caixões, bois e garrafões. As redes, em quincôncio, embaraçadas, sobrepostas umas as outras, até sobre os lombos do gado. Um homem morrera de uma cornada, na rede em que dormia. Era todo um rebanho colhido em navio fantasma para ser lançado numa voragem(...)(Anexos, pág. 80)

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As distinções e contrastes entre a sua condição e a dos remeiros ficam nítida nessa passagem, acentuadas pelo verbo “palravam”, designado usualmente para a voz de aves que imitam a do ser humano como papagaios, araras, cacatuas, mainás etc. Nota-se ainda, um ar irônico, ao chamar o remeiro de “filósofo”; além disso, observa-se que não são “contratados, admitidos”, mas “adquiridos”:

(...)os remeiros adquiridos na foz, cearenses ambos, palravam sempre, parando os remos. Um deles, o Chico Brabo, cultivava dialética, inventando termos, que muitos supriam as faltas do parco vocabulário regular aprendido: comida era «trupizup», arranjos de pouco ou nenhum ganho eram negócios «atibisque»...(Anexos, págs. 82)

O filósofo, a um canto, perdia-se galrão, em comentário tosco sobre a desigualdade das fortunas humanas. Mas as suas palavras, por fim, não encontravam eco. Miguel ressonava e o outro, o Simeão, conservava-se propositadamente mudo. Afinal, a premissa de um silogismo embotou-se num ronco.(...)(Anexos, pág. 82)

Embora em nenhum momento anterior haja qualquer referência à raça de Chico Brabo, fica evidente, nesta passagem, que o remeiro é um negro. Embora bela, a imagem da cantiga nagô “algemada em langorosos ritornellos” é bárbara, o que confere uma nota pejorativa, ainda em tempos não muito politicamente corretos.

O Chico Brabo, espichado na maqueira entoava repisando uma cantiga nagô. A melopéia bárbara, que vinha d África, trazia algemada nos seus langorosos ritornellos a tristeza insondável de um brigue negreiro, de velame murcho, na calmaria podre do mar...(...) (Anexos, pág. 85)

Ideológicas: Tal qual seu amigo Euclides da Cunha, Alberto Rangel também fora engenheiro militar do Exército brasileiro, formado pela Escola Militar do Rio de Janeiro em 1899, desligando-se no ano seguinte. Euclides também se desligou da corporação

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após alguns incidentes, em que desfeiteou o então Ministro da Guerra, em 1888. Com a instauração da República, foi readmitido e reconduzido como alferes-aluno e somente pediu baixa em 1898, dois anos antes de seu amigo Alberto Rangel. É provável que o autor de “Inferno Verde” também tenha passado por alguns dissabores na caserna, uma vez que não tardou em pedir seu desligamento. Logo em seguida, exerceu o cargo de diretor-geral de Terras e Colonização no estado do Amazonas e de secretário de governo, o que, indiscutivelmente, fez com que ele conhecesse a região profundamente. O consórcio entre o possível desgosto com o Exército – ou mais do que isso, uma discordância – e o grande conhecimento da floresta amazônica -

em suas

localidades ainda não alcançadas - parece apontar para a chave do entendimento de uma passagem notável do conto, em que o protagonista encontra ex-colegas de farda em exercício na beira dos rios da região, e aproveita o ensejo para, sobretudo, criticar pesadamente os oficiais, livrando os praças:

Na várzea roçada de pouco, na boca do Moa, desdobrava-se um acampamento de forças do Exército, que na marcha de jabutis, ou de guaiamuns num mangue, iam operar no Amônia.(...) (Anexos, pág. 93) (...)Desgostara, porém, ao Souto, esse estreito circulo de tarimba: – choco de paixões humanas no largo virginal de um sertão. O que tinha a soldadesca de devotada e bem disposta, tinham os oficiais de macambúzios e queixando-se de tudo, maldizendo-se, forjando intrigas, ou discutindo política. Uma frouxidão d’alma caracterizava esses indivíduos, aos quais, pela maior parte, faltava evidentemente um completo e rijo treinamento físico e moral. Eram militares; e, o que lhes reservava a profissão de sofrimento e desconforto dava-lhes azedume, torcia-os de rancor! Comandar a guarda, dar o «estado», ou assistir a uma «ordem», nisso criam poder limitar as funções, nortear os ideais e pompear-se a vida! O país não deveria preocupar-se em fazer traduzir do alemão e do francês a arma, o fardamento, a viatura e a manobra; mas, preparar os seus assoldados (sic) para a Defesa e para a Morte, no culto e formação das dedicações serenas, que nada reclamassem no sacrifício... Assim pensando, irritado, deixou o engenheiro o aquartelamento dos expedicionários, enquanto pela manhã se ruborizava o céu ao comovente estridor do toque da alvorada. Esse ritmo lancinava. Parecia dizer a mágoa funda desses forçados de uniforme que, proscritos da Pátria, tivessem feito uma alta no lodaçal amazônico. A floresta e o rio beberam empedernidos o melodiar pungente das cornetas. (Anexos, pág. 93)

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Trata-se de uma nítida crítica ideológica à prática e a forma como o Exército conduzia sua tropa, seus objetivos e propósitos, já no longínquo 1904. Nota-se, ainda, nova semelhança com Euclides, não somente no aspecto extra-literário, mas também pelo fato de valer-se da literatura para a crítica e denúncia, ou seja, com função também jornalística.

Morais: Chama-nos a atenção, inicialmente, a crítica feita à obra mais conhecida de Julio Ribeiro, o romance A carne, publicado em 1888 notabilizado pela crueza da abordagem de seus temas, como o amor livre, o sexo por impulso, sadismo, perversões, nudez, o divórcio, a discussão sobre o papel da mulher na sociedade - tudo isso sob a pena cientificista e determinista do naturalismo. Tal enfoque nitidamente desagrada ao narrador de “Inferno verde”, uma vez que qualifica o romance de Julio Ribeiro – que já fora duramente recebido pela crítica da época como “parto monstruoso de um cérebro artisticamente enfermo”

(José

Verissimo), além dos notórios embates com o padre Senna Freitas e o jovem crítico, à época, Alfredo Pujol - de “defeituoso” e “estapafúrdio”, além de assinalar que um “grande símbolo se glorifica no corpo viçoso de Lenita”, entendidos aqui, pela sentença anterior, que a “a mão do gênio do mal” interviria, intercederia, fazendo com que os hóspedes tivessem acesso ao texto e pudessem, assim, ter a última visão da Vida ( frise-se, aqui, com maiúscula, a gosto dos simbolistas); entende-se, ainda, esse símbolo como uma representação do mal, por tudo que Lenita encerra, e sobretudo, o “viçoso”, talvez mais aparentado pelo étimo com “vezo”, “vício”. Há, ainda, uma nota aparentemente pejorativa ao classificar o autor como “gramático”, como se essa condição não o qualificasse para escrever o romance, ou mesmo já antecipasse e justificasse a fragilidade de seu teor literário.

(...)Aquela dormida arrepiara ao Souto. O pantanosinho toldado obsedava-o; e, para afugentar idéias fúnebres, ele pôs-se a ler a «Carne» de Julio Ribeiro, que encontrara, com surpresa, na barraca fantástica. O defeituoso livro do gramático respirava largamente a oxigenada

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e forte natureza paulista, tão em contraste a esse canto, onde eflúvios letais d água morta tudo circundavam de um véu funesto. A mão do gênio do mal, que habitasse os limos do pântano, deixaria esse livro na barraca, no intuito de dar aos seus hóspedes a derradeira visão da Vida, nas imagens do romance estapafúrdio, em que um grande símbolo se glorifica no corpo viçoso de Lenita. (pág. 84)

c) Personagens secundárias São personagens secundárias os remeiros Miguel, Chico Brabo e Simeão.

Quanto à caracterização: São personagens planas, tipos, já assinalados, por contraste, quando caracterizamos o protagonista. Portanto, quase não há elementos físicos, psicológicos, ideológicos ou morais que nos permitam compor a imagem além de que sejam simples “remeiros”, com toda a carga pejorativa que anteriormente observamos. Elegemos outras passagens para ilustrarmos a análise, para que possamos pinçar pequenos traços de caráter, de uma e outra personagem: (...)silêncio respeitoso do Miguel e a palrice dos outros homens(...)” (Anexos, pág.82) Miguel ressonava e o outro, o Simeão, conservava-se propositadamente mudo.(...)” (idem) O Chico Brabo, espichado na maqueira entoava repisando uma cantiga nagô. A melopéia bárbara, que vinha d África, trazia algemada nos seus langorosos ritornellos a tristeza insondável de um brigue negreiro, de velame murcho, na calmaria podre do mar...(...) (Anexos, pág.85)

Uma maior afeição de Miguel pelo seu patrão, visível pelos seus cuidados, denota um maior polimento em seu caráter: Miguel aproximava-se, de vez em vez, a examinar e cuidar do patrão: – Sossegue – doutor, aconselhava num carinho curto.” (...) (Anexos, pág.88)

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Souto, apoiado em Miguel, pôde galgá-la, tomado de uma penosa debilidade(...) (Anexos pág. 93) Vendo que o patrão sossegava, Miguel, às pressas, engolindo o chibé, saiu a sondar os arredores, a buscar alguém para com ele assistir ao doente. E, provavelmente, haveria um socorro...(...) (Anexos pág. 95)

E por fim, no parágrafo último, Miguel é citado pela primeira vez como caboclo e faz as vezes de coveiro de seu patrão:

Adiantando-se a tarde, o caboclo Miguel começou a algumas braças da tapera, vagarosamente, a cavar uma sepultura. (Anexos, pág. 97)

7.9.1.2 Tempo a) Época A época em que se desenrola o enredo de “Inferno Verde” não está muito dissociada, cronologicamente, do espaço-tempo da realidade, ou seja, do momento de sua publicação, considerando vários aspectos – que virão ainda a ser suscitados, propriamente, nos itens espaço e ambiente.

No entanto,

considerando que o primeiro Ciclo da Borracha no Brasil foi de 1879 a 1912 e teve seu apogeu por volta de 1890 e “Inferno Verde” é de 1904, temos, praticamente, elementos contemporâneos.

b) Tempo Nas narrativas curtas, como os contos, o transcurso do tempo, é, normalmente, reduzido. Em “Inferno Verde”, embora a passagem dos dias seja contada sobretudo pela sazonalidade dos ataques de febre sofridos pelo protagonista, até minarem totalmente suas forças e o levarem à morte, os índices temporais são pouco

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citados, e estão dispostos como balizas sobretudo na parte inicial do conto: “E num desvio imaginativo, conveniente à reparação do espírito desfalecido, ele repassou os vinte e seis dias dessa cidade ao «alto». (...) (Anexos, pág.80) O tempo, que é cronológico e linear - somados a esses vinte e seis dias de viagem de Manaus até o Alto Juruá, que são anteriores à trama - , passando por Altamira, Novo Paris, Deixa Falar, Miragem, Bom Lugar, Santa Helena etc, (Anexos, pág. 80), observamos pelos indicadores de tempo a passagem aproximada de vinte e quatro dias e noites, até a morte de Souto e desfecho da narrativa:

Esse relancear pelo cosmorama da viagem derivou a crise hipocondríaca do Souto, até se distrair em contemplar a tarde. O sol estava feito uma brasa mortiça que nem dava para incendiar o punhado de cotão de nuvens, sob as quais a brasa se apagava...(...) (Anexos pág. 81) / 1º dia “Anunciado o jantar e que havia macaco e quatipuru, ele acudiu de ânimo já retemperado ao convite insistente.(...)” (Anexos pág. 81) / 1º dia “(...)O dia seguinte,(...) (Anexos pág. 82) / 2º dia “Miguel ressonava e o outro, o Simeão, conservava-se propositadamente mudo. Afinal, a premissa de um silogismo embotou-se num ronco. (...)” (Anexos pág. 82) / 2º dia “O engenheiro não podia dormir(...)” (Anexos pág. 82) / 2º dia “(...)o engenheiro, que acordou diante do café matinal, ao ameaço do alvor crastino(...)” (Anexos pág. 83) / 3º dia “(...)Dois dias mais tarde, vingadas as linhas subtensas, ou os ramos das curvas, chegaram a Boa-Vista(...)” (Anexos pág.84) / 5º dia “Aquela dormida arrepiara ao Souto(...)” (Anexos pág. 84) / 5º dia “Àquela hora matutina, o cálice profundo e infecto do lodaçal exalava em névoas ralas. (...)” (Anexos pág. 85) / 6º dia “À noite, na Nova Vida, o engenheiro foi sentido o corpo machucado e de juntas doloridas (...)” (Anexos pág. 85) / 6º dia “Souto despertara tarde. Ao esmaecer da manhã sentira-se melhor (...)” (Anexos pág. 86) / 7º dia “O dia, horrível de calor e de «praga», findara à foz do Funil (...)” (Anexos pág. 87) / 7º dia “Amplo fumívoro, o céu aparava das labaredas do acaso os fumos da noite, vinda num repente (...)” (Anexos pág. 87) / 7º dia

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“Pela manhã os olhos do Souto se emolduravam num bistre forte, no rosto entalhado em linhas ásperas de magreza lívida.” (Anexos pág. 88) / 8º dia “(...)Cada vinte quatro horas de acessos, cada reduzir de energias e de músculos. Oito dias assim esteve o Souto no Funil, em delírios, inapetências e calmas passageiras(...)” (Anexos pág. 90) / 16º dia “Durante toda uma semana a «Tartaruga» foi passando a revista daquela guarda funambulesca das culturas na vazante. (...)” (Anexos pág. 92) / 23º dia “Assim pensando, irritado, deixou o engenheiro o aquartelamento dos expedicionários, enquanto pela manhã se ruborizava o céu ao comovente estridor do toque da alvorada.(...) (Anexos pág. 93) / 24º dia “Ao pôr do sol caldeante a pompa flavescente do dia descorava, escurentando-se; empanavam-se os seus ouros rútilos e irradiosos ficavam os seus diamantes(...)” (Anexos pág. 93) / 24º dia

7.9.1.3 Espaço

Embora não seja de todo impróprio usar o termo “conto de espaço” para “Inferno Verde”, por analogia à “romance de espaço”, entendido como aquele que “focaliza a sua atenção no modus vivendi e paisagem (natural e humanizada) de uma determinada região geográfica”, é importante que situemos a narrativa de Alberto Rangel, em seu tempo e arredores. José de Alencar, que inaugura o romance sertanejo no Brasil com O Gaúcho em 1870 e em seu projeto nacionalista consolida ainda o romance urbano, o indianista e o histórico, busca, em suas narrativas, vários objetivos, dentre eles, fazer ao leitor a percepção de que o país não é um “arquipélago cultural”, ou seja, ilhas desconectadas culturalmente, e, ainda, fazer com que o(a) leitor(a) da Corte se dê conta do que há para dentro da nação. Alencar esmiúça seu projeto no esclarecedor ensaio “Benção Paterna”, no introito de Sonhos d’Ouro, de 1872.

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Ao lermos um dos romances indianistas ou mesmo um de feição regional, nota-se, fortemente, a contextualização da cor local através do aspecto dialetal, sobretudo no léxico referente à flora, fauna, folclore, folguedos infantis e quanto à comida (nomes de pratos, itens, preparo, temperos, cozimento e forma de comer). Tais aspectos reforçam e de certa maneira demarcam a “ruralidade” que é intrínseca ao local retratado, acentuando idiossincrasias desses espaços físicos/ sociais/ ideológicos, conferindo-lhes, portanto, o que chamamos de pitoresco, em Alencar, a nosso ver, sobrepõe-se a questão sociolingüística, razão pela qual é quase essencial a presença de um dicionário ou que a edição seja acompanhada de um atento e farto glossário. Em Euclides da Cunha, contemporâneo, amigo e prefaciador da obra de Alberto Rangel, a questão, notoriamente, é muito mais ulterior. Os sertões, de 1900, ainda hoje divide os críticos, admitindo leitura vária e multidisciplinar, no âmbito da Sociologia, da Geografia, da Geologia, da Antropologia, e, naturalmente, da Literatura. O pitoresco, na obra, não advém da linguagem, ou do espaço ou ainda das personagens, mas do conjunto complexo, seus arranjos e liames, que conduzem ainda o leitor por um viés jornalístico, uma vez que era o propósito inicial do autor, como repórter, cobrir os lances finais da campanha de Canudos, no sertão da Bahia, em 1897. Portanto, os vocábulos de mais difícil compreensão são, via de regra, de origem científica, designando minerais ou vegetais. Embora a primazia do conto regionalista esteja entre o paulista Valdomiro Silveira, que publica seus primeiros escritos em 1891, em diários locais e os compila em 1920, sob o título de Os caboclos, e o mineiro Afonso Arinos, com Pelo sertão, de 1898, e há ainda os que incluem o gaúcho Simões Lopes Neto, com Contos gauchescos, já em 1914, parece-nos oportuno passar a considerar, também, a participação de Alberto Rangel nessa estirpe, seja pelo aprofundamento de suas questões, ou por sua apurada técnica literária. À diferença dos autores citados, Rangel não se atém apenas à superficialidade de alguns motivos folclóricos, passagens anedóticas, “causos”

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ou cenas bucólicas onde a fala característica do homem rural pudesse vestir com perfeito caimento, ainda que, em certas passagens, pudesse soar um determinado artificialismo, buscando-se o típico primordialmente pelo linguajar, ou pelo cenário. Em “Inferno Verde” – o volume, na íntegra, não somente o conto homônimo - o autor mostra o homem em oposição ao meio que o tiraniza, veiculando as relações de tensão entre a visão de mundo citadina, urbana versus uma nova visão da floresta amazônica, devoradora e inóspita, através de um enfoque multidisciplinar – não à maneira de Euclides, estanque e determinista – mas dialética, interrelacionando a geografia humana,

a antropologia, a

sociolingüística – todas no âmbito etnográfico - áreas que se enriquecem e influenciam mutuamente e , sobretudo, a literatura, uma vez que, em nenhum momento, Rangel ‘se esquece’ que faz ficção, compondo belíssimas passagens, imagens , valendo-se dos mais variados e expressivos recursos, figuras e topos, que permeiam uma densa galeria de personagens complexos, em tramas de forte introspecção psicológica, balizadas, ainda, pelo limitado tempo da narrativa curta. Como só tivemos conhecimento de quatro edições de Inferno Verde (princeps, 1904; 2ª, 1908; 3ª, 1920 e a 4ª, 1927, na qual nos baseamos), achamos oportuno digitar e, portanto, digitalizar o texto, atualizando-o e estabelecendo, anotando-o, incluindo um glossário de pé de página.

Para tanto, não nos

alongaríamos nesse trecho, mas é importante citarmos algumas das muitíssimas palavras, locuções e expressões regionais do texto original de Rangel, que classificamos, para melhor entendimento:

Termos da fauna: sororocas; botos; carapanãs; piuns ; maguari; curicas; quatipuru; irutaí; murucututús, «rasga-mortalhas» bacuraus, ducucus e acuraus; guaribas; uru; calango; tijubina; osga; tatucaba; anta; queixada; preguiça; tracajá; jibóia; gaivota; maracanã; papa-arroz; viuvinhas; finfins; ciganas; capivaras; jabutis; guaiamuns; juritis;

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Termos da flora: canaranas, embaúbas; piranheira; paxiúba;

mulateiro; cauaçu;

tabocas; manacá; ubá; macaxeira; jerimuns; jarina Acidentes geográficos: tijuco; igarapé; igapó ; confluente; contravertente; matupá Termos marítimo-fluviais: gaiola; xaveco; boreste, imediato; montarias; popa; proas; jirau; tolda; sirga Expressões: panacarica; taperi; caucheiro; aviado; peles; chibé Objetos: jamaxi

7.9.1.4 Narração O narrador, em “Inferno Verde” está fora dos fatos narrados, portanto, descreve o enredo a partir de um ponto de vista privilegiado; seu foco é onisciente e mantém-se, assim, onipresente. O segundo parágrafo, praticamente em sua íntegra já demonstra a classificação do narrador:

Mas, as esperanças, que tanto acalentavam o Souto, desertaram do seu coração, vendo sumir-se na volta do rio o barco que o trouxera com o derradeiro aviamento. Esse retorno deixava-o, pois, de face estuporada, que lágrimas lavavam amargamente. Alguma coisa partia de si ou lhe era deixado, no mistério do abandono e da saudade. Ele se abroquelara de ferro, por dentro, quando se dispôs a arremeter para o interior do Amazonas a sua ativa ambição de moço e recém-formado. Mas aquela imagem do vapor voltando, dera-lhe o golpe na armadura, e foi, como um dardo, romper-lhe o coração. Lembranças amadas de sua terra e dos seus vieram, em coro triste, dizer-lhe adeuses, abraçá-lo, desanimando-o. E a cada evocação, o Souto afogava-se num soluço irreprimível. Só! Considerava o engenheiro, na raiva e no pesar indefiníveis. Na irritação e abatimento, o choro irresistível e infantil tudo confundia na crise única em que seus nervos se sacudiam, vibrando(...) (Anexos pág. 80)

E muito embora claramente heterodiegético, o narrador às vezes coloca-se como intruso, interpondo opiniões abertas, sobre questões como as que já abordamos – o episódio da oposição à obra A carne, de Julio Ribeiro, e a crítica aos oficiais do

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Exército brasileiro - , ou em passagens como as críticas às construções de “taperis”, empreendidas pelos caucheiros, símbolos da exploração devastadora e desmedida:

O caucheiro não constrói palácios; nos seus estádios planta yuca e plátano substanciais; isto sim, a fartar. O que ele quer, é passar; mas, atendendo previdente que nessa corrida há escalas por estações forçadas de parada. Embora! O machado e a ubá são os dois instrumentos emblemáticos da sua indústria. Um destrói, outro transporta. O taperi é o digno traço de união dessas duas operações, que resumem a devastação caucheira. Ele é o único elemento fixo, posto que com a frágil consistência da teia de uma aranha, ou da casa de uma tatucaba. O Souto no mal estar físico, que a custo se esforçava por subjugar, perdia-se em cismas e reflexões. O dia, horrível de calor e de «praga», findara à foz do Funil, como acabou, na tarde seguinte, na barraca que era quase um taperi: – meia dúzia de paxiúbas, com outras tantas folhas de jaci, cobrindo-as. Habitava-a um caboclo de Parintins, excepcionalmente fazendo de «cearense», no fundo lobrego desse igarapé seringuífero.(...)(Anexos pág. 88)

Sua onisciência e onipresença são inequívocas ao abordar as dores sentidas por Souto próximo do agravamento de sua moléstia:

À noite, na Nova Vida, o engenheiro foi sentido o corpo machucado e de juntas doloridas. Apressou-se a ingerir uma cápsula de quinino. Uns leves calafrios lhe trespassavam seguidamente os músculos fatigados. Aquela dormida na véspera, na barraca da «Carne» e da poça lodosa! Um calor lhe subia à cabeça, em estranha queima... a boca seca... Souto despertara tarde. Ao esmaecer da manhã sentira-se melhor, saltara nervosamente da rede. O Miguel trouxera-lhe macaxeiras cozidas e um guisado de anta; tocara de leve no repasto, mas saboreara uns goles de café fumegante.(...) (Anexos pág. 84)

7.9.1.5 Discurso predominante Apesar da categórica presença de um narrador heterodiegético, onisciente e onipresente, o discurso direto é a forma predominante em “Inferno Verde”, ocorrendo, ainda, com menor incidência, o discurso indireto livre, como destacaremos nas passagens a seguir.

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É curiosa essa tessitura textual, uma vez que a narrativa é toda em torno do drama pessoal do protagonista, que se relaciona com algumas pessoas, em curto espaço de tempo, de quase não se verificar – dadas essas condições e fatores – a ocorrência natural de verbos dicendi do discurso indireto, mesmo nas elucubrações e ensimesmamentos de Souto, o que torna “Inferno Verde” uma obra, de fato, peculiar e singular em nossa literatura.

Discurso direto: Em frêmito de alegria, os camaradas saudaram com expansões o morto: – «Bichão!» – «danado!» (...) (Anexos pág. 88)

(...)Miguel aproximava-se, de vez em vez, a examinar e cuidar do patrão: – Sossegue – doutor, aconselhava num carinho curto. (Anexos pág. 88)

E a definhar sempre... O «aviado» aconselhou a volta ao Juruá: – Lá fora o doutor melhorará... Há mais recursos...(..) (Anexos pág. 89)

Mas este só o deixou quando um dia, ao monologar alto do Chico Brabo: – «...os rios são as veias da terra...» (Anexos pág. 90)

É importantíssimo salientar que o único momento em que o protagonista vale-se de sua própria voz na narrativa é nos momentos em que estertora, agoniza, perto do fim:

(...)ele agitava-se todo em gestos convulsionados, num delírio de ação, apontando em ameaças às arvores em torno. E repetia frases que se estrangulavam, delindo-se em murmúrios: «Minha terra... Os meus... Minha terra, que deixei...» (Anexos pág. 95)

Justamente quando o Miguel chegava, acompanhado de um seringueiro, ele caía no estendedouro do rosal, apostrofando à mata, esposada com o rio:

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– Inferno!... Inferno... Verde! (Anexos pág. 95)

E por fim, o longo discurso da “mata amazônica”, em “resposta” aos brados finais de Souto, chamando-a de “Inferno Verde”:

«Perdôo-te e compreendo o estigma que me lanças. Fui um paraíso. Para a raça íncola nenhuma pátria melhor, mais farta e benfazeja. Por mim as tribos erravam, no sublime desabafo dos instintos de conservação, livres nas marnotas pelas bacias fluviais afora. (...) (...)«Oh! Infeliz Invasor! Fadejas desenraizado, descontente, praguejando, mas fertilizas... Por ti sou denegrida; que importa! Impassível, porém, aguardo as gerações que hão de seguir, cantando, o carro de meu triunfo!».( Anexos pág.97)

Discurso Indireto: E deu ordem aos camaradas para aprontarem as montarias.(...) (Anexos pág. 85) E, num arrepio de todos os membros enfadados, ordenou com excitação involuntária o regresso imediato. Aguardar-se-iam no Nazaré, à foz do Funil, as resoluções do morbus...Anexos (pág. 89)

Um colega «de Escola», alferes-aluno, reconheceu o engenheiro. Convidou-o a saltar em terra; prodigalizou-lhe enfim mil atenções de enfermeiro e de irmão. (Anexos pág. 92)

Discurso Indireto livre:

Afinal o engenheiro resolveu descer. Reconheceu a necessidade deste sacrifício: – a porta da felicidade, senti-la aberta, e por sobre ele, posto fora, vê-la fechar-se nos gonzos... Contudo, talvez ainda se restabelecesse, para tentar de novo as obrigações profissionais com os seus comitentes. O coitado sacudia vamente a aldrava dessa porta... (Anexos pág. 10) Tinha ainda fé, confiava... Aquilo havia de passar. O quinino triunfaria...(...) (Anexos pág.89) Vem o pródigo, vem, vadeoso... Torcendo-se na ânsia que o conturba, entre vagares de fadiga e vertigens de adoudado, faminto e namorado, em trégua à calamidade que o fustiga, esfolegando amortecido no enlevo do sonho que o absorve... (Anexos pág.90)

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7.10 GALPI ( PINHEIRO, Galdino Fernandes) ( Piraí, RJ, ?/?/1844 – idem, 15/3/1906) Deputado por sua província, Galdino Fernandes Pinheiro formou-se em advocacia pela Faculdade de Direito de São Paulo, na Turma de 1867, como registra o site dos ex-alunos. Editou apenas dois livros: Narrativas Brazileiras (Rio, 1884), de contos e o romance O Flor (Rio, 1885), ambos esgotados e raros, assinados por “Galpi”, acrônimo e pseudônimo literário que adotou para si. Publicou ainda nas páginas da Gazeta de Notícias e em A Semana, periódicos que aglutinavam os literários na virada do século XIX/XX. Tomamos conhecimento de sua diminuta, mas significativa obra no volume O Conto Fantástico (Rio, 1959), organizado por Jerônimo Monteiro, que inclui o seu conto “Sertório”, extraído de Narrativas Brazileiras. O exemplar a que tivemos acesso foi adquirido num leilão de livros antigos, e é importante para este trabalho por ser uma

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segunda edição – Typographia Leuzinger, Rio, 1897 – já em plena vigência do Simbolismo, e, sobretudo, por vir acrescida de dois contos novos, acompanhados de uma elucidativa “advertência”, que transcrevemos na íntegra:

ADVERTENCIA Depois da distribuição dos exemplares da primeira edição das NARRATIVAS BRAZILEIRAS, poude o author adquirir mais perfeito conhecimento dos factos, de que se occupara, sabidos por elle apenas pelas narrações, que ouvira em sua meninice. Contemporaneis de algumas dessas scenas e principalmente do primeiro conto – O PIRATA – fizeram-no precisar a bem da verdade histórica, não só a epocha, em que desenrolaram-se os acontecimentos, como o verdadeiro nome de um dos principaes personagens, que nelle figura. Vae esta segunda edição accrescida de dois contos; publicados um na Gazeta de Noticias e outro na Semana.” (folha de rosto, ortografia e pontuação mantidas)

O volume da presente edição, assim, apresenta nove contos: “O Pirata”; “Dolores”; “O Beijo Sacrílego”; “O Baixão”; “Sertório”; “Mulas sem Cabeça”; “Gibuk”; “O Sangue do Vigário” e “Januário Garcia”. Em sua maioria, narrativas fantásticas, afinadas com o lendário e o folclore, demonstrando boa condução no encadeamento dos enredos pelo narrador. Embora, no prólogo à primeira edição, o autor não confesse altas aspirações, Galdino Pinheiro – parente do cônego Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro (Piraí, RJ 1825- 1876), redator da revista Guanabara com Gonçalves de Magalhães e Gonçalves Dias, e um dos primeiros historiadores da literatura brasileira com Resumo da História Literária (Rio, 1873) -

revela suas

reservas à crítica de então:

Amigo leitor. Este livro não é destinado a uma franca publicidade. Fazendo imprimil-o tive em vista distribuil-o só entre amigos como fraca prova de sincera affeição. Não espero, pois, nem louvores, nem censuras de ríticas, que seriam inúteis; porque não aspiro glorias de litterato. É tão mesquinha a crítica entre nós, e a lettras tão desprezadas!

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( Prólogo da primeira edição, pág. 7. Mantidos ortografia, pontuação e caracteres originais)

Dos referidos contos, elegemos “O Sangue do Vigário”, por se tratar de um acréscimo à primeira edição e, portanto, já se desvencilhar do Romantismo não mais vigente, embora ainda mantenha traços com aquela estética, o que já verificáramos nos demais contos antologizados aqui, considerando que tal aspecto não o faz ir de encontro aos cânones simbolistas. O conto traz a história de um sacerdote – não nomeado – que nasce, vive e morre em Senhor Bom Jesus dos Perdões, Minas Gerais. Embora exista uma cidade com o mesmo topônimo, as referências dadas pelo texto a tornam fictícia, uma vez que a cidade de Perdões – nome desde 1855 – não se situa no aurífero vale do rio das Mortes, mas no Oeste de Minas Gerais. É importante citarmos que o volume que dispomos de Narrativas Brazileiras traz pequenas iluminuras que encimam a abertura dos contos, e entre os arabescos e volutas dos desenhos, um medalhão central com uma figura alusiva a cada história. No caso de “O Sangue do Vigário”, uma ânfora ou jarro verte um líquido escuro, devendo representar, naturalmente, sangue. Os contos são abertos também por capitulares ilustradas. A narrativa inicia-se com a minuciosa descrição de momentos que precedem a aurora na cidade, brumosa e fria. Cumpre salientar que a névoa – que não permite o total desvelamento da imagem, qual um “véu enorme” – faz o seu papel, e deixa entrever a cruz que encima o topo da igreja, o que já é simbólico e significativo para análise:

A geada cahira abundantemente durante a noite; ao romper da aurora os campos alvi-nitentes pareciam de prata e das grotas erguia-se densa neblina, que semelhava veo enorme, com que a terra ao despertar ia cobrir-se para evitar o olhar indiscreto do sol. Pelas encostas, pelas lombadas, pelos cumes dos montes desdobrou-se ella, arrastada por invisivel mão até os pincaros da serrania distante! envolvendo em rapidos minutos a terra nas suas dobras profundas. Atravez della destacava-se, como apagada illuminura de um quadro, a cruz da igreja e o grupo de casinhas de S. Bom Jesus dos Perdões. ( Anexos, pág.98, grifos nossos; mantidos ortografia, pontuação e caracteress tipográficos originais.)

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Ao ocupar-se em embaçar a visão do leitor, o narrador, através de animizações, centra todo o parágrafo na névoa, que também é responsável pela ausência de sons que se impõe no ambiente descrito, ou seja, é uma imagem sinestésica que domina a cena: a névoa impõe o silêncio:

O silencio em que se quedava a natureza era profundo! nem o canto da patativa; nem o estridulo do grillo, que o frio enregelava; nem o rugir da cachoeira, cuja voz a nevoa ensurdecera; nem o mugido do touro, occulto por entre as arvores da restinga, se ouviam; o homem, mesmo o homem estava sepultado no somno ou tiritava ao fogo do lar. Como enorme chrysalida a terra esperava o momento da sua metamorphose. Os germens da vida estavam encerrados em completo quietismo nas dobras desse inerte casulo – que ao romper-se os tentaria ao mundo formosa borboleta, ou venenoso insecto: – a virtude, ou o crime! (idem, idem)

Os dois últimos períodos são uma antecipação do narrador à narrativa, e acabam por comprometer o entendimento, dando um pequeno “nó” no enredo, que será esclarecido na seqüência. É a irrupção de uma personagem que quebrará o silêncio da cena; uma mulher, de traços imprecisos, em meio a bruma onipresente, abre a janela de uma casa e sai em seguida. Note-se que o narrador, em descrição pictórica – ele, parado e o objeto, em movimento – aproxima-se lentamente, como se portasse uma câmera à meia distância:

O som de uma aldraba e o subsequente ranger de uma rotula erguendo-se quebraram o silencio e parecerão querer despertar a solidão. Cabeça de mulher, cujos negros cabellos e moreno semblante contrastavam com a alvura da neve, banhando-se na neblina, como ave que desperta antes da aurora e recolhe apressada a cabeça friorenta sob a quente asa, assim ella espreitou à direita e à esquerda cerrando incontinente sobre si a gelosia. Em seguida a porta da casinha abriu e um negro vulto esguerou-se por entre as casas raras e desertas ruas, sumindo-se em breve, envolto pela nevoa, como batel, perdido em meio da cerração. (idem, idem)

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Uma nota aparentemente pouco perceptível à primeira vista, mas importante para sublinharmos é também a gelosia na janela da personagem, velando, assim, a sua identificação e intimidade. O narrador “entra” no quarto da mulher e é uma luz difusa que ilumina o pequeno quarto, e ele a revela de perto. Há uma bipartição nessa descrição: um erotismo eloqüente em algumas partes, opõe-se à candura de outras, o que torna a personagem – à maneira de outras figuras femininas verificadas nas demais narrativas – também dual:

A melancholia imprimia-lhe ao semblante um tom branco e sympathico; na lisa fronte estampava-se a mocidade; no olhar languido da marabá lia-se a paixão; nas faces abatidas o soffrimento e na pallidez dos labios o pesar. A longa e negra cabelleira descia por sobre os hombros, mal cobrindo os seios erguidos, que alva e negligente camisa em abandono deixava entrever; as mãos emmagrecidas, sinzelladas a primor, cruzavão-se no regaço, desenhando as dobras da saia as linhas correctas das pernas, terminadas em pés pequenos e mimosos. O olhar estava parado e fixo no chão. ( Anexos págs. 98-99, idem, idem)

O misticismo cristão se impõe com grande vigor, na continuação. Profundamente consternada, a mulher fita o crucifixo na parede, e, em dor lancinante, funde seu sofrimento ao de Cristo na cruz, no sangue – elemento fundamental na narrativa, já assinalado pelo título - de seu rosto, em tom e atitude afinadas, por semelhança, a “Buscando a Cristo”, da lírica sacra de Gregório de Matos. Em fervorosa prece, esclarecem-se três pontos: ela “pecou” ao “corromper suas entranhas”; pede que o fruto de seu ventre “germine”, em troca de votos que faz; e os períodos poucos nítidos,

Como enorme chrysalida a terra esperava o momento da sua metamorphose. Os germens da vida estavam encerrados em completo quietismo nas dobras desse inerte casulo – que ao romper-se os tentaria ao mundo formosa borboleta, ou venenoso insecto: – a virtude, ou o crime! (Anexos pág. 98, idem,idem)

A analogia é feita, então, a partir do ventre da personagem e o casulo, que poderiam conceber, aleatoriamente, um inseto venenoso ou uma borboleta; ou seja, um

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virtuoso ou um criminoso. Notem-se os vocábulos já pouco afeitos ao Romantismo: “crisálida”,

“metamorfose”, e “germens da vida”, encaminhando um viés mais

cientificista. Pode-se inferir essa análise a partir da doída súplica dirigida ao crucifixo, pedindo perdão pelas faltas gravíssimas perpetradas:

(...)Perdoa-me, Senhor. Sinto que as minhas entranhas se corromperam e que nellas gerou-se o filho do peccado! Não sou digna de Ti; mas deixa, Deus Misericordioso, germinar o fructo do meu ventre, que elle Te dará em dobrado amor, o que perdeste com o meu crime e o meu peccado. Perdoa-me, Senhor. Abençoa-o meu Deus. (Anexos pág. 99, idem, idem)

As lágrimas vertidas pela pecadora apagaram sua mácula. E um milagre tem lugar, de forma fastástica: a imagem de Cristo anima-se e uma gota de seu sangue mistura-se com o pranto da mulher e a fertiliza “abençoadamente”! Reparemos ainda, que há outra metamorfose em curso: ela passa de Madalena a Maria, uma vez que é “bendito o fruto do seu ventre”. Em tratamento também pouco romântico, o narrador fala, na concepção, de “primeiras moléculas do ser” e “primeiros movimentos do espírito vital”:

A Magdalena estava salva! Bemdicto o fructo do seu ventre. As lagrimas da mãi arrependida e o sangue do Deus Clemente constituiram as primeiras moleculas do ser que se gerava e as orações maternas, a humildade da virtude, o pensamento volvido sempre para o Céo, insuflaram-lhe os primeiros movimentos do espirito vital. (Anexos págs. 99-100, idem,idem)

A criança nasce estigmatizada: há em seu peito, sobre o coração um sinal de sangue, pois ele era um novo “Cruzado”. O sangue, de vital importância simbólica, marcará o menino, que se fará sacerdote, como voto da mãe.

Note-se a inicial

maiúscula, ainda ocorrente em outras passagens. E é como “cruzado” que ele se constituirá, lutando como um paladino contra o aviltamento da cidade de Senhor Bom

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Jesus dos Perdões, pólo aurífero abundante, atraindo toda a espécie de gananciosos pelo ouro farto nas minas. Uma notável característica de estilo do autor é percebida nos parágrafos seguintes, em que descreve o tipo de gente que se instalava nos barrancos dos córregos auríferos da região. Trata-se de um grande afastamento do sujeito – na maioria dos casos, composto por numerosos núcleos – em relação ao verbo, intercalados por adjuntos adverbiais ou mesmo orações, gerando um efeito estilístico reincidente e notadamente intencional:

Aventureiros d´aquem e d´alem mar, por todo o Valle do Rio das Mortes, pelos serros alpestres de Ouro Preto, pelos territorios de Ouro Branco, pelas campinas de Paracatú, por Sabará, por toda parte emfim onde uma pisca de ouro faiscava ou uma simples suspeita o denunciava, arrojavam-se com furia insana, resolvendo as entranhas da terra, rasgando as serras, desviando o leito dos rios, como se fosse um povo de Titães amontoando montanhas para escalar os céos! (Anexos pág. 100, idem, idem)

Nota-se, ainda, que no caso assinalado acima, o sujeito composto ainda subordina várias orações reduzidas de gerúndio, o que configura um efeito estilístico ainda mais notável.

Nos parágrafos subseqüentes, observa-se o mesmo efeito: Todas as religiões, todas as raças, homens de todas as origens, representantes de todas as nações; o branco, o negro, o pardo, o mameluco; todos os sexos, todas as idades; o rico, o pobre, confundiam-se sacrificados ao Bezerro de Ouro! (Anexos pág. 101, idem, idem)

E o narrador ainda desfila e esmiúça a sua galeria de tipos que escorraçam a moral do pequeno vilarejo mineiro, usando o mesmo recurso estilístico de grande efeito:

O lavrador, esquecido de seus placidos serões, o artesão deslembrado de seus alegres cânticos, o padre despedaçada a batina, o pastor abandonado o rebanho,

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o homem sem familia, a mulher sem esposo, a criança sem innocencia mergulhavam-se nas bêtas profundas, certos de ahi acharem a sepultura, se as montanhas esboroassem, ou se torrentes subterraneas surprehendessem-nos. (pág. 101, idem, idem)

Um outro recurso de que se vale o narrador é o de usar três elementos caracterizadores, para enfatizar suas descrições, sejam adjuntos adnominais ou sujeitos, e em todos exemplos, há um efeito de gradação:

N´aquelles antros reinava feroz alegria, satanicos prazeres, diabolicos amores. A luxuria expellia o pudor e a flor da virgindade ainda em verde botão era colhida! O latrocínio, o roubo e o assassinato eram as ultimas conseqüências desse esforço cruel e a miseria a derradeira estrophe desse terrível poema de infernal ambição! (...) Homens desconhecidos, esquivos, suspeitosos appareceram em Bom Jesus. (, idem, idem) Em pouco tempo a asafama, o bulicio, o tumultuar de aventureiros quebraram a paz do pequeno povoado, chamado ás lavras a população inteira da terra. (Anexos pág. 101, idem, idem)

Os veios de ouro dos córregos de Senhor Bom Jesus dos Perdões atraem, assim, todo o tipo de aventureiros, instalando na cidade, uma atmosfera de ambição e perdição desmedidas. Tal condição acaba por desequilibrar a moral então vigente, e o dinheiro fácil corrompe a cidade em níveis nunca vistos antes. A igreja se esvazia, os fiéis batem em retirada, “dominados pelo demônio da ambição.” As ruas ficam desertas, as pessoas não mais se cumprimentam e o vilarejo, como “um mudo sepulcro”, assemelha-se a uma necrópole. O vigário dirige-se às minas, para tentar “arrancar-lhe do seio a oculta sementeira de tão grandes males”. Divisa, então, o espetáculo dantesco que já antevira e prenunciara; seu coração “recebia punhaladas”. Dirige-se à massa informe de seres amorais e perniciosos, prenhes de tanta ambição e cólera, bradando:

«Abandonaste Deus pelo Demonio, povo, bradou elle, sacrificaste a pureza da tua vida á louca ambição de possuir o que nunca careceste! Marido, onde está tua

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mulher? mulher, onde está o teu esposo? pae, onde está tua filha? filha, onde está tua mãe? Ah! não sabeis; desceram para as trevas do Inferno! Deus, retirae a cegueira dos olhos destes infelizes, abri-lhe os ouvidos á verdade, a alma ao bem. – Ouro, demônio, fugi!» (Anexos págs. 102, ortografia, tipografia e pontuação mantidos)

Cumpre salientarmos que as duas únicas ocasiões em que ocorre o discurso direto – o vigário e sua mãe - são súplicas em forma de prece, em desespero, dirigidas a Deus, clamando por sua urgente intervenção, que sobrevém como um milagre, um desígnio sobrenatural. Ao proferir essa evocação, os veios ressecam e as bateias, imediatamente, só dão cascalhos. O vigário, assim como sua mãe arrependida, é ouvido pelos céus, e seu desejo é uma ordem atendida. A turba encolerizada parte em sua direção e o fere de morte. Nesse instante, o narrador o compara a Jesus, também ferido por algozes que desprezaram seu poder e missão. Notem-se, ainda, as várias adjetivações do padre e as antonomásias para o Nazareno: Apupado, redicularisado como Jesus, ferido, sangrento, levado de rojo como Christo pelas estradas e ruas do Bom Jesus, o padre, á porta da casa onde o filho de Deus perdoara a mãe criminosa parou, ergueu-se, fazendo recuar a multidão, que vociferava. (Anexos pág. 103, idem, idem)

O vigário, concebido miraculosamente pelo sangue vertido pela imagem de Jesus crucificado que se animara, e o fizera mesclando-o com as lágrimas de sua mãe, agora também ungia a porta da morada dela com seu próprio sangue, estigmatizando-a com uma profecia condenatória. Uma vez que não eram dignos do nome da cidade, “Senhor Bom Jesus dos Perdões”, ele maldizia a cidade e a condenava ao desaparecimento. Dito isto, o padre expira e o fado se cumpre: a terra se esgota, as casas ruem e o vilarejo desaparece. A narrativa, aparentemente linear e simples, encerra algumas significativas simbologias, que ora nos cabe deslindar. Trata-se de uma narrativa de uma espécie de resgate ou vingança. O vigário é filho de uma prostituta, “uma Magdalena”, que “se corrompe” , suplica por perdão, o obtém, e de um crucifixo animado, recebe o sangue que a fertiliza. Logo, o filho é um avatar, um iluminado, que virá para defender a sua

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cidade de toda imoralidade e corrupção. Feito homem e padre, cabe a ele cumprir os votos de sua mãe, e ele luta para banir faltas como aquelas cometidas por ela. Estigmatizado com uma gota do sangue fértil e sagrado, é através do derramamento do seu fluido vital - à maneira do Cristo que o concebeu – que o padre ordena, por milagre, também, a esterilização da terra: é finda a jazida de ouro e a fertilidade do solo. O mesmo sangue fecunda e esteriliza, em estrutura urobórica, onde o fim une-se ao início. Há, outrossim, dois milagres operados pelo mesmo sangue: o da concepção da mãe e o do filho, ao ungir a porta e proferir a punição da cidade indigna de seu nome. Ou seja, “Senhor Bom Jesus dos Perdões” perdoou a “Magdalena”, porque se arrependeu, mas não a vila homônima, porque insiste no pecado e na ambição. Em paralelo, há duas transgressões: a da mãe, que se deixa levar pelo pecado da luxúria e se redime; e o da cidade, pelo pecado da ambição, não redimido. Ocorre-nos, na liberdade da análise, observar que ambas são Μήτηρ ( do grego “méter”, mãe, e a cidade, aurífera, guindada à condição de “metrópole”). Por extensão, ainda, etimologicamente, “vingar” advém do latim vindicāre, ou seja, reclamar a restituição de algo que se perdeu, demandar a reintegração de um direito e promover a sanção ou punição a uma ofensa recebida, ou insulto, buscando punir o ofensor, no caso do conto “O sangue do Vigário”, os ofensores, aqueles que transgrediram a moral, através da ambição desmedida. Uma outra extensão da análise merece ainda uma digressão. Na mitologia grega, a noção de γένoς ( gr. guénos, gene) permite a transliteração em latim como personae sanguine coniunctae, ou seja, pessoas conectadas por liames consanguíneos. Desta forma, qualquer deslize, transgressão, erro, crime, falta, - ou seja, ultrapassagens do métron - , perpetrados por um guénos contra outro, havia de ser retaliados, à maneira tribal, e como o foram as batalhas familiares no Nordeste brasileiro. E se dá uma percepção de ordem metonímica, porque o sangue derramado – no caso do conto de Galpi, o sangue do vigário - é uma parte e, portanto, de todos ( sua mãe, sua família ). Assinalemos ainda que as Erínias, para os gregos ( que correspondem às Fúrias, para os romanos), eram divindades cruéis, com uma representação próxima a das Górgonas – das quais fazia parte a célebre Medusa - habitavam o Hades e estavam sempre aptas a

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punir os transgressores da moral.

As Erínias - ou Eumênides, Tisífone (Castigo);

Megera (Rancor) e Alecto (Interminável), que portavam archotes e chicotes para infligir suas sanções e apresentavam asas de morcego - diferenciavam-se de Nêmesis por punir os mortais, enquanto aquelas puniam os deuses. Nasceram a partir do sangue caído sobre a Terra (Geia), quando Cronos cortara os testículos de Urano. De acordo com a Teogonia de Hesíodo, deduz-se que a sua função é a de manter a ordem social. Por esses entrelaçamentos míticos, o período final do conto de Galpi dispensa maiores ilações: “o sangue do vigário clama vingança.” O sangue é, portanto, o início, o meio e o fim.

7.11 MARQUES, Francisco XAVIER Ferreira.

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(Itaparica, BA, 3/12/1861 – Salvador, BA, 30/3/1942) . Atuou na imprensa de Salvador a partir de 1878; depois, entrou para o funcionalismo público, foi deputado estadual e deputado federal pelo seu Estado. Foi membro da Academia de Letras da Bahia (1917) e dois anos depois, eleito para a ABL, na vaga de Inglês de Sousa. É considerado, por muitos, o fundador do regionalismo baiano,

sobretudo

focado nos temas marinhistas, portanto, também afinado com Virgílio Várzea, Oscar Rosas, Galpi e Nestor Victor, para citar os aqui antologizados.

Otto Maria Carpeaux, em Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira, (Ediouro, Rio, 1968) o tem como parnasiano, o último, aliás de sua lista, “assim como Coelho Netto cultivou o regionalismo no Norte, assim (o fez) Xavier Marques na Bahia, com as mesmas preocupações estilísticas.” Já Lucia Miguel-Pereira, em História da Literatura Brasileira – Prosa de Ficção (de 1870 a 1920) ( José Olympio, Rio, 1950), uma vez que considera a prosa de Coelho Netto com inclinação ao Simbolismo, leva-nos a cogitar que o estilo de Marques - bom retratista pitoresco e fortemente impregnado de lirismo, associado à linguagem poética,

conteúdo vinculado ao

misticismo, uma certa dose de escapismo, temática sobrenatural e fantasiosa e a presença de elementos musicais – afasta-se do Parnasianismo.

Seus contos mais conhecidos são “Jana e Joel” e “Maria Rosa”, ambos reunidos em Praieiros (Ed. GRD, São Paulo, 1983), de onde retiramos o singular “A noiva do golfinho”, mais afinado com as proposições simbolistas e , analogamente aos demais elencados nesse estudo, quanto à estrutura, apresenta também uma espécie de embaçamento do conflito, privilegiando a descrição, o que nos parece uma constante do conto simbolista: trata-se de um quadro, ou painel, quase uma fotografia disposta em vários planos. Nota-se, ainda, uma preferência pelo tema “noiva” ou “noivado”; verificamos a mesma incidência em Gastão Cruls, Oscar Rosas, Medeiros e Albuquerque, Virgílio Várzea, Alberto Rangel e Gonzaga Duque. Embora não possamos afirmar, dada a subjetividade do tema, elucubramos a possibilidade de analisar a questão supondo que a

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noiva ou o noivado é um estágio de algo que ainda não se consumou, mas o será no porvir. Trata-se, portanto, de um “vir-a-ser”, e por sua condição um tanto vaga e indefinida, talvez caísse “como uma luva” no gosto dos simbolistas. “A noiva do golfinho” inicia-se também como estrutura de “causo”, uma vez que é uma narrativa metalingüística, ou seja: é uma história sobre outra história”. Assim, a narração, que possui três partes e diferentemente de grande parte dos demais contos desse estudo não contém epígrafe ou dedicatória - assume um tom realista, verossímil, e a outra história, lendária. O parágrafo inaugural é aspeado e encerrado por reticências, configurando o aspecto lendário.

Conta-se a história de Marina – antropônimo obviamente sugestivo, tratando-se de uma narrativa marinhista - , uma linda moça, “que era também a mais singular de todas as criaturas”, que nascera e vivera em Tinharé, uma ilha ao sul da Bahia, e agora vagava pelas praias, como um espectro infeliz. O fato de estar morta e continuar a vagar, já assegura, a partir daqui, uma narrativa fantástica ou irrealista.

A descrição da cena que caracteriza as forças da natureza que atuam sobre a ilha é sobrecarregada, sobretudo, de preciosismo verbal e duplas adjetivações, conferindo algum tom artificial à composição. Note-se ainda o gosto pelo neologismo, à feição simbolista, com o verbo “dardejar”.

Quando os temporais conflagram o oceano, a grande ruga de terra parece muito mais longínqua e inabitável; as suas palmeiras de longos caules vergam e rangem como as cordagens dos navios em tormenta. E se os ares abonançam, fujam as nuvens, brilhe o sol ou paire sereno o luar, fica sempre nas costas o eterno alarido das marés, sob os gritos das procelárias que futuram novas insurreições marinhas, naufrágios, lutas e agonias de marinheiros. (Anexos, pág. 104, grifos nossos)

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Na seqüência, a descrição do crepúsculo, item caro e quase obrigatório à prosa simbolista, também “alucina os olhos e a alma”, e é o momento em que se dá a aparição da alma de Marina, que “esteve para noivar com o mais misterioso de todos os noivos”. Há aqui três essenciais elementos à análise: Marina agora é um espectro, um espírito; não chegou sequer a noivar (não “veio a ser”), e seu pretendente era um mistério. O conto então, em sua segunda parte, é retomado com o mesmo início aspeado, da lenda, e caracteriza Marina à maneira assemelhada ao Naturalismo. Note-se ainda que os olhos não são azuis, mas “tirando a azul” e esses traços a tornam um ser incomum em sua comunidade:

Daquela cor de leite coalhado não havia senão ela no lugar. Era delgada como um palmito e leve como uma pena: leve de corpo e de juízo. Os olhos tinha-os um nada sombrios, tirando a azul, e os cabelos, tão sutis e assedados como os fios de uma teia de aranha. (Anexos ,pág. 105, grifos nossos)

Uma traço estilístico peculiar a Xavier Marques é o uso quase imoderado de inversões – especialmente a anástrofe - , percebido ao longo de toda a narrativa. A origem de Marina é também um mistério, e aventam-se hipóteses, incluindo uma bíblica possibilidade de ter chegado à ilha num cesto, tal qual Moisés. Uma vez esquecido esse enigma, o narrador, que é observador e heterodiegético, passa a rotular a personagem com atributos paronomásticos que vão forjando a sua imagem, em gradação: “gênio caprichoso”, excêntrica, louca.

Marina é, em sua comunidade, um ser singular, por ambicionar e ter aspirações maiores, além de ser, também, uma donzela inatingível. Os rapazes que a cortejam não têm qualquer chance, e é através de uma símile interessante que o narrador ilustra essa sua condição: “Mas pobres daqueles que se enamoravam de Marina: ela não lhes dava

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mais esperança do que os vaga-lumes dão luz. Se um instante os escutava, dias e semanas fugia até de vê-los.” (Anexos ,pág. 106, grifos nossos) A heroína não cede a corte de nenhum de seus pretendentes porque possui, por sua vez, um noivo também misterioso. Ao citar que o seu amor inexpugnável nega a ordem natural da sua comunidade, que se casa e procria entre si, o narrador deixa resvalar uma nota determinista, acrescida de outra passagem do Evangelho:

(...)os tinharenses moços (...)Trabalhavam dias inteiros no mato a cortar piaçaba, pelejavam na pesca e marinhagem com borrascas e calmarias. (...)assim é que eles catavam a confiança das raparigas que apeteciam por amantes. E todas elas amaram, deram marinheiros ao mar e cultivadores às vargens. Só a caprichosa Marina se recusava à lei da tribo, querendo, pelos modos, imitar a figueira que negou um fruto a Nosso Senhor. ,( Anexos, págs. 106, grifos nossos)

A moça aguardava a vinda de seu noivo pelo mar. E vivia em sintonia com as águas – sempre que se agitavam as ondas, ela explodia de alegria, cantando músicas ensinadas pelo mar: “Sua voz acrescentava às cantigas mais sabidas umas toadas, uns retornelos (sic) de paixão e melancolia estranhas.”

Uma nota de erotismo aparece, pela primeira vez na narrativa, em face da espera por seu misterioso amado: “Assim vivia a desditosa num ansiar sem repouso, abrasada por uma sede sem aplacamento. “ (Anexos, pág. 107, grifo nosso)

Desesperada pela vinda adiada, Marina é ouvida por “alguém que se aproximou” - note-se o recurso do narrador heterodiegético para conferir o tom lendário e manter a neutralidade de sua narração - e ouviu-lhe uma súplica, quase uma prece, que se assemelha a uma cantiga de amigo, pela estrutura, apóstrofes e tom desditoso :

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– Mar, ó mar dos golfinhos encantados e das sereias feiticeiras, que é do meu amado marinheiro, aquele que me prometeste e por quem anseio mais que as tuas ondas? Traze o meu noivo, ó mar querido, que já não tenho suspiros no peito para lhe mandar! (Anexos ,pág. 107, grifos nossos)

Os golfinhos são “encantados” e as sereias, “feiticeiras”. O narrador aponta, em tom gradativo que já assinaláramos, que “essa língua que só assentava na loucura ou nos lábios cabalísticos de alguma bruxa” (Anexos , pág. 107, grifos nossos). Chama-lhe, ainda, de “visionária” e seu amor é “agourento” e , emblematicamente, “quase fantástico”.

Um dia, ela acorda bem-humorada e revela o sonho premonitório que teve, abrindo espaço para a introdução do onírico na narrativa, com atenção às adjetivações:

– Sonhei que um navio tinha ferrado na costa da ilha. Era todo branco e brilhava como um navio de prata. As velas alvejavam como as roupas do coradouro ao luar. Na proa trazia duas figuras, que eram dois golfinhos de ouro, com as caudas retorcidas voltadas para o céu. Veio de bordo um moço corado e lindo, que parecia mais um príncipe do que um marinheiro, e subindo a este morro, chegou-se a mim e disse: – “Bela menina, há muito tempo que te procuro, saltando de ilha em ilha, de praia em praia, trazido pelas ondas e pelos ventos que me levavam teus suspiros e queixumes. Sabes quem sou eu? Sou o príncipe dos marinheiros. Aqui estou e venho buscar-te... prepara-te e segue-me, se é do teu agrado (Anexos , pág. 108, grifos nossos)

Após voltar a suplicar com o mesmo mote às águas pelo seu noivo, Marina desce as escarpas e volta de lá transfigurada, uma vez que encontra-se com seu noivo. Reparemos que ela deixa os traços grotescos e os permuta por um talhe tipicamente ultra-romântico:

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Nas faces de leite coalhado fulgia-lhe uma luz de nácar puríssimo, o cabelo esvoaçava, os olhos dilatados e mais azuis ardiam em febre de alegria. E ela chilrava como uma andorinha a fazer verão. (Anexos pág. 109, grifos nossos)

Sua descrição coincidia com o rapaz do sonho, acrescida de minúcias de quem o encontrou pessoalmente. Note-se a caracterização toda dentro do campo semântico do mar, o cromatismo da descrição, a adjetivação abundante e as sinestesias obrigatórias:

Belo, feiticeiro, fresco e palpitante como um peixe n´água, tinha o ar de quem dizia: “Pensavas que eu não vinha, amor? Pois aqui estou”. Era fielmente aquele que ela trazia retratado na mente, – marinheiro e jovem, de cabelos ruivos como as barbas da lagosta, o rosto vermelho da lustrosa cor dos salmonetes, os olhos amorosos, esverdeados, profundos como os abismos onde flutuavam as querenas de seus navios de sonho. Sua voz (ele falou-lhe) era um murmúrio doce e branco, só comparável ao rumor dos mimosos búzios que ela gostava de escutar; seu sorriso (ele sorriu-lhe) deixou-a fascinada como o brilho de escamas dos alvíssimos dentes... (Anexos , pág. 109, grifos nossos)

Após a revelação e descrição desse ente fantástico – um ser, minimamente híbrido entre homem e peixe – é importante sublinharmos que ele é visto “somente pelos olhos da encantada criatura (Marina)” (pág. 109). O narrador se vale de uma série de artifícios para acentuar e controlar o enredo, de modo a isentar-se e isentar qualquer outro personagem de testemunho: “Supunham-no algum náufrago ou mareante fugido de bordo. Pelos traços que ela dava, seria estrangeiro, vindo por altos mares, dos países desconhecidos e tão remotos que parecem lendas” (Anexos , pág. 109, grifos nossos).

Embora confirmada a sua existência por Marina, o noivo não vem ao vilarejo, para se fazer conhecer. Então, cogita-se “a suspeita de algum encantamento ou bruxaria” (Anexos , pág. 110).

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Marina anuncia para breve o casamento e pede a seus pais adotivos um canto da casa para fazer os seus aposentos. Nota-se que a sua primeira providência é instalar um leito nupcial, meticulosamente detalhado:

De tábuas de pau-louro mandou construir um leito sobre quatro toros. De macias flores de macela encheu uma colcha, que estendeu nas tábuas. A mulher que cosia rendas teceu-lhe fronhas para os travesseiros. Marina carreou a areia mais branca da praia e sessou-a numa urupema sobre o chão da camarinha, onde passou a queimar folhas aromáticas de alecrim. (Anexos , pág. 110)

A noiva pede às companheiras para que a ajudem a ornar também a casa e o entorno. Parece-nos relevante apontar que o interesse de Marina é de dentro para fora, como se fosse uma alegoria de seus próprios desejos, implicitando um erotismo latente. A ornamentação é belíssima, significativa, com ervas, galhos e flores da mata próxima, assemelhando-se aos aprestos para o matrimônio de uma ninfa. Note-se ainda o cromatismo das flores, alternando o verde (implícito) dos cipós; o vermelho do murungu; o branco (implícito) dos ingás e lírios e o amarelo das flores da erva de S.João:

Vieram do mato braçadas de folhagem fresca, ainda gotejante de orvalho, ramos de murungu que pareciam cobertos de borboletas vermelhas, cachos alvos de ingazeiro, lírios convales e regaços cheios de flores amarelas de S. João. As moças, amigas de folgar, pregavam palmitos e canas aos portais da casa, e com os cipós floridos das trepadeiras fizeram festonadas, que pendiam das vergas do palhote. O terreiro alastrou-se de conchas e juncou-se de folhas de pitanga. A casa dos velhos parecia um bosque sagrado, todo em flor, para as núpcias de uma ninfa.(Anexos ,pág. 110, grifos nossos)

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A música, então, é introduzida, através de “bons cantores com as violas” para compor a trilha sonora do enlace iminente, à espera do noivo:

(...)Soem as violas, para que haja prazer em volta do meu amado. As violas soltaram rasgados vivos e estridentes. Pararam. Repetiram as tocatas. E o marinheiro não chegava (Anexos ,pág. 111, grifos nossos).

O noivo, entretanto, não chega. Marina, em bela e significativa imagem, desce as escarpas para ir em sua busca. No caminho, os junquilhos com que adornara seus cabelos, como uma tiara virginal, se desfazem, metaforizando o preparo do enlace esperado por ela. Irrompe, ainda, como um prenúncio do trágico desfecho, uma violenta borrasca; note-se o cromatismo do crepúsculo – item caro aos simbolistas - , não de “irisados tons, rosáceas ou lilases”, mas de matizes indo do roxo ( cf. com Gonzaga Duque, em “Idílio roxo”), coloração geralmente associada ao luto, à perda, ao negro; e ainda, as prosopopeias que se intensificam até a

aparente corporificação de uma

verdadeira falange de entes fantásticos e malévolos:

Nisto as sombras caíram pesadamente, enrolando-se ao longo da praia. As nuvens do crepúsculo, de róseas fizeram-se roxas, de roxas tornaram-se pretas. Uma vasta mancha negra fechou num capuz o horizonte do morro, e um vento irado, esmigalhando vagas e vagas contra as penhas da costa, ganhou o cimo, passou esmagando as copas das árvores, que se punham a urrar, enquanto os caules das palmeiras gemiam. (…) Marina não voltava. Homens e raparigas recolheram-se ao palhote, surpreendidos por essas trevas repentinas e por essa tormenta assombrosa, em que o oceano bramia pelas bocas de milhões de feras assanhadas, que em feras se haviam transformado as ondas. Marina continuava ausente! Palmas e ramagens eram arrancadas do terreiro e destruídas, como se lhes tocassem as mãos de iracundos demônios. A casa como que girava num vórtice; as próprias criaturas tinham medo de ser arrebatadas pelas refregas. Apelos, protestos furiosos articulavam-se no alarido da tempestade. O vento silvava maldições, o mar levantava clamores de vingança. Parecia que todos

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os gênios marinhos, peixes encantados, sereias, feiticeiras raivosas, acudiam das suas glaucas moradas para impedir a união dos amantes... (Anexos , págs. 111-112, grifos nossos)

Por fim, se faz a luz sobre o mistério, ou seja, deslinda-se a identidade do noivo de Marina, em anástrofe. Aqui, é a noiva que vai ao encontro do golfinho, que a leva para as profundezas do mar, invertendo-se, assim, de certo modo, a lenda amazônica do boto, que seduz e rapta as donzelas ribeirinhas. O narrador ainda traz o final sob um véu de imprecisão e incerteza, uma vez que “noivado, se o houve, foi no seio do abismo”. O desfecho inclina-se para um viés francamente moralizante, parecendo-nos que o golfinho ilude a noiva, através de uma transfiguração, e ao fugir do casamento, raptando-a para o fundo do mar, acaba por realizar uma punição a Marina, por ela ambicionar mais do que deveria, em desacordo com os padrões e costumes de sua comunidade. Uma espécie de métron trágico que a noiva teria ultrapassado, e, por conseguinte, merecesse a sanção. Nota-se, por fim, que o título explícito, “A noiva do golfinho”, acaba por desacelerar o clímax do conto, no último parágrafo, ao revelar, de antemão, uma identidade que se insinuava gradualmente.

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8. CONSIDERAÇÕES FINAIS O propósito principal deste trabalho foi o de apresentar e analisar a ocorrência da prosa simbolista no Brasil, em particular, o conto. Através de indagações iniciais acerca de sua ausência ou omissão nos compêndios da Educação Básica, fomos buscar as origens e possíveis causas deste fato. Como docente no Ensino Médio há quase três décadas, examinamos os principais livros didáticos de Literatura Brasileira e constatamos que todos, sem exceção, privilegiam e listam apenas cinco autores: Lima Barreto, Graça Aranha, Monteiro Lobato, Euclides da Cunha e Augusto dos Anjos; apenas dois destes manuais citam a prosa simbolista, sem, no entanto, trazerem exemplos. É importante complementarmos aqui que Andrade Muricy, em Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, lembra que somente após a publicação de Pequena História da Literatura Brasileira (1919),de Ronald de Carvalho, é que as seletas escolares passaram a incluir os poetas simbolistas. Levantamos também a pouco receptiva acolhida aos primeiros contos simbolistas, pela crítica da época, o que teria relegado seus autores ao ostracismo de primeiras edições pouco (re)lidas e jamais reeditadas. Tal isolamento teria propiciado, ainda, o pouco reexame dessas obras pela crítica contemporânea, além do fato de esses contos, muitas vezes, terem sido classificados como poemas em prosa, o que os faria escapar de uma análise meritória. Assim, esquecidos, esses autores e suas produções passaram a ser mencionados em compêndio apenas como paráfrases. Wilson Martins, no prefácio a No Hospício, de Rocha Pombo, refere-se a este romance, assinalando que (...) nesse, como em numerosos casos, funda-se num conhecimento incompleto e fragmentário de obras, para nada dizer do contexto social e espiritual em que apareceram; posto nessas perspectivas, o que seria surpreendente é que um livro dessa natureza não tivesse sido publicado.”

A professora Vera Lins, ao organizar e estabelecer o estudo introdutório da reedição de Horto de Mágoas, de Gonzaga Duque, oitenta anos após a primeira

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edição,em 1996, ressalta que “O Simbolismo ficou como uma lacuna na literatura brasileira canonizada. Pouco se lê desses autores que escreveram entre 1890 e 1920.” Alguns desses ficcionistas, como Nestor Victor, Lima Campos, Rocha Pombo e Alberto Rangel, jamais foram reeditados ou antologizados. Fomos buscar esses textos e “exumá-los”, trazendo-os a público depois de mais de um século, republicando-os e analisando suas partes constituintes. Observamos neles, além das características peculiares à estética simbolista, os seguintes traços notáveis: presença de digressões oníricas, delírios e alucinações; amores não correspondidos ou de difícil consecução; uma idealização amorosa resquicial do ultra-romantismo; as heroínas, em sua maioria, são não-cônjuges (namoradas, noivas ou amantes); um transbordamento sensorial, sinestésico; painéis ricamente descritivos, pictóricos; ambientação ou cenário crepuscular, com matização característica; uma inclinação ao fantástico, em alguns, não necessariamente satânico ou diabólico da estética, mas avizinhado com o maravilhoso e ao insólito; a presença mortal da tuberculose, já assinalada por Cruz e Sousa, em Missal: A Tísica! A Tísica! Essa doença simbolicamente dolorosa e triste, que devasta os lares como os cortantes invernos devastam as searas"! Doença amarga! que soturnamente devorando os pulmões em redor de quem sofre um magoado impressionismo de saudade e uma névoa gelada de sepulcro.

e, por fim, desfechos inesperados e surpreendentes. Quanto aos recursos de linguagem, registramos, nas análises, as ocorrências de hipálages; anadiploses; epanalepses; diáforas; anáforas; além das peculiares ao estilo, sinestesias, aliterações e assonâncias. Notamos ainda a presença maciça de duplas e triplas adjetivações. Por fim, cumpre registrarmos que a feição dos contos simbolistas – sem a ossatura peculiar dos contos tradicionais – deve ser entendida a partir da perspectiva da estética, preponderantemente poética, o que não invalida o seu caráter inovador, visto que também assinalam, antecipadamente, afinidades com o Expressionismo e o Surrealismo. Tais estéticas sintonizaram-se também com a vertente cubo-futurista de

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nosso Modernismo, que de certa forma, ignorou ou minimizou rumos desconectados com o resgate nacionalista ou com a hibridização que a antropofagia legitimaria. Assim, certos de que este trabalho não tinha o objetivo de esgotar o assunto, esperamos que ele possa suscitar, ao “exumar” alguns autores, questões e ideias, novos estudos e pesquisas no futuro.

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10. ANEXOS

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GAVITA Nestor Victor Biblioteca FCRB

Gavita! Extraordinaria creança! Seus quinze annos são como os quinze degráos de ouro de um pedestal que ella levou a subir sorrindo – visão estranha, – adelgaçando-se melhor, definindo-se melhor, absurdamente, quanto mais subia. Foi como um encanto que, anciando em si mesmo, forçasse e se fosse corporificando n´um encanto maior. Sorriso que se fizesse luz. Anjo, cujas vestes curtas, como elle ia subindo, desdobrassem-se em delgada tunica, e cujo perfil, afilando, affinando, se fizesse um perfil de mulher, para ser o de um anjo mais seductor e mais meigo. Quinze annos! Graça melindrosa, que se vê e se teme, cheio de superstição, que é para os olhos o que é para a alma o seu nome tangível que parece um sonho, realidade que sacia de ideal. Gavita! Tel-a em casa, ser pai d´essa creança, viver acompanhando-a com orgulho e com affecto, sorrindo, cheio de cuidados, que felicidade e que encanto! Não!... Os dedos delgados de sua mãosinha aristocratica nem musicas difficeis vencem ao piano, que ella é descuidosa, adoravelmente irriquieta, incapaz dos graves e longos trabalhos que a Arte severa requer. Arias e barcarolas ligeiras, valsas vaporosas, apenas, é o que às vezes ella vae tirando meio ao de leve nas teclas, como um passaro tira ardentias nas ondas com a ponta das azas, noctambulando pelo mar.

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Nada lhe peçam de fatigante, nada que seja de algum modo grave, que requeira constancia ou assento. Ella sabe unicamente fazer encanto em redor. Roupas brancas, cobertas de rendas, cabellos louros em caixos frouxos e negligentes, perfil delicioso, grandes olhos azues com raios de ouro, e um passo alado, de ave meio selvagem á beira de um rio. A casa inteira ella é que a anima, é que a povôa, é que lhe dá alma, é que lhe imprime um modo de ser. Portas brancas com frisos de ouro, claros salões, tapeçarias vivas, moveis caros, ornatos, tudo, parece que tudo d´ella é que depende, que é a sua moldara, que tudo faz conjuncto porque a tem como o seu centro essencial. Ouvil-a falar! Garganta de ouro, accento de voz feminina, de uma seriedade encantadora, mas trahindo-se, impagável, ainda com uns restos longinquos de tom infantil. A idéas, ah! as idéas que ella emitte, ás vezes com ares meio graves, batendo levemente o leque fechado no braço de uma causeuse! Que idéas?! Si ella nada viu! nada viveu!... Passa-lhe o mundo através de finos stores, todo azul, como uma canção que se ouve de noite, ao longe, advinhando-se que lá fóra, tudo adormece sob os philtros do luar! Idéas... Modos de seu ser harmonioso e angelico, simplesmente, para que os ouvidos se encantem, como o perfume é um modo de ser da flor, d´essa essência de delicadeza e frescura, para fazer a delicia do olphato. Ella falar, ou ella rir... Musicas, musicas sómente... Apenas, uma se deu ao luxo da lettra, que, no emtanto, nem se ouve, ficando-nos adormecida a razão, como a de um chim opiado, a imaginativa batendo azas para um mundo de vaporosos coloridos, em sonho. Gavita! No emtanto, de um dia para outro, houve uma transfiguração n´esta creança.

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Um baby, muito louro, carnes que parecem rosas, forte e sadio, menino de que ella é titia, que levou a baptisar, muito séria em seu papel de madrinha, o baby enfermou. Toda a casa emmudeceu agora. Assim deve ficar o céu, quando os anjos estejam em rezas mentaes. Os passos alados délla são hoje, de tão leves, de tão cautos, sombras apenas de seus passos, vividos e musicaes ainda hontem. Ella tem nas faces as rosas pallidas da vigília, como uma doce enfermeira. Porque passou em vigília, insistente, toda a noute, em verdade. A doença veiu abruptamente, assustadora e dominante. Nem poude emmagrecer, o baby! Parece que a morte quer arrebatal-o, quer atirar-lhe o pequenino cadaver á sepultura assim mesmo, de carnes viçosas, como si a terra lhe houvesse pedido um grande punhado de pétalas vivamente fragrantes. Mas, á violencia do mal, ella, a descuidosa menina de ha pouco, começou a oppôr, na mesma hora, a fragilidade da sua imprevista dedicação, confiada, com uma serenidade estranha, de entes que conversam com o alem. Vae a molestia sen curso, ora causando desfallecimentos em torno, ora permittindo vago bruxolear de esperanças, para serem maiores os desesperos d´ahi a pouco, como si aquella pobre creaturinha estivesse fazendo uma viajem absurda, puxada por árdida e desorientada parelha, sobre depenhadeiros, olhos anciosos a acompanharem-lhe o impossível trajecto. A enfermeira persiste. Todos vêm agora. Não foi um modo de ser da sua volubilidade costumada aquelle novo aspecto sob que ella se apresentou de improviso. Ella espera a saúde do pequeno enfermo, serena, silenciosa e séria, á cabeceira do berço rendado, com a confiança de quem aguarda um outro que lhe prometteu voltar. Todos olham-se entre si, emocionados. Sobre a cabeça da menina de ha tão pouco parece que fulge o resplendor de uma santa. Na serenidade que lhe inunda o

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semblante já não se lê a feliz despreoccupação de seus dias risonhos, lê-se a fé, essa rosa mystica que só viceja nos corações fecundados pela dor. D´esta, como do casulo sae a borboleta, sahira mais aquella mulher. No anjo, em que a adolescência ainda não marcara bem firme os seus traços, havia agora reverberos de maternidade. Gavita! Ella fazia hoje pensar nos processos estranhos do poema da vida. Seres aéreos ahi vem dançando, pouco a pouco visíveis, como quem vem de outros mundos, approximando-se lentos, ao som de bandolins e cytharas, – figuras vaporosas em paizagens de fundas perspectivas risonhas. Parece que todo o mundo é uma festa, que a vida é uma simples e deliciosa canção. No emtanto, muitas vezes estas bayadeiras, tão graciosas nos vortices, são tambem as que sabem ter mais graça, profundamente emocionantes, o receber de mãos ignotas, com um leve inclinar de cabeça, d´ahi a momentos, quando de súbito o scenario se transforma, viçosas e pesadas corôas de martyres. Entre os da familia, porem, ás vezes apparecia um rapaz e desapparecia momentos depois. Quando todos, alternativamente, olhavam o doente, tranzidos, e a enfermeira heroina, cheios de respeito, elle vagueiava os olhos distrahidamente e esgueirava-se, com apparencia fria, caminhando nervoso para longe do quarto. Conversas a meia voz pelos outros compartimentos da casa, misturadas de condolência pelo pequenino enfermo, de enternecimento e adoração pelo anjo que o estava conquistando á morte. E elle as ouvia com o intimo sorriso de um desdenhoso, a língua presa, como si tivesse o coração gelado. Quando, no emtanto, a doce enfermeira, atarefada com os seus misteres, passando, por acaso o vislumbrava, tinha para elle um sorriso familiar, como de alma desprevenida e simples. Elles eram primos; certamente que deviam ser amigos. Mas como que o rapaz divergia d´este parecer. Aquella meiga creatura parecia camsar-lhe odios; dir-se-hia que a santidde, então, d´este devotamento agora, por uma creança quase moribunda, o enfurecia por extremo.

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Não. No pensar d´elle tudo aquillo era dissimulação simplesmente, para poder tratal-o, como estava tratando, com indifferença ainda maior. Pequenino coração de bronze é o que ella tinha... Pois si podia sustentar na sua presença o mais completo desembaraço, rir-se franca, ser tão livre nas suas acções, quando elle quase morria, fremente, silencioso, si estava a seu lado!... Ingennuidade, despreoccupação infantil? Não era. Havia um outro que lhe impressionava o espirito. Em verdade, tambem não parecia alimentar por este uma paixão profunda. Quem ama fortemente, elle raciocinava, não tem aquelle ar aéreo e descuidoso, não anda como um passaro a gorgeiar todo o dia. Mas ao menos por esse outro, pensava, não tinha tamanho desdem. Valsavam juntos duas valsas seguidas, ella não o perdia de vista si elle andava em volteios com outro par, ás vezes o esperava á sacada, de tarde, eram em tudo muito diferentes as apparencias. E porque? Parente, amado por outras, digno em todos os pontos, moço, de certo que menos feio do que tantos, do que esse proprio que era o predilecto, porque merecer tanto desdem? Ah! é que ella o sabia apaixonado á séria. Um anno de decepções e martyrios!... Vaidosa tontinha, sem coração humano no peito... Comedia, simples comedia isso com que ella andava agora deixando embasbacada a casa inteira!... Não! Elle estava resolvido! Ia abandonal-a de uma vez!... No emtanto, alguns dias depois ao d´esse protesto voltou. Máo grado seu, sob esse novo aspecto, no intimo ella o seduzia ainda mais. Era agora aos seus olhos um typo definido das companheiras com que os homens andam a sonhar na vida. Embora elle desdenhasse, amargo, d´aquella devotação imprevista, acreditava n´ella mais do que ninguem, em luta comsigo mesmo, na inconsequencia dos corações onde a paixão, como uma tempestade, domina.

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– Mas não está ahi, n´esse sacrificio por uma creança, a prova tão clara da sua natureza affectiva? elle interrogava, para dar-se a si mesmo uma esperança qualquer. N´esse dia em que voltou entregou-lhe tremulo uma carta coberta de queixas. – Quem sabe? agora que ella é toda emoção, talvez comprehenda a crueldade que tem tido até hoje, elle pensou. Aquella carta era a terceira que o desespero lhe dera coragem de arrancar a um livro feito de innumeras outras, pois elle vivia a escrever, enchendo o tempo inteiro com aquelle amor. Que palpitações de coração, porem, que negras conjecturas, que tão grandes acanhamentos infantis, que covardia horrivel, quando elle se propunha a entregar-lh´as! Por fim, soluçantes, ellas iam enchendo-lhe a pasta, na melancolia contristadora das cousas cujo destino falhou. O baby, afinal, estava livre do maior perigo. Instada pela casa inteira, Gavita pela primeira vez recolheu-se essa noite ao seu aposento para um repouso normal. Deitou-se; mas, antes de fechar os olhos, veiu-lhe á memória a carta do primo. Ainda não tivera occasião de a ler. Sorriu-se, fazendo nas faces duas adoráveis covinhas. – Ora o primo!... ella disse baixinho. Veiu-lhe vontade de levantar-se para apanhar o papel... Mas o somno era tanto!... – Está bem, resolveu, amanhã cedo hei de ler. E, um meio sorriso nos labios, como si estivesse conversando com os anjos, d´ahi a momentos adormeceu, n´um somno profundo e tranquillo. De manhã realisou o promettido... Mas, quantas cartas viessem, tudo seria completamente inútil. Essa por quem o rapaz andava tão perdido de amores sorria ao recebel-as, lendo-as sorria, e continuava a sorrir todo o dia, como se aquellas linhas não lhe dissessem respeito. Ella, na sua ingennuidade, achava o primo tão exquisito, tão differente dos outros rapazes! Elle nunca lhe falara com effusão, não a encarava de frente, andava sempre pelos cantos, como si fosse um maniaco... As cartas... ella nem as entendia

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direito... Eram tão cheias de idéas! Porque será que elle não escreve mais claro? perguntava. Recebia-as... nem sabia porque... ora!... qualquer dia o primo se resolvia a esquecel-la, assentava afinal, atirando a cabecinha loura para traz, e com este gracioso gesto dava um curso differente ás ideas... Gavita! Mas, em vez de esquecer, o rapaz foi cahindo n´um desespero maior, tanto que duas novas cartas já tinham vindo, e agora chegava a terceira, entregue por alguem que fugira antes da menina ter tempo de devolver o papel. Si as outras jamais a haviam preoccupado seriamente, muito menos esta, n´aquelle dia extraordinário em que estavam. Já se restabelecera, e hoje fazia annos, o baby. Gavita radiava. Voltara-lhe toda aquella graça de passaro meio selvagem. A casa inteira acordara com a sua ruidosa alegria, como de madrugada, com o passaredo, a floresta. Enchiam-se os compartimentos de parentes e de amigos. Ninguem das relações quereria estar ausente a esta festa. Uma excepção apenas quem attentasse, notaria que faltava, para tomar um lugar á mesa, aquelle primo enamorado que ainda de manhã escrevera. Gavita não parecia dar por tal. Era pouco impressionavel, felizmente. Ao contrario, talvez não tivesse o coração em completo repouso, porque, n´essas ultimas linhas, por modos indirectos, – a tinta toda delluida por lagrimas, – elle dizia uma especie de adeus, falava n´uma desgraça imminente. Gavita!

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A VICTORIA Nestor Victor Biblioteca FCRB

E a obsessão não o deixava. – Sim, como as mais! Ah! elle vinha sufficientemente batido d´essas plagas! Nenhum amor tal qual o que se desejava, nenhuma mulher absolutamente leal. E n´isso nada havia de extranho. O que apenas nos cumpria fazer era conservar-mo-nos sempre livres, para do alto da nossa serenidade as podermos perdoar. Ella, no emtanto, enlaçava-o no seu corpo de virgem, queimava-o com a bocca de apaixonada, de tal modo que, fosse ao proprio marmore que abraçasse, no marmore entumecer-se-iam veias, nas veias correria sangue, e a pedra ficaria animada. – Ah! porque não me amas? dizia com soluços na voz. – Mas si eu te amo tanto!

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– Não! ella sabia que não. Este movimento instinctivo de repulsa, por mais que se queira adherencia, quando a alma não nos acompanha na acção, ella instinctivamente o percebia. No emtanto, que maldade era aquella? Que outro sacrificio elle pudera pedir alem d´esses a que ella se entregara, tudo por aquelle amor louco, que decidira para sempre de sua sorte? Os sacrificios cessaram quando elle os achou sufficientes. Ella vivia ainda porque elle não lhe pedira a vida, mas si no seu coração não existia amor, si nunca poderia existir, porque elle não lhe dera a felicidade de exigir-lhe aquella prova suprema antes que ella reconhecesse o medonho real?! Comtudo, meu Deus, ella o sabia tão honesto e fidalgo! Pois uma alma como a d´elle, alevantada e grande, uma alma como ella ainda não vira outra sobre a terra, acharia justo acordar da paz o pobre espirito de uma virgem, e arrastal-a comsigo friamente, pelo simples capricho de vel-a prostrada a seus pés?! Mas que loucura era essa? Condemnal-o! Elle não arrastara a ninguem. Fora ella que o chamara e se interpuzera no seu caminho sereno. E o que mais desejava? Pois não estava a seu lado, não podia agora ser para sempre sua escrava, feliz em soffrer todas as humilhações que d´elle viessem, porventura? E aquelle corpo de virgem tremia no ardor d´aquella loucura que lhe ia pelo sangue todo! – Dize, porque não me amas?! – Eu te amo tanto! Sim, como as mais, reflectia. Pois era possivel que elle, elle! cahisse ainda no abysmo que lhe creasse uma mulher?! Não tinham sido os seus amargos soffrimentos apenas. Ha que tempos se lhe haviam esclarecido os olhos. E então que infinita imbecilidade elle achara nos homens! Quantas vezes não sorrira do ar tranquillo de um venturoso amante, a que elle proprio

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fizera a traição! E agora voltaria para essa ridicula fileira dos que crêm, e viria a ser o brinco, o objecto de lastima ou de irrisão dos poucos sensatos que existem no mundo?! Verdade era que desde que insensivelmente elle fora entrando por essa vida futil das conquistas, a qual acabara por amortecer-lhe inteiramente a fé, nunca mais sentira um legitimo prazer por todo aquelle caminho. Remorso e tédio! Agora, por exemplo, ali tinha, junto a si, aquella creatura que, na necessidade de dar curso á paixão que lhe nascia do sangue moço, prendia-se a elle, exigindo por força um tributo, querendo a todo transe escravisal-o. Relutasse elle pela liberdade e ali estava aquella mulher amanhã odiando-o mais do que hoje dizia amal-o, sem nunca poder comprehendel-o. E não era só isso: ahi estava ella perdida para essa sociedade hypocrita e má. Elle fizera de seductor ignobil. O quanto, pois, lhe custavam aquelles beijos, que lhe pareciam, não obstante, de uma frialdade de beijos de morto, porque não accendiam o seu sangue, não lhe traziam a loucura e a cegueira, que o deixassem adormecer de amor! Ah!... que raiva contra si proprio!... Como era futil ainda aquelle seu espirito? Não ha duvida que elle era o culpado. Reconhecer o vácuo que havia n´aquillo, querer ser livre, e, no emtanto, não se poder ainda furtar a esse vicio baixo das estupidas conquistas, elle, o eunucho psychico, o impotente pelo coração, parecendo-se com esses velhos libidinosos, de olhar accendido quando a força já está extincta! Elle não devia conhecer a vida, porque não nascera para as lutas d´este mundo. Que bom si fosse como todos esses outros! Não, concedia, não é que houvesse n´elles menos perspicacia. Mas é que não sentiam tão imperiosa esta necessidade de infinito, de absoluto, – infinito no amor, infinito na bondade, virtudes infinitas –, que elle sentia comsigo. Esta era a sua enfermidade. Enfermidade, sim! Elles é que eram os sadios. Tomavam a vida pelo seu lado melhor. «Mulheres, sois fracas? Temos pena de vós. Vos cercamos dos nossos cuidados, vos protegemos, nós os amantes com uma solicitude e uma vigilância partenaes. Ah!

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nós sabemos que si não formos nós mesmos a desviar-vos do abysmo, cahireis, inevitavelmente. Ou já cahistes n´elle por ventura? Mas essa não é razão para vos abandonarmos com um injurioso desprezo para sempre. A vossa fraqueza orna-se de tantas virtudes! Entes pequenos, como sois grandes diante de nós! Sem o vosso amparo, de vós, as amparadas, o que haviamos de ser nós, os vossos protectores?» Pensavam assim. Não os condemnava, porque elles é que estavam com a razão. Mas porque essa idéa? Já não era aquelle um signal da victoria della, – de mais esta! – sobre elle? – Ama-me! Ama-me! Porque não me amas? – Mas que maior amor tu queres? – Ama-me! O que te falta? Eu sou tão moça! Tu não sabes? Ah! sabes muito bem, eu nunca fui de outro. Accordei da infância, fiz-me mulher para te amar. Eu nada sou, bem sei, diante de ti, mas ao menos tenho um coração muito bom. Desde creança eu fui tão feroz nas minhas paixões de menina, queria tão seriamente minha pobre mãi, que é morta, meus irmãos, que eram quase meus filhos, as flores que eu plantava, tudo a que eu dava um carinho e que me estava em redor, que muitas vezes vi minha mai chorando, a beijar-me, com pena de mim. Pois bem, tudo isso lá se foi, meu coração cresceu, e agora só a ti pertence. Não sabes? eu sou moça, sou formosa, e estou nos teus braços! Ama-me! ama-me! E os seus beijos tão fundos faziam círculos de fogo pelo corpo do amado. Mas – nunca! nunca! – elle pensava. Beijos taes lhe pareciam de morto, porque, elle o estava vendo, não accendiam o seu sangue, não lhe traziam loucura nem cegueira para adormecel-o no amor. Comtudo, não era bem assim como se esforçava por ver. O orgulhoso estoico tremia, querendo fazer calma por todo o seu ser. E, como ondas que andam sob outras ondas, debaixo daquelles pensamentos frios tumultuava um mundo de outros pensamentos de ordem diversa. O bom, o moço, o humano tambem falava.

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– Mas porque, – ouvia-se lá no fundo, – porque excluir-me assim, a todo transe, dos prazeres da vida? Pois o que está na ordem natural nós podemos torcer? Onde se viu mocidade sem amor, e onde se viu um amor que não seja egual aos outros amores? Depois, esta não é como as mais, accrescentava embriagado e cego. E este não será como os outros! Ah! o nosso amor será infinito! O nosso amor, porque, – para que eu hei de negal-o? Eu amo-a! amo-a! E era verdade. Elle não representava o typo sceptico e árido que acreditava ser. Elle era bom e nobre. Si andara em busca de conquistas fora por necessidade de affecto, e si arrastava essa moça áquelle amor é que, sem saber, primeiro fora arrastado por elle. No emtanto, ia pensando: – Nunca! nunca! Mas se ouvia, ao mesmo tempo, lá no fundo: – Ah! eu não me illudi! Acompanhei seus passos desde a infância. O que ella diz é verdade. Eu vi aquelle coração ir crescendo no seu lar honesto como uma arvore de saborosos pomos, sob um clima fino e propicio, em terreno limpo e cuidado. E agora que os fructos pendem n´uma cheirosa sazão, a mim é que se offerecem, implorando-me para que os colha! E uma vez que ella murmurava com um irrisistivel choro na voz: – Ama-me! ama-me! – Pois bem, elle soluçou com a bocca na sua bocca, eu amo-te, amo-te muito! Foi quando ella reconheceu, n´uma delicia celeste, que elle lhe tinha amor! Aquelle beijo era differente dos outros. E vinha com um aperto no sabor tão particular que trouxe á memoria d´ella um facto remoto. Ella recordou-se de outro beijo com este gosto que uma vez aquelle rapaz a que ella creou tanta raiva lhe havia dado no caminho, apertando-a n´um abraço de estrangular.

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E, cheia de uma delicia celeste, pensando sem querer n´aquelle beijo ruim que recebera do outro, a quem, ignorava por que, ha tanto tempo não via, ella adormeceu aos poucos nos braços do seu amor. Elle, no emtanto, agora, apertava aquelle corpinho nos braços, perdido o orgulho, renascendo-lhe toda a fé, bebedo e cego, no estado de um homem perfeitamente feliz...

1ª página da Novela “Sapo”

SAPO Nestor Victor Biblioteca FCRB

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I

– Mas, afinal, parece que eu tenho o direito de dispor de mim mesmo... oppoz o Ernesto. Era um rapaz de estatura mediana, vinte e quatro annos apparentes, pequeno bigode castanho a sombrear-lhe os labios frescos, delicados, vermelhos, que faziam lembrar a polpa de uma goiaba.

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Lima Campos Acervo Fundação Biblioteca Nacional - Brasil O lilaz pisado das suas olheiras, como se fossem bistradas pelo soffrimento; o doloroso meio rir da sua bocca triste, derramando expressões dormentes, de uma melancolia impressionadora, no seu semblante de linhas suaves; a simplicidade sympathica do seu aspecto, dos seus gestos, dos seus dizeres e, sobretudo, os seus olhares pensivos, cheios de uma uncção piedosa de consolo e conforto, communicativos de seismares romanticos e provocadores de affectos brandos; a negligencia encantadora das suas maneiras e a sua beleza digna e pallida de imagem de altar – tudo isso, todo esse delicado e insinuante feitio, toda essa ineffavel graça – prendia embaladoramente os olhares que a fitassem, perturbava sonhadoramente os espiritos e empolgava, emfim, as sentimentalidades que se lhe approximavam. Marcos d´Alba viu-a e Marcos d´Alba amou-a. Ella, por tempo longo, o deteve, acorrentado e timido, ás attracções e aos encantos do seu ser, pelas tacticas subtis das dissimulações, das incoherencias propositaes, dos pequenos trucs, emfim, que são o poder e o saber femininos, contendo-o, assim perduravel, nas garras dessa tortura que é o amor ainda indefinido e ainda insatisfeito e que, por isso, persiste, alimentado pela esperança e suppliciado pela duvida. Nelle, porém, a affeição cantava no olhar, sonóra e clara, visível e ingênua, o hymno do bemquerer que Ella ouvia, e traduzia-se-lhe nitida na mudez expressiva da perturbação de Marcos, sempre que, onde elle estava, ella estivesse presente. E a luta, o embate, o encontro era então, como a de todo um exercito, mascarado na grimpa de uma montanha, alvejando um camponio simples, a avançar, exposto, sem abrigos, pela razura sem bordas de uma planicie.

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Um dia, afinal, ou porque entendesse bastar ou porque receiasse que o excesso e a delonga da estratégia adormentasse nelle a affeição, pela terminação da esperança e pela abundancia da amargura, – ella acenou em um instante rapido, a bandeira branca da piedade e da paz. Foi como um surto brusco de sol na meia luz tristonha do desanimo e da desillusão de Marcos. Elle não o previra, não o contava. A alma palpitou-lhe, desfallecida quasi, ao choque inesperado daquella ventura. Fôra aquillo em um domingo, uma manhã limpida de claridades e doçuras no ar; ella chegara da rua, viera da missa; trazia cançaços ainda da caminhada longa – o collo arquejante e as faces incendidas pelo sol alegre e brando daquella hora – deixara-se cahir sobre a cadeira, perto delle; dera-lhe o bom dia com a affabilidade do habito e emquanto, com os braços erguidos, em azas de amphora, arrancava o estilete esguio e delgado que apunhalava a palha beige do chapéo, tirando-o de sobre o penteado e com os extremos dos dedos, acartuchados e longos, concertava os crespos da fronte e alinhava os fios rebeldes da nuca, pousara ao lado, com a simulada naturalidade de um descuido, sob quasi o olhar de Marcos, as luvas, o leque e o missal de chagrin entreaberto em pagina em que puderam os seus olhos lêr, á margem estreita de uma oração predilecta: – Marcos d´Alba – em calligraphia minuscula, como um pequenino segredo, nunca a ninguem revelado, guardado alli, entre antiphonas de Maio e imagens douradas de santos, marcando paginas, n´um perfume suave de folhas seccas de malva ............................................................................................................................................ ............................................................................................................................................. ............................................................................................................................................. .................... Em um Junho – por S. João – casaram... E em um outro Junho, dez annos depois, levou-o a tuberculose, deixando-a, elle, nas agruras do mundo, gorda, anafada, negligente, mal fallada dos visinhos, com cinco filhos magriças e uma divida na pharmacia.

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Era alta, da linha plastica de uma estatua antiga. Lembrava a vertical esguia, triste, de uma cegonha isolada. Estava na plenitude da sua carnação dos trint´annos. Por sob a queda frouxa das roupas, sentia-se-lhe o desenho esbelto das columnas, em afilamento extenso e gradual de duas palmeiras invertidas. Pela estampa, pela soberbia de olhar, pela belleza, chamavam-n´a: – Flor Triumphal! – E Ella o era; flor de mysterio; tres vezes flor: pelos olhos, pela figura, pelo espirito – amorphophalla que mata, rosa que extasia e nymphéa que adorna!... Entre os assiduos do marido, um havia – socio, caixeiro, diziam, de um armazem de modas... deputado. Sei lá... Usava polainas brancas. Uma tarde, dois dos postigos do pavimento alto dos dormitorios abriram impulsados com ímpeto e ficou a janella como uma bocca que se descerrasse de improviso no desmesuramento de um grito, na expressão muda de uma surpresa!... Assomou a criada, a Florinda, em debruço, com os cabellos revoltos, o olhar ainda cheio da assistencia e do pavor de um crime... – Visinho, visinho, acuda!... O patrão está matando minha´ama!... Recolheu, em seguida e via-a, instantes depois, atravessar o jardim, abrir nervosa o portão e escapar, aterrorisada, para a rua.

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Ah! O caixeiro!... O Deputado!... Bem eu o suspeitava... O resto, pouco importa: entrou na esphera banal dos noticiarios e dos inqueritos. Foi ao entardecer do outro dia que o seu enterro sahiu. O caixão era extenso, como ella era alta, e orlado todo de agaloados de oiro. A cauda das carruagens, ao primeiro arranco do coche funebre, colleou atraz, em estrepitos pela estreiteza da rua arborisada. Ao voltar a quina distante, as fitas longas de uma grinalda acenaram atraz uma saudade, um chamado, um ultimo adeus... E foi só. Acabou.

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A TIA MARTINHA Lima Campos Acervo Fundação Biblioteca Nacional - Brasil

A lampada abria um halo largo de luz; grillavam insectos, fóra, na fenda dos muros, pela quietude estrellada da noite emquanto, da sala perto, vinha o rumor abalante, apressado e trépido da machina a costurar linhos brancos – que era a Amanda, coitada, a tysicar sobre as costuras. Nós, em camisólos, já promptos para o deitar, grupavamo-nos no corredor para o matte – um corredor extenso de grossas paredes e largas janellas. Ao centro sentava-se a tia Martinha, em um bancosinho baixo, com os seus oculos de aros de aço e o livro de orações nas mãos. Contava-nos, então, os seus lindos contos: o martyrologio dos príncipes andantes, a historia das fadas bemfazejas, e nos dava, por vezes, á curiosidade dos olhos o goso de estampas coloridas de um Velho Testamento – um grande livro largo que abríamos no chão, nós ao redor, a folheal-o, pagina por pagina. Ai! Doces estampas que eram, onde anoitecia o negror setinoso dos cabellos fartos de Ruth e andava, pela messe dourada das lavouras, a mancha clara das barbas longas de Abrahão!... Apotheoses de prazer, com estrídulos de chilreio alegre, aquelle succeder de figuras e cores, de trigaes e montanhas, de homens em tunica e mulheres sobraçando

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púcaros!... De repente eram os de Israel, por entre muralhas d´agua, atravessando o sólo areiento de um mar talhado ao meio, guiados pelo vulto do velho propheta com os seus raios geniaes á fronte, pasmando-nos, provocando duvidas de que fossem chifres aquellas irradiações do seu espirito de previsão e de sabedoria! E mais adiante era, na vasta desolação de um deserto, a figura soffredora de Agar, a quem a Dulce, a caçula de todos nós, pontava logo com o dedinho gordo, a chamal-a Ari, que vinha a ser na algaravia syllabica dos seus dois annos, a Maria Rita, a ama que a creara, a Bá negra, em cujo seio amoroso e farto sugara, por mezes, gulosa e linda, com a mãosinha sobre a têta e o botão da bocca apinhado em beijo, toda a vida que ora corria-lhe escaldante nas veias. Por um cerrar de noite – havia uivos lugubres de vento nas casuarinas da chacara – a tia Martinha começára: – Era uma vez... E, de repente, quedou-se – os olhos abertos e a bocca incerta... Sentados no chão, á sua frente, em semi-circulo, olhavamol-a surpresos, esperando continuasse – as mãosinhas cahidas ao collo e os nossos olhos pasmos nos seus olhinhos quietos... A Dulce, para animal-a, sentindo-a tardar, tatibitou: – Ela u´a vez... Mas, a tia Martinha... Deus nosso!... D´alli, de onde nos fallava, alli se ficou como uma santa... No dia seguinte levaram-n´a, no dia seguinte – ai! Que tristeza que foi!... em uma caixa negra, estreita, com galões dourados... Puzeram-lhe flores por cima e, nós, beijos, no panno preto dos seus sapatos sem salto. E de todos, a quem mais pungiu aquella ausência, em quem mais ficou a amargura daquelle deixar, foi á Dulce – ella, então... para quem as bonitas historias da tia Martinha não contentavam com uma só narração!... Queria que as contasse – e indicava o numero, exigente, n´uma careta gracil de amúo, com os dedosinhos minusculos abertos em angulo: – Duza vez... Duza vez... Por fim... foi-se tambem, a Dulce, um dia, na garra adunca da angina e na seda branca de um caixão pequeno... uma tarde triste, fria, d´Ave-Maria triste – atraz, quem sabe? das bonitas historias que a tia Martinha tinha levado... A querer ouvil-as ainda, a querer ainda, talvez, que lh´as contasse, lá em cima: duza vez, a Dulce, duza vez...

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O

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GATO NEGRO Rocha Pombo Acervo Fundação Biblioteca Nacional - Brasil

Desolado em minha sala, estava eu na hora das obsessões, o espirito muito para além, pela região dos problemas, bem longe do mundo e bem distante do bulicio humano. Todo o movimento, todo o rumor cessára e a vida immergira na profundeza do seu somno. Quanto a coisas da terra, só me apercebo de que me vem lá de fóra a impressão da alta noite, calma e solitaria. A rua está deserta e numa grande mudez solemne, a destacar-se no meu espirito como em contraste com a vertigem de poucas horas passadas. Ainda assim, são fortes as emoções que me suggere a vasta solidão da noite. E é por isso que não tenho a coragem de maldizer o silencio de necropole que me chama lá das alturas em que anda meu espirito e que logo me absorve e me vence. Não posso imprecar... porque sinto que amo aquella escuridão. Amiga suave e carinhosa das almas – noite sonhadora e amargurada! – tu és a imagem do mundo em que vive meu espirito. Pois que tu, noite amargurada, és o mysterio que envolve a vida e tens no teu seio immenso, bem sensiveis, todas as duvidas do universo moral. Tu és como o chaos informe e indefinido de que vai sahir daqui a instantes o prodigio da Creação, restituida á nossa anciedade e ao nosso espanto. Bemdita a noite que nos faz novo o universo! Bemdita a noite que me fecha de todo a alma no insondavel escuro, onde erra meu espirito, á busca de signos indecisos e como si estivesse á espera de palavras augustas que vão ser faladas. A natureza está para mim numa attitude e numa pompa mystica de cerimonia cultual. Ha pouco em torno de mim havia tumultos e eu suspirava; havia todas as manifestações ruidosas da vida, e eu inquiria o destino numa sagrada ancia de viver. E é só agora que meu coração se apercebe de que está no mundo onde se creou e em cujos paramos silenciosos tem

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vivido – mundo feito de sombras, de luares ineffaveis, de horizontes sem limites como as voragens; mundo de seres intangiveis, de existencias sem fórmas, de vultos sem contorno; mundo do vago extenso, da cor indefinida; mundo da nevoa, da solidão e do assombro – ideal paragem das almas a vagar anciosas neste oceano do tempo... A cidade dorme, exhausta das azafamas e só se ouve, de momento a momento, muito por longe a perder-se na distancia, o ladrido de cães como aviso de sentinellas que a vida postasse neste amplo solar symbolico do além, para impedir que seja tranquillo o somno dos que dormem... Ouve-se ainda o cantar de gallos, cantar que annuncia ressureições, que alarma todo o instincto heroico, mesmo nas creaturas vencidas... Dir-se-ia que no meio daquelle somno trabalha uma dolorosa obsessão de vigília... e que aquelles ladridos e aquelles cantos destacam ainda mais o silencio temeroso que impera sobre as almas como angustia desconhecida. E imagino então que estou no meio de uma grande noite polar... Em torno de mim ha uma natureza morta, ruinas desoladas de um mundo que passou, desertos infinitos eternamente sepultados na escuridão e na erma quietude que ficou de tudo que foi... Mas é naquellas mesmas estancias solitarias que a alma readquire o vigor antigo, e em vez de sentir a morte e o nada, vou procurando na immensidade gelada os vestigios da vida. E como seria bella e grandiosa aquella noite sem fim! Que mysterios não desvendaria eu na mudez daquelle escuro! Que problemas, que dramas, que heroismos estranhos me segredaria aquelle silencio de noite polar! Eu ia absorto nas profundezas do meu pensamento, quando sobre o peitoril da janella aberta ergue-se o vulto sinistro de um gato negro, enorme, immovel, a fitar-me, como um duende vindo do mysterio. Tive impetos de fugir, de buscar alguem que me falasse, alguma voz humana que me restituisse a minha consciencia. Depois, estaquei. Veio-me á lembrança o corvo do poeta – a ave da desillusão, ave que sabe de todas as linguas apenas aquellas duas palavras que gelam as almas: – o nunca mais! apavorante e desesperador.

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– Mas tu, gato negro, tu andas na superstição das pobres creaturas envolto sempre na idéa dos demonios. Dos animaes que convivem com os homens, és tu aquelle que mais os espanta, porque tu amas o escuro e o silencio, tu és o animal da noite, e como animal da noite és o emblema do peccado e do crime. Si as almas piedosas te vissem poisar esse vulto côr da treva no alto de um sepulchro – as almas obumbradas se afastariam, porque tu não te cevas de cadaveres como as hienas, mas de almas como o remorso. Quem sabe si tu não és mesmo a incarnação de genios maus, de espiritos malditos, de agoiros errantes, e si não andas de mundo em mundo como exilado impenitente, a perseguir almas, na insania do teu castigo... E si esse fulgor que tens nos olhos é ainda um resto do antigo brilho que te ficou da bemaventurança perdida – tu és mais do que as aves, por quemais do que as aves já amaste e hoje odias mais do que as aves. Vem, pois, dizer-me o que sabes da vida. Não te inquiro sobre as Leonoras que se foram; nem desejo saber o que as almas amam no céu: dize-me apenas se o inferno de onde vieste é mais horrivel do que a terra. Dize-me se lá também ha crimes e si os crimes lá chegam a ser monstruosos como aqui... Si os entes lá tambem detestam Deus e aborrecem os homens... Si tanto como aqui a perfidia, a soberba e a impiedade estão no seu imperio... Dize-me si as almas lá vivem tambem de perseguir as almas... Immovel, o monstro parecia ruminar a minha afflicção. – Mas ouve-me, gato negro. Nas lendas deste mundo, tu figuras como o disfarce preferido no inferno e sem duvida, esse conspecto e essa côr escondem alguma coisa da cidade do pranto e do ranger de dentes... Vem dizer-me si lá nas entranhas do Orco ha tambem Neros e Denys; si ha juizes que condemnam innocentes e absolvem culpados; si ha lá consciencias capazes de crear Lesurques e Dreyfus; si ha lá Marats e Herbets e si a liberdade é horrenda como os feros Molochs daqui. Vem dizer-me, tu que vieste do inferno, si lá os bons tambem padecem e si o premio da virtude é tambem lá o martyrio eterno...

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Uma palavra tua é bastante, animal sinistro, exul da damnação. Conta-me si os demonios do inferno são peores que os demonios da terra... Si ha lá maldade que chegue a profanar o sagrado e abusar da innocencia... Dize-me si ha lá monstros que sem tremer vão até... envenenar a esmola com que matam a fome... Ou então, si perdeste a lembrança dos horrores do inferno ao vêr os horrores da terra – fala-me ao menos por gestos e dize-me como são os castigos do inferno... Dize-me si lá tambem se conhece um castigo chamado sonho... este castigo que põe as almas, sob o silencio das noites, num grande estatellamento em face do céu, sem saber por que vieram, sem saber como vivem, sem saber por que suspiram... Ante a immobilidade do bruto, fico mais aterrado e cada vez mais exhausto. Um medo supersticioso começa a invadir-me o coração e sem me aperceber me vou erguendo. O animal, como si houvesse crescido, levanta mais a cabeça e me fita firme e quase hostil. Num supremo esforço, grito para o vulto, cuja silhueta se destaca enorme e monstruosa á luz do gaz da rua: – Mas então, si no teu mundo não é como aqui; si lá não se extingue nas almas a dôce e triste piedade, dize-me ao menos si lá tambem se ama e se adora... Um longo miáu formidavel me faz tremer e o bruto, dum salto, desapparece no infinito da noite.

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SARICA Rocha Pombo Acervo Fundação Biblioteca Nacional - Brasil

Afinal, parece que era preciso comprehender que a vida é aquillo mesmo... Queixam-se todos, mais ou menos, da sorte; mas, lá um dia, a Providencia como que nos surprehende com a sua misericórdia infinita. Viviam, ha tantos annos, naquella tristeza: elle, o pobre Luiz, paralytico e cego, uma alma simples e fina, atada áquelle castigo de uma existencia dolorosa, na immobilidade e na escuridão; ella, a misera Josepha, ainda mais delicada e sensivel, sempre espantada em presença da desgraça; procurando, resignada e sublime de ternura, talvez inconsciente da sua grandeza tão humilde, provar ao mundo que, ainda no meio das vicissitudes mais duras e amargas, póde um peito fiel e amoroso levar alguma coisa que zomba impassivel do tempo e das amarguras. Viviam ha tanto naquella miseria; elle, ruminando mysterios, como um deus vencido e desolado; ella, a desentranhar-se em ternuras por aquelles entes tão inditosos que o destino lhe confiara. Queixavam-se continuamente de Deus e dos homens... No emtanto, só agora é que ella, a boa Josepha, está comprehendendo como não tinham razão para accusar a

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vida. O Julio já presta algum serviço; e a coitadinha da Sarica... já sabe pedir... De certo que era horrivel esmolar! Mas que direito haverá, mais do que este, sagrado para o mundo, quando se tem fome? A primeira vez que lhe passou pelo espirito esta idéa de fazer a filhinha esmolar, a Josepha chorou tanto que o Luiz, lá da sua noite, chegara a perceber e affligir-se. Expôr aquella creaturinha tão hedionda aos olhares curiosos de todos... era horrivel! Mas a miséria vence as naturezas mais resistentes... Demais, peor, mil vezes peor, do que este recurso á caridade do seu semelhante, havia no mundo tanta coisa! •

A principio, Josepha seguia de longe a aleijadinha acompanhada do Julio. Levava o coração agitado ao vêr a filha arrastando-se pelas ruas e praças, a estender as mãos aos passantes. Depois, tudo se foi normalizando; ficou tudo muito natural: a mãe, desafogada, lidava na casa; a Sarica e o irmãozinho exerciam fóra a sua profissão. As duas creanças, logo cedo, arranjavam-se e partiam, para só voltar á tarde, muito fatigadas, com a colheita do dia. Quando tinham sido felizes e traziam uma boa féria, o Julio entrava muito contente; mas a Sarica, morta de cansaço quasi sempre, pedia logo o seu repouso numa enxerga, junto ao catre do pae. Mal tinha ella forças para afagar o cego, e dar-lhe alguma boa noticia: quando a mãe dava por ella, a Sarica dormia, atirada ao chão, como um embrulho, sem fórma humana...



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Uma vez, demorava ella em preparar-se, e já se fazia tarde. O Julio, muito afflicto, diz-lhe que outros mendigos já deviam ter-lhe tomado os melhores pontos na praça. Josepha mesmo entendeu que era tempo de apressar a filha, ao vel-a muito cuidadosa a compor-se melhor, a esconder bem as pobres pernas atrophiadas e torcidas. Tinha muita vergonha quando lhe viam as pernas... Da corcunda já não fazia mais caso; mas deixar apparecer o horror das pernas... – Ah! Fez-lhe sentir a mãe sem cuidar – tranquilliza-te... Quem haverá, minha filha, que te queira ver essas perninhas tão seccas e tortas... E o Julio disse mais: – Será melhor até que todos vejam toda a tua tristeza... A menina calou-se, mas revelando no gesto compungido a infinita desconsolação de todo aquelle infortunio.



Sahiram os dois. A Sarica tinha a frontezinha sumida, como immersa naquella mistura de ossos: bela frontezinha, o unico signal de magestade humana que havia naquelle corpo monstruoso. Dir-se-ia uma cabeça, um semblante de anjo mettido na fealdade, na hediondez de uma rã, a olhar vagamente para cima, lá do chão onde rasteja.

Horas e horas, abrazada ás vezes por um sol de Janeiro a um canto da praça, ella passava pedindo. Quando as esmolas lhe cahiam lá de cima, ella sorria e se alvoroçava e tinha vontade de erguer-se... Mas, ás vezes, as esmolas não vinham... Ella pedia inutilmente; e o Julio chegava a dizer-lhe com maus modos, que ella não tinha geito para o officio; que não sabe fazer voz commovente, e que não revira para o alto os olhos meio nublados... Ella

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se esforçava na sua funcção, falando como os moribundos, e fazia, tremula e exhausta, por imitar os mais habeis dos pedintes que enchem a praça... Muitos daquelles eram mais felizes do que ella. Chamavam sempre a attenção do publico, e sempre com fructo copioso. E no emtanto, nenhum delles tinha, como ella, o direito de pedir. Ella devia ser ali a primeira; mas a piedade dos homens não comprehendia isso... Os proprios cegos não estão no seu caso. Os cegos têm ao menos o seu conspecto humano, e não sabem o que é a dôr de ser... monstro. E aquelle publico passa ás vezes por ella sem vel-a... Era horrivel! E quasi sempre ia pensando assim, até chorar.



Quando, porém, as esmolas cahiam, tudo se acabava; esquecia as queixas; e até o seu semblante readquiria a serenidade das auroras. Sentia-se boa e meiga, capaz de uma sympathia incondicional por todos os entes, mesmo os mais ditosos da vida. Já era alguma coisa aquella justiça, que lhe faziam, de reconhecer quanto ella é digna de compaixão. Á tarde, um dia, entrou ella, de volta das ruas, naquelle triste lar. A receita fôra das boas. A mãe recebeu-a, como de costume, com todos os carinhos; e o cego, lá no seu escuro, teve um farto beijo aquelle dia. Ah! a vida era aquillo mesmo... Estavam então amparados todos pela desgraça daquella creatura... Coração de mãe, por mais vencido que ande, ás vezes como que se deixa galvanisar pela propria miseria. É por isso que, ainda familiarizado com a dor, vem de repente lá do seio materno um protesto que parece espantar o proprio destino. Josepha dissera aquillo, e teve logo impetos de esmagar de caricias a filhinha: aquellas palavras como que despertaram naquella alma de mãe a consciencia de tanta desgraça... de que os

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paes se aproveitam. O cego, que tem toda a sua vida concentrada na filhinha, e que, si não vê com os olhos, tem a luz interior que devassa as profundezas do ser, estremeceu numa convulsão de pranto ouvindo aquellas palavras. O Julio, a um lado, desconfiava de tudo aquillo. Elle sentiu que todas as demonstrações eram para a Sarica. A elle não lhe reconheciam coisa alguma. Entretanto, sem os esforços delle, a irmãzinha nada faria. Muitas vezes a Sarica chegava até a querer cantar e a sorrir, e elle é que evitava taes imprudencias... – É certo – explicou a menina – eu ás vezes tinha mesmo vontade de cantar. Eu estava triste, vendo que não me davam coisa alguma... e sem que eu soubesse como... um grupo de moços passava... e tantos nikeis eu recebia num instante, que meu coração parece que saltava... Era em taes momentos que sentia umas ancias de cantar para o céu um hymno com que uma vez sonhei, cantado pelos anjos... E não hei-de morrer sem compor uma oração que exprima tudo que sinto pela bondade da minha santa... Eu sei que é santa Cecilia quem me protege. Por mim mesmo, que poderia eu merecer de Deus! Si elle me fez nascer assim, não seria porventura para avisar-me que não devo esperar coisa alguma do céu neste mundo? Não, Julio, tem paciencia: hei-de cantar a minha oração... – Pois se tu cantares nas ruas – disse o Julio gravemente – desde já te asseguro que não traremos um vintem. Tu bem viste hoje: foi bastante que te alvoroçasses um pouco para que ninguem mais te désse. Não ha quem goste de mendigos alegres, ou de mendigos que cantem... E suspirando muito intencionalmente: – Não fosse eu... e haviamos de vêr... Eu é que te ando a ensinar a fazer cara de miseria e ares de fome. Tu estás sempre a querer occultar as pernas e os braços... Não fosse eu... E concluiu amuado: – Entretanto, nada mereço... Tu é que fazes tudo. Este mundo é mesmo assim... Não sei porque tambem não me fez Deus aleijado...

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NERAH Virgílio Várzea

O

gracieux

fantôme,

enveloppemoi de tes bras. Plus ferme, plus ferme encore! Presse ta bouche sur adoucis

ma bouche;

l´amertume

de

la

dernière heure. Henri Heine.

Conhecia-a numa pitoresca cidade do sul. Era alta e alourada, um desses ideais e esguios onde as linhas triunfam em esplendores de beleza rara, lembrando o perfil níveo e franzino dessas virgens e balada, que passavam outrora numa fascinação eteral,

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através das estrofes plangentes dos lieder, entre sons melancólicos de harpas edênicas, tangidas por obscuros artistas idealizados, sob o velário nebuloso duma lua de lenda, debaixo das ameias dos castelos adormecidos à margem de rios e lagos, ou à beira das estradas silentes, enflorescidas, da média idade. O seu pescoço alvo, de uma pureza de alabastro, por onde desciam os longos cabelos esparsos em ondulações de ouro ardente, como uma esteira de astros, tinha a contornação pura, a veludez seráfica, a doçura açucenal e celeste do das virgens de Velasquez. Seus olhos azuis, grandes, magníficos, de uma candidez espiritual, imersos sempre numa umidês de langor e numa ternura inefável, tentavam com atração irresistível, venciam e algemavam as almas. Notava-se neles como que o desejo acariciador e sutil de um aconchego ou de um enlace. Sua existência, embalada pela harmonia e os brilhos de uma vida ideal, em que as esperanças e sonhos passavam e repassavam em faiscante e dourada parábola, como um rosário de estrelas, se expandia suntuosa, numa alta paragem de seleção e nobreza que não permitia quase a escalada das paixões humanas. Parecia viver de abstratas alegrias aladas numa imaterial transcendência, conduzindo luminosamente a sua aspiração e sonhares pelos vagos céus azulados, onde o seu espírito fantasioso e místico se fora amorosamente aninhar. Mas, por vezes, no seu olhar quente e transparente, flutuava uma langorosidade meridional de morena, que anseia e freme nas palpitações de uma paixão mundanal, e então, em sua face nevada e límpida de remota origem escandinava, acendia-se a carminação ardente dos frutos tropicais. Era inteligente e nervosa e tinha a vesânia artística dos poentes engalanados, em que a sua alma se inebriava numa saudade estranha do Infinito, onde o seu sonho constelara ilusões na explosão luminosa e sangrenta da agonia solar. Em sua imaginação nevrosada, de arrebatamentos súbitos e irradiações impersistentes, surgiam, às vezes, como desenhos caleidoscópicos, idealidades errantes, com intensidade de alucinações e coisas sem fundamento, ilógicas. A sua vida era como uma orquestra de violinos e órgãos, cheia, umas vezes, de surdinas aéreas, muito altas, arrebatadoras como hinos religiosos de catedrais saxônias,

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que enterram as flechas no céu; e outras de turbilhões convulsos, fantásticos, como coruscações de relâmpagos cortando o escuro molhado das noites invernosas. A primeira vez que a ouvi falar, senti a maviosidade saudosa de uma canção distante, no azul luminoso e fresco de uma tarde americana: a sua voz dulcíssima, como cordas tremulantes de cítaras vibrando sob as abóbadas de um claustro, ficou-me a cantar longamente nas células rútilas de meu espírito e nas paredes vazias da minha´alma. E quando, horas inteiras, fixava os seus olhos castos, de uma doçura e brilho de sacrário iluminado, vertendo angelicamente nos meus a sua luz de turquesa ideal, o meu triste coração de solitário, tão cheio de desilusões e saudades, calmava de repente o seu pulsar inquieto, para cair docemente na imobilidade de um êxtase ou de um sonho constelar. Por fim, uma vez, à bendita claridade nevosa de uma noite enluarada, atirei-me genuflexamente ante a sua aparição tentadora, numa adoração prosternada; e longamente, inigualavelmente, por semanas incontáveis, em que todas as delícias humanas se idealizaram como em um vasto ninho eteral, suspenso do céu no meio de uma clareira de astros, o meu ser arrebatado incessantemente se expandiu e rolou nas alucinações de um delírio divino e de um bem incomparável!... Um dia, porém, inquietante dia nebuloso de desespero e cuidados, empastado tenebrosamente no alto de carbonosas tintas tumultuárias, que um grande vento de inverno intumescia e agitava fazendo chorar, a espaços, em aguaceiros nostálgicos o triste azul enlutado na viuvez desoladora da luz, morta de repente o seio incinerador das lestadas – ela, a radiante criatura estelar, a Astarte alvinitente, a Diana boreal, a minha gloria, o meu amor, o meu Caminho de S. Tiago, começou a esmaiar pouco a pouco em sua irradiação sideral. Lentamente então a sua fina estrutura de mármore, animada pelo sangue nobilíssimo de uma antiga descendência fidalga, entrou a perder as suas linhas recurvas, de uma modelação sonhadora de estátua, caindo dia a dia numa progressiva consumpção nevoenta, de dolorida poesia funérea, que lembrava um perfil de valquíria, passeando o seu mal ideal entre grutas de pedraria, no fundo de águas lendárias. E este definhar contínuo, que lhe dava às formas uma diafaneidade sutil, tornando-a como uma dessas

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visões nebulosas que flutuavam outrora em legiões alvíssimas na imaginação evocativa dos místicos, à meia luz esfuminhada das celas e cárceres, fazia com que o seu talhe delicado adquirisse mais e mais a doçura sofredora e angélica, a contornação leve e vaga, a divinização inefável que exornavam de graça sagrada as monjas medievais. Os dias, as semanas e os meses passavam, com tintas de ouro ou de sombra, numa lentidão inquisitorial, estendendo-lhe sendais de saudades que afogavam aqui e ali as últimas florescências dos júbilos passados, dentro do seu coração já vencido na dilaceração angustiosa de antigas e santas imagens... Percebia claramente, iniludivelmente, que tudo ia em breve findar e que dentro em si alguma coisa – o espírito? A alma? – já vagamente se debatia, em ânsia, para o transe convulsivo do Derradeiro Suspiro. Antevia, pelo pensamento, quase sorrindo e com serena resignação, as paragens sombrias da Pátria Sepulcral... Mas nunca, um só momento, mesmo nas mais agudas e despedaçadoras crises, seus lábios desbotados e tristes deixavam passar de leve, como tão comumente acontece, um ai de blasfêmia ou queixume. Só apenas, um ou outro dia de mais carregada névoa e spleen, em que a terra e o Azul se despojavam da alada alegria dos brilhos no seio denso e revolto das invernias bravas, e pairava no ar gotejante um gemer plangentíssimo de pétalas e ninhos perdidos, a afetuosa criatura amada voltava para mim as esferas azuis dos seus olhos radiantes, e, apertando-me vivamente as mãos, que eu trazia sempre envolvendo docemente as suas, tomada de súbito de uma certa melancolia e saudade, me dizia lentamente na sua voz casta e velada: – Como é desesperador e terrível, meu amigo, este lento desmanchar de uma vida! E isto na gloriosa plenitude da mocidade e do amor! Se ao menos, quando os males nos tocassem, fosse subitamente e de uma vez, no esmagamento completo de todo o nosso ser, em instantes tão rápidos que não pudéssemos sequer ouvir, dentro em nós, o fúnebre prantear ofegante das quimeras e dos sonhos... Mas não! E um moroso sangrar inclemente, uma tortura sem nome, que parece infligida pelas mãos assassinas de um inquisidor, que possuísse nos seus nervos sinistros o segredo tenebroso dos suplícios inéditos... Ah! se pudesses imaginar o que sofro!...

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E a sua cabeça tão loura, de uma sedução imortal, tombava ansiosamente sobre o macio espaldar do divã de Smirna, lívida e sublime, cheia de dor e de sonho, como a de Jesus no Calvário... Uma tarde, em que maio floria nas planícies e vales e pelas montanhas verdes, ao cantar cristalino de fios d´água correndo em plíssés de prata sob o meigo gemer das ramagens, ela, como de costume, pediu-me carinhosamente que a levasse para o grande salão dos damascos e que lhe abrisse os amplos vitrais do ocidente, porque sentia, nesse instante, sangrar-lhe intensamente no espírito a nostalgia plangente dos seus queridos ocasos. Aí, junto aos grandes portais ogivais, longamente amparada em meus braços, alheada de tudo, inerte e como magnetizada, ficou saudosamente a olhar a extraordinária iluminação do poente, poente que eu jamais vira, e que me deixou, no seu esplendor incomparável, esta nevrose singular pelas cores que tanto flameja em minha alma. Era um desses recantos encantados de mar, que visionam profundamente, em irisações feéricas, a retina extasiada dos paisagistas. Uma sangüínea imensa começara a alastrar o horizonte e se espalhara sobre as águas em gigantescas brochadas rútilas, que inflamavam os longes neblinosos e vagos. Pinceladas de ouro riscavam, com grandes franjas luminosas, esta tela colossal abrindo-se, aqui e além, como uma velha clâmide gloriosa, em rasgões violentos de andrajos, por onde surgia serenamente um fundo leve e saudoso de diluída esmeralda. Veios brancos suavíssimos alternavam com toda esta bizarra fileteação de amarelo e sangue, que esmaiava para o ar, em gradações nacarinas de conchas. Em cima, todo o céu se vestira de uma tenuíssima floração de lilases, tremendo brandamente às badaladas plangentes do Angelus. Uma paz messiânica, que encantava a alma numa contemplatividade sem fim, estagnava-se religiosamente por toda a amplidão. E uma vaga espiritualidade de aventuras e viagens longínquas, sob os céus de outros países, pairava nostalgicamente, além, na linha fugidia do horizonte... Mas densos véus de nanquim entravam a rolar mortuariamente do alto, e tudo se envolveu em suas dobras sombrias que vestiam os corações em crepes negros de angústias. Ela então, numa súbita agonia, lívida e estertorosa, murmurou toda fria: – Ampara-me, leva-me daqui... Eu já não posso mais, eu morro...

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E, estendida sobre um amplo divã, não fez mais um movimento, no seu belo roupão de cetim, cujas pregas ondulosas rojavam agora no chão, esquecidas. Os longos cílios escuros, outrora palpitantes e vivos, ficaram para sempre cerrados, como as franjas de um sudário tristíssimo. O rosto, opalescente e esguio, cobrira-se de absoluta serenidade, numa etérea castidade de lírio. E as suas mãos afiladas e brancas, parecendo cinzeladas em blocos de marfim velho, fundamente evocavam à lembrança essas santas mãos de promessas, que se vêem alvejar nas procissões, levadas piedosamente por virgens descalças, em penitenciações fervorosas e místicas. Dilacerado e aflito, numa angústia tumultuosa em que a razão se me abismava, atirei-me para a rua, e, horas e horas, numa precipitação de perseguido, vaguei sem parar, iluminado dantescamente pela minha dor, sob o velário agourento da noite que negrejava no alto toda crivada de círios!... Rio – 1895.

Tísico Oscar Rosas Pelos bons dias de sol, anilados, claros, gloriosos e transparentes, ele deixava sempre o quarto, confortável aposento que sua mãe enchia de cuidados e de amor, e, trôpego, esgazeado e verde, lento como um caramujo lesmando a relva de um parque, encolhido e vegado em bodoque, com olhos cheios de fulgor e de saudade, uma menta azul ao pescoço, queimado a iodo, a barba crescida e um cigarro de palha à boca, ia para o jardim, acompanhando o criado que lhe levava o livro e a cadeira.

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De grande sombra larga de uma folhuda mangueira da chácara fidalga em Santa Teresa via o mar, facetado e espelhento, rendendo-se em alvas espumas filigranadas sobre arrecifes à tona, amargo absinto de suicida, pátria adorada do marujo virulento da Albion, que o recorta, alta noite, silencioso e cauto, manchando-o com a vela nevoenta de uma galera veloz que tem por noite a estrela polar, brumoso diamante das regiões do urso branco; os navios do porto, a contravento, ensombrando a água, que os refletia de casco para o ar, arfavam as velas, carunchosas e remendadas, em estendais de mastaréus; ele sorria, serenamente pelos seus gastos pulmões ulcerados, pouco afeitos a uma temperatura de ar livre, asfixiados nas nossas construções doentias, as puríssimas lufadas salitrosas do vento da barra, que agitava no alto os coqueiros, arvorando-lhes plumas de esmeralda em apoteose; viu, ali bem em frente, suspender ferro para ir por mar em fora, a seguir correntes rápidas do gulf-stream, uma linda escuna soltar panos, extraordinária manobra de agilidade e ginástica, de vigor e de força que nos honra a espécie; percebeu o ruído fino das cordas assando pelas corrediças na grande faina de içar velas, acompanhou, vendo-os muito de perto, quase distinguindo feições, os marinheiros pelas vagas, o piloto ao leme, gritando, forçando tudo para encher o velame que batia, e o capitão, um mexicano sardento, de cachimbo aos dentes, a observar a perícia da tripulação, o céu, impostado de pelúcias e algodão de nuvens e a terra que ia ficar, e, quando uma mais forte rajada bojou todo o pano do barco, ainda parado, e o impeliu, adernando-o bizarramente, um ligeiro frisson agitou-o – o sopro de vida elétrico a empurrá-lo a despertá-lo ainda e a dar-lhe uns desejos de ir também, bronzeado à luz do Equador e cheirando a pesca, fazer a festa de Netuno, entre aclamações de uma maruja ruiva e forte que nos embebeda a baforadas de aguardente e a exalações alcatroadas de peixe; levantou então os seus encovados olhos cheios de febre e delírio e olhou a terra, embandeirada de tons, com linhas gigantescas de montanhas azuis no horizonte, cheia de rumor, cortada em casarios formando a cidade, com as suas casas de todas as cores, tão colorida, com as suas ruas estreitas e somente banhadas de um lado pelo sol, com as suas verduras tenras, com as amplas e rasas planícies, gramados, grandes campos de indústria pastoril, de boiadas, de rebanhos e cabras cinzentas a nivelarem a relva pastando-a, com as catedrais de zimbórios ovais porcelana, confusamente sombreando o firmamento e com as elevadas chaminés de tijolos vermelhos, a lembrarem vulcões, que baforassem gases

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torvelinhante e espiralado. Tudo isso que ele via era a vida e ele sabia que ela estava para acabar, que não mais a cor, o aroma, a luz e o som o fariam vibrar, sentir, gritar intimamente, como um apunhalado. Ele teve então uma grande saudade da natureza; ali mesmo, em derredor, nas polpas das dálias e das rosas, zumbia voluptuosamente todo um enxame de pássaros e de insetos a cantar triunfantemente a ária do amor, a canção do ninho, o ouro frio e fecundo do pólen e a grandeza da célula que guarda o óvulo, a poetizar enfim a reprodução da espécie. As cigarras entonteciam-no; tal era a estridente cantaria que rebentava dos troncos e dos ramos; as encantadas flores dos flamboyants, que vinham, ladeira acima, em fila, desde baixo até sua casa, flores de carne palpitante, que enchem colmeias de mel e de perfume esquisito, lembravam-lhe, graciosa silhueta, o seu amor, uma dançarina trêfega e fresca que incendiava as platéias, levantando irritantemente a sua linda perna, que um saiote escarlate mais exaltava. Essa entontecedora papoula envenenou-o; a princípio todo um amor platônico ponteado de bouquets de cravos e camélias enredou-os depois veio o beijo, o primeiro beijo dos amantes, fatal e inolvidável, que lhe levou a saúde, a força, o sangue e a vitalidade para aquela loba, que o estrangulava por noites consecutivas, nodoando-lhe a boca com chupões de tigre e afogando-o em louras goladas de champagne frappé, tomado com alarido pelas alcovas dos hotéis de crápula de bebedeira. Como ele achava a vida tão bonita! Levantou-se, e, a tossir, chegou até a grade, agarrando-a com as suas mãos magras, cheias de tecidos salientes e cor de cera de igreja. Parecia-lhe que do azul, como uma fina sonoridade de cristal, raios do sol através caíam-lhe – harmoniosa chuva de sons de harpas celestes – as melodias do bailado, que ela, a dançarina, executava outrora no Lirico e reproduzia no ménage para encantá-lo para recrear o seu lindo amor. Um coleiro, cantando perto, despertou-o e ele sorriu, a espetar, num sorriso ósseo de caveira, as maxilas na face. Foi sentar-se. A tosse, impiedosa e seca,

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despejava-lhe, aos poucos, os pulmões, que a tuberculose fazia cuspir em escarros de sangue. A mãe chamou-o – que o sol ia descendo e que não apanhasse muito vento, disse-lhe que se recolhesse e que mesmo na hora do remédio. Ele obedeceu, e, lento, grave, ruas floridas do jardim através, entrou em casa, levando no sangue, que latejava, uma alta tempestade de febre que lhe carbunculava os olhos.

II

Ao entardecer ele queimava, delirando estertoricamente, como que vendo dançar, ouvindo música, batendo palmas, aplaudindo alguém. Espalhou-se logo em casa que amanhecia, o médico e dissera ao ver-lhe equimoses nas unhas e outros vários sintomas da morte. Tinham chegado os parentes e amigos da família e dentro daquela casa a morte provocava um alarma sincero de prantos e lamentos. Junto ao leito do tísico, sua velha mãe, afetando uma serenidade heroína de ânimo, acariciando-lhe a testa, confiando-lhe os cabelos, revoltamente emaranhados. Ele, inteiriçado no leito, coberto por um lençol, jazia em estado de coma e a sua magreza esquelética dava-lhe grandes semelhanças com um Cristo arrebatado à cruz. De vez em quando tossia e expelia esverdeados catarros nauseabundos com os íntimos fragmentos dos seus pulmões, que a lesão espedaçava. Davam-lhe, cordiais morfina para acalmar a grande canseira que a tosse lhe deixava e para que ele repousasse; entretanto, o desgraçado enfermo, com as descarnadas mãos segurando o peito, gemia, acusando uma dor crônica no tórax e nas costas, como se tivesse uma espada varando-o mortalmente de lado a lado.

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A morfina não conseguia adormecê-lo e o seu delírio aumentava, rasgando-lhe, muitas vezes, na cova esburacada da boca, uns sorrisos dúbios, dirigidos a alguém que não estava ali, mas que ele via rodopiando e bicos agudos de sapatinhos de cancã. Entrou a querer levantar-se, sentando-se continuamente no leito, para logo cair, abatido pela fraqueza e, gesticulando, em altas vozes, pletórico, ele descrevia danças, ritonelos de valsas e bailados. Na vizinhança havia festa numa casa rica e uma orquestra tocava. A cada clarinada, a cada silvo de pistom, a cada nota de ofcleid ou de trompa, que lhe chegava através da distância, o doente parecia arrepiar-se alucinadamente, e arregalava os olhos para fitar alguma coisa, que, num fantástico canário de época lírica, em deslumbramentos de cenografia, pasmava uma multidão, que só era atingível à sua ótica. Vestindo gases e filós prateados, dourados de lantejoulas, polvilhado à poeirada de ouro, que caía de cima, um fulvo bando alegre de aéreas mulheres cor de rosa, mas nos braços e no colo, nas pernas e nas coxas, ao ritmo estrelejado de compassos de música harmoniosa e doce, surgia-lhe, descrevendo pela cena, toda iluminada, passos difíceis de uma tarantela divina. Terníssimos arrastados violinos, de uma orquestra colossal, alemã, vibravam, enfeixando o ar de sonoridade e harmonia e, à proporção que os arcos roçavam nas cordas, que as fazia sibilar, rugir, gemer histericamente, as dançarinas, como bandos festivais de andorinhas, iam e vinham, para a frente e para trás, cancaneando diabolicamente. Os trombones e os rebecões enchiam a sala de tempestades melodiosas, e ele, então distinguia bem, no que lhe boiava continuamente na pupila e que mudava de cor, ou matizava-se em muitas, quando lá de dentro, por maquinismos de palco, lhe ativaram golpes de luz elétrica, verde, branca, amarela, azul, roxa e encarnada. Continuava um solo de violinos na orquestra, habilmente domesticada à batuta de um saxônico de quem mal o tísico via as feições; agora extasiavam-no aquelas originalidades musicais, trêmulas, nervosas, quase com afetações, como a voz de uma menina, e, de repente, ele também pôs-se a cantar a música que ouvia – canto trôpego pela gangrena que lhe estrangulava a voz, tristíssima canção do tísico, ave-maria, ouvida silenciosamente, através de estepes, pelo campônio eslavo e católico – e que nada tinha

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de musical, porque era a ronqueira da morte que chegava, atropelando-lhe os sons na garganta e dando à agonia um uivo sinistro. Parou de cantar, e, de mão ao ouvido, a abrir ansiadamente a boca dilatada pela protopinéia, escutava ainda esse bailado original e estrangulante, que se diluía no seu ouvido à proporção que o sangue lhe gelava, música que se vaporizava nele como uma serenata em barco que se afasta, alta noite, com luar e estrelas, silencioso, por um longo rio sonolento e um ziguezague; abriu, porém, mais os braços, que se agitavam como caudas de serpentes, mais atento buscou ouvir as clarinadas e caiu, enrijado e podre, sobre as almofadas do leito muito alvo, quando um padre, pálio aberto e olhos semicerrados, como um gato voluptuoso, chegava, fazendo tilintar, cristalina e metálica, pelo corredor, uma campainha do Santíssimo Sacramento.

Correio do Povo, quarta-feira, 16 de abril de 1890. Este conto foi um dos vencedores do concurso realizado pelo jornal carioca, na categoria “Menção Honrosa”.

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Idílio Roxo Gonzaga Duque

Sara conseguiu um dia feliz. Os cansaços angustiosos, com que a tosse irritante a mortificara, serenaram um pouco nesta clara manhã d´equinócio. Terminado o jantar, às cinco, a sua voz, de citara noturnizando, melodiou aos meus ouvidos: – Vamos namorar a tarde?... Ela está linda! Não lhe retorqui. De um salto apanhei a casquette, e pronto! Partamos, Sara. Eila desceu, como sempre, acompanhada, respeitosamente, da velha, da ereta e grave D. Maria, que nós, nas parlendas da serra, para afetar vilegiatura nobre de touristes da nata, da upper cream, carismamos por conta propria, inglesando seu nome n´aspereza acre de Mary. Caracterizávamos, por esta forma, o seu tipo esquelético de loira quinquagenária, penteada de bandos românticos, e dávamo-nos, pretensiosamente, ares galantes d´europeísmo n´agrestidade daquelas alturas verdes. Demais, para o forçado coquetismo de Sara, era isso uma nota chic um traço elegante de viver superior, porque essa pobre rapariga pálida, de olhos veludosos d´uvas negras – turgindo da volúpia morna de um morno quebranto – a cabeleira encaracolada, que lhe esculpia a cabeça com uma cariciosa expressão de criança romantica, possuía o elevado requinte da futilidade numa irradiação moderna e histérica de formas. O resto de vida que se lhe esvaziava, noite a noite, nos esburgos da gosma pulmonar, dir-se-ia concentrar-se nas preocupações elegantes da sua pessoa, cuja plástica delgada d´estátua alegórica movia-se com a coleante flexibilidade das serpentes feridas. Quando ela aparecia ao sol das dez, na sala de hotel, agitando rendas sobre rendas, numa feliz ilusão de se fazer menos magra, e mais polibétala que uma rosa branca, a encher o ambiente com trescalos fidalgos de crab-apple, não havia pupila que

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não cintilasse de desejos acesa, nem percepção que se enganasse com a saúde artificial daquela criatura, esvelta e solerte, que siflara, angustiosa, nos acessos da tosse, durante o silêncio pesado das noites. Foi, também, por um capricho d´excepcional, procurando cercar-se de todos os insignificantes detalhes do imprevisto e do exquis, para fosforear o rastro da sua personalidade, que ela, um mês depois de nos conhecermos na diária da mesma locanda, carregou os sobrolhos, aprumando, nervosa, a cabeça, porque eu tivera a criminosa irreverência de a chamar – Mademoiselle – após um scherzo de Beethoven dedilhado, ao acaso, no gasto teclado do piano frouxo, e quando a sua pequenina orelha transparente se inclinara ao pieguismo dúbio do flirt. – Oh! exijo que me chame. Sara Simplesmente Sara. Desd´esse momento, mesmo diante da gravidade ossuda da respeitável Mary, jamais meus lábios titubearam postiçarias de formalidades. Sara passou a ser a minha meiga e íntima camaradagem, insexualizada como as Visões, apenas lembrando um vago de mulher pelo aroma de suas cambraias rendilhadas e pela insídia amolentadora de seus olhos, luminosamente negros. – Para onde seguiremos, Sara? – perguntei. Ela não respondeu. Tomou-me do braço e descemos para os lados tranqüilos do Sul. Março extinguia-se numa viuvez serena de quaresmas florescentes e vesperais crepúsculos agoniados de violetas machucadas. À margem do caminho, na ramaria alta das velhas árvores, por onde cigarras, ao mormaço equatorial das sestas, sanfoneavam em pós prelúdios de cicios longos, nevavam pulverizações suaves de ametistas trituradas, como se uma triste flor invisível abandonasse, no desalento dos repúdios, o pólen ressequido e inútil. E esse brando colorido de melancolias vivas derramava-se do céu pela extensão queda dos vales, alastrando-se no círculo enorme de toda a paisagem, distendendo os planos pelo esbatimento das distâncias, envolvendo a longitude num afago dormente de lágrimas ainda não enxutas, e lilaseando a faixa do horizonte,

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lá-baixo, numa tenuidade de zainfe sagrado, aberto sobre a remotíssima paragem dos prometimentos fugitivos. Íamos descendo... Sara descansou mais sobre o meu braço a leveza do seu busto. Muda, pisando serena e certa, pupilas absortas e brumosas das sugestões sentimentais deste vagaroso crepúsculo d´Endoenças, suas pequenas narinas de nervosa resfolegavam; havia no seu respiro o rítmico siflo, quase imperceptível, do soprar dum fole. Pelo langor do seu corpo percebi que o recolhimento da paisagem a envolvia, possuindo-a, fazendo-a penetrar o seu mistério, alentando-a pel´acridade aromática do seu bafo... E silêncio, extensões, hálitos mornos de folhas, emanações da terra, embriagavam-na, excitavam a sua imaginativa, fazendo-a construir, mentalmente, com a nostalgia da hora, o romance de tristezas que as tuberculosas soem compor, tecidos de ilusões e lembranças vagas, como uma música que espira sob a dormência de uma volúpia. Mary, agoniada pela distância, deixara-se ficar numas lajes da escarpa. Nós, porém, continuamos a descer, de manso, sem palavras. De repente, ela aspirou forte. – Sente?... É o aroma dos lírios. A estrada resvalava em curva, ao sopé da macega baixa da chapada. Estávamos na base do pendor, onde denegria a legendária Ponte dos Suspiros, cujos barrotes repercutiam o rumorejo fresco do córrego, refrangendo-se nos pedregulhos soltos da socava. Paramos. Sara declarou que sentia fadiga, e queria penetrar-se da solidão que amodorrava o tom viúvo da tarde tristíssima. Então, amparada pelo rebordo da ponte, ´inda braço sobre braço, aí permanecemos sem uma palavra que rompesse o silêncio de um torno, olhos postos na planície violácea, estendida para além, rasa e ampla, ‘té o aglomero tufoso dos matos, já roxeando no fusco das trevas. E nesta quietitude espasmódica de natureza adormecida, pressentia-se que de asas espalmas, plasplaceando ondulantes e esgueiradas, passava

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teimosa, persistente repassava, a Saudade longa das deserções eternas. Logo, pelos ramalhos pára-solados, pelo emaranhado do mato, no rastejamento das ervas, estremecia o quer que fosse, um desofégo de peito cansado, de que o aroma branco dos brancos lírios era o hálito virgem, evolando-se num beijo demorado e intenso, de partida... Neste momento, Sara falou-me baixo, queixosa e tímida: – Sabe?... levo um grande pesar da vida... E depois de uma pausa atalhando-me a pergunta: – É o de nunca ter experimentado a sensação de um beijo... de amor. Oh! nunca os lábios de um homem tocaram-me nas faces! Quando a fixei, ela tinha inclinado a cabeça aflita, seu olhar negro e veludoso boiava no alvejamento de Desejos angustiosos, e eram tão súplices os seus lábios! era tão pedinte a sua boca! que eu tive o impulso de lhe dar o consolo desta carícia. Mas, os bizarrismos do seu espírito d´enferma crestaram bem cedo os rebentos do meu amor; seria impossível revivescê-los agora só pelo desvario concupiscente de um gozo efêmero e favorecido. Ela, compreendendo meu pensamento, gemeu ofegante: – Beija-me... Sim? Mudamente, obedeci. Era a vontade de uma condenada, e eu, por mais que me repugnasse a satisfação desse lascivo desejo, que a impudicícia de uma alucinação trazia à boca de uma criança, não tinha energias para a cruel negativa. Ao curvar-me para ela, procurando sua fronte, encontrei a febre de seus lábios sôfregos à espera dos meus. E unimo-los docemente, demoradamente, numa junção noival, premindo as nossas mucosas na umedecência dos mesmos anseios; eu – perdida razão, animalizado pelo contacto ofertante da imácula carne febril; ela – dominada pelo seu gozo, radiando nas faces, esfuziando no olhar, aceso o hálito fremente, que lhe punha no respiro compassado a delonga sugada dos prazeres primeiros...

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Por fim, vencida, cerraram-se-lhe as pálpebras, exaustas; uma palidez de luar morrente alastrou-se por suas faces, marmorizando-lhe a linda cabeça de bambina, e um acesso de tosse rouca sacudiu-lhe a escoriada caverna do busto. A noite despregava-se lenta, lentíssima, de opérculo remoto, franzindo a quietitude roxa do espaço e, no isolamento” stagnado, o balido fanho duma ovelha tardia cavou o silêncio, sonorizando nas quebradas o eco reminiscente do Angelus. Sara, acometida por outro acesso de tosse, levou rapidamente o lenço à boca, mas, inútil a presteza do gesto! – de seus lábios escapou-se, de* jato, uma golfada de sangue, que estalou, surda; no chão, e ficou-se coagulhenta, estriada em lágrimas solidificadas, sulferina e regulgente, na roxidão do dia extinto. Quando nos pusemos a caminho, ora lentamente, medindo o passo a fugir do esforço, a natureza aerizava-se nesta melancolia quaresmal de Março, toda ela roxa, mas, agora, de um roxo turvo, tingindo de saudades tumulares a tristeza imensa da Terra. Só, infiltrante e dulçoroso, o aroma virgem dos brancos lírios vivia no ar, como se o óleo perfumado e purificador de uma âmbula houvesse escorrido sobre nós para a extrema-unção do nosso noivado sem mácula, e – assim, confundo-se com a Natureza, lembrava d´algum modo, n´agonia silenciosa da tarde, o hálito de um resignado sorriso à ilusão inefável de um gozo que nunca mais voltaria... nunca mais!... nunca mais!...

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Palestra A Horas Mortas Medeiros e Albuquerque Ao Dr Bricio Filho

Estavamos no quarto cinco rapazes attentos e silenciosos. O que se deitára, no sofá, os olhos no tecto, tirando beatamente fumacinhas curtas e pardacentas do charuto coroado de um zimborio de cinza alvissima, era o Lucio, um gorducho, estudante de medicina. De vez em quando, tinha alguma pilheria para cortar a narração dos outros. No quarto, onde as palavras, ora escorregavam, monotonas, ora explodiam sonoras, dos labios dos narradores, havia por momentos interrupções de gargalhadas, applaudindo as graçolas do Lucio. Verdade seja que o patife as tinha excellentes! O Heitor, um da Polytechnica, que, montado em uma cadeira austriaca, se divertia a fazel-a balouçar sobre os dous pés posteriores, èra sempre dos primeiros a abrir em formidaveis explosões de riso, logo seguidas pelas do Andrade e do Carlos, dous outros de medicina. Eram onze horas da noite. Desde as nove alli estavamos. Tinhamos projectado um passeio de barco pela bahia de Botafogo, em grande troça, mas o luar — um luar esplendido que nos entrava nos calculos — desfizera-se em enorme aguaceiro. Assegurava o Andrade que as onze mil virgens deviam estar tomando banho. E o cavaignac negro — mais do que negro, luctuoso e tragico — corroborava de tal fórma a

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asserção que a pilheria soava com um clangor sybillino de dogma. Dir-se-ia que um appendice d'aquelles tinha alguma cousa de pontificio, de infallivel. Como a chuva ameaçasse reeditar o diluvio, o Lucio propoz que, abrigados áquella arca, esperassemos o fim dos quarenta dias e das quarenta noites, ouvindo e contando historias. E de passagem foi aproveitando a occasião para abandalhar umas allusões á pomba, que nos devia trazer o ramo da oliveira... Muito riso, muita galhofa. E elle iniciou a série, contando uma boa anecdota, que affirmou ter lido em Armand Sylvestre. Pura mentira. Era fertil o maroto naquelle genero grivois. Ninguem como elle para sublinhar qualquer malicia. Ia do conto apimentado á narração lasciva, dando vigor e colorido ás minimas cousas. Teve um exito enorme. E, como houvesse pago o seu tributo, estirou-se de papo para cima, emquanto se discutia a quem tocava fallar. Nisto, o Heitor annunciou que ia lêr uma poesia. Houve protestos... — É um crime, revestido de circumstancias aggravantes: logar ermo, premeditação, alta noite... — Que era preferível a morphina, regougou por cima do cavaignac o Andrade... — Havia casos de princezas, que se ficaram a dormir annos sem conta por causa disso; a Belle au bois dormant adormecêra ouvindo um soneto... Mas o Heitor humilhou-se. Deixou passar a fuzilaria de epigrammas, e disse que aquillo devia ter a gravidade de um sacramento. Peccára; queria confessar-se. Tinha preparado cinco quadras, com um trabalhão de mil diabos, e pretendia impingil-as como improviso.

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Mas para isto era preciso que tivesse havido luar, pois que a elle se alludia nas mencionadas quadras. Conformando-se, porém, á fatalidade, já agora queria, por castigo de «sua culpa, sua culpa, sua maxima culpa» abeirar-se do tribunal da penitencia... E afinal leu as quadras. Solemne, o cavaignac do Andrade deixou cahir-lhe em cima a absolvição, coando as palavras em vibrações de De Profundis. Aproveitando a occasião, o Caldas annunciou que tinha uma historia curiosa e verdadeira, a do Lucas: um rapaz que todos elles tinham conhecido. Vozes pediram o Caldas: «Á scena o Caldas!» Dous minutos de vozeria. O Lucio perguntou, interessado, si a historia era alegre e salgadinha... O Caldas, um sujeito alto e magro, declarou solemnemente que não. Era um acontecimento triste e verdadeiro, embora inverosimil. — Quanto ao personagem, vocês o conheceram. — O Lucas, aquelle que morreu o anno passado, um da turma de 87? — Exactamente. A narração começou. O Caldas tinha pretenções a litterato. Isto fazia com que alambicasse demais as phrases, imprimindo-lhes um estylo de máo gosto, avêsso á naturalidade. Assegurava, porém, que era aquelle o seu modo de exprimir-se. E foi contando quem era o Lucas: um romantico, um sonhador de ideaes. Viera estudar medicina forçado pelo pae, que o não deixou ir para S. Paulo, temendo que o rapaz se perdesse na vida de bohemia, acervejada e livre. Os cinco primeiros annos na Faculdade nada offereciam de interessante: estudante regular, comportamento regular...» — Eu sei, atalhou o Lucio; como o passaporte com que vim de Lisboa e em que todos os signaes foram preenchidos com esse monotono adjectivo, chegando até a dizer: côr dos olhos: — regular! O Caldas proseguiu. No sexto anno contou como o Lucas se apaixonára pela Virginia Barros, filha do Barão de Souza Barros. E aos poucos a voz do narrador, que começára rouca, foi ganhando emphase e sonoridade:

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«... Era alta e magra, de uma magreza aristocratica. Piso de garça real: flexivel e garboso. Meneios de castellã vaporosa, commandando pelos gestos a admiração e o respeito á sua extranha belleza — belleza, em que, si não bastasse o perfil correcto e amadonado, a bocca pequenina e rubra, seria de sobra o olhar. Conheceu-a o Lucas em um baile, vendo-a dançar freneticamente polkas e quadrilhas, quadrilhas e valsas — e desde o primeiro passo até o rodopio ultimo do galope final — sem que um riso pudesse desannuviar-lhe a densa camada de tristeza, que visivelmente a assoberbava. "Fez-lhe aquillo uma impressão extrema e, encòntrando-a de novo, dias depois, em uma recita dos Puritanos, teve-a nas objectivas do binoculo durante toda noite. Era tão clara e tão sincera a manifestação do seu exaltado sentimento que sob a cutis finissima parecia sentir-se a vibração doentia dos nervos excitados pela musica. Os olhos chispavam e, sem que tivessem uma só lagrima, irradiavam tão extranhamente que cada raio d`élles parecia impellir legiões de soluços e de preces, clamando alto, alto chorando... A batuta do regente dá orchestra, como um bastão electrico, a cuja passagem se levantam em revoada pequenas cousas attrahidas, tangia-lhe da alma vôos loucos de maguas e tristezas, de queixas de uma dôr tão profunda, que se diria porejar lagrimas no deslumbramento da sala. Nem voz de contralto e tenores, nem harmonias quérulas de violoncellos tinham a intensidade d'aquelle olhar, mixto talvez — por uma extravagancia indefinivel — de luz, de som e de perfume. Mas por todo o theatro, pompeando sedas e brilhantes, maciez de velludos e de collos formosos e nús, sopitando um momento sob os attractivos da musica e da vaidade as demais paixões humanas, — por todo o theatro, só houve no seu caminho um coração capaz de entendel-o: o do Lucas. Uma semana depois, elle encontrava-a novamente em um baile e nunca declaração de amor tão extranha e tão ardente soou entre o frou-frou das caudas roçagantes das valsistas... A sala da festa voltava-se para a bahia de Botafogo. O mar plangia, lambendo, no desanimo da vasante, as pedras limosas do sopé do paredão. Longe — como luzeiro de vagalumes — batiam palpebras trementes os lampeões da cidade. O céo, varrêra-o

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alguem de nuvens. Havia, como a poeira esquecida por um creado descuidoso, o esbranquiçado da via-lactea, emquanto ao derredor um anjo prodigo atirára inconsideramente punhados de astros, chispando fagulhas... Elle e ella, duas almas de romanticos, pareciam haurir no ambiente uma pulverisação de sonhos e devaneios. Estavam debruçados á varanda e expandiam-se longamente em confissões. O Lucas sahiu dalli cambalaente, não sabia bem si de tristeza, si de ventura. De um desses sentimentos deliciosamente martyrisantes, que são soffrimento e são goso, que são goso e são soffrimento. Conquistára uma alma de eleição: alma branca, alma de arminho. Mas arminho ensopado em pranto. Tinha, emfim, comprehendido a tristeza que minava aquella existencia de donzella. Sabia-se irremissivelmente condemnada: era uma tuberculosa. E, a pé, ao longo do caes, elle foi seguindo... Uma brisa muito fresca vinha do mar. A areia alvejava em larga fita. As ondas não tinham força. A besta marinha resfolegava de manso, como exhausta ao cabo de um deliquio de amor. Chegavam de longe os sons dolentes de um canto: de tão longe que ninguem saberia si eram ouvidos, si eram apenas recordados... A moça lhe havia contado que o seu medico declarára ao pae que ella teria sómente um ou dous annos de vida. O velho barão não queria acreditar. Talvez com um tratamento energico, dizia elle, se conseguisse alguma cousa. — Qual, meu amigo? replicava o medico. A avó morreu com vinte e nove annos, a mãe com vinte e cinco: ella está fadada a morrer muito moça. Você fez-me jurar que lhe diria a verdade inteira, sem attenuações nem enganos: esta é a verdade. — Mas... — Não ha mas... O microbio da tuberculose é implacavel... Tudo tem sido em vão. Tentativas sobre tentativas, todas se têm frustrado. Sua filha já quasi não tem o

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pulmão esquerdo. Mesmo do direito resta-lho tambem muito pouco... O microbio é implacavel... E, repetindo aquelle estribilho de fatalidade, o velho facultativo sahiu lentamente. O ouvido da moça collado á fechadura de um quarto vizinho para não perder-lhe uma só palavra, percebeu o rumor dos passos afastando-se... O pae, depois que o medico saiu, voltou á sala, ajoelhou-se no tapete e debruçado sobre o sofá, segurando com as velhas mãos tremulas a cabeça branca, ficou chorando, chorando como uma criança... De então em deante uma tristeza dolorosa e pungitiva encheu-lhe toda a alma, vestindo de crepe as explosões mais brilhantes das alegrias que a cercavam. E, como todos se apercebessem do seu desanimo e lh'o augmentassem, perguntando sempre por sua saúde, ella, na obsessão da idéa que a dominava, suppoz que os olhos extranhos viam claramente o seu estado. Parecia que dos seus gestos, da sua voz, dos seus olhares sahia um rumor de canto-chão, um cheiro de cemiterio, uma visão de espectros... Si a olhavam muito, era como si dissessem, gritando por toda a parte, no rasto de seus passos: «Esta é a que vae morrer!» E que volupia, que appetite excitado por cada dia de espera, o dos vermes que a tinham de devorar! Resolveu luctar. Aquillo que lhe parecia tão claramente escripto no seu rosto jurou que ninguem o veria. E dansou e folgou loucamente, accelerando a hora fatal, mas encobrindo o seu tormento, o seu naufrágio irremissivel. Queria ser como um navio a afundar-se, sem que na tolda a marinhagem, rindo e festejando, désse por isso. Como César, ao morrer apunhalado, cobrira o rosto com o manto, occultando por um instincto de grandeza a miseria dos esgares de dôr — ella queria cahir enrolada em estendaes de flores, em musicas de galanteios, em perfumes capitosos de salas de bailes... Isto tudo, desde a conversa do medico, fielmente conservada, até os seus mais intimos pensamentos, ella dissera ao Lucas. E o Lucas — sonhador, em cuja alma o

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fermento do mysticismo catholicodormia, não de todo extincto, sentia uma grandeza extrema nesse amor quasi ethereo, quasi irreal, com um toque religioso. Amaram-se, exaltando mutuamente tudo o que havia de pouco commum em semelhante affeição. O velho medico da casa, por descargo de consciência, continuava a receitar fazendo a moça ingerir umas drogas nauseantes. Julgando- a ignorante, assegurava de cada vez que ella ia melhor, muito melhor... Ella sorria. Triste, como um dobre de finados, soava-lhe aos ouvidos a phrase surprehendida : «O micróbio da tuberculose é implacável». O micróbio! Ninguém sabia que desejo intenso tinha ella de o vêr! Era aquelle o seu adversario, era aquelle o sapador terrivel do seu organismo — e ella não o conheceria?! Figurava-se às vezes, quando em silencio, na solidão do seu quarto, vêr a legião dos animalculos, pullulando, formigando, rastejando sobre a massa rubra dos pulmões. E por um grotesto sinistro de imaginação, na sua ignorância, o que a idéa lhe lembrava era um queijo coberto de bichos. O pulmão seria como um queijo vermelho e sangrento, roido pelos microbios... Da primeira hemoptisis colheu com cuidado o sangue, e apurou debalde a vista, julgando infantilmente que poderia distinguir qualquer cousa. A decepção augmentou o desejo. Uma tarde, entre a critica de uma festa e uma anecdota graciosa, expoz ao Lucas a sua vontade. Sorrindo, com o sorriso desolador de uma ironia de martyr resignada, contou-lhe de outra vez, um pensamento phantastico que lhe acudira: — Ella parecia uma mina. Por uma das galerias — a dos pulmões — mineiros activissimos trabalhavam incessantemente. Breve estaria morta. Novas turmas de operarios, os vermes, se abateriam sobre o seu corpo. Que alegria — como nas minas de carvão ou gesso — quando as duas turmas de mineiros se encontrassem, uma seguindo de dentro para fóra, outra de fóra para dentro. Alleluia! Alleluia! A sua

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carcassa pôdre vibraria com a festa dos vermes tripudiando sobre as carnes decompostas! O Lucas sahiu atterrado. Que imaginação sinistra a daquella pobre victima! Nada lhe prometteu. Illudiu-lhe as instâncias assegurando que era muito difficil, que era preciso um microscopio muito aperfeiçoado, impossível para elle de obter. Além de tudo, tornava-se necessario um preparo chimico especial para colorir os microbios e elle não o sabia fazer. Mil outras difficuldades... A moça deixava passar algum tempo e voltava a insistir. O Lucas teve de prometter. Não bastava, porém, que fosse qualquer sangue. Ella queria do seu. Queria vêr, não outros, mas os seus próprios inimigos. Lucas conformou-se. Levou o sangue, preparou a cultura especial, coloriu á violeta e ficou de trazel-a na quinta-feira. Precisamente era a vespera da collação do seu gráo de medico. O microscópio veiu sob um pretexto qualquer. O barão devia ignorar o capricho da filha. Quando o Lucas entrou, achou-a de cama, Tinha tido uma grande hemoptisis, mas occultou-lhe. Era uma pontinha de febre — assegurava a sorrir. As maçãs do rosto, queimando, protestavam contra aquella alegria. O Lucas, ao apertar-lhe a mão, sentiu que abrasava. O olhar tinha uma vivacidade phantastica e allucinada. Fez que chamassem o velho medico, apezar dos protestos della, sempre risonha. Isso não impedia que elle mostrasse a preparação, dizia a moça. Foi necessário ceder. Armou o instrumento, focalisou com cuidado, voltando o espelhinho para a janella aberta e mandou-lhe olhar. O microscopio estava sobre uma cadeira, á direita da cama. Mesmo deitada, debruçando-se um pouco, ella collou a vista á ocular. O quê! era aquillo!? Uns bastõesinhos roxos, alguns mesmo figurando antes uma successão de pontos do que um todo continuo, — alli mesmo, com um augmento de mil

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e quinhentos diametros, quasi imperceptíveis! Era aquillo?! Admirava-se que elle o affirmasse: «os microbios da tuberculose são assim» Parecia-lhe uma humilhação morrer vencida por aquelles infinitesimaes! Não poude olhar muito tempo. A febre crescia. Chegou a quarenta, a quarenta e um, a quasi quarenta e dous graus... O medico veiu. Chamou o Lucas á parte e disse-lhe com muitos rodeios que a noiva morreria infallivelmente, nessa noite, ou na manhã seguinte... Elle não teve uma só lagrima, não articulou um som: a angustia tolhia-lhe a garganta como um guante de ferro. Ficou á cabeceira do leito com uma obstinação feroz e sombria. A moça delirava. Via-se noiva. Ia entrar na egreja. Quando dava os primeiros passos, o órgão immenso, com um trovão de apocalypse, fazia-a parar aterrorisada. A musica assombrosa cantava: «Esta é a que vae morrer! Esta é a que vae morrer!» Apezar de tudo, um padre celebrava a missa. Quando elle ergueu a hostia, — a hostia, illuminada vivamente, reproduzia a objectiva do microscopio, cheia de traços roxos: os microbios da tuberculose. As linhas do missal eram cordões negros de vermes. Cada vez mais forte, o órgão clamava ensurdecedoramente: «Esta é a que vae morrer» — Então, como uma surdina, como a visão dos que do inferno enxergam o céo aberto, mas

irreparavelmente

perdido,

surgiam-lhe

reminiscências

de

festas:

valsas

languescendo ao compasso da musica em espiraes tortuosas... vôo estonteante de perfumes... hymnos de ventura, hymnos de amor... hossanas de gloria e mocidade e vida... galanteios ouvidos outr'ora: «Como V Ex. está formosa!... Posso merecer á sua distincção de rainha a honra desta valsa?» ... E as flôres pareciam despeitadas da sua belleza!... Bailes, festas, pompas de theatro, sedas e velludos, rubis diamantes... Mas agora, dominando tudo, os tubos do orgão mugiam o estribilho formidavel: «Esta é a que vae morrer! Esta é a que vae morrer!» De subito uma onda de sangue espumou-lhe aos lábios, como á bocca ferida de um cavallo, apoz a carreira. O sangue jorrou, purpuro e claro, cantando a symphonia alegre do vermelho. A febre cedeu um pouco. Ella pareceu descançar.

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Passára a noite. Vieram procurar o Lucas para ir tomar o gráo. A mãe e a irmã, que haviam chegado de Minas expressamente para a cerimonia, appareceram-lhe já vestidas de sedas caras, tendo á porta a esperal-as uma berlinda puxada a cavallos brancos. Elle, completamente doido, mandou-as embora com uma brutalidade de allucinado. E, em um instante, na vertigem de um kaleidoscopio electrico, todos os seus longos estudos de seis annos, os melhores da mocidade, apparèceram-lhe de uma esterilidade desoladora. A Sciencia? A Sciencia que se orgulha de marcar o volume de Jupiter, de determinar a orbita de um cometa que voltará daqui a centenas de annos — a Sciencia como se lhe representou miserável! A torre dos volumes cresce todos os dias, mais alta que as pyramides, mais alta que a Babel dos sonhos antigos... São livros doutos, cheios de observações... Quando um volume novo se accrescenta á columna, parece dizer: «Aqui o verme não chegará!» Mas, a desafial-o, o Infínitamente Pequeno trepa-se lá em cima á cantoneira de marroquim, ao dourado das paginas. E o seu rasto pegajoso e visguento é como a baba de uma bocca que ri muito, que ri ás escancaras... Ri do esforço humano, ri da Sciencia, ri da Vida... — E pensou que, amanhã talvez, fosse arrancar á morte um ser, inutil ou perigoso, um bruto qualquer, um selvagem meio escondido sob a mascara de homem civilisado, emquanto ella, a sua pobre noiva, tão boa e tão formosa, apodreceria na frieza do sepulchro, dando ao pasto das larvas tacos da sua carne, hoje rosea, amanhã verde-negra... Gritou de novo á mãe e á irmã que não ia, que não se doutorava em nada... O medico receitára injecções de ether. Era a hora marcada. Fez com que as duas mulheres saissem, fechou a porta violentamente e veiu fazer a injecção com uma delicadeza infinita. Apenas as mãos tremiam-lhe um pouco. Nisto, uma nova onda de sangue ressumou aos lábios da moça. Elle — como a primeira cousa que encontrou á mão — tomou do copo de cristal posto á cabeceira e aparou ahi a hemoptisis. Era um liquido puro, de uma côr sonora e triumphal, um vermelho cantante, de saúde e mocidade. Com o copo em punho, cheio de sangue, teve de subito uma idéa: — bebeu-o! Morreria da mesma morte que ella, roído dos mesmos vermes...

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O velho barão com os olhos estupidamente fitos em tudo aquillo, anniquilado pela dôr, teve um salto vigoroso, apezar dos jarretes entorpecidos pela edade e pelas molestias. Era tarde. Restava o copo, sujo de um desses vinhos cheios de borra, toldados e máos, que mancham o vidro... Ao bigode louro do Lucas coalhos pequenos de sangue tremiam, pendurados... A moça moveu-se. As attenções voltaram-se para ella. Um balsamo de paz ungia-lhe o rosto, agora sereno e beatifico. Os braços levantaram-se na intenção de um movimento, mas cahiram logo... A arca emmagrecida do peito pareceu erguer-se muito, mas baixou com um pequeno suspiro... Immobilidade absoluta. O Lucas precipitou-se allucinadamente a cobrir de beijos o rosto da noiva, deixando, onde os seus lábios pousavam; borrões sanguinolentos... Morta, enterrou-se no dia seguinte, um dia esplendido de sol. Menos de uma semana depois, o Lucas a seguia. A tuberculose tomára nelle urna fórma galopante, tendo rejeitado todo o tratamento e ardendo em uma febre louca. O Caldas acabára a historia. Meia-noite. A chuva passára. O luar, já então esplendido, coando-se de um orificio da janella sobre o tapete junto ao sofá em que estava o Lucio, parecia pendurar ao pescoço de leão, bordado a lã vermelha, um largo medalhão de prata... 1889.

À margem do "Coivara", de Gastao Cruls Por Lima Barreto

Crônica agrupada posteriormente e publicada em Marginália (1953)

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Dizem os dicionários que "coivara" e uma fogueira de gravetos. É possível que o professor Assis Cintra tenha outra opinião; mas tal coisa não vem ao caso, tanto mais que não me preocupo com essas coisas transcendentes de gramática e deixo a minha atividade mental vagabundar pelas ninharias do destino da Arte e das categorias do pensamento. Admitindo a velha definição dos dicionários, no livro do Sr. Gastão Cruls, que tem como título essa palavra de origem tupaica, não há positivamente "coivara", pois nele não se queimam só gravetos. Queimam-se grossas perobeiras e duros jacarandás. Os contos que o compõem, não são delgados galhos secos, há alguns que são verdadeiras toras de cerne. O Sr. Gastão Cruís é médico, mas, graças a Deus, não escreve no calão pedante dos seus colegas. Escreve como toda a gente, naturalmente procurando os efeitos artísticos da arte de escrever, mas escreve sem o Elucidário de Viterbo e o Blutteau, nas mãos, e que concubinato! - sem ter diante dos olhos o redundante padre Vieira e o enfático Herculano. Vale a pena ler seu livro. É delicioso de naturalidade e precisão. Nota-se nele que o autor ama muito a vida da roça, a vida de fazenda; mas - coisa singular - esse amor que ama a vida da roça não ama a natureza. Não há nele um toque distinto que denuncie esse amor. Não é só à paisagem, mas mesmo aos bichos, aos bois, aos carneiros; o que ele ama é, por assim dizer, a vida social da roça. As relações do fazendeiro com os colonos, os seus negócios, as suas cerimônias domésticas. Digo isso de um modo geral, sem querer de forma alguma diminuir o mérito do autor. O seu primeiro conto - O Noturno n.o 13 - é estranho e como que o autor quis manifestar nele que a sua concepção da vida não é rígida nem mecânica. Que o que se vê, não é tudo que existe; há "atrás" do que se vê muitas e muitas coisas. Nem sempre os seus contos mantêm na aparência esse tom de transcendente espiritualidade; mas quase sempre essa sua singular feição de escritor nacional se trai aqui e ali.

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Por exemplo: no G.C.P.A. é em nome dela - espiritualidade - que ele protesta contra os brutais processos da nossa atual medicina que só vê no doente, principalmente no seu cadáver, um caso a estudar, a dissecar, para escrever daí a dias uma chôcha memória que certamente morrerá na vala comum das revistas especiais, mas que dará a seu autor mais fama, portanto mais clientes e mais dinheiro. É a indústria clínica que se ceva nos cadáveres dos pobres desgraçados que morrem nos hospitais. Despertou-me refletir um pouco, após a leitura desse magistral conto do Sr. Gastão Cruls, sobre certas ficções do atual ensino médico. Esse professor Rodrigues que vai seguido de uma récua de estudantes, assistentes e enfermeiros e faz discursos mirabolantes (é do autor) diante do doente, ensina ele alguma coisa? É possível transmitir a outrem o que se sabe, por experiência ou estudo, dessa maneira afetada e oratória - maneira que é exigida "malgré-tout" - pelo auditório numérico que o cerca; é possível? Penso bem que não. Quanto mais reduzido for o número de alunos, melhor ele poderia iniciá-los, quanto menos palavras arrevesadas, melhor eles compreenderiam o lente. As nossas escolas de grande freqüência devem ser condenadas. De resto - o que o autor também nota - não é um suplício para um doente grave estar a ouvir palavras campanudas sobre a sua moléstia durante uma hora? Poderá isso concorrer para a sua cura? Não. De forma que um pobre-diabo que cai num hospital, em vez de ir para tratar-se, vai para morrer. Lembro agora um caso que se passou há tempos. Uma parturiente, tendo-se recolhido à Santa Casa, um lente de partos quis fazê-la sujeitar-se ao "toque" por toda uma turma de estudantes. Ela se revoltou e houve escândalo. Os jornais falaram e não sei como as coisas ficaram. Ela tinha razão sob todos os pontos de vista. A verdade, porém, é que todo esse nosso ensino médico é malvado e improdutivo, tanto assim que o Sr. Dr. Clark acaba de afirmar que há pelo Brasil inteiro quatro mil médicos que não sabem medicina.

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Vimos já esse professor Rodrigues, diante do doente, a fazer hipóteses mirabolantes e ousadas; agora, seguindo na esteira do Sr. Cruís, vamos ver no - A Neurastenia do professor Filomeno - outra feição do nosso ensino médico. O Dr. Filomeno é um sábio em medicina porque conhece o léxico antigo da nossa língua. Tem outras manias; essa, porém, é a principal. A sua lógica é de uma inflexibilidade aristotélica e ele a aplica largamente na sua clínica. Vejamos este caso, tal qual o autor nos conta e conforme expõe o grande Filomeno, lido no "Thinherabos", no Rui de Pina, no Diogo do Couto, no frei Luís de Sousa, no João de Barros e outros cacêtes. Eis aí como narra o arguto autor do Coivara: "A um indivíduo que o fora consultar enfermado pela moléstia de Friedreich, queixando-se muito da marcha propulsiva, que já o fizera levar várias quedas, o professor Filomeno, ao invés de qualquer prescrição medicamentosa, preferira recomendar uma alimentação intensiva pelos siris e caranguejos. Mais tarde ele explicara a Raul por que assim procedera, começando por lhe citar um aforismo latino: "Cancri nunquam recte ingrediuntur". "Como Raul não compreendesse o latinório e se mostrasse um tanto atrapalhado, o Dr. Filomeno logo traduziu: — "Os caranguejos nunca andam em linha reta". Compreendes agora por que lhe receitei os crustáceos? Ora, se esse indivíduo tem uma desordem do equilíbrio que o impele a correr e cair para a frente, nada mais natural do que neutralizar essa força propulsora por meio dos gânglios nervosos dos siris e caranguejos, que são animais exclusivamente laterigrados, isto é, só sabem andar para os lados." Filomeno chama isto opoterapia. Valha-me Deus! Eu me alonguei nestes dois contos em que se tratam de coisas do ensino médico, entre nós, talvez demais um pouco. Mas era preciso. É tão importante a medicina na nossa vida que toda a crítica deve ser feita por todos, àqueles que nos têm de curar, sobretudo àqueles que isso ensinam. Há, porém, nos contos do Sr. Cruís muita coisa outra que não a pura preocupação das coisas de sua profissão.

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"Noites Brancas", por exemplo, é conto fora dos nossos moldes, terrível, fantástico e doloroso. Beijos de uma morfética, dentro da noite escura. Oh! que horror! O que estranho no autor de um livro tão digno, como é Coivara, é a admiração que parece ter por Oscar Wilde e se traduz em frases quentes no seu conto "A Noiva de Oscar Wilde". Esse Wilde que se intitulava a si mesmo - "King of Life", "Rei da Vida" - não passou antes de "Reading" de nada mais do que o "Rei dos Cabotinos". Com uma singular sagacidade, ele soube conquistar a alta sociedade de sua terra, expondo-lhe os vícios e, ao mesmo tempo, os justificando com paradoxos, nem sempre de bom quilate. As suas obras são medíocres e sem valimento. Às vezes até, com uma originalidade duvidosa, mesmo nos paradoxos. Faltou a Wilde sempre o senso da vida, sentimento do alto destino do homem, a frescura e a ingenuidade do verdadeiro talento, a grandeza da concepção e a força de execução. Ele é um mascarado que enganou e explorou toda uma sociedade, durante muito tempo, com arremedos, trejeitos e "poses" de artista requintado. Queria distinções sociais e dinheiro. Para isso, lançou mão das mais ignominiosas ousadias, entre as quais, a de ostentar o porco vício que o levou ao cárcere. Aí, ele despe-se do peplo, tira o anel da múnia do dedo, põe fora o cravo verde, perde toda a basófia e abate-se. Dostoiewsky passou alguns anos na Sibéria, num atroz presídio, entre os mais inumanos bandidos que se possa imaginar, e não se abateu... A sua vaidade, a sua jactância, a sua falta de profundo sentimento moral, o seu egoísmo, o seu narcisismo imoral obrigaram-no a simular tudo que ferisse e espantasse a massa, para fazer sucesso, até esse imundo vício que o levou à prisão de "Reading". Ao que parece, ele em si não era portador de tal tara. Adquiriu-a para chamar a atenção sobre si. Era elegante... Não é um artista, nem grande, nem pequeno; ele é um egoísta simulador de talento que uma sociedade viciosa e fútil impeliu até ao "hard labour". Tudo nele é factício e destinado a causar efeito. Não tenho todo o processo a que foi submetido; mas

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possuo grandes extratos que vem na obra do Dr. Laups - Perversion et perversité sexuelles - prefaciada por Zola. Pelas leituras deles, é que afirmei sobre ele o que acima fica dito. Toda a sua jactância, todo o seu cinismo em mostrar-se possuidor de vícios refinados e repugnantes, toda a sua vaidade - tudo isso que o arrastou à desgraça, - talvez tenha dado um bom resultado. Sabe qual é, meu caro Dr. Cruls? É tê-lo feito escrever o De Profundis. A vida é coisa séria e o sério na vida está na dor, na desgraça, na miséria e na humildade. A edição do Coivara é primorosa, como todas da Livraria Castilho, desta cidade. A.B.C., 23-7-1921.

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“A NOIVA DE OSCAR WILDE” (Gastão Cruls) I begin to feel myself walking upon ashes under which the fire is not extinguished. Johnson,“Life of Addison”.

– Dorian e Sybil… Mas por que diabo deste aos teus bichanos o nome das personagens de Wilde? disse eu, afogando os dedos na pelagem fulva de um dos angorás, e avivando na memória a imagem do escritor admirável, em cujas páginas, como num jardim encantado, tanta vez fôramos juntos colhêr o fruto de ouro das idéias novas e dos paradoxos perturbadores. Raul, que me ouvia a dois passos, estirado numa cadeira de vime, a amachucar entre os lábios a ponta da sua indefectível piteira, soergueu-se a essa minha pergunta, e apontando para uma janela próxima, em que ainda havia luz, segredou-me de indicador sobre os lábios: “Os gatos são dela; mas nunca fales em sua presença no nome de Oscar Wilde”. E como o meu olhar o interrogasse, na curiosidade daquêle mistério, Raul travou-me do braço e ambos fomos ter ao fundo da varanda, onde o luar penetrava a furto, escoando-se pela ramagem olente de umas glicínias em flor. Nós éramos quatro em tôrno à mesa de uma confeitaria, e, entre curiosos e atentos, ouvíamos essas coisas de Alfredo Roberval, o autor do O anel de Gigés, coletânea de versos que lhe valera galgar, de um golpe, às esporadas num Pégaso ardoroso e insofrido, as grimpas do Parnaso indígena. O acaso, ou talvez a chuvinha que

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caía mofina sôbre o asfalto da Avenida, reunira-nos ali, enquanto não se fazia tempo para o jantar com que festejaríamos o aniversário de um amigo comum. Como geralmente sucede quando não há premeditação de assunto, a palestra nasceu animada e foi ter aos lábios do poeta, que era sempre interessante em tudo o que contava. – Eu não sei se já lhes disse, que Raul estava então num sitiozinho nas proximidades de Petrópolis, buscando melhoras à terrível neurastenia que, poucos dias depois, o levaria ao mais estúpido e revoltante dos suicídios – continuou Alfredo, abrindo um parêntese à narrativa, enquanto o garçon nos renovava os cock-tails. A conselho dos médicos, unânimes numa cura pelo isolamento, êsse mesmo isolamento que sem dúvida alguma foi cúmplice do trágico desfecho, o Dr. Andrade, já que as suas ocupações lhe não permitiam longas ausências do Rio resolvera alugar aquela fazendola que, ao lado do sossego prescrito, e de um ar sadio e lavado, tinha a vantagem de deixar o filho sob a sua imediata vigilância e ao alcance de todos os recursos para qualquer emergência mais séria. Uma tia paterna, senhora solteira e já cinqüentona, com quem eu algumas vêzes estivera na casa do Dr. Andrade, acompanhou o meu pobre amigo durante a sua rápida permanência em Petrópolis, e cercava-o de toda sorte de carinhos e atenções, por maneira a revigorar-lhe as fôrças e solevar-lhe o espírito, já talvez infernado no mundo tormentoso dos terrores vãos e obsessões. Essa tia do Raul, D. Isabel Slled de Andrade e Melo, ou melhor, a tia Belinha, como lhe chamavam os de casa, era uma senhora ainda vistosa, alta e esbelta, de cabeça magnífica e porte airoso, conservando no seu todo essa qualquer coisa de indefinível que exigem as individualidades. Trazia-lhe um particular encanto à fisionomia, resplendente de resignação e doçura, o contraste criado entre uns olhos, não sei se verdes ou castanhos, mas luminosos e inquietos, e a tonalidade dos cabelos já brancacentos, que lhe desciam pelas têmporas em ondas mortas. Vestidos de cores sóbrias, quase sempre voltados ao pescoço por altas gorgeiras de renda, completavam-lhe a grande distinção de maneiras. Por única jóia, e eu sabia-a possuidora de belas, às vêzes, um camafeu antigo abotando-lhe o corpete. Não sei por que, mas

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sempre me pareceu que a suavidade do seu perfil admiràvelmente se enquadraria na penumbra misteriosa de certas telas de Whistler. Mais tarde, por uma fotografia do passado, tive explicação para os fulgores daquele crepúsculo, revendo D. Isabel no donaire dos seus vinte e poucos anos. Uma figura vaporosa e frágil, transbordante de graça e mocidade, irradiando sedução e frescura. O seu colo, alto e ondeante, emergindo de um tufo de filó branco, ia abrir-se na curva delicada de um rosto, em que brincava o mais ingênuo e acariciante dos sorrisos. Os cabelos, colhidos singelamente à nuca, e que deveriam ser de um negro profundo e quente, não lhe quebravam então o queimor dos grandes olhos, que rasgados entre cílios longos, conservavam ainda a mesma indizível e vaga coloração. Embora, no geral, pouca curiosidade me despertem os velhos, e a figura da tia Belinha só me começasse particularmente a interessar depois que lhe conheci a pungente história de amor, nunca me passou despercebida a atmosfera de carinhosa veneração com que todos os de casa a rodeavam, e tão diversa daquela em que de ordinário respiram, nas grandes famílias, as tias solteironas e já velhuscas, não raro relegadas à situação de damas de companhia ou criadas de confiança. Colocaram-na, talvez, nessa particular situação de relevo, consoante me informara Raul, os primores de uma inteligência afeita a vários idiomas e trabalhada por boas e proveitosas leituras. A seguir, durante as minhas amiudadas idas a Petrópolis, quando então, a respeito de tudo, e sôbre os mais diversos temas, pude conversá-la largamente, é que verifiquei a justeza do alto conceito em que Raul tinha a sua tia. D. Isabel associava, de fato, à simpatia da figura que já lhes descrevi, as excelências de um belo espírito, em pleno viço de múltiplos predicados, que lhe permitiam – coisa tão rara entre as mulheres – ao lado da máxima vibração aos motivos de beleza e arte, um raciocínio sempre penetrante e coerente na maneira de julgar os homens e as coisas. – E que vem a ter tudo isso com a história do casal de gatos que te revelou “o mais pungente drama de amor” interveio Genésio Pires, o mais novo da roda, que parecia pouco interessado pela narrativa, pois que os seus olhos iam freqüentemente a

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uma mesa próxima, onde, minutos antes, uma francesinha loura e esguia descalçara as luvas para tomar dois goles de chá. – É onde eu vou chegar. À janela que Raul me indicava, quando buscamos o fundo da varanda para conversar com mais desembaraço, era precisamente a do quarto de D. Isabel; e, portanto, a ela pertenciam os dois lindos gatos, de olhos de topázio e pêlo cetinoso, que teriam feito o encanto de Baudelaire. – “Vais conhecer um segredo de família”, – disse Raul, mal nos sentamos – “e segrêdo que nem de pais a filhos se transmitiu, pois que todos os meus irmãos o ignoram e eu só há pouco tempo o conheci, quase pelo mesmo motivo por que também to vou agora revelar. É que temos constantemente o nome de Wilde à bôca, e amanhã, – como a mim me sucedeu – mòrmente agora que as tuas palestras mais se estreitam com minha tia, e não raro descambam para o terreno da literatura, poderias citá-lo na conversa, despertando-lhe a mais dolorosa das recordações.” E depois de uma pausa, aproximando-se mais de mim, e a olhar ainda com certo receio para a janela que se conservava iluminada e agora ficava distante: – “Minha tia teve em tôda a sua vida uma única e verdadeira paixão – mas paixão acérrima e vivaz, que lhe queimou a mocidade e ainda hoje perdura no fogo lento de uma devoção à memória do seu amado – essa paixão foi por Oscar Wilde”. E como na incredulidade eu o quisesse interromper: – “Não duvides. É a verdade. O meu espanto não foi menor do que o teu quando meu pai me fêz a mesma revelação, e eu tive que acreditar no que agora te transmito. “Como sabes, meu avô paterno, por caprichos da sorte e uma bolsa fácil que lhe permitiu, na mocidade, freqüentes passeios à Europa, duma dessas viagens voltou de lá casado, transplantando para o sol dos trópicos uma linda inglesita arrancada às brumas de Londres. A essa avozinha, que mal se aclimou entre nós e aqui morreu ao fim de

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nove anos, devemos, talvez, os bocados de cabeleira loura que andam espalhados pela família. “Meu avô, ou porque, no momento, não lhe fosse fácil ir de novo a Londres em busca de uma outra inglesa; ou porque a natureza da sua dor não lhe permitisse escolha dessa espécie em qualquer parte do mundo; o fato é que, apesar de muito moço, resolveu conservar-se viúvo, e dedicar-se, por inteiro, à educação das duas tenras saudades, que lhe deixara a sua companheira de poucos anos de felicidade: meu pai e tia Belinha. “A despeito das distâncias, e da pouca convivência que êle tivera com a família de sua mulher, meu avô – e talvez isso ainda fosse um culto à memória da morta – nunca deixou de com eles cartear-se, mandando-lhes mesmo, à medida que os anos corriam, fotografias dos netinhos leonina” de um grande girassol, não desaparecera contudo a nota excêntrica da sua distinção, onde, por vêzes, a espuma de umas rendas brancas substituía a riqueza dos punhos gomados, e um cravo verde à lapela punha uma réstea de luz sôbre a treva da casaca. À procura dos seus livros; o êxito das suas conferências; uma colaboração efetiva e bem remunerada nos principais jornais inglêses e americanos; e, mais do que tudo, o aplauso incondicional e sistemático a uma série de comédias e dramas que lhe eternizavam o nome sôbre as várias cenas de Londres, permitiam a Wilde sobejos recursos com que entreter o aturdimento da sua vida faustosa e asiática, passada no conchego de móveis estilizados e sêdas moles, e onde a taça de Alcibíades devia ser o seu copo de todo dia. Era de vê-lo então, no pleno sazonamento da sua personalidade, abrir à admiração de todos, no seio da sociedade que o reverenciava, a flor maravilhosa dos seus cinco sentidos, a cujos pétalos, translúcidos e vibrateis, acudiam tôdas as côres e se aspiravam todos os perfumes, consoante os caprichos de quem a possuía. É que ao invés do bastão mágico, e certo mais poderoso do que êle, Wilde tinha para despertar essa flor e fazê-la refletir belamente tudo o que lhe andava em tôrno, os encantamentos da sua

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palavra, em que os pensamentos só se conjugavam por contos e fábulas, e vinham repassados nos acordes da mais melodiosa das vozes. Se algumas das suas extravagâncias e certos paradoxos subversivos o faziam, por vêzes, antipatizado e temido, não havia quem se pudesse mostrar indiferente às sugestões de um engenho, que refundira os cânones da arte, dera novos ritmos à vida e novas formas à beleza; e que tanto se servia da palheta dos coloristas venezianos para reviver, entre panejamento de ouro e púrpura, algum painel da mitologia; como, com dois traços de água-forte, rememorava certo aspecto de miséria humana, lobrigado em qualquer bairro escuso de Londres, e destarte comovia até às lágrimas os que pouco antes o ouviam com deslumbramento. À luz da sua sensibilidade, a vida se transfigurava e tudo lhe palpitava em tôrno tocado por um novo brilho, aquecido por uma nova côr. As coisas tomavam alma, e com linguagem própria, revelavam os seus segredos e mostravam por que eram belas; espiritualizava-se o que é banal; as sensações ganhavam corpo; e tudo o que se sente e se não sabe; tudo o que se adivinha e se não vê: o mundo das sombras fugazes e das ficções imponderáveis, figuras fabulosas e monstros irreais, gênios elementares ou divindades imaginárias: lêmures e silfos, sereias e gnomos, hipogrifos e oréadas, – plasmava-se no círculo das suas idéias e aparecia à assistência na projeção de uma visão alucinatória. A palavra de Wilde, a perfumá-la, não carecia dos jardins de Academo, e era quase sempre em tôrno à mesa de um café, entre espirais de fumo louro e diante de um copo de whisky end soda, que êle reunia os discípulos, para ditar-lhes o novo evangelho, em que se tinha a beleza por bem supremo e se fazia o elogio do vício e da indolência, da vaidade e do egoísmo, da inconstância e da mentira. A mocidade ouvia-o atenta, na fascinação daquela prosa, tecida de parábolas suaves e paradoxos impenitentes, como se numa panóplia extravagante o aço das adagas e sabres sarracenos descansasse sôbre a sêda frouxelada de um xale de Tonquim. Por vêzes, tal a esfinge que de garras cravadas no deserto assustava o viajor, êle a súbitas interrompia a narração, para fazer perguntas aberrantes, que também ficavam sem resposta.

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Entre a roda dos novos estetas, vinha buscá-lo a sociedade aristocrática, que lhe requestava o convívio e recolhia as frases. Nada se fazia então em Londres sem o assentimento de Wilde; e se as senhoras o consultavam a respeito de modas e mil futilidades, artista algum dispensava o seu elogio, que seria a consagração definitiva. A vida particular do poeta transformara-se numa curiosidade pública, e os seus hábitos e superstições interessavam tanto como a leitura de Intenções ou a representação do O marido ideal. Falava-se na quinzena de sêda azul-pavão com que ele, para escrever, se sentava à mesa que fôra de Carlyle; discutia-se a sua coleção de turquesas e ametistas, capaz de despertar inveja a Diocleciano; comentavam-se os caprichos da sua inspiração, que tinha exigências de Califa, e só se sentia bem entre tapeçarias persas e dalmáticas bizantinas, maiólicas de Gubbio e marfins hindus; e elogiava-se o escaravelho de lápis-lazuli, que lhe adornava o anular, e fôra arrancado ao dedo milenário de uma múmia. Temido da burguesia, invejado dos homens, adorado pelas mulheres, a mocidade seguia-lhe o rastro luminoso da vida, que se ia abrir no Jardim das Hespérides. Tal foi o homem maravilhoso, “misto de Baco asiático e de Apolo grego”, figura ainda de ontem e já legendária pela glória – que eu vi aparecer ante mim, e que tão profunda impressão deve ter produzido no espírito formoso e sensível de D. Isabel. Entretanto, Raul prosseguia. Sua tia, não só aquela, mas muitas outras vêzes, tivera ensejo de se encontrar com Wilde. É que se o mundanismo dêste último o levava por tôda parte, os avós de D. Isabel, ligados à melhor sociedade londrina, queriam proporcionar à neta o máximo de diversões. Sabida a situação de relevo e prestígio alcançada por Wilde, não será de espantar que o pai de D. Isabel, em comêço, nenhuma importância desse aos entusiasmos com que a filha se referia à pessoa do poeta. Mero reflexo do meio, êsses entusiasmos de coração moço e suscetível deveriam fàcilmente dissolver-se no marulho de aplausos e louvores, com que discípulos e admiradores envolviam a pessoa de Wilde. A mais, afugentando receios que eu penso nunca teriam acudido á mente do velho Andrade e

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Melo, Wilde era casado e Ciril e Vivian, os seus dois encantadores pequenos, lhe amparavam a felicidade conjugal. Veio, porém, o desastre. Do férculo de ouro Wilde baixou ao cárcere de Reading. A blusa numerada substituiu-lhe o quimão de sêda azul. O seu nome, que outrora perfumava os hálitos e era magnificado a cada instante, passou a ser sussurrado entre dentes e serviu para estigmatizar um vício. E à medida que na fronte gloriosa do poeta a láurea se transformava numa coroa de espinhos, – D. Isabel também foi demonstrando aos seus íntimos o que até então conseguira dissimular: nos refolhos do seu coração havia qualquer coisa além de um simples entusiasmo no sentimento que lhe inspirara Wilde. Possuiu-a um profundo desalento, foi-se-lhe a alegria antiga, e por mais que se esforçassem os seus parentes, nada conseguia distraí-la. É que de tudo o que lhe andava em volta, só uma coisa a podia interessar, e dessa ninguém lhe falava: o processo de Wilde. Angustiando-lhe as cogitações e exacerbando-lhe os sofrimentos, D. Isabel sentia ainda que uma ponta de opróbrio vinha mesclar-se à pureza dos seus sentimentos, desde que deveria ignorar os motivos daquela condenação e até a leitura dos jornais lhe havia sido sonegada. O velho Andrade e Melo, entretanto, se já muito se preocupava com o que vinha observando, só mais tarde teve certeza plena da fatalidade que pesava sôbre o destino da filha, quando soube que D. Isabel, por interferência dos poucos amigos que não abandonaram Wilde na hora da desgraça, mantinha o seu pensamento constantemente ligado ao cárcere de Reading; e que flores escolhidas pelo seu próprio punho iam, às vêzes, abrir um sorriso nas sombras do cubículo em que o artista, já sem o recamo dos seus anéis, dessangrava os dedos na tarefa humilhante de desfiar corda. Foi por essa ocasião que o pai de D. Isabel resolveu apressar a volta ao Rio, na esperança de que, afastando-a daquele meio, a filha rápido olvidasse a figura de Wilde.

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Enganou-se, porém, o velho Andrade e Melo. A distância e o tempo não conseguiram reviventar as alegrias daquele coração, que nunca mais se quis abrir a qualquer outro afeto, a despeito de que muitas outras simpatias ainda lhe vieram ao encontro da beleza. E Raul concluiu: – “Uma paixão, meu amigo! Dessas que já hoje em dia muito raramente se observam; que não medem sacrifícios, nem antevêem obstáculos; e que quando não florescem em carinhos e atenções, deixam o coração num punhado de cinzas! “Embora a sua religião não tenha altar, sente-se que a sombra de Wilde acompanha minha tia por tôda parte, e lhe povoa as solitudes do coração. Se entrasses, hoje, no seu quarto, no Rio, havias de ver, numa estante ao abrigo dos olhares indiscretos, tôdas as obras do escritor dileto e, entre elas, não sei como conseguido, um dos raríssimos exemplares da Salomé, que foi maravilhosamente ilustrada por Beardsley. Sei que ela lê e relê meditadamente êsses livros, na esperança, talvez, de que, ao calor dos seus dedos, algum dia as palavras se animem, e com ressonâncias de um cristal de Veneza, lhe tragam os ecos da voz inesquecível. Vem ainda do mesmo culto o nome que ela escolheu para os seus gatos, mal supondo que Dorian e Sybil me dariam a chave do seu segredo, pois que entre os seus próximos a leitura do O retrato de Dorian Gray já era familiar a alguém”. – E do lado de Wilde? inquiri eu, sentindo de minuto a minuto recrescer a minha curiosidade. Teria havido qualquer incitamento às veemências dessa paixão, ou mesmo já não dizendo tanto, teria o poeta conhecido o que lhe era tributado? – “Nada de positivo. Mas muita suposição interessante, que me dá quase a certeza de que Wilde, se não percebeu a essência do sentimento que havia despertado, soube, contudo, compreender a magnitude do coração que se lhe abria em bálsamos na hora da desgraça”.

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E Raul contou-me então como chegara a êsse resultado, graças tão-sòmente ao seu esforço, já que o Dr. Andrade, quando lhe relatara o fato, fôra profundamente lacônico, deixando-o com a cabeça cheia de interrogações. É preciso que se não esqueça que o Dr. Andrade é médico, e médico às direitas, tendo, portanto, o seu senso artístico – se é que êle o possuiu algum dia – completamente embotado. Estou certo que a sua concepção de beleza anda hoje muito mais próxima de um “belo” abcesso de fígado ou qualquer outra horrível mazela, do que da Vênus de Milo ou do “Julgamento final”; e que se lhe derem a escolha de leitura entre uma encantadora página de Wilde ou qualquer outro autor que êle nunca leu e uma monografia clínica, o Dr. Andrade não hesitará: irá à maçuda monografia. Não nos admiremos, portanto, que em todo êsse curioso entrecho de amor, êle haja apenas visto: de um lado, a pessoa de sua única irmã, com a vida partida pela fatalidade daquela paixão; e de outro, a figura odienta de Wilde, o causador daquêle desvario, e que só lhe poderia interessar através da análise de um Krafft Ebing. Raul me disse mesmo ter notado que o pai, durante tôda a narrativa, evitara o mais que pôde pronunciar o nome de Wilde, e nas poucas vêzes em que isto não lhe fôra possível, trouxera-o sempre precedido de um “cabotino”, “degenerado”, ou “nevrosado”. O meu amigo, entretanto, como era de esperar, pois que pleiteava comigo a sua admiração por Wilde, é que se não conformou com o que lhe fôra contado, e desde logo passou a fazer uma série de investigações, a ver se encontrava, quer nos próprios livros de Wilde, quer no que se tem escrito a seu respeito, qualquer clareira por onde pudesse respirar a sua curiosidade. Embora Calibã já lhe dormisse aos pés e o diabo o tentasse com a máscara indecisa de Antinoo, era de presumir que a Wilde, sempre de olhos abertos para a beleza, não tivesse passado despercebida, logo ao primeiro encontro, a graça estranha de D. Isabel que, de cabeleira negra e pele dourada, se destacaria dos outros tipos femininos da sociedade londrina, como uma garça morena perdida em meio a um bando de cegonhas.

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Dos livros de Wilde, o único que poderia trazer qualquer elucidação a êsse respeito era o De Profundis, sabendo-se que todos os outros são anteriores a 1894. Êsse livro, além de escrito na própria prisão, tinha o grande interesse de constituir como que um jornal íntimo dos dias de sombra e sofrimento do grande artista. Pois foi justamente nas páginas de De Profundis, que Raul encontrou as duas passagens, que lhe deram quase absoluta certeza de que D. Isabel não foi indiferente ao poeta. É pena que eu não tenha aqui o volume, para lhes ler, na íntegra, êsses dois trechos, que me trouxeram a mesma convicção. Um dêles está numa das cartas que da prisão Wilde endereçou a Roberto Ross, e foram pelo mesmo transcritas no prefácio do livro. Nessa carta, Wilde pede a Ross que agradeça a um amigo comum, cujo nome agora me escapa, a remessa dos livros que êle lhe tem feito; e que, por intermédio desse mesmo amigo, faça chegar “a sua gratidão à senhora que mora em Winbledon”. Presume-se que esta senhora, que êle não quis nomear, lhe houvesse também enviado livros ou qualquer outra coisa. Coincidência ou não, entre as poucas cartas subsistentes do seu avô, Raul encontrou uma cuja sobrecarta já rasgada, talvez por um impiedoso colecionador de selos, ainda deixava perceber num bocado de carimbo, certa palavra que deveria começar por: WINB. Raul, ao tempo em que conversamos, ainda não tinha conseguido saber se Winbledon seria apenas o nome de qualquer rua ou quarteirão de Londres, ou mesmo de alguma cidade da Inglaterra. A outra referência com relação ao nosso caso está no corpo mesmo do De Profundis. Se ela é menos precisa e não traz indicação alguma da pessoa a que se refere, em compensação é muito mais extensa, e dá a essa sombra feminina, cujo perfume mal podemos aspirar, uma grande ascendência sôbre o espírito do encarcerado de Reading. Mais uma vez lamento não ter presente o volume. A prosa de Wilde não pode ser resumida e eu não trago o trecho de cor. Digo-lhes apenas que o artista evoca a imagem dessa mulher “cuja infinita doçura se transmitia ao ar em que respirava”, quando rememora os erros da sua vida passada, que se obstinava em não conhecer a dor e tinha o prazer como único motivo da existência. É que essa figura feminina já uma vez lhe fizera sentir que a alma só se acrisola no sofrimento e o espírito tem a dor por alimento. Wilde tece-lhe, então, um hino de admiração e respeito, e depois de falar “na sua nobre

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bondade para com êle, não só antes como ainda durante o encarceramento”, de dizer que “ela, muito embora sem o saber, o ajudou a carregar o fardo de tormentos”, termina declarando que “ela é a um só tempo, um ideal, uma influência, e uma sugestão de aperfeiçoamento para o futuro”. Como vêem vocês, nada de mais elogioso para a pessoa que despertou tais sentimentos, e que, eu penso, tenha sido D. Isabel. É digno ainda de menção, que logo após êsse trecho, as idéias de Wilde começam a refletir uma religiosidade até então ignorada, sôbre as suas páginas descendo amiúde a figura de Cristo, como o paradigma da nova vida que êle se propunha para mais tarde. Daí não ser também difícil aceitar que a essa mesma mulher deveu Wilde a devoção que anos depois o faria ir, por várias vêzes, à bênção do Papa e lhe daria a morte com todos os sacramentos católicos. Além desses elementos, Raul ainda descobriu uma nova fonte de sugestões, que referenda de algum modo as suas conjeturas. Trata-se de um opúsculo em que André Gide, grande amigo de Wilde, nos conta alguns episódios da sua vida. Por êle sabemos que Wilde, durante a sua permanência em Berneval, após cumprida a sentença, falava com grande entusiasmo nos seus projetos literários, e dizia que só reapareceria em Paris, quando de novo se pudesse impor como “Rei da Vida”, por uma bela obra de arte. Entre êsses trabalhos, alguns ideados, outros já em execução, êle se referia com grande amor a um drama bíblico: Achab e Jezabel. Note-se uma nova coincidência. André Gide assinala que Wilde, ao invés de pronunciar Jezabel sempre dizia Isabel. Não seria ainda a nossa patrícia que lhe teria despertado a lembrança de tecer um drama em tôrno da bela e vaidosa Jezabel, do segundo livro dos Reis? Quando Raul, acabando de me citar a procedência das suas suspeitas, lamentava que o nosso problema houvesse que permanecer eternamente insolúvel, não me contive que lhe perguntasse:

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– E por que não vais resolutamente à tua tia? Estou certo de que apenas com uma palavrinha sua tudo ficaria esclarecido. Depois, dado o teu amor por Wilde, ela não se vexaria de te abrir o coração. – “Já quis fazer isso e tenho estado várias vêzes com o De Profundis entre as mãos, pronto a ir-lhe ao encontro”, – respondeu-me Raul. “Pondero, porém, que uma mera curiosidade literária não me dá direito a tanto. Seria ressangrar despiedosamente uma ferida que o tempo vai cicatrizando. A mais, tive proibição formal do velho de lhe fazer a menor alusão a êsse respeito”. Raul ainda falava, quando sentimos um ruído ao fundo da varanda. Ambos estremecemos. Era D. Isabel que se debruçava à janela, advertindo o sobrinho que já passava das onze horas e êle estava fora do regime. E depois, numa voz muito branda: “Deixem a prosa para amanhã, meus filhos. Vocês têm tanto tempo para conversar...” Levantamo-nos. Lá fóra o plenilúnio remontava, e no céu semeado de estrelas, dir-se-ia um grande lírio branco entre uma seara dourada. Na profundez da noite as montanhas dormiam, conchegadas por nevoas claras e, sob o poejo do luar, pareciam prosseguir o belo sonho que eu havia interrompido... – Deixemos de sentimentalismos piegas e vamos ao jantar do Honório – atalhou Genésio que verificara ser quase sete horas. E já na porta, enquanto vestíamos os sobretudos, eu perguntei a Alfredo por que não faria a sua estréia na novela aproveitando a história que nos acabava de contar. – Pensei nisso e cheguei até a escolher-lhe um título. Seria A noiva de Oscar Wilde. Raul, porém, dissuadiu-me do intento muito embora, já se vê, eu lhe propusesse a alteração do nome de uma das personagens. Parece-me que ainda o ouço, quando, próximo do quarto, lhe dei a conhecer o meu intento: – “É muito cedo, meu amigo. Escrito agora o nosso encantador entrecho de amor não passaria de uma enfadonha monografia histórica, inçada de datas e notas à margem. É preciso que o tempo aplaque a preamar de ódios e escrúpulos que ainda se agitam

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sôbre a figura de Wilde, e de novo esbata em tôrno à sua cabeça aquêle halo luminoso que uma senhora de Paris dizia ver formar-se tôda vez que êle falava. Lembra-te que a nossa heroína ainda aí está, e que se Wilde já morreu há dezenove anos, só em 1960 o British Museum nos permitirá conhecer, na íntegra, o original de De Profundis. Vivamos, portanto, até lá, meu amigo, na esperança de que, já velhinhos, ainda possamos ver evolar-se das páginas inéditas – como tôda vez que se abria a liteira de Cleópatra – um novo perfume de que se há de servir o futuro narrador da tua A noiva de Oscar Wilde.” Cinco dias depois, vinha-me um chamado urgente, e eu ia encontrar o meu amigo semimorto, com a cabeça ensangüentada a resvalar entre os dedos trêmulos de D. Isabel, que lhe beijava aflitamente a fronte.

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INFERNO VERDE

(Alberto Rangel)

Son coeur, sur qui pèse une stupeur morne, se soulève en proie à des tortures convulsives. Il semble qu`il vienne d`entrevoir l`enfer dans sa vie, et qu`il se soit révélé à lui quelque chose de plus que le désespoir.

VICTOR HUGO. – Han d´Islande.

Uma nódoa acinzentada, que de repente se apagou aos silvos, obumbrando-se no punhado luxuriante das canaranas, sororócas e embaúbas, era o «gaiola» que deixava o Souto no alto Juruá, desterrado para a luta, na delirante vida de explorar um sertão. O xaveco voltava precipitadamente. Tinha sido o ultimo a subir, em arrojo imprudente. Apressara-o, portanto, o medo de permanecer pela vazante rápida, espetado no tronco de piranheira, ou embicado no tijuco de alguma praia. Se isto acontecesse, ficaria como o Souto, esperando a volta da enchente para descer a Manaus. E o que era ganho e fortuna para o engenheiro, prejudicaria ao armador... Mas, as esperanças, que tanto acalentavam o Souto, desertaram do seu coração, vendo sumir-se na volta do rio o barco que o trouxera com o derradeiro aviamento. Esse retorno deixava-o, pois, de face estuporada, que lágrimas lavavam amargamente. Alguma coisa partia de si ou lhe era deixado, no mistério do abandono e da saudade. Ele se abroquelara de ferro, por dentro, quando se dispôs a arremeter para o interior do

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Amazonas a sua ativa ambição de moço e recém-formado. Mas aquela imagem do vapor voltando, dera-lhe o golpe na armadura, e foi, como um dardo, romper-lhe o coração. Lembranças amadas de sua terra e dos seus vieram, em coro triste, dizer-lhe adeuses, abraçá-lo, desanimando-o. E a cada evocação, o Souto afogava-se num soluço irreprimível. Só! Considerava o engenheiro, na raiva e no pesar indefiníveis. Na irritação e abatimento, o choro irresistível e infantil tudo confundia na crise única em que seus nervos se sacudiam, vibrando. Companheiros e família estavam como noutro planeta, ou noutra vida... E se alguma doença o apanhasse, o remédio, talvez, seria apodrecer no barranco, como tantos outros... Incrível que unicamente agora esses pensamentos o desanimassem. Embarcara de ânimo resoluto em Manaus, e desembarcara assim, suscetível e dolorido. E num desvio imaginativo, conveniente à reparação do espírito desfalecido, ele repassou os vinte e seis dias dessa cidade ao «alto». Pormenorizou-se tudo. O embarque, num meio dia fulminador. O navio estourava da carga, que lhe metia n’água a «marca do seguro». Duzentos homens se comprimiam, onde não haveria lugar para cem, na disparatada promiscuidade, com sacos, caixões, bois e garrafões. As redes, em quincôncio, embaraçadas, sobrepostas umas as outras, até sobre os lombos do gado. Um homem morrera de uma cornada, na rede em que dormia. Era todo um rebanho colhido em navio fantasma para ser lançado numa voragem; e, com o rebanho, a carga pilhada por corsários. Destarte o «gaiola», na vagarosa marcha, esbarrando com balseiros, ou raspando troncos flutuantes, montara o Solimões, beirando sempre a margem para evitar os impulsos da corrente majestosa e profunda. Botos, por boreste, emergiam às cambalhotas. Uma madrugada, em dilúculo de nevoas, que eram como a fumaça de toda a mataria que ardesse, fizera-se pausa para que dissipados os fumos da umidade se entrasse no Juruá. Este parodiava o outro rio. A mesma monotonia no fugente verde negro e esfuminhado. Só mais estreito e esbordado. E, como era março, a cheia, em pleno, dava à paisagem um aspecto aguacento de dilúvio. O gado amontoava-se em currais ilhados. Em Mauichi, o cemitério tinha o topo das cruzes à flor d’água. Muitas vezes, para enterrar os mortos de bordo, não havia terra de pronto. Era preciso esquadrinhar o rio para obter um sepulcro; que tudo sendo uma só campa, não havia lugar para um morto. Parando em Nova Fortaleza, o navio alarmou-se com um dono de

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seringal, vindo de terra, o qual, loquaz e pernóstico, contava casos ao «imediato», interrompendo-se a cada passo em gargalhar tão estrepitoso que reboava pelo convés com fragor bombástico. Dezessete dias, na mesma faina de vencer praias, estirões e «sacados», que se renovavam desenhados da mesma forma, com a eterna sucessão de nuvens de carapanãs e piuns nas barracas e barracões, onde se tomava lenha, ou se deixava carga, e nas outras paradas bocejantes, a ceifar capim para o gado ou a «dar um lance» aos peixes. Havia variedade nominal nas tabuletas dos barracões; mas, o que elas designavam, era sempre o mesmo tipo, quer de tijolo, quer de paxiúba. A fantasia dos ocupantes ou donos, as suas recordações, a sua sentimentalidade em jogo, escreviam nas margens um glossário abundante, cruel ou enternecedor: Altamira, Novo Paris, Deixa Falar, Miragem, Bom Lugar, Santa Helena. Mas esse longo arrastamento no rego, que parecia não ter fim, não enfadara ao Souto. Tinha sido afinal uma novidade. Sendo o espetáculo igual, adornavam-no, contudo, mil incidentes: o maguari pousado num mulateiro, o batelão tomando lenha, alguns jaburus na boca de um igarapé, mariscando, a algazarra do bando espavorido de curicas ou papagaios, os sons lamurientos de uma sanfona, capivaras fugidias, seringueiros em festa, acenando de terra aos «brabos», embaixo, no convés... Esse relancear pelo cosmorama da viagem derivou a crise hipocondríaca do Souto, até se distrair em contemplar a tarde. O sol estava feito uma brasa mortiça que nem dava para incendiar o punhado de cotão de nuvens, sob as quais a brasa se apagava... Uma garça «morena» buscava tardia, no segredo do igapó, aconchego para a noite. A natureza tinha um momento de calma, na sua estesia de calor, de luz e de vegetação. Isso acabou restaurando-lhe os nervos. Anunciado o jantar e que havia macaco e quatipuru, ele acudiu de ânimo já retemperado ao convite insistente. O dia seguinte, o engenheiro passara-o, revistando a bagagem e tomando notas e providências. Uma canoa e mais dois remeiros, além do Miguel, que trouxera consigo, somente os conseguira muitos dias depois. E, sempre uma coisa e mais outra. Maçado com tanto retardamento considerou-se enfim ditoso, quando, pela primeira manhã fulgurante de abril, se viu acocorado sob a panacarica, que o havia de amparar do

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cáustico das soalheiras, e sentiu a canoa afastando-se para o Juruá-mirim, ao compasso de remadas enérgicas. O igarapé era um escorço do rio. As árvores das margens pareciam gigantescas; adquiriam altura em perspectiva pela estreiteza da valeira que bordavam. Aproveitando a sombra, que projetava no ribeiro refolhado uma tarja preta, os remeiros adquiridos na foz, cearenses ambos, palravam sempre, parando os remos. Um deles, o Chico Brabo, cultivava dialética, inventando termos, que muitos supriam as faltas do parco vocabulário regular aprendido: comida era «trupizup», arranjos de pouco ou nenhum ganho eram negócios «atibisque»... Foi assim, entre o silêncio respeitoso do Miguel e a palrice dos outros homens, que o Souto chegou a uma barraquinha deserta, abafada entre velhas pacoveiras. O bananal apertava a barraca; a floresta sufocava o bananal; e, por sua vez, o céu esmagava a floresta. Foi esse o primeiro pouso do Souto, no remoto confluente do Solimões. Devoradas as conservas de umas latas, o «trupizup», todos amatalotados se acolheram às redes para dormir. Em torno da luz de petróleo, dançando ao alto da lamparina, uma nuvem densa de catuquins diminutíssimos bailava com a chama. O filósofo, a um canto, perdia-se galrão, em comentário tosco sobre a desigualdade das fortunas humanas. Mas as suas palavras, por fim, não encontravam eco. Miguel ressonava e o outro, o Simeão, conservava-se propositadamente mudo. Afinal, a premissa de um silogismo embotou-se num ronco. O engenheiro não podia dormir. A acuidade dos seus ouvidos parecia ter aumentado na solidão, O vento, que entrava à vontade pelas brechas da choça, fazia provavelmente distúrbios na floresta rodeante. Havia sons de quedas e assovios, zumbidos, tropear de patas e rechinos... Ora se diria que a mata toda crepitava incendiada e que tombavam, estalando, os troncos portentosos; ora, rolamento de avalanches, pizzicatos em bordões de violoncelos, arcadas em violetas e contrabaixos; ora, machadadas, guinchos, pipilos e cicios. Nesse concerto distinguia-se o concurso feral das corujas. As gargalhadas, despedia-as a «mãe da lua» – a irutaí sarcástica. Acompanhavam-na em módulos vários, os murucututús, «rasga-mortalhas» bacuraus,

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ducucus e acuraus... A floresta sofria, a floresta ria... Dedos convulsos de um gênio em delírio tangiam as cordas infinitas dessa grande harpa de esmeralda, arrancando-lhe acordes e síncopes harmoniosos ou incoerentes, na execução confusa da mais aterrorizante das sinfonias. Acentos schumannianos, a solene gravidade de Berlioz, dissipados em dissonâncias loucas, em descompassos chocantes... Houve um instante, em que Souto ouviu, a principio indistintamente no sussurro, um grande ofego de muitos peitos humanos esbofados, que respirassem demoradamente. Depois se acentuou o corpo dos sons roucos e sfogatos. E a esse estertor enorme, mas abafado, os outros sons morreram. No tumulto ficou somente esse arfar monstruoso, que se pensaria ser de todos os troncos, em ressono, na dormência da vasta noite: – era o regougo dos guaribas, de certo à beira de um igapó central. O magote saltigrado e estentórico dos símios, em mugido coral, acabou adormentando o engenheiro, que acordou diante do café matinal, ao ameaço do alvor crastino. Urús trinavam melodiosamente, imitando trilos de frautas rústicas de faunos, concertando um scherzo. Gotejava das pontas das palmas, no beiral, grosso orvalho frígido. Daí a uma hora, a montaria retomava o seu andar moroso. Ronceira, por mal construída, um dos camaradas a apelidara, com justeza: – «Tartaruga». O Miguel pilotava com cuidado, evitando a zona correntosa do curso; mas a tardígrada, a custo, seguia pela corda ou pelo arco das inflexões, em praias e barrancos, que se interpolavam, na disposição dos coleios de cobra, que de repente estacasse no bote. Dois dias mais tarde, vingadas as linhas subtensas, ou os ramos das curvas, chegaram a Boa-Vista, coroada de manivas, mamoeiros e canas, onde se lhe juntaram mais uma canoa e três homens «de corda». Bem para diante, do Tamboríaco para cima, devia o Souto ir compassando a marcha com o levantamento topográfico. E, para a foz do Tamboríaco seriam ainda dezesseis horas de canícula e de piuns. Era mister avançar, portanto. Naquele destino o mais seguro estaria em caminhar depressa. Para domar o perigo, aconselharia a prudência vencê-lo a galopadas.

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Em uma barraquinha, assentada ao lado de pântano verdacho, onde se teriam dado entrevista todos os piuns e mutucas do rio, os viajores em bando passaram a tarde e a noite. Essa morada de calangos, tijubinas e osgas assustadiças, com as paxiúbas e desfazerem-se, o teto de cauaçu esburacado, parecia assim, por influência da apostema do pântano. Alguns pés de macaxeira e um molho de bananeiras mal-medradas, toda a agricultura de em volta, dir-se-ia sofrerem também do pego miasmático, que tinha de face meia dúzia de metros apenas, e servia de tanque de natação a um farrancho de rãs aos saltos e a boiar, coaxando em uníssono a melodia brejosa, fácil e repetida nas exéquias dos crepúsculos. Aquela dormida arrepiara ao Souto. O pantanosinho toldado obsedava-o; e, para afugentar idéias fúnebres, ele pôs-se a ler a «Carne» de Julio Ribeiro, que encontrara, com surpresa, na barraca fantástica. O defeituoso livro do gramático respirava largamente a oxigenada e forte natureza paulista, tão em contraste a esse canto, onde eflúvios letais d água morta tudo circundavam de um véu funesto. A mão do gênio do mal, que habitasse os limos do pântano, deixaria esse livro na barraca, no intuito de dar aos seus hospedes a derradeira visão da Vida, nas imagens do romance estapafúrdio, em que um grande símbolo se glorifica no corpo viçoso de Lenita. O Chico Brabo, espichado na maqueira entoava repisando uma cantiga nagô. A melopéia bárbara, que vinha d África, trazia algemada nos seus langorosos ritornellos a tristeza insondável de um brigue negreiro, de velame murcho, na calmaria podre do mar... Seria na madrugada seguinte o começo do serviço. Mesmo defronte da barraca, sombriamente decorada das algas do pântano, foi batida a estaca inicial. Nenhuma solenidade. Três palmos do galho, apanhado ali perto, no qual se abrira entalhe característico, morderam o chão, cravando-se como um dente, gigantesco e venenoso de imponderável veneno borgiesco, que daria síncopes mortais à terra esfalfada na fatura exploração. Os pés da tripeça da bússola abriram-se, como os de uma aranha monumental; o Souto espiou no olhal do prisma, tomando uma nota breve na caderneta. Rebateu as pínulas. Em seguida, retirou da caixa a luneta de Lugeol, e visou firme para

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o mesmo ponto, em que a mira se estadeava, branca e vermelha, condecorando de uma placa extravagante o peitoral da florestal espaventada. Àquela hora matutina, o cálice profundo e infecto do lodaçal exalava em névoas ralas. Apenas a primeira estaca fincada, guardada a luneta e encolhidas as pernas da bússola, para ser tudo removido à estação seguinte, o sol montava o cimo da floresta, espanando raios, que dissipavam a nevoaça a espadeiradas fulgurantes. Os lotes a demarcar acompanhavam as voltas do igarapé; e o caminhamento, ao fim da tarde, toparia a Nova Vida. Paus enormes, entrançados de galhos, atravancavam o caminho. Assim, era preciso repetidamente devassar a ferro o atulhado igarapé. Desde a foz que ele obrigava a essa tarefa. Para navegar necessitava-se derrubar. A água, rabeando na floresta e a cada passo atraindo lanços desta, num propósito firme de obstruir as próprias linhas naturais de penetração, tornava mais imprescindível o machado que o remo. Perante o tronco mastodôntico, barrando a passagem, impunha-se descarregar as montarias e fazê-las passar submergidas, para desalagá-las depois, atestando-as de novo da carga, que tinha sido deposta em terra provisoriamente. Em outras ocasiões se encilhava de cascas de embaúba o dorso do tronco, para que a embarcação à força de braços escorregasse pulando por sobre o brusco e rígido empecilho. Salteando os passageiros, os galhos das articulosas tabocas penduravam-se, suspendendo anzóis. Os acúleos traiçoeiros podiam rasgar o fato, lanhar a pele, ou vazar os olhos. Tudo conspirava para aumentar de pungência o sacrifício do Souto. Os piuns supliciavam a jornada; e, com os piuns, irritando-lhe a epiderme das mãos, que a nuca a resguardava um mosquiteiro de cabeça providencial, a lembrança obsedante da lagoa letal... À noite, na Nova Vida, o engenheiro foi sentido o corpo machucado e de juntas doloridas. Apressou-se a ingerir uma cápsula de quinino. Uns leves calafrios lhe trespassavam seguidamente os músculos fatigados. Aquela dormida na véspera, na

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barraca da «Carne» e da poça lodosa! Um calor lhe subia à cabeça, em estranha queima... a boca seca... Souto despertara tarde. Ao esmaecer da manhã sentira-se melhor, saltara nervosamente da rede. O Miguel trouxera-lhe macaxeiras cozidas e um guisado de anta; tocara de leve no repasto, mas saboreara uns goles de café fumegante. Era mister, contudo, continuar a lide. O Souto não se desvanecia. Fora um acesso, sem consequências talvez. Ele precisava vencer tudo. Coragem era ainda a melhor terapêutica. Bem comuns casos fatais, filhos do medo. Evitar a receptividade mórbida, era o problema. Desde que o Souto conseguira dominar os vagos receios da alma, para chegar ao alto desse sertão, onde lhe tinha sido dado buscar a fortuna para gozá-la entre os seus, no Sul, não seria na cumeada que desanimasse. Sentia-se bem melhor... E deu ordem aos camaradas para aprontarem as montarias. De estação em estação, a marcha prosseguiu, nesse dia, na mesma intercadência de visadas, constâncias de piuns cáusticos e sol ardente e o engraçado das arvores, impedindo a passagem. Uma cachoeira pôs, pela primeira vez no caminho, um obstáculo rumoroso e esfervilhado. Foi preciso todos se meterem na água fria do igarapé, deixando que as frágeis embarcações presas a cordas montassem o rápido, felizmente salvas na espuma e borbulhamentos de fervura. De vez em vez, à direita ou à esquerda, rastos acentuados de antas e porcos, ou um pé de manacá florido. Escondidos na obscuridade e entrançado dos ramos, que tamizavam os barrancos, viam-se estas construções primevas: – os taperis. Distinguiam-se nitidamente os feitos por patrícios, ou por peruanos. Obras, finalizadas em arcabouço, tinham feitios diferentes para o mesmo objeto, o de servir de pouso em uma noitada. Os taperis peruanos exprimiam, mais a fundo, a precariedade na sua utilização pelos nômades. Marcavam eles que se penetrava na zona do caucho, nessas contravertentes de tributários da margem direita do Ucaiali. Eram bem o edifício de instante para o

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trabalho de uma jornada. Não ha conceber coisa mais reduzida: seis varinhas de uns três palmos de altura, fincadas no chão, suportando o toldo o improvisado de palhas. O caucheiro não constrói palácios; nos seus estádios planta yuca e plátano substanciais; isto sim, a fartar. O que ele quer, é passar; mas, atendendo previdente que nessa corrida há escalas por estações forçadas de parada. Embora! O machado e a ubá são os dois instrumentos emblemáticos da sua indústria. Um destrói, outro transporta. O taperi é o digno traço de união dessas duas operações, que resumem a devastação caucheira. Ele é o único elemento fixo, posto que com a frágil consistência da teia de uma aranha, ou da casa de uma tatucaba. O Souto no mal estar físico, que a custo se esforçava por subjugar, perdia-se em cismas e reflexões. O dia, horrível de calor e de «praga», findara à foz do Funil, como acabou, na tarde seguinte, na barraca que era quase um taperi: – meia dúzia de paxiúbas, com outras tantas folhas de jaci, cobrindo-as. Habitava-a um caboclo de Parintins, excepcionalmente fazendo de «cearense», no fundo lobrego desse igarapé seringuífero. O morador do taperi andava fora, quando chegaram o Souto e os homens, que foram logo se acantonando. Daí a pouco um tiro de rifle ressoou na mata, em estampido reboante. Mal tinham os hospedes armado as redes, e acendido com gravetos o fogo para aquentar a feijoada «Paredão» e os camarões de conserva, quando o caboclo surgiu, vergado completamente ao peso de um formidável «queixada». O caçador deixara na mata os intestinos da vítima para tornar o carrego mais leve. Em frêmito de alegria, os camaradas saudaram com expansões o morto: – «Bichão!» – «danado!» Amplo fumívoro, o céu aparava das labaredas do acaso os fumos da noite, vinda num repente. Souto prostrado na rede sentia o latejo das fontes, a secura dos lábios crestados do fogo interior que o abrasava todo. Enquanto o caboclo e o Simeão escortaçavam o porco, e certa agitação animava a turma diante do «fresco», Souto resistia num combate formidável aos pensamentos de desânimo, que procuravam invadi-lo na febre. Toda a noite ele viu no entretanto horrores; ora em fogo, ora em gelo, no algor, o seu corpo

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parecia precipitar-se em abismos, ou achatar-se por desabamentos formidáveis; o plácido igarapé corria ao fundo da terra, por uma helicóide, escortinada em fila dupla de monstros, que vomitavam chamas... A noite toda se lhe cortou de enregelamentos, incêndios e pavores do delírio. O Miguel aproximava-se, de vez em vez, a examinar e cuidar do patrão: – Sossegue – doutor, aconselhava num carinho curto. Pela manhã os olhos do Souto se emolduravam num bistre forte, no rosto entalhado em linhas ásperas de magreza lívida. Quando as montarias partiram na teima da faina o dia ia alto; mas entre os paredões de pedra e na sombra completa das copas, que os galhos sustentavam em nervuras de abóbadas por sobre o igarapé fraguado, remansoso e belo, a impressão era de ser tarde feita. Grandes borboletas azuis passavam lentas, evoluindo, balanceando entediadas na penumbra. Subitamente, o Souto, ao lado da tripeça do instrumento, se apoiou no chão arenoso de uma praiazinha, fechando e guardando a caderneta. Abelhas negras, miúdas e molengas, apoquentavam-no. Piuns caçavam-lhe luvas enfogadas de chispas escaldantes. Não podia prosseguir. Caía ao meio da carreira. Vencia-o afinal a febre recrudescente. E, num arrepio de todos os membros enfadados, ordenou com excitação involuntária o regresso imediato. Aguardar-se-iam no Nazaré, à foz do Funil, as resoluções do morbus... Ao sabor da corrente veloz, ao cavar rápido e alestado dos remos, as canoazinhas voltavam, como que interessadas em salvar o engenheiro. Ao chegaram ao Funil, o «aviado» agasalhou com piedade o doente no seu medíocre barracão, que se alapardava lugubremente num débil bosquete de embaúbas. Já aí estava recém-vindo o seringueiro, freguês «aviado», que trouxera as «peles» de borracha de seu «fabrico» pela água do igarapé, desde a barraca no «centro» até a margem do Juruá-mirim. Ele viera pastoreando esse rebanho flutuante, que a água encaminhava, perdendo-se por vezes as estranha reses nos balseiros, sendo preciso

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descobrir as bolas escuras, que caprichavam ficar por trás de troncos, ou escondidas no matupá. Com um pedaço de taboca guiava-as pelos meandros da estrada em que sobrenadavam, incitando as retardatárias à senda cega da malhada, de arrasto na corrente. Enfim conseguira ajuntá-las, com falta de duas menores. O pastor de curioso pastorejo havia voltado para sua barraca central, levando às costas o jamaxi sopesado de mercadorias que lhe fornecera o «aviado»; ficara o Souto, esperando melhoras. Uns dias bem, outros mal. Naqueles, o Souto aproveitava desenhar o serviço feito, ou observar o sol, em alturas correspondentes, para determinar a declinação magnética local. Tinha ainda fé, confiava... Aquilo havia de passar. O quinino triunfaria... Mas o Souto se descarnava. Cada vinte quatro horas de acessos, cada reduzir de energias e de músculos. Oito dias assim esteve o Souto no Funil, em delírios, inapetências e calmas passageiras. E a definhar sempre... O «aviado» aconselhou a volta ao Juruá: – Lá fora o doutor melhorará... Há mais recursos... Afinal o engenheiro resolveu descer. Reconheceu a necessidade deste sacrifício: – a porta da felicidade, senti-la aberta, e por sobre ele, posto fora, vê-la fechar-se nos gonzos... Contudo, talvez ainda se restabelecesse, para tentar de novo as obrigações profissionais com os seus comitentes. O coitado sacudia vamente a aldrava dessa porta... Ao passar em cada barraca, de volta ao Juruá, a ilusão da cura sofria um golpe. Havia muito ficara rejeitada na mata aquela cabana, junto ao escorralho pútrido do pântano. Souto reconhecera a nefanda, por seus olhos, que ardiam, ao dobrar uma volta esborcinada do igarapé. Sumindo-se de súbito à popa, o Souto cuidava desoprimir-se para sempre do avantesma. Mas este só o deixou quando um dia, ao monologar alto do Chico Brabo: – «...os rios são as veias da terra...» o Juruá se anunciara às duas proas delgadas das montarias. A confluência do Juruá-mirim com o Juruá é o abraço de filho a um pai. Com carinho se fundem, no expansivo amplexo de braço amoroso e longo apertando o peito amado. O igarapé deve participar do sentimento de quem por ele desemboca no rio: – a

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consolante alegria de chegar, depois de sombriamente curtir a triste vida, encerrado na opressão de uma floresta. Vem o prodigo, vem, vadeoso... Torcendo-se na ânsia que o conturba, entre vagares de fadiga e vertigens de adoudado, faminto e namorado, em trégua à calamidade que o fustiga, esfolegando amortecido no enlevo do sonho que o absorve... Unicamente em fins de julho começariam os vapores a avançar do Riozinho da Liberdade para cima, acudindo à safra. Da última quinzena de março a essa data, a água se esgota pelo rasgão do rio; e o castigo dos barcos retardatários é ficarem ao alto das praias, com o casco escorado, em seco, enquanto em torno, plantados pelos embarcadiços, lavradores ad hoc por sedentários, os milhos pendoam, o feijão floresce e os jerimuns e melancias estendem-se, amadurando na areia os frutos enormes. Nenhuma esperança, em consequência, restava ao Souto, cujo estado se agravava, de ser ali colhido por um desses libertadores e providenciais «gaiolas». Resolvera por isso, deixando no Invencível o pessoal da turma, continuar a descer o Juruá ao encontro de condução melhor, apenas com o Miguel piloteando a montaria. A febre tenaz, rápida, tresvariante, era implacável. Os acessos não escolhiam hora; assaltavam o Souto em todo tempo, em desabrido vigor de cólera insaciável. Nas raras remitências do mal, o engenheiro erguia-se do jirau da canoa e, apoiado na tolda, ia olhando as margens do rio encardido e configurado num sulco, aos torcicolos, uniforme e infinito... Nem parecia ser o mesmo caminho, que percorrera no «gaiola» subindo. Os barrancos haviam despropositadamente alteado; as areias das praias favoráveis à sirga tinham crescido, contidas em moldura maior. Diante cada barracão estacionava, às vezes encalhada, a casinha de um banheiro flutuante. Pelas bordas, as paxiúbas, as iriarteas de Martius, alinhavam-se em pilares, com os seus capitéis farfalhantes de espathas e palmas brônzeas. Naquele suceder monótono, alongado por praias alvas e estirões sombrios, incidentes mínimos distraíam o Souto: – a lancha naufragada, sem toldo, adornada, com o resto de balaústres apontados nas bordas esfaceladas; uma «preguiça» na embaúbeira;

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o tracajá que mergulhava; gaivotas revoando num pipilar estridente; a jibóia em rolo, adormecida ao sol; o bando lerdo de «ciganas» intrometendo-se, nas ramagens baixas dos arbustos; fugindo por entre as ramagens altas... Em cada praia, onde verdejava o «legume», se armava uma figura para espantalho. Era preciso amedrontar as antas e capivaras, como as maracanãs, «papa-arroz», «viuvinhas» e finfins... Comprazia-se, o seringueiro na invenção dessas armações disparatadas, com o intuito útil de arredar quadrúpedes e afastar passarinhos, todos malfazejos às plantas ou aos grãos. Os simulacros iam da simples vara, onde se dependurava uns panos, flâmula ou lençol, até o arranjo em semelhança de um homem com chapéu alto. Pelas lavouras fáceis, que a água se incumbia de lavrar a terra e o seringueiro de semear, dir-se-ia a única população regional, essa, imóvel, pungitiva, extravagante, paralisada, muda, em atitudes coreicas de uma dança de São Vito, entre os curutos dos milhos e as ramas dos feijoais. Interessava, afinal, a galeria estróina de vultos grotescos pelas voltas desamparadas do rio. Um, espasmado, enganchava-se numa cruz de arremedo sacrílego a sagrado martírio; outro, enrolado numa capa, parecia inspecionar com ar sombrio os estolhos da plantação; outro semelhava um soldado de guarda; outro, um enorme vampiro; outro ainda fingia mulher, acalentando um filho... Uma desbragada fantasia na modelagem desses esboços achamboados, homúnculos e animais, seres tronchos de varas e molambos. Quando o vento vinha, animava a muitos dos bonecos de engonço. Balouçavam então, como enforcados; e os trapos das mangas, ou das saias, ou dos mantos abanavam afligentes; bamboleavam gingões, burlescos, esperneando no agitar de estortegadura macabra. Simples retalhos, na ponta das hastes, davam a ilusão de lenços em uma despedida angustiosa, ou de estandartes rotos em vendavais estranhos; o que imitava asas adejava; e o que fazia de braços acenava. Na cinza vesperal aqueles manequins albardados enegreciam-se lembrando carvões de Goya...

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Durante toda uma semana a «Tartaruga» foi passando a revista daquela guarda funambulesca das culturas na vazante. Na várzea roçada de pouco, na boca do Moa, desdobrava-se um acampamento de forças do Exército, que na marcha de jabutis, ou de guaiamuns num mangue, iam operar no Amônia. Notas de corno-clarim rompiam em acentos argentinos a região brenhosa, pasmada a essa inesperada visão de pelotões e disciplina de guerra. O vermelho garance dos uniformes, o branco das tendas, mimoseavam a mata de inflorescência desconhecida. Um colega «de Escola», alferes-aluno, reconheceu o engenheiro. Convidou-o a saltar em terra; prodigalizou-lhe enfim mil atenções de enfermeiro e de irmão. Desgostara, porém, ao Souto, esse estreito círculo de tarimba: – choco de paixões humanas no largo virginal de um sertão. O que tinha a soldadesca de devotada e bem disposta, tinham os oficiais de macambúzios e queixando-se de tudo, maldizendo-se, forjando intrigas, ou discutindo política. Uma frouxidão d´alma caracterizava esses indivíduos, aos quais, pela maior parte, faltava evidentemente um completo e rijo treinamento físico e moral. Eram militares; e, o que lhes reservava a profissão de sofrimento e desconforto dava-lhes azedume, torcia-os de rancor! Comandar a guarda, dar o «estado», ou assistir a uma «ordem», nisso criam poder limitar as funções, nortear os ideais e pompear-se a vida! O país não deveria preocupar-se em fazer traduzir do alemão e do francês a arma, o fardamento, a viatura e a manobra; mas, preparar os seus assoldados para a Defesa e para a Morte, no culto e formação das dedicações serenas, que nada reclamassem no sacrifício... Assim pensando, irritado, deixou o engenheiro o aquartelamento dos expedicionários, enquanto pela manhã se ruborizava o céu ao comovente estridor do toque da alvorada. Esse ritmo lancinava. Parecia dizer a mágoa funda desses forçados de uniforme que, proscritos da Pátria, tivessem feito uma alta no lodaçal amazônico. A floresta e o rio beberam empedernidos o melodiar pungente das cornetas. No escorrer do esgoto por um fosso de drenagem, as águas continuaram a abrir o caminho à montaria do Souto, até que, por mandado deste, o Miguel a fez encostar a um

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barranco escalavrado, ervecente de membeca e «malicia», onde a subida esboroada mal se divisava. Souto, apoiado em Miguel, pôde galgá-la, tomado de uma penosa debilidade. Foi-se arrastando pelo aclive forte, como uma rês exangue, empurrada ao cutilão do carniceiro. Na grimpa do barranco, um capitarizeiro matizava-se aparatoso de flores jalnes. No terreiro, juritis que ciscavam, tomadas de susto, abalaram para o refego dos arbúsculos. A muito custo alcançaram o estrado da tapera de jarina, que estava toucada, na aberta da mata, da maravilhosa floração de um grande roseiral. Aquela ruína, estupeficante de miséria e abandono, engalanava-se de corolas todas vermelhas, bocas rindo no sorriso divinal das pétalas espalmas junto à tristeza da alma da tapera; e, rindo ainda, as rosas álacres, até se despetalarem escarninhas daquele infortúnio que chegava, como se viesse a buscá-las, para perfumar-se e socorrer-se delas! Onde estariam as mãos românticas e amorosas que as teriam plantado, na fantasia extrema e delicada de povoar lascivamente a solidão de um «defumador» de borracha daquela festa floral de um jardim de fadas? Mãos ásperas e maltratadas, mãos de seringueiro, ao redor do casebre, foram sem dúvida, dia a dia, chantando pelo solo as mudas dessas roseiras. Depois, o mocambo desprezado caía em desmantelo, no desamparo, pedaço a pedaço, aos aguaceiros de dezembro, ao chicotear das ventanias... Em despique as roseiras destratadas cresciam furiosas, ao refrigério das chuvadas, ao embalo quente dos alísios, aos beijos do mormaço, solitárias, voluptuosas, abraçando-se às vergastadas do vento, no entrelaçar afagante e carnal dos cálices e ramas. Uma cova enfeitada na primavera, esse rancho apalhado... Talvez, dedos misteriosos de bruxas colheriam as rosas, a meio de alguma noite de prodígios, para festões de um sabbato; talvez sombras dantescas de amantes, encarceradas na tapera, se ornariam das rosas, consolando-se no florejar suntuoso desse degredo... Miguel armou a rede do patrão enfermo e foi preparar o lume. Dois «rouxinóis», chilreando, saltitavam vadios no «capote» das palhas do teto da choupana. Voejavam mutucas pretas, sanguissedentas. Souto não dava acordo de si,

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exinanido na pirexia tremenda. Ao fundo da rede era um fardo; tinha o aspecto de viver, que lho dava o dolorido arfar de dispnéia. O corpo, no afogo, comburia numa pira invisível. Fora, em semelhante fogueira, a natureza febricitante ardia. O sol despejava na tapera e no roseiral um metal fundido e translúcido. A gloria do dia, a pino, exprimia-se no desespero de abrasar tudo. Aquele recanto da terra dourava-se a fogo. A água espelhenta do rio era aço liquido, borbotado de um forno, escoando-se no molde. Não havia folha que bolisse, todas anerviadas na estagnação geral. Em volutas deléveis, o fumosinho lento do fogo, atiçado pelo Miguel, espiralava-se com dificuldades no ar de fornalha. Zioziavam cigarras ocultas nos bastidores da mata, chiando em prestissimos e ralentandos o motivo do seu canto bucólico... Ao pôr do sol caldeante a pompa flavescente do dia descorava, escurentando-se; empanavam-se os seus ouros rútilos e irradiosos ficavam os seus diamantes. Vendo que o patrão sossegava, Miguel, às pressas, engolindo o chibé, saiu a sondar os arredores, a buscar alguém para com ele assistir ao doente. E, provavelmente, haveria um socorro... Na ausência do Miguel, o desgraçado Souto ergueu-se de repente da rede. Tiritava incendiado. Tendo descido do estrado para o meio do roseiral, ele agitava-se todo em gestos convulsionados, num delírio de ação, apontando em ameaças às arvores em torno. E repetia frases que se estrangulavam, delindo-se em murmúrios: «Minha terra... Os meus... Minha terra, que deixei...» Em dado momento atirou-se às rosas, e as arrancava das hastes, sangrando-se nestas. Procurava cobrir-se das corolas despedaçadas; levava-as à cabeça, tentando delas coroar-se anacreôntico, num triunfo que não merecesse. Logo as repelia de si, ajuntando-as depois, beijava-as e procurava esmagá-las com os pés. E, lamentavelmente ferido, o Souto, tropeçando, debatendo-se no roseiral, desflorava-o, ceifando-o num desancar de tufão. Justamente quando o Miguel chegava, acompanhado de um seringueiro, ele caía no estendedouro do rosal, apostrofando à mata, esposada com o rio:

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– Inferno!... Inferno... Verde! Os dois recém-chegados acorreram apiedados. Mãos e face ensanguentadas, dando a idéia de que a luta com adversário invisível e execrável tinha sido corpo a corpo e a unhadas, o engenheiro, no meio das rosas, na ocasião de ser erguido, morria num sorriso de alívio, à frenesiada crispação dos seus músculos atrictos. Não houve eco que apanhasse e devolvesse as palavras de fel dos lábios do Vencido. A terra ambiente com elas ganhava o dístico e o ferrete: – inferno verde! Mas essa terra que, matando o aventureiro, o estemava de rosas, poderia no entretanto responder: «Perdôo-te e compreendo o estigma que me lanças. Fui um paraíso. Para a raça íncola nenhuma pátria melhor, mais farta e benfazeja. Por mim as tribos erravam, no sublime desabafo dos instintos de conservação, livres nas marnotas pelas bacias fluviais afora. Ainda hoje, o caboclo, sobra viril desvalida nos destroços da invasão, vive renunciado e silencioso, adorando-me e bendizendo: – seu repouso edênico, sua plaga abençoada, seu recanto pacifico, na herança fetichica e venerativa dos povos autóctones de onde proveio. Diante os insucessos da avidez do «branco», o nativo murmurará: «Contudo aqui se sofre, mas ainda se aguenta...» Se não paraíso, ser-lhe-ei um purgatório, no qual ele expia conformado a sua impotência, na dilação impiedosa da Justiça, que o reabilitará em suma, rememorando a sua história de heroísmos obscuros, na luta com as fatalidades sociais que o esmagarão completamente. Inferno é o Amazonas... Inferno verde do explorador moderno, vândalo inquieto, com a imagem amada das terras donde veio carinhosamente resguardada na alma ansiada de paixão por dominar a terra virgem que barbaramente violenta. Eu resisto à violência dos estupradores... Mas enfim, o inferno verde, se é a geena de torturas, é a mansão de uma esperança: sou a terra prometida às raças superiores, tonificadoras, vigorosas, dotadas de firmeza, inteligência e providas de dinheiro; e que, um dia, virão assentar no meu seio a definitiva obra de civilização, que os primeiros imigrados, humildes e pobres pionnieri do presente, esboçam confusamente entre blasfêmias e ranger de dentes. Pobre jesuíta vaticinou-me, na escuridão fria de um ergástulo, que eu seria «delicias dos homens, regalo da vida e inveja do mundo». Outros virão, os felizes, na terra semeada e desbravada, meter o alicerce fundo da urbs, onde foi o abarracamento provisório do

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settler. Tanta lágrima e tanto sofrimento são o apanágio do passageiro tempo, que antecede as vitórias... Não se me vence a sorrir... Exijo os sacrifícios que os antigos deuses reclamavam: sangue e morte. A expiação vale, porém, a apoteose. Que um Poeta solenize, no esplendor de estrofes perfeitas, as Vítimas e a Derrota; o fecho do poema aludirá ao meu Destino, à gloria do VALE FECUNDÍSSIMO – reino das Águas correntes, horto das Orquídeas e Palmeiras, império das Heveas e Uaupé assús!...» E a terra ínvia, confortada e desdenhosa em sua nobre serenidade profética, acrescentaria: «Oh! Infeliz Invasor! Fadejas desenraizado, descontente, praguejando, mas fertilizas... Por ti sou denegrida; que importa! Impassível, porém, aguardo as gerações que hão de seguir, cantando, o carro de meu triunfo!» Contudo, a terra insonte ficou silenciosa desse silêncio dos mundos incriados; e o homem imobilizou-se num sono tranqüilo, na paz da Natureza indiferente à Ignomínia e ao Despeito... Adiantando-se a tarde, o caboclo Miguel começou a algumas braças da tapera, vagarosamente, a cavar uma sepultura.

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O Sangue do Vigario Galpi A geada cahira abundantemente durante a noite; ao romper da aurora os campos alvi-nitentes pareciam de prata e das grotas erguia-se densa neblina, que semelhava veo enorme, com que a terra ao despertar ia cobrir-se para evitar o olhar indiscreto do sol. Pelas encostas, pelas lombadas, pelos cumes dos montes desdobrou-se ella, arrastada por invisivel mão até os pincaros da serrania distante! envolvendo em rapidos minutos a terra nas suas dobras profundas. Atravez della destacava-se, como apagada illuminura de um quadro, a cruz da igreja e o grupo de casinhas de S. Bom Jesus dos Perdões. O silencio em que se quedava a natureza era profundo! nem o canto da patativa; nem o estridulo do grillo, que o frio enregelava; nem o rugir da cachoeira, cuja voz a nevoa ensurdecera; nem o mugido do touro, occulto por entre as arvores da restinga, se ouviam; o homem, mesmo o homem estava sepultado no somno ou tiritava ao fogo do lar. Como enorme chrysalida a terra esperava o momento da sua metamorphose. Os germens da vida estavam encerrados em completo quietismo nas dobras desse inerte casulo – que ao romper-se os tentaria ao mundo formosa borboleta, ou venenoso insecto: – a virtude, ou o crime! O som de uma aldraba e o subsequente ranger de uma rotula erguendo-se quebraram o silencio e parecerão querer despertar a solidão. Cabeça de mulher, cujos negros cabellos e moreno semblante contrastavam com a alvura da neve, banhando-se na neblina, como ave que desperta antes da aurora e recolhe apressada a cabeça friorenta sob a quente asa, assim ella espreitou à direita e à esquerda cerrando incontinente sobre si a gelosia. Em seguida a porta da casinha abriu e um negro vulto esguerou-se por entre

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as casas raras e desertas ruas, sumindo-se em breve, envolto pela nevoa, como batel, perdido em meio da cerração. No quarto interno da casa bruxoleava a luz de uma candeia e no leito revolto e abandonado sentou-se a solitaria e só moradora d´aquella habitação. Scismava. A melancholia imprimia-lhe ao semblante um tom branco e sympathico; na lisa fronte estampava-se a mocidade; no olhar languido da marabá lia-se a paixão; nas faces abatidas o soffrimento e na pallidez dos labios o pesar. A longa e negra cabelleira descia por sobre os hombros, mal cobrindo os seios erguidos, que alva e negligente camisa em abandono deixava entrever; as mãos emmagrecidas, sinzelladas a primor, cruzavão-se no regaço, desenhando as dobras da saia as linhas correctas das pernas, terminadas em pés pequenos e mimosos. O olhar estava parado e fixo no chão. Scismava. O labios murmuraram por fim, parecendo proferir uma prece, que terminou em prolongado e dolente suspiro. Ergueu os olhos do chão e foi pousal-os no crucifixo, pendurado á parede; embebendo-se na contemplação da sagrada imagem, casando a sua magoa á della, estampada no rosto ensanguentado. Deixou-se resvalar pela borda do leito e cahiu de joelhos. Os olhos inundaram-se de lagrimas, que, batidas pela luz avermelhada da candeia, aljofraram-lhe o semblante como fios de perolas. – Meu Deus! exclamou; aqui na Tua presença, esquecida do Teu poder infinito, offendi-Te, Senhor, tornando-me indigna do Teu perdão e da graça da Tua Mãi Immaculada Maria Sanctissima. Pequei, Senhor. Cega pelo demonio, não Te vi, surda pelo peccado, não Te ouvi, douda pelo amor, não pensei em Ti. Perdoa-me, Senhor. Sinto que as minhas entranhas se corromperam e que nellas gerou-se o filho do peccado! Não sou digna de Ti; mas deixa, Deus Misericordioso, germinar o fructo do meu ventre,

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que elle Te dará em dobrado amor, o que perdeste com o meu crime e o meu peccado. Perdoa-me, Senhor. Abençoa-o meu Deus. As lagrimas corriam em torrentes. E tão puras e tão sinceras brotadas do rochedo da fé, ao toque da vara magica do arrependimento, que limparam o seu coração de toda a macula do erro. Aos olhos da peccadora arrependida a Sancta Imagem animou-se, uma gota de seu sangue liquefez-se, rolou pela sagrada face e tombou sobre o seio da criminosa, immiscuindo-se com as lagrimas tão devotamente derramadas. A Magdalena estava salva! Bemdicto o fructo do seu ventre. As lagrimas da mãi arrependida e o sangue do Deus Clemente constituiram as primeiras moleculas do ser que se gerava e as orações maternas, a humildade da virtude, o pensamento volvido sempre para o Céo, insuflaram-lhe os primeiros movimentos do espirito vital. Nasceu o menino. Sobre o coração delle estava estampada a imagem de uma gota sanguinea: era o signal de que pertencia a Deus, o emblema do novo Crusado. A infancia passou-a elle recebendo as caricias, ouvindo as orações maternas no sanctuario da familia, ou nos degráos do altar. Fez-se homem e fez-se padre. Dedicou-se á terra de seu berço, amando-a, com esse amor severo dos juizes incorruptíveis, cheio de sanctas indignações, cóleras tremendas; que não se abatem nem contra a ferocidade dos crimes, nem perante as multidões enfurecidas; coleras que só se acalmão para dar lugar ao perdão, premio dos regenerados! Coleras divinas! Em seu peito havia um oceano de amor placidamente folgaz ao sopro das brisas da caridade; impetuoso, rugidor quando batido pelas tempestades infernaes em revolta contra Deus dos vícios e dos crimes.

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Estes tinhão então pasto abundante na ambição dos homens, instigada pelo ouro, que a terra mineira com exhuberancia offerecia das suas entranhas; na brutesa dos tempos; na origem adventicia dos indivíduos, que de longe, trazidos pela sede de riquezas, vinham sacial-a nos corregos auriferos dos Geraes. Aventureiros d´aquem e d´alem mar, por todo o Valle do Rio das Mortes, pelos serros alpestres de Ouro Preto, pelos territorios de Ouro Branco, pelas campinas de Paracatú, por Sabará, por toda parte emfim onde uma pisca de ouro faiscava ou uma simples suspeita o denunciava, arrojavam-se com furia insana, resolvendo as entranhas da terra, rasgando as serras, desviando o leito dos rios, como se fosse um povo de Titães amontoando montanhas para escalar os céos! Todas as religiões, todas as raças, homens de todas as origens, representantes de todas as nações; o branco, o negro, o pardo, o mameluco; todos os sexos, todas as idades; o rico, o pobre, confundiam-se sacrificados ao Bezerro de Ouro! O lavrador, esquecido de seus placidos serões, o artesão deslembrado de seus alegres cânticos, o padre despedaçada a batina, o pastor abandonado o rebanho, o homem sem familia, a mulher sem esposo, a criança sem innocencia mergulhavam-se nas bêtas profundas, certos de ahi acharem a sepultura, se as montanhas esboroassem, ou se torrentes subterraneas surprehendessem-nos. N´aquelles antros reinava feroz alegria, satanicos prazeres, diabolicos amores. A luxuria expellia o pudor e a flor da virgindade ainda em verde botão era colhida! O latrocínio, o roubo e o assassinato eram as ultimas conseqüências desse esforço cruel e a miseria a derradeira estrophe desse terrível poema de infernal ambição! S. Bom Jesus dos Perdões também teve o seu dia. Homens desconhecidos, esquivos, suspeitosos appareceram em Bom Jesus. Dizendo-se lavradores percorriam as ribeiras, sondavam os valles. Eram os primeiros exploradores. Onde o esmeril formava o seu negro deposito as enxadas cavavam a terra, e as batêas revolviam-na. As piscas e as folhetas eram occultadas, guardando-se a mais profunda reserva. O ouro, porém, tem uma voz mysteriosa, que se denuncia por arte de

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magia desconhecida, attrahe para junto de si todos os que se deixam seduzir pelo seu brilho e dominar pela ganancia da sua posse! As primeiras fecundas bateadas no S. Bom Jesus foi como o toque de rebate, que poz em alvoroto toda sua população e os mineiros que em outras e longinquas partes ouviram a fama do novo descoberto. Em pouco tempo a asafama, o bulicio, o tumultuar de aventureiros quebraram a paz do pequeno povoado, chamado ás lavras a população inteira da terra. O padre de S. Bom Jesus contemplava aquelle expectaculo com magua do seu coração. O templo ficou deserto de fieis, os lavradores da santa seara, dominados pelo demonio da ambição, deixaram-na sem cultivo e o fructo celeste perdia-se no abandono, sem que houvesse terreno para semeal-o. O sino da capella em vão chamava os filhos de Deus á oração. Os passos do vigario só resoavam na deserta nave. O santo holocausto era feito sem que os remidos por Jesus confessassem a sua culpa, a sua grande culpa. A benção do celebrante perdia-se no espaço; porque uma só cabeça não se curvava para recebel-a. Percorria elle as ruas desertas e silenciosas do pequeno arraial; e ao sahir ou ao recolher-se a casa, não ouvia as saudações amigas e respeitosas de tempos ainda bem proximos. As negras cruzes pregadas sobre as portas cerradas das casas pareciam transformar aquelle risonho sitio em extranho cemiterio, como se cada habitação fosse um mudo sepulchro. Reinava alli a paz dos mortos, o silencio das necrópoles! Meditabundo, opprimido por pensamentos dolorosos dirigio o vigario os passos para as minas, onde a multidão agglomerada lutava com a terra para arrancar-lhe do seio a occulta sementeira de tão grandes males. Ahi chegando, o espectaculo que seus olhos contemplaram foi horrível! O espirito recusava aceitar os conhecimentos, que lhe forneciam os sentidos alterados. O coração recebia punhaladas e o pensamento chocava-se ao accumulo de horrores sobre horrores! A alma do padre confrangeu-se, como se quizesse evolar-se: por fim o seu

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peito rugio como o leão encarcerado e a palavra vibrante de cólera, tremente de indignação retumbou como a voz de Jehovah, sahida do meio da sarça ardente para condemnar as prostituições do seu povo. «Abandonaste Deus pelo Demonio, povo, bradou elle, sacrificaste a pureza da tua vida á louca ambição de possuir o que nunca careceste! Marido, onde está tua mulher? mulher, onde está o teu esposo? pae, onde está tua filha? filha, onde está tua mãe? Ah! não sabeis; desceram para as trevas do Inferno! Deus, retirae a cegueira dos olhos destes infelizes, abri-lhe os ouvidos á verdade, a alma ao bem. – Ouro, demônio, fugi!» Ao proferir esta exclamação os veeiros desappareceram da terra, as batêas só deram cascalho. O ouro fugira! Um grito de espanto e logo após um brado de vingança partiu do peito da multidão indignada. Apupado, redicularisado como Jesus, ferido, sangrento, levado de rojo como Christo pelas estradas e ruas do Bom Jesus, o padre, á porta da casa onde o filho de Deus perdoara a mãe criminosa parou, ergueu-se, fazendo recuar a multidão, que vociferava. Com o sangue, que manava da sagrada corôa desenhou na porta da habitação a imagem della e com o que do peito corria, escreveu o seu nome. «Não és digna, terra maldicta de possuires tão formoso nome. Não durarás mais que este sangue, que teus renegados filhos derramaram. Desapparecerás com elle: cada uma das suas particulas, que o tempo diluir e apagar corresponderá a uma desaggregação do teu solo, até o teu inteiro desapparecimento da face terra.» Soltou o derradeiro alento da vida e expirou. _____________________

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A sentença do padre cumpriu-se. S. Bom Jesus dos Perdões viu as suas casas cahirem uma a uma. O solo roto, fendido pelas erosões das aguas de anno em anno modifica-se, rompendo-se em profundos sulcos. A esterilidade mata-o! O sangue do vigário clama vingança.

A noiva do golfinho Xavier Marques

I – “Havia uma linda tinharense chamada Marina, que era também a mais singular de todas as criaturas...” Viveu em Tinharé, nas águas alterosas do sul. Essa ilha é formada por um alto morro sempre afligido dos ventos fortes que correm da banda de leste. Quando os temporais conflagram o oceano, a grande ruga de terra parece muito mais longínqua e inabitável; as suas palmeiras de longos caules vergam e rangem como as cordagens dos navios em tormenta. E se os ares abonançam, fujam as nuvens, brilhe o sol ou paire sereno o luar, fica sempre nas costas o eterno alarido das marés, sob os gritos das procelárias que futuram novas insurreições marinhas, naufrágios, lutas e agonias de marinheiros.

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Foi ali, mas em tempo já muito antigo, quando a roca de Tinharé não dardejava ainda a torre nem o lume do farol, que viveu e morreu aquela, cuja história de amor tanto comovia as raparigas de sua condição. Talvez ainda a conte alguma velha avó, como as de outrora, sob o puxado das casas de palha, lá no cimo do morro, à hora em que num horizonte imenso, cavado e tão profundo que alucina os olhos e a alma, começam a murchar os jardins de violetas e os rosais do crepúsculo. Era a essa hora que costumava transitar pelas praias o espetro amoroso da infeliz que esteve para noivar com o mais esquisito, o mais misterioso de todos os noivos. Depois vinham as sombras da noite envolvendo as bordas da ilha, onde se punha a roncar o terrível gargantão, comedor de pescadores e marinheiros; nos casais do morro conchegavam-se os vizinhos, unidos pelos mesmos sonhos e terrores que desciam com as trevas: e as velhas avós, acabando de narrar o idílio trágico da malfadada, deixavam errar mais um mistério sobre as rochas ermas de Tinharé. II

Eis o que elas contavam. Havia uma linda tinharense chamada marina, que era também a mais singular de todas as criaturas da ilha. Sua morada era antes o campo e as praias do que o palhote, onde participava do sustento de um casal de velhos. Daquela cor de leite coalhado não havia senão ela no lugar. Era delgada como um palmito e leve como uma pena: leve de corpo e de juízo. Os olhos tinha-os um nada sombrios, tirando a azul, e os cabelos, tão sutis e assedados como os fios de uma teia de aranha. Nisso, como em tudo mais, ela se punha fora do vulgar, semelhante a uma ave estrangeira vinda pelo céu, num dia de tempestade, para espantar as aves ribeirinhas de Tinharé, que a desconheceram sempre, sempre até à morte. De comum com as outras

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apenas tinha o falar, isto é, as palavras com que dizia as mil extravagâncias que lhe acudiam à mente. Que tivesse pai ou mãe ou parente qualquer, nunca ninguém o soube. Nas ilhas aparecem às vezes desses entes solitários como elas mesmas. A gente, contudo, mal se satisfazia com esta razão, e por muito tempo não se cogitou de outra coisa. – Donde veio Marina?... De algum navio naufragado nos bancos de coral? De algum barco onde acaso viajava a mulher que se arrependera de a ter dado à luz? Teria sido entregue às ondas dentro de uma barquinha ou de uma condessa, como aquele inocente que passava na correnteza do rio e foi salvo por uma princesa?... Depois ninguém mais indagou da origem de Marina. O gênio caprichoso, as excentricidades, as louquices dela fizeram esquecer esse enigma. Em vez de perguntarem de que parte e como viera à ilha, perguntavam todos com pasmo quem havia formado naquele corpo franzino de criança um coração tão poderoso para resistir e tão soberbo para desejar. Oh! não, nunca se vira em gente humilde um desejo tão alto, nem tão pouca resignação ao seu destino. Se bem a entendiam, ela queria colher à mão os astros, como se apanham os malmequeres no vargedo. Ambiciosa e cobiçada nenhuma o foi jamais como a linda criatura. Mas pobres daqueles que se enamoravam de Marina: ela não lhes dava mais esperança do que os vagalumes dão luz. Se um instante os escutava, dias e semanas fugia até de vê-los. Procuravam-na, espreitavam-na e lá iam encontrá-la nas dunas da costa ou na crista de um rochedo, sozinha e pensativa, como que à espera de embarcação ou de alguém que lhe houvesse prometido entrevista. Andava cega pelas ondas ou por alguma visão que só a ela aparecia por cima das águas. – Quem será? E os tinharenses moços a rogar, a implorar-lhe piedade. Porque eles sofriam, coitados! sofriam constante e duríssimo desprezo, que é a maior pena de amor. Se eram bons faziam-se melhores, a fim de merecê-la. Trabalhavam dias inteiros no mato a

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cortar piaçaba, pelejavam na pesca e marinhagem com borrascas e calmarias. Como eram tidos por famosos indolentes, puniam-se com aturadas labutações; que assim é que eles catavam a confiança das raparigas que apeteciam por amantes. E todas elas amaram, deram marinheiros ao mar e cultivadores às vargens. Só a caprichosa Marina se recusava à lei da tribo, querendo, pelos modos, imitar a figueira que negou um fruto a Nosso Senhor. – É uma ovelha brigada com o rebanho... Assim diziam as outras, não menos escandalizadas pelo contraste da sua vida, sempre ao revés dos gostos, dos sentimentos, do pensar e das maneiras comuns. Quando todos riam, ela se mostrava amuada e triste. Se um temporal sobrevinha, atordoando o morro com o estrépito das vagas, toda a gente se recolhia silenciosa; mas agora é que era ver Marina aos saltos, cantando, rebentando de alegria. Sua voz acrescentava às cantigas mais sabidas umas toadas, uns retornelos de paixão e melancolia estranhas. – Quem te ensinou essa toada, Marina? – Foi o mar – respondia. No meio do canto, repentinamente, calava-se, lançava suspiros à-toa e muitas vezes acabava enxugando os olhos com a teia esparsa dos cabelos. Assim vivia a desditosa num ansiar sem repouso, abrasada por uma sede sem aplacamento. Vela que transluzisse no horizonte fazia-a cismar como uma estrela que corresse no céu. Barco que aproasse à ilha, esperava-o a pé quedo, no porto, com o coração em frêmitos. Sumia-se a vela; do barco desciam os costumados, os vulgares tinharenses. Marina voltava, ora triste, morta de tristeza, ora agastada, mais intratável que um bicho. Criam muitos que ela amava, que curtia uma grande paixão de homem desconhecido. A dificuldade estava em explicar-se onde vira esse homem, que ninguém nem por sombra o encontrara naquele monte de terra, cujos habitantes, sem excluir os próprios animais, andavam pisando os mesmos sítios e caminhos.

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Um dia, enfim, depois de violenta marulhada, achando-se ela no topo de uma escarpa, de frente para o oceano, alguém se aproximou e pôde ouvir-lhe a súplica inaudita que dirigia às ondas ainda ressentidas da tempestade. – Mar, ó mar dos golfinhos encantados e das sereias feiticeiras, que é do meu amado marinheiro, aquele que me prometeste e por quem anseio mais que as tuas ondas? Traze o meu noivo, ó mar querido, que já não tenho suspiros no peito para lhe mandar! Desde então, sempre que Marina desaparecia da chã do morro, era certo estar pousada em algum seixal da costa, a falar com o oceano essa língua que só assentava na loucura ou nos lábios cabalísticos de alguma bruxa. Quando subia, era mais muda que as pedras; os olhos semicerrados, fugidos com horror deste mundo, como que os vasara para não ver os pobres colhedores de piaçaba que andaram a ferir os pulsos nas palmeiras de espinho e agora desafogavam o peito em cantigas dolentes, capazes de comover os penhascos. Enquanto eles padeciam, a visionária sonhava. Passava dias longos dentro do seu sonho, donde só se desprendia aos primeiros uivos do temporal. Ei-la de novo a folgar, a cantar e a dançar. Isso fez compreender aos tinharenses que o marinheiro prometido devia chegar, como as aves da procela, num grande ruge-ruge de ventania e chuvas. A certeza desse amor agourento e quase fantástico teve-a a gente do morro uma manhã em que Marina, acordando de bom humor, contou às vizinhas: – Sonhei que um navio tinha ferrado na costa da ilha. Era todo branco e brilhava como um navio de prata. As velas alvejavam como as roupas do coradouro ao luar. Na proa trazia duas figuras, que eram dois golfinhos de ouro, com as caudas retorcidas voltadas para o céu. Veio de bordo um moço corado e lindo, que parecia mais um príncipe do que um marinheiro, e subindo a este morro, chegou-se a mim e disse: – “Bela menina, há muito tempo que te procuro, saltando de ilha em ilha, de praia em

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praia, trazido pelas ondas e pelos ventos que me levavam teus suspiros e queixumes. Sabes quem sou eu? Sou o príncipe dos marinheiros. Aqui estou e venho buscar-te... prepara-te e segue-me, se é do teu agrado”. E Marina, crente e feliz, pôs-se a girar como o fuso nas mãos da fiandeira. Entretanto foram correndo as semanas e o marinheiro não chegava, nem com tormenta nem com bonança, em navio de prata ou barco de madeira. Pelas praias e grotas e ambiciosa criatura continuava a penar, a gemer e a exclamar: – Ó mar dos golfinhos encantados e das sereias feiticeiras, que é do meu amado marinheiro, aquele que me prometeste e por quem anseio mais que as tuas ondas?...

III

Um dia, tendo descido a escarpa do morro, logo às primeiras claridades da manhã, Marina afastou-se até sumir-se, do tamanho de um pássaro, nas areias espessas do litoral. Havia passado um rebojo; aves pesadas sulcavam o céu, baixando às vezes até molhar as penas na espumarada do oceano. As rochas marinhas, os morretes de pedra verdejavam de camadas de limo que as marés de água-viva tinham criado, na conjunção da lua. A tinharense demorou-se horas esquecidas, mas quando apareceu não cabia em si de contente. Nas faces de leite coalhado fulgia-lhe uma luz de nácar puríssimo, o cabelo esvoaçava, os olhos dilatados e mais azuis ardiam em febre de alegria. E ela chilrava como uma andorinha a fazer verão. – Que viste hoje, Marina? – Vi o meu amado. Vira-o de fato. Depois de tanto suspirar, de tanto ansiar, de tanto gemer, o mar lhe mandara o prometido e desejado amante. Não viera em nave de prata nem esquife de

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madeira: ela o encontrara de súbito, encostado a um morrete verdejante, ao pé da escarpa que se abria em grutas habitadas por aves marinheiras. Belo, feiticeiro, fresco e palpitante como um peixe n´água, tinha o ar de quem dizia: “Pensavas que eu não vinha, amor? Pois aqui estou”. Era fielmente aquele que ela trazia retratado na mente, – marinheiro e jovem, de cabelos ruivos como as barbas da lagosta, o rosto vermelho da lustrosa cor dos salmonetes, os olhos amorosos, esverdeados, profundos como os abismos onde flutuavam as querenas de seus navios de sonho. Sua voz (ele falou-lhe) era um murmúrio doce e branco, só comparável ao rumor dos mimosos búzios que ela gostava de escutar; seu sorriso (ele sorriu-lhe) deixou-a fascinada como o brilho de escamas dos alvíssimos dentes... E agora, todas as manhãs, partia Marina do puxado da casa e lá ia esconder-se com a sua felicidade nas grutas mais silenciosas, longe, entre as eriçadas fragas da costa. Passava quase os dias inteiros nesses retiros, em colóquios misteriosos com o noivo, de quem contava maravilhas, o lindo noivo que a enchia de promessas, de carícias e lisonjas, mas que a ninguém aparecia e a quem todos viam somente pelos olhos da encantada criatura. – Que ele era esquivo, confirmava Marina, mas havia de vir, havia de mostrar-se e então julgariam do tesouro que as vagas lhe trouxeram. Supunham-no algum náufrago ou mareante fugido de bordo. Pelos traços que ela dava, seria estrangeiro, vindo por altos mares, dos países desconhecidos e tão remotos que parecem lendas. Muita moça do morro invejou a estrela da gloriosa tinharense. Como ela, desejavam ser loucas para ter sonhos de que assim despertassem. Os moços aquietaram-se e perdoaram-lhe o orgulho e os desdéns, porque ela, enfim, já amava. Os velhos rogavam ao céu pela paz daquele coração que tanta piedade merecia. Todos os dias estava o noivo para subir ao casalejo; e cada dia se malograva a expectativa dos tinharenses.

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Decorreram tempos. Ninguém viu, de longe sequer, o marinheiro de Marina. As raparigas e os homens baldaram passos e tocaias; nunca atinaram nem com a gruta onde se refugiavam os felizes amantes. Já no espírito da gente nascia a suspeita de algum encantamento ou bruxaria, quando de repente se soube que Marina pedira ao casal de velhos um canto da casa de palha para morar com o adventício que viria a desposá-la. Ela por sua vez fazia aprestos de noivado, dizendo e jurando: – Está para breve... De tábuas de pau-louro mandou construir um leito sobre quatro toros. De macias flores de macela encheu uma colcha, que estendeu nas tábuas. A mulher que cosia rendas teceu-lhe fronhas para os travesseiros. Marina carreou a areia mais branca da praia e sessou-a numa urupema sobre o chão da camarinha, onde passou a queimar folhas aromáticas de alecrim. Nada mais faltava para as núpcias, a não ser quem lhes deitasse a bênção. Num domingo pela manhã foi anunciada a vinda do marinheiro. – Companheiras, ajudem-me a enramar esta casa para que se torne digna de receber o meu amado. Vieram do mato braçadas de folhagem fresca, ainda gotejante de orvalho, ramos de murungu que pareciam cobertos de borboletas vermelhas, cachos alvos de ingazeiro, lírios convales e regaços cheios de flores amarelas de S. João. As moças, amigas de folgar, pregavam palmitos e canas aos portais da casa, e com os cipós floridos das trepadeiras fizeram festonadas, que pendiam das vergas do palhote. O terreiro alastrou-se de conchas e juncou-se de folhas de pitanga. A casa dos velhos parecia um bosque sagrado, todo em flor, para as núpcias de uma ninfa. Vieram os bons cantores com as violas. Todas as suas mágoas se finaram, por não haver mais coração que disputar. Dentro de poucas horas iam conhecer o ente privilegiado que cativara e possuía o coração arisco da tinharense.

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Assim que o sol abrandou e no céu do morro, azul da cor do seu mar, começaram a desdobrar-se as nuvens róseas e douradas da tarde, Marina, com os cabelos ornados de junquilhos, saiu a correr pelo trilho escarpado, ao encontro do marinheiro que a esperava ao pé das rochas. Lá se demorou mais de uma longa hora. Mas com surpresa dos convivas voltou sozinha. – Teu noivo, Marina?... – Ele aí vem, ele aí vem... Soem as violas, para que haja prazer em volta do meu amado. As violas soltaram rasgados vivos e estridentes. Pararam. Repetiram as tocatas. E o marinheiro não chegava. – Ele aí vem... Dancem, companheiras, para que sejam de primor as boas-vindas do meu amado. As moças rodaram como fusos. Cantaram. Sapatearam. E o marinheiro não subia. – Ele aí vem... Ora esperem. Marina tornou a descer, mais rápida que uma andorinha no ar, com o cabelo espalhado a derramar os junquilhos de que se havia engrinaldo para as núpcias. Desceu e sumiu-se... Nisto as sombras caíram pesadamente, enrolando-se ao longo da praia. As nuvens do crepúsculo, de róseas fizeram-se roxas, de roxas tornaram-se pretas. Uma vasta mancha negra fechou num capuz o horizonte do morro, e um vento irado, esmigalhando vagas e vagas contra as penhas da costa, ganhou o cimo, passou esmagando as copas das árvores, que se punham a urrar, enquanto os caules das palmeiras gemiam. Maria não voltava.

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Homens e raparigas recolheram-se ao palhote, surpreendidos por essas trevas repentinas e por essa tormenta assombrosa, em que o oceano bramia pelas bocas de milhões de feras assanhadas, que em feras se haviam transformado as ondas. Marina continuava ausente! Palmas e ramagens eram arrancadas do terreiro e destruídas, como se lhes tocassem as mãos de iracundos demônios. A casa como que girava num vórtice; as próprias criaturas tinham medo de ser arrebatadas pelas refregas. Apelos, protestos furiosos articulavam-se no alarido da tempestade. O vento silvava maldições, o mar levantava clamores de vingança. Parecia que todos os gênios marinhos, peixes encantados, sereias, feiticeiras raivosas, acudiam das suas glaucas moradas para impedir a união dos amantes... Nem Marina, nem o marinheiro!... Só então se fez a luz sobre o mistério daquele amor desnatural... – Pai do céu, que horror! E ao espírito da gente surgiu, mas só então, no seu feitio verdadeiro, aquele que sob as formas enganadoras de homem tinha vindo iludir a ambição da triste e malfadada. Noivado, se o houve, foi no seio do abismo, no leito frio do mar, donde nunca mais voltou a noiva do golfinho.

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