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May 23, 2017 | Autor: Marion Brepohl | Categoria: Sociology of Sport, Contemporary History, Mídia
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O corpo do atleta ou a euforia do sucesso1

Coragem, espirito de aventura, virilidade, fortes emoções. São estas as características que recobrem, há mais de um século, a imagem de um jovem vitorioso, a ser imitado por todos. Herói individual e voluntarista, personagens reais ou fictícios, de toda a forma, idealizados, eles são admirados também por abandonar a sua vida cotidiana em busca de fama e de fortuna, como uma herança da expansão européia, quando tantas lendas foram narradas sobre a conquista do “Novo Mundo”. Sobre estes intentos, podemos afirmar que, se a maioria dos deslocamentos coletivos em ultramar, ou seja, as migrações em massa, deveram-se ao imperativo de superar o reino da necessidade (cuja coragem não era de forma alguma de menor monta), aqueles que se deslocaram para as Américas, a Ásia ou a África com um razoável patrimônio, o foram em busca do luxo: procuraram e acharam seda, marfim, café, chocolate, pedras preciosas, ouro, prata e perfumes. Para Calligaris, todas estas mercadorias eram, apesar de supérfluas, necessárias; simbolizavam distinção, pois na modernidade, o que importa não é onde e como nasci, mas como consigo me distingüir2, mesmo que isso me custe enfrentar riscos e perdas inerentes a qualquer viagem sem volta. Este segundo tipo de deslocamento territorial tem outra característica que me parece fundamental: a sedução pela velocidade. Sim, porque desde o cálculo do trajeto da viagem até o intervalo entre investimento e lucro, 1

Publicado na coletânea BREPOHL. M. , GARRAFFONI, R. & CAPRARO, A.

Sentimentos na História; linguagens, práticas, emoções. Curitiba: Ed. UFPR, 2012. p. 295-312 2

CALLIGARIS, Contardo. A psicanálise e o sujeito colonial. in: SOUSA, Edson Luiz André. Psicanálise e colonização. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999. p. 17

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passando pelo tempo vital de que se dispõe e levando-se em conta também o aprendizado e o conhecimento do outro, a aceleração pode ser determinante para o sucesso da aventura. Para compreender como e porque estas pessoas se tornaram alvo de tanta admiração e reconhecimento por parte daqueles que as conheceram ou leram sobre elas, geralmente, em um contexto em que as ações coletivas pouco ou nada desperatavam o interesse3, selecionei alguns personagens que me parecem paradigmáticos de tal comportamento: num primeiro momento, os protagonistas dos romances de aventuras; num segundo momento, os campeões desportistas das últimas décadas do século XX, tais como são representados nos meios de comunicação. Interessa-me, sobretudo, entender a estética da velocidade como estética de desaparição, desterritorialização, movimento que, contrariamente ao ritmo da natureza, passou a ser emulado como universal. A coragem como força

Dentre as inúmeras elaborações estéticas produzidas à época do Imperialismo, podem ser destacados os romances de aventura que enalteciam o homem branco europeu, autoconcebido como portador de uma missão: o ato civilizador em ultramar. Estes protagonistas, tais como Dr. Kurtz, Halwkeye, Tarzan, Old Shaterhand, entre outros, foram descritos como seres viris e valentes, atuando de forma solitária, com uma intrépida certeza de seu destino: ultrapassar qualquer obstáculo por meio de sua inteligência e destreza, alcançando desta forma a vitória, fosse esta traduzida pelo enriquecimento, e ou pelo domínio do outro de sua cultura. O desejo de ultrapassar limites e de vencer se reproduzem também nos dias atuais. Na América Latina, isso fica claramente perceptível com respeito

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Segundo Hannah Arendt, não por acaso, estes personagens são mais perceptíveis no final do século XIX, quando a ação pública vai se tornando cada vez mais rarefeita ou, pelo menos, pouco visível. Aí, a competitividade e a sorte tornam-se o árbitro final da vida em sociedade, tendo em vista a atração pela felicidade individual. A este respeito, ver: ARENDT, H. O sistema totalitário. Trad. de Roberto Raposo. Lisboa: Dom Quixote, 1978. p. 202-03

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aos atletas, heroificados pela público em geral e pelos meios de comunicação. Segundo meu entendimento, as matrizes deste imaginário têm uma fonte de inspiração similar àquela que se iniciou com la literatura do século XIX: o sentimiento de superioridade, o desejo de reconhecimento por meio da realização de uma proeza alcançada pela força e pela coragem individual. Certamente podem ser observadas diferenças, pois, no primeiro conjunto de produções, a raça é apresentada como elemento formador daqueles corpos, sendo que na atualidade se desdobra uma nova modalidade de biologia aplicada: não mais aquela inspirada no determinismo biológico, e sim no fisicoculturismo. Graças à tecnologia, incluindo a indústria farmacêutica e a medicina invasiva, corpos são transformados de modo a superar os limites naturais de cada indivíduo que se submete a estes procedimentos. Tais corpos, corpos em excesso, podem ser simbolizados, por exemplo, pelo principal personagem da película Rocky4 , herói que de uma certa forma nos remete ao famoso boxeador Muhamad Ali- Haj ou Cassius Clay. O defensor dos índios Navajos, Rambo5 , que pode ser pensado como um sucessor de Tarzan, ou O Exterminador do Futuro, cuja luta é travada contra um mundo dominado por máquinas6. No esporte, representações similares podem ser observadas, como no caso de Ayrton Senna, que superou todos os récordes de velocidade graças ao dominio da técnica de corrida de automóveis, ao seu preparo físico e ao seu desejo de ultrapassar os limites; ainda, as façanhas de Amyr Klink, que deu a volta ao mundo em seu veleiro, como que reeditando as aventuras dos descobridores portugueses. Em outra linha, mas com mudanças significativas em seu performance físico, destaca-se Ronaldo Nazário (o Fenômeno) de 1,83m, o maior artilheiro das copas de futebol do mundo, cujo desempenho andrógeno serve de propaganda para as indústrias de artigos esportivos, asssim como o jogador Arthur Antunes Coimbra, conhecido como Zico, que graças a um tratamento fisioterapêutico cresceu de estatura, ou ainda Nelson

4 Rocky o lutador. direção de John G. Avildsen, tendo como protagonista Sylvester Stallone (1976) 5 Rambo: programado para matar, dirigido por Ted Kotcheff e estrelado por Sylvester Stallone, inspirado no romance First Blood, de David Morell (ambos de1982). 6 Dirigido por James Cameron, estrelado por Arnold Schwarzenegger (1986)

4

Piquet, que implantou uma prótese de titânio para que seus pés ficassem mais leves, facilitando assim a condução de carros de corrida. Não são de menor relevância os surfistas, os que praticam bungeejumping, asa delta e os parequedistas. Corpos perfeitos, que não pertenecem aos indivíduos que os sustentam, senão à tecnologia. Ironicamente tais ícones são apresentados pelos mesmos meios de comunicaçao que expõem de maneira sensacionalista e com objetivos humanitários, os corpos desnutridos e mutilados de pobres de todos os países, com ênfase para os africanos e a população do Haiti. Estas novas tendências de violência direta, inclusive contra si mesmo, e os esportes radicais, anunciam uma nova modalidade de herói, fabricado pela ciência

tanto quanto pela coragem individual. Com eles, fantasias sobre o

triunfo individual, a vitória sobre o anonimato, o enriquecimento rápido e o gosto pelo jogo, impregnam a imaginação do público, como uma aspiração quase que universal que se contém com dificuldade, à espera de chegar à superfície e por-se em movimento. Para discutir este fenômeno recente e evidenciar como e por que estes heróis exercem tanta fascinacião junto ao seu público, proponho-me a apresentar, num primeiro momento, um personagem que se situa entre a fase do romance de aventuras e a dos heróis mediáticos; em seguida, teço alguns comentários sobre alguns esportistas contemporâneos da América Latina, com ênfase para o piloto Ayrton Senna. Para tanto coloco em relevo a intensificação da globalização e dos avanços tecnológicos, acontecimentos que fazem com que muitos esportista abandonem suas equipes de origem para fazer fortuna em outros países que não os seus, tornando-se também vencedores no mundo dos negócios. Un modelo duplo: Tarzan

Como já afirmei, estes “Ulisses” modernos, dotados de uma coragem excessiva quando estão em jogo seus interesses pessoais, abandonam os seus parentes e amigos, para uma viagem sem volta, vale dizer, sem qualquer

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compromisso para com o grupo de onde provêm e mesmo com qualquer causa pública. No passado, tais personagens, que também existiram na vida real, povoram e o imaginário do leitor de romances de aventura, o que serviu, conforme Hannah Arendt, como base para o moldar das sensibilidades imperialistas. Segundo a autora,

Os homens supérfluos, “os boêmios dos quatro continentes” que acorreram ao Cabo ainda tinham muito em comum com os antigos aventureiros. Eles também diziam, como Kipling: “Ponham-me num navio que vá para leste de Suez, onde o bom é como o mau, onde não existem os Dez Mandamentos e onde todos os desejos sejam permitidos (…) As jazidas de diamantes de Kimberley e as minas de ouro de Witwastersrand

estavam

por

acaso

localizadas

neste

fantasmagórico mundo. (…) Aquela terra, a cujo largo passaram indiferentes centenas de navios de emigrantes com destino à Nova Zelândia e à Austrália, via agora um turbilhão de recém chegados, que partiam apressados terra a dentro em direção às minas (…) Todos pertenciam a um tipo de pessoas que prefere a aventura e a especulação à industria organizada e não se dá bem com as limitações da vida comum7.

Além do espírito de aventua, a exploração do continente africano na era dos impérios se fez acompanhar, como é amplamente conhecido, pelo racismo, ideologia que conferiu legitimidade afetiva à dominação dos nativos naquele continente, o que também é sobejamente explorado nos romances.

7

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Trad. de Roberto Raposo. São

Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 219 e 228

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Um destes personagens, que pode ser destacado como símbolo da transição entre o determinismo biológico e o fisicoculturismo (transição esta nem sempre absoluta e definitiva), é o personagem Tarzan. Na verdade, aí temos duas representações: a primeira, de Rice Burroughs, seu autor efetivo, que o apresenta como um verdadeiro gentleman. Um herói que, apesar de haver crescido na selva, trazia consigo todas as características do europeu branco e civilizado. A segunda, representada por John Weissmüler, entre 1932 a 1948, adaptação do romance às telas de cinema. Este protagonista (1905-1984) filmou 12 películas sobre Tarzan. Tinha um metro e noventa de altura e um pouco mais de noventa quilos. Foi campeão em 1924 e 1928 nos jogos olímpicos de natação. Sua destreza nesta modalidade esportiva foi de decisiva importancia para a criação do personagem no cinema, pois vivía próximo do rio e dele fazia seu meio de transporte, o cenário de lutas com os selvagens e ainda seu deleite. Su companeira Jane, (Mauren O’ Saliven), representa, ela mesma, o ato civilizador. Mas à diferença

dos exploradores de minas, os quais tão logo

enriquecessem, retornavam à metrópole, o casal permanece na África, sem contudo importar-se com pedras preciosas ou com nativos. Jane, ao contrário do romance original, não escolhe retornar ao mundo civilizado, delicia-se com a vida próxima à natureza: ensina Tarzan a falar inglês, a usar utensílios domésticos, a tratar com cordialidade os visitantes, sem contudo pretender que Tarzan deixe de ser o que é, selvagem, sim, mas um bom marido e bom chefe de família, como convém a uma sociedade puritana. Uma outra diferença: se no romance, Tarzan é quem vai à Inglaterra e conhece Jane, no filme, é Jane que vai à África com seu pai, sendo literalmente raptada por Tarzan, que imediatamente e com o consentimento da moça, tem sua primeira relação sexual. Os encontros eróticos dos parceiros são uma constante em todos os filmes da série e os trajes de Jane, muito sensuais para a época, se comparados aos filmes de entretenimento então produzidos. Nesta série, temos a representação do homem forte, branco, musculoso, nadador veloz, que enfrenta jacarés gigantes e leões, que amedronta os nativos com seu “uivo” e que domestica macacos e elefantes. Com este poder, garante a Jane e a seu filho Boy un lar paradisíaco e isolado da civilização.

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Não nos enganemos no entanto: este não é o Tarzan inglês, que se debate com o dilema entre o amor à natureza ou à civilização, ou o emigrante que se fixa na colônia8; ele representa mais o imperialismo norte-americano que, principalmente

a partir da política do Big Stick de Theodor Roosvelt,

estenderá gradativamente seus domínios. Por isso, Tarzan só age com violência contra os brancos invasores da Europa ou contra tribos de negros rebeldes ou belicosas, para manter a ordem, mito fundador do intervencionismo norte-americano na política internacional. Esta é a razão pela qual considero este produto da indústria cultural de enorme valor: trata-se de um exemplo paradigmático de transição entre a literatura de entretenimento e o cinema, do imperialismo inglês e o imperialismo americano, do herói por destino e o herói pela coragem e destreza.

Os heróis mediáticos

Tratemos agora dos heróis atuais que, segundo nossa compreensão, refletem diversas ressonâncias com aqueles dos romances de aventura e dos filmes sobre o exótico: os esportistas. A seu respeito, como já foi mencionado, estes não se apresentam mais como pessoas cujas características inatas lhes garantem o futuro. Por certo, o fisicoculturismo não é a única característica que gostaría de mencionar, tampouco sua intensa exposição na mídia. Para explicar-me melhor, desejaria discorrer sobre uma interpretação do contexto que possibilitou o pelo menos favoreceu o surgimento do esportista tal como ele é veiculado pela indústria cultural, o que se intensifica nas últimas duas ou três décadas, realizada por Robert Castel e Nicole Aubert. 8

Nossa interpretação se aproxima a de Edward Said, (Reflexões sobre o exílio. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 147-156) quando ele afirma que o Tarzan dos cinemas representa o emigrante, porquanto nada mais tem em comum com sua região de origem. Mas dele divergimos em parte, pois se o emigrante fixa suas raízes num mundo que passa a chamar de seu, aproximando-se, na maioria das vezes, da população local, Tarzan de Weissmüller intimida e domina a sociedade receptora, mantendo-se isolado dela.

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Castel define que vivemos sobre uma série de condicionamentos relativos à hipermoderninade, ou seja, uma modernidade exacerbada, na qual se apresenta a tecnificação do cotidiano, o fenômeno da globalização e o individualismo de mercado. Aí se demarca, no plano sociológico, uma bipolarização: de um lado, indivíduos entendidos pelo autor, como indivíduos en excesso (par excès) e por outro, indivíduos em falta (par defaut). O primeiro é dono de si, chefe de seus empreendimentos, perseguindo obstinadamente seus próprios intereses, mostrando-se evasivo em todas as formas de enquadramento. No outro extremo, encontra-se o segundo, que se expressa pela falta ou pela ausência de segurança, de um mínimo de poder aquisitivo e sem vínculos afetivos. Enquanto que o primeiro se encontra sempre exposto a excessos de solicitações, de projetos, de investimentos subjetivos, o segundo não possui meios que lhe permitam existir plenamente: faltam-lhe bens materiais, vínculos profissionais, vínculos afetivos, sobretudo, sem representação política9. A esta bipolarização social correspondem duas tendências psíquicas: no que concerne aos primeiros, são desejosos de excitações violentas, paixões arrebatadoras, suprema exaltação seguida de profunda depressão; quanto aos homens em falta, sentimento de vazio, incapacidade de imaginar, conformismo, baixa auto-estima. Em ambos os casos, indiferença em relação ao outro, medo, exigência

de

desempenho

(Leistungsfähigkeit)

e

isolamento.

Tais

características, segundo os autores, são resultado da funcionalização do eu, devido às enormes exigências do mercado tanto quanto à sedução pelo consumo. Isto porque, a decadência do Estado de Bem Estar, nos países ricos e a falta de estratégias nos países pobres, cooperaram intensamente para esta nova configuração. Não quero reduzir o fenómeno a uma explicação que leve em causa tão somente o fator económico; considero aquí outros tipos de desigualdade como interevenientes: o valor a aparência jovial e à longevidade; o desejo de fama ou pelo

menos

de

reconhecimento;

a

ambição

por

adquirir

productos

tecnologicamente avançados; mais do que isto, a comparação competitiva; as diferenças entre o trabalhador altamente especializado e relativamente bem

9

CASTEL, R. Métamorphoses de la question sociale. Paris: Fayard, 1996.

9

remunerado e aquele que não teve acxesso à instrução, tendo portanto que se submeter a condições degradantes de trabalho, como é o caso do trabalho infantil, da contratação a título precário, das atividades na economia informal. Tanto numa ponta como em outra, o isolamento difícilmente deixa de ser uma constante, e o sonho de sucesso, sua contrapartida. Assim, a atração

pela velocidade pode ser compreendida como um

sintoma dos dias atuais. Exemplos desta natureza podem ser evidenciados na ambição pelos carros de alta velocidcade, a fascinação pelos videogames e inclusive a efemeridade de nossas relações afetivas. Como se tudo tivesse de que ser rápido e intensamente vivenciado, em resposta a uma angústia que não cessa de auto-reapresentar-se. Segundo Richard Sennet, essa forma funcionalizada de levar la vida, impede que se persigam objetivos colectivos e valores de longo prazo, tais como fidelidade, lealdade, compromisso social

10.

Quando se fala de coragem,

refere-se muito mais a uma aventura individual, e não a uma ação política. O outro é visto como um concorrente, não como um companheiro. De acordo com Nicole Aubert, em sociedades como estas, aquí apresentadas em seus traços mais evidentes, a dimensão do sagrado ocupa um espaço cada vez mais pronunciado.11 Desde a influência da religiosidade oriental entre os jovens da geração 68 até os días atuais, observamos a intensificação dos sentimentos religiosos, ou talvez mais do que isto: a sacralização do cotidiano, como na América Latina, onde as crenças se multiplicam e se diversificam. Esse fenômeno se sucede de maneira singular: não se trata da busca do transcendente nas instituições tradicionais, (como a igreja, o culto, o clero) mas no interior de si mesmo, em toda a sua espontaneidade, o que se confirma pela afirmação de uma experiência tomada em algum nível entendida como sobrenatural. No Brasil, à guisa de exemplo, temos uma entidade bastante importante para os esportistas: uma ONG (Organização não Governamental) chamada

10 SENNET, R. A corrosão do caráter; consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Trad. Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Record, 1999. 11 AUBERT, Nicole. Un individu paradoxal. in AUBERT, N. (org) L' individu hypermoderne. Ramonville Sainte Agne: Ères, 2004.

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Atletas de Cristo, sendo seus principales associados campeões das mais diversas modalidades do esporte.

Cito apenas dois exemplos: o jogador

Ricardo Izecson dos Santos Leite, conhecido como KaKa, do Real Madri, que não demorou mais do que dois anos para se tornar um jogador de prestígio internacional. Sobre sua carreira meteórica, afirmou:

Sempre sonhei com a seleção brasilera. Só que era uma sonho. Do Brasileirão do ano pasado para cá, esse sonho se converteu em um objetivo profissional (…) As coisas aconteceram muito rápido para mi. Mas Deus nos prepara. Se assim ocorreu, é porque Deus tinha preparado isso para mim. Deus tem coisas bem grandes para nós. Se Deus quer que eu esteja aí, vou estar. A vontade de Deus é boa, perfeita e agradável. Agora é só esperar.12.

Como Kaka, José Roberto, do Bayern, também é um Atleta de Cristo. Nos sites dos Atletas de Cristo, ele nos conta que veio de uma família pobre, que eram cinco irmãos e que às vezes não tinham o suficiente para comer. O pai abandonou sua mãe, mas foi então que ele se converteu, e com dezenove anos, firmou seu primeiro contrato como jogador da Portuguesa de São Paulo. Hoje é um campeão, mora na Alemanha e tem um filho chamado Endrick13. Além destes vínculos que são auto-compreendidos como decisivos para o sucesso profissional, gostaria também de associar a “fabricação” do corpo do atleta. Lembremo-nos de Maradona, que passou passou a ingerir substâncias químicas, entre elas, a efredina, que intensifica o desempenho em campo. Droga proibida, mas que não deixa de ser um recurso para suportar a hiperexposição que sempre vem acompanhada pelo pavor do fracasso. E Ronaldo, o Fenômeno, cujo resultado de seu preparo físico foi tão intenso que o incremento de massa muscular custou-lhe diversos problemas nos joelhos. Este caso me parece bem significativo, porque ademais de constituir-se uma 12 13

www.atletasdecristo.org.br/depoimento pesquisado em 13/10/2007 Idem, pesquisa realizada em 13/10/2007

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prática usual, (algo semelhante está acontecendo com Lionel Messi, do Barcelona), seu performance físico é exigido porque ele se tornou uma peça de merchandising da empresa Nike, que fabrica sapatos esportivos. Ayrton Senna- a desmaterialização do herói

Feitas estas considerações sobre as possíveis linhas de continuidade entre os protagonistas dos romances de aventuras, os astros de cinema e os esportistas, todos eles exercendo enorme atração junto ao púiblico, chegamos a um dos personagens de maior importância para as nossas reflexões: Ayrton Senna e sua inquestionável paixão pela velocidade. Como os anteriormente citados, a livre iniciativa, a busca de fama e a coragem para assumir qualquer risco também foram características do piloto; a mesma sedução de Ulisses, de conhecer outros mundos, particularmente o da técnica, orientava todas as suas decisões. E tanto quanto os outros, este campeão, por mais que alcançasse a glória dada a sua técnica e sua performance, nunca a sentia como o suficiente; conforme afirmou Nicole Aubert, tal comportamento nos dá a impressão de que estes campeões portam uma certa divinddade dentro de si, com a qual se identificam, confundindo-se, algumas vezes, com o próprio Deus.14 Ayrton Senna simboliza, por sua própria personalidade, desempenho como atleta e pela hiperexposição a que esteve submetido, a sociedade atual. O piloto, à diferença dos jogadores anteriormente citados, não se classifica como uma pessoa que procede de un lar humilde e pobre, contando apenas com seu esforço e sorte para alcançar a vitória. Ao contrário, provém de uma família rica e desde sua infância (precisamente, aos quatro anos), começou a treinar para ser piloto de corrida. Sua imagem, principalmente na imprensa europeia, não era a de uma pessoa simpática e alegre, mas de alguém irascível e tão obstinado, que teria se divorciado muito precocemente (após dez meses de haver se casado) para

14

AUBERT, N. op.cit. p. 85

12

poder se dedicar dedicar integralmente à carreira.15. Comenta-se também que que devido à intensidade do treinamento, sofreu, ainda muito joven, de uma paralisia do lado direito da face. Ainda, graças ao treinamento diário, por três anos, com o professor de Educação Física Nuno Cobra, melhorou muito sua capacidade física: de um consumo de 34 ml de oxigênio para 80 ml, o que fortaleceu sua massa muscular e consequentemente a resistência nas pistas de corrida.16 E, fora das pistas, cultivava hobbies que se vinculavam também à velocidade, como voar em paraglider (para-quedas puxado por uma lancha), jet-ski ou dirigir aviões como o caça Mirage do Ministério da Aeronáutica a 1.500 km/hora17 Por outro lado, Senna levava uma vida quase ascética, comprometido com uma dieta balanceada, com noites bem dormidas, evitando bebidas alcoólicas. Era campeão não apenas por ser o mais rápido, o mais intrépido, o recordista em pole-positions ou por dominar o carro especialmente quando chovia. Era campeão também porque entendeu desde cedo que o ambiente competitivo da Fórmula 1 “mal permitia ter amizades ou reverenciar ídolos, muito menos culturar heróis”18 Logo aprendeu com Niki Lauda e Gilles Villeneuve, duas qualidades fundamentais de um astro de tal modalidade: primeiro, a frieza, segundo, a agressividade. De acordo com Domeq,

Senna foi um exemplo de conduta cerrada em relação aos outros (...) reflexo da mentalidade competitiva que ganhou mais do que nunca as sociedades ocidentais durante a década de 80 y 90. O eu primero em detrimento dos outros, o indivíduo livre dos outros era exatamente a versão do individualismo que reforçava os valores dominantes, ou seja, a democracia de mercado19. (sem grifos no original)

15 16 17 18 19

COHEN, Marilene. Ayrton Senna. Rio de Janeiro: Globo, 2006. p.78. www.notícias.usp.br/ 01-08-2007. pesquisado em 13 de outubro de 2007 Folha de São Paulo 8/05/1994. p. B-12 Ayrton Senna, cf. COHEN, M. op. cit. p. 64 DOMEQ, Jean Phillipe. Pour ume solidarité pluriel. Esprit, 1994. p. 122

13

A propósito, a própria estrutura da Fórmula 1, da FISA (Federação Internacional de Automobilismo) e da FOCA (Associação dos Construtores de Fórmula 1) reeditam esta mesma lógica competitiva, que se aprofundou na última década do século XX, com o processo de desregulamentação e da flexibilização

da

legislação

do

trabalho.

Assim

como

em

outros

empreendimentos, o homem de sucesso é aquele que domina diversos idiomas, maneja diversos softwares, desterritorializa-se, não finca raiz em parte alguma e é capaz de definir programas de alta lucratividade financeira, sendo, no entanto, apenas uma peça na engrenagem, como são os pilotos de corrida. Conforme o jornal O Estado de São Paulo, tanto a morte de Roland Ratzemberger como a do próprio Senna teriam ocorrido ainda nas pistas, e não no hospital; este fato, todavia, foi escamoteado para que a corrida não fosse cancelada, pois isso causaria enormes prejuízos aos patrocinadores e organizadores20. Cite-se ainda o perigo das curvas – tais como a do desenho da Tamburello, em Ímola, que, se percorridas em alta velocidade, aumenta-se a energia cinética a tal ponto que qualquer desaceleração implica em danos físicos e neurológicos para os pilotos. É nessário não somente a técnica, mas uma força física brutal para que o corpo do atleta não se desloque do assento, como afirma Niki Lauda21. E elas são mantidas todavia por causarem enorme excitação junto ao público espectador. Voltando a Ayrton Senna: com respeito a este corredor, ressalte-se que ao lado da técnica e do fantástico preparo físico propiciado por anos de exercícios para a aquisição de massa muscular, também ele nutria devoção ao sagrado, este Deus interior que o engrandecia. Certa vez, um jornalista lhe perguntou se ele não tinha a tendência a crer que ele era um deus nas pistas; com apenas vinte e cinco anos, respondeu: a diferença é que Deus não dirige2 2 . Cabe observar, que nesta afirmação, não estava em cena um agnóstico fazendo troça sobre a existência de Deus, ao contrário; correr, para ele, era uma tarefa que realizava com a benção de Deus. 20 21 22

O ESTADO DE SÃO PAULO, 6/05/1994. p. CX10 Revista ISTO É 1284 11/05/1994 DOMEQ, op. cit, p. 121.

14

Feitos estes rápidos comentários sobre a pessoa de Senna, realicemos outros sobre o esportista Senna, bem como sobre as possíveis motivações para a admiração que despertava em seu público. No Brasil, a imprensa noticiava que Ayrton Senna relacionava-se de forma pouco submissa, por vezes até arrogante para com as as pessoas que exerciam poder sobre as regras da Fórmula 1. Homem rico da cidade de São Paulo

que,

por

ironia,

tem um trâsnsito

caótico

e

com inúmeros

congestionamentos, foi ali que ele aprendeu a correr. Senna não chegou à Europa como José Roberto do Bayern ou Ronaldo Nazário, simplemente para enriquecer-se, mas para demonstrar o seu talento e conquistar a fama de um dos melhores pilotos de todos os tempos. Já em 1984, quando apenas começava a carreira de Fórmula 1, ao demostrar sua técnica no volante, advirtiu a equipe da Toleman, escuderia de menor capacidade técnica que as demais: já estou pronto para o pódio, arrume um carro para isto23 . Em 1986, já na Lótus, com motor da Renault, uma grande conquista para si e para sua equipe, por haver chegado em quarto lugar, não deixou de criticar o desempenho tecnológico da empresa Renault, que também patrocinava sua corrida: Foi um pouco mais emocionante do que andar de taxi.2 4 . Quando foi contratado por escuderias de equipamientos mais potentes, ele reinou soberano. Criou um estilo, tornou-se tri-campeão, desafiou Alain Prost, deixando-o fora da pista en 1990, no Japão e agrediu o debutante irlandês Eddie Irving, por não permitir-lhe ultrapassá-lo, denunciando ademais o Presidente da FISA Jean-Marie Balestre, que estaría, segundo ele, favorecendo Prost.25 Levava uma bandeira brasileira e a sacodia em cada vitória, ainda que não tenha retornado a seu país. Tinha um domicílio na Inglaterra e outro en Portugal. Seu funeral, segundo Domeq, em maio de 1994, foi acompanhado por três milhões de paulistas e recebeu mais homenagens do que um estadista. Para homenagens póstumas, vieram artistas, membros do clero protestante e 23 24 25

www.ayrtonsenna.com.br/piloto.1984 Idem, 1986 www.sportmania.com.br/polemica

15

diversos campeões de Fórmula 1, entre eles, Allain Prost, que declarou que ele e Senna eran inimigos inseparáveis.26 Independentemente do carinho e veneração que o povo lhe devotava, um dos passantes, por exemplo, correu a pé pelo menos 20 km ao lado do carro da família Senna, com uma bandeira do Brasil eriçada -, o enterro, em si mesmo, foi um acontecimento midiático. Os políticos - inclusive o Presidente da República e candidatos ao próximo pleito para este cargo, acotovelavam-se para chegar perto dos familiares e serem fotografados; os jornalistas ficaram a postos por cinco dias, desde a notícia do falecimento até dois dias após o funeral; todos os periódicos tinham sua tiragem rapidamente esgotada; não faltou quem escrevesse, em menos de seis meses, a biografia de Senna. Nestas notícias, freqüentemente apareciam fotos que sugeriam sua precoce carreira de piloto (ele, assentado no banco de um Kart, aos quatro anos) e, nas fotos que precederam ao acidente, com um olhar martirizado, como quem já sabia o que ia acontecer. E seu nome prossegue causando impacto por meio do Instituto Ayrton Senna, que promove jovens carentes de talento; além deste, citem-se vídeos, exposições, fotos e sites. Seu nome sobrevive também em virtude da empresa Senna, já que o corredor capitalizou com êxito seu sucesso, criando seus próprios produtos e marcas, não submetendo-se, portanto, a empresas establecidas e famosas do exterior27. A marca SENNA é uma multinacional, mas dirigida por su família no Brasil. E 100% dos royalties, obtidos com a venda dos produtos desta marca, são destinados a projetos educativos desenvolvidos pelo instituto que leva o seu nome. Obviamente, dentre os productos da marca SENNA, aqueles que simbolizam a velocidade e o deslocamento, principalmente a imagem mesma do piloto, são os mais vendidos. Quase como figura de ironia, para concluir, gostaria de afirmar que que

Senna, pode ser considerado o novo Tarzan, ou melhor, um Tarzan às avessas, num mundo globalizado, des-territorializado, tecnificado ao extremo. 26

DOMEQ, op. cit, p. 123 Fazem parte, entre outros, do seu grupo empresarial,: produtos licenciados, como brinquedos, camisetas, mochilas, bonés, capacetes, alimentos infantis e cadernos infantis, caneta, lancha, moto e bicicleta. (ayrtonsenna.com.br), pesquisa realizada em 8 de janeiro de 2008 27

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Ele não precisa de tantos músculos, mas estar disposto a uma concentração absoluta; de viver, não um dia após o outro, mas de um segundo após o outro. Renunciar a viver num território idílico e paradisíaco, mas na selva tecnológica da Fórmula1, afinal, como ele mesmo afirmou: Brasileiro só aceita título se for de campeão, e eu sou brasilero2 8 Foi sem dúvida, um homem em excesso. Por isso mesmo, talvez, as exigências que impunha a si mesmas foram tantas que teve um falecimento precoce. Mas não é este, segundo Ruyard Kipling, o destino dos heróis solitários que arriscam tudo pela vitória ? Finalizando com a poesia de Kipling: Se és capaz de manter tua calma, quando, todo mundo ao redor já a perdeu e te culpa. De crer em ti quando estão todos duvidando, e para esses no entanto achar uma desculpa. Se és capaz de esperar sem te desesperares, ou, enganado, não mentir ao mentiroso, Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares, e não parecer bom demais, nem pretensioso. Se és capaz de pensar - sem que a isso só te atires, de sonhar - sem fazer dos sonhos teus senhores. Se, encontrando a Desgraça e o Triunfo, conseguires, tratar da mesma forma a esses dois impostores. Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas, em armadilhas as verdades que disseste E as coisas, por que deste a vida estraçalhadas, e refazê-las com o bem pouco que te reste.

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de 2007.

www.sportmania./ ayrtonsenna.pensamento. Pesquisado em 15 de outubro

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Se és capaz de arriscar numa única parada, tudo quanto ganhaste em toda a tua vida. E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada, resignado, tornar ao ponto de partida. De forçar coração, nervos, músculos, tudo, a dar seja o que for que neles ainda existe. E a persistir assim quando, exausto, contudo, resta a vontade em ti, que ainda te ordena: Persiste! Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes, e, entre Reis, não perder a naturalidade. E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes, se a todos podes ser de alguma utilidade. Se és capaz de dar, segundo por segundo, ao minuto fatal todo valor e brilho. Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo, e - o que ainda é muito mais - és um Homem, meu filho! 29

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If, Joseph Rudyard Kipling (1865-1936). Tradução de Guilherme de Almeida.

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