O CORPO É O CÓDIGO

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O CORPO É O CÓDIGO: ESTRATÉGIAS JURÍDICAS DE ENFRENTAMENTO AO REVENGE PORN NO BRASIL

Mariana Giorgetti Valente Natália Neris Juliana Pacetta Ruiz Lucas Bulgarelli

Editado por

São Paulo, 2016

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Este livro está licenciado sob uma licença Creative Commons CC BY-SA 3.0 BR. Essa licença permite que outros remixem, adaptem e criem obras derivadas sobre a obra original, inclusive para fins comerciais, contanto que atribuam crédito aos autores corretamente, e que utilizem a mesma licença. Texto da licença: https://creativecommons.org/licenses/by/3.0/br/legalcode ISBN: 978-85-92871-00-0 Como citar este livro: VALENTE, Mariana Giorgetti; NERIS, Natália; RUIZ, Juliana Pacetta; BULGARELLI, Lucas. O Corpo é o Código: estratégias jurídicas de enfrentamento ao revenge porn no Brasil. InternetLab: São Paulo, 2016. Associação InternetLab de Pesquisa em Direito e Tecnologia www.internetlab.org.br EQUIPE INSTITUCIONAL: Diretor Presidente: Dennys Antonialli; Diretor: Francisco Brito Cruz; Diretora: Mariana Giorgetti Valente. Colaboraram com este livro Clarice Tambelli e Fabiane Midori Sousa Nakagawa Diagramação: Pedro Santos e Ana Saritha Moreira. Ilustração da capa: Maria Claudia Levy. Este livro é resultado de uma pesquisa conduzida entre 2015 e 2016, no InternetLab, com o apoio da Fundação Ford.

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AGRADECIMENTOS Agradecemos muito às pessoas que, em maio de 2015, reuniram-se com a nossa equipe no InternetLab para discutir os planos de pesquisa da linha de gênero e Internet, e, com os seus comentários e apoio, contribuíram para o delineamento do projeto que resultou neste livro: Beatriz Accioly Lins (antropóloga e pesquisadora do NUMAS/USP), João Terra (advogado, ativista e mestrando em Antropologia Social), Haydée Svab (engenheira civil, co-fundadora do POLIGen), Veridiana Alimonti (advogada e pesquisadora do Intervozes), Ana de Mello Côrtes (advogada e membra do GEDS/USP), e Marina Ganzarolli (advogada e ativista feminista). Nossos agradecimentos, também, a pessoas com quem travamos importantes diálogos durante a pesquisa: Hailey Kaas, Jacqueline Gomes de Jesus, Viviane Vergueiro, Cristina Papa Angiolucci, Vanessa Vieira, Bruno Salles Pereira Ribeiro, Gabriela Biazi, Juliana Cunha, Marília Monteiro, Erika Smith, Dafne Plou, Paz Peña, Bia Barbosa, Hibah Hussain, Gabrielle Guillemin, Carolina Rossini, Betsy Bramon, Julie Owono, Nathalie Espitia, Amelia Toledo, Furhan Hussain, Graciela Natansohn, Graciela Selaimen, Paulo Rogério, Nathalie Gazzaneo, Heloísa Buarque de Almeida, Luciano Palhano, Regina Facchini, José Rodrigo Rodriguez, Fernando Costa Mattos, Camila Marques, Laura Tresca, Paula Martins, Thiago Firbida, Stephanie Ribeiro, Gizele Martins, Gisele Truzzi, Ana de Freitas, Joana Varon, Amarela, à equipe do InternetLab que leu e discutiu partes do livro (Dennys Antonialli, Francisco Brito Cruz, Beatriz Kira, Clarice Tambelli, Fabiane Midori Nakagawa, Jacqueline Abreu, Juliana Cunha da Mota, Maike Wile dos Santos, Margareth Kang e Rafael Viana) e aos alunos e alunas do NDIS/ USP do primeiro semestre de 2016. Por fim, agradecimentos especiais a todos os nossos entrevistados e entrevistadas, cuja listagem se encontra no final deste livro.

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0.

INTRODUÇÃO

1

1.

PRIMEIRA PARTE - FUNDAMENTOS TEÓRICOS

7

1. Discutir violência de gênero na Internet: preocupações

2.

teórico-metodológicas

8

1.1. Um mundo virtual?

9

1.2. Uma violência online é também uma violência?

10

1.3. Revenge, o problema da motivação e as normativas de gênero

13

1.4. O “revenge porn”, a superexposição e os regimes de visibilidade

16

SEGUNDA PARTE – OS PROCESSOS JUDICIAIS CONTRA INDIVÍDUOS

18

2. Violação de intimidade e privacidade: os casos no Judiciário

19

2.1. O enquadramento do “revenge porn” no direito brasileiro

23

2.2. Aspectos gerais e quantitativos das decisões analisadas

32

2.3. Consentimento e a problemática aplicação do ECA

42

2.4. Posse sem disseminação, ou mero compartilhamento, pelo ECA

45

2.5.O termo “pornografia de vingança (“revenge porn”) e suas limitações

47

2.6. Nos casos estudados, as partes tinham relacionamento afetivo

3.

entre si?

52

2.7. A questão de gênero nos casos e na percepção dos magistrados

54

2.8. Outros marcadores sociais da diferença

56

2.9. O acesso à justiça e o perfil das vítimas

58

2.10. Notas sobre a produção do conjunto de provas

61

2.11. Adendo:o enfrentamento fora da linguagem do direito

63

TERCEIRA PARTE- OS PROCESSOS JUDICIAIS CONTRA PROVEDORES

68

3. O Marco Civil da Internet e decisões envolvendo provedores de aplicações de Internet

69

3.1. O Marco Civil da Internet, Sexualidade e Responsabilidade de Intermediários

74

3.2. As decisões judiciais sobre responsabilidade de provedorespré e pós-Marco Civil

77

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3.3. A necessidade (ou não) de indicação da localização específica do conteúdo (URL) e o impacto do Marco Civil da Internet

83

3.4. A responsabilidade dos intermediários em casos de NCII

93

3.5. Alegações de impossibilidade pelos provedores, e desconfianças dos magistrados

97

3.6. O valor atribuído às pessoas, a culpabilização das vítimas e outras considerações subjetivas

100

3.6. Casos envolvendo os provedores de conexão

104

3.7. Os procedimentos para remoção de conteúdos e identificação de

4.

agressores, a partir das pessoas entrevistadas

105

3.8. A regulaçãode NCII feita com base em termos e políticas de uso

111

QUARTA PARTE- O LEGISLATIVO E O EXECUTIVO ENCARAM NCII

121

4.1. Propostas legislativas em casos de disseminação não consensual

5.

de imagens íntimas

122

4.1.1. Características comuns entre os projetos

133

4.1.2. Audiências Públicas: os debates sobre o PL 5555/13

136

4.2. Poder Executivo: Programa Humaniza Redes

143

QUINTA PARTE - ESTUDO DE CASO

152

5. Novas formas de violação de intimidade? TOP 10: um caso-limite.

153

5.1. O que é o TOP 10?

153

5.2. Desdobramentos: do Grafitaço à Audiência Pública na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo

155

5.3. Soluções? A inadequação e os desafios envolvendo as soluções jurídicas

157

5.4. A saída pela educação e seus obstáculos

159

5.4.1. Trabalho comunitário com adolescentes: violência e papeis de gênero

159

5.4.2. O (des)preparo de profissionais de saúde e da educação

161

5.4.3. Desafios legislativos e planos de educação

162

6.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

166

7.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

175

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8.

PROJETOS DE LEI MENCIONADOS

181

9.

ANEXOS

183

ANEXO I - Relação de entrevistados/as

184

ANEXO II - Formulário de Consentimento de Entrevista

185

ANEXO III - Roteiro de entrevista semi-estruturado

186

ANEXO IV - Carta-Modelo para solicitação de remoção de NCII, elaborada pela SaferNet

188

ANEXO V - Endereços dos Principais Prestadores no Brasil

190

ANEXO VI–Alguns links para solicitações de remoção de NCII

191

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INTRODUÇÃO

1

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A divulgação não consentida de imagens e vídeos íntimos não é um problema recente1, mas a repercussão que a Internet pode dar a atos como esse tem feito com que ele se torne uma preocupação central entre mulheres, adolescentes e grupos subalternizados em geral. No Brasil, alguns casos foram amplamente noticiados já no início dos anos 2000: foram, por exemplo, as imagens de sexo feitas numa festa na Fundação Getúlio Vargas e compartilhadas na Internet sem autorização, em 20022, ou ainda o conhecido caso Cicarelli, em que a modelo foi filmada tendo relações sexuais com o namorado em uma praia na Espanha3. Mas foi principalmente a partir de 2013 que se começou a dar nome a um problema que aparecia como algo recorrente – ano em que a mídia reportou amplamente os casos de duas adolescentes que cometeram suicídio após terem vídeos íntimos divulgados por seus ex-namorados nas redes sociais4. Foi também em 2013 que ganhou repercussão o caso de uma jovem que, após ter sua intimidade exposta, teve sua imagem e um gesto que fazia no vídeo viralizados em memes nas redes sociais, gerando uma campanha feminista de contra-comunicação, em apoio à vitima: #SomosTodasFran5. Não há dúvidas de que a preocupação com o problema vem das consequências gravíssimas que, se começa a perceber com perplexidade, a disseminação não consentida de imagens íntimas causa às suas vítimas. São inúmeros relatos de suicídio, depressão e isolamento de contato social, abandono de escola, perda de emprego e dificuldades em conseguir um outro, agressões e assédios na rua. O problema ganhou nome: a “pornografia de vingança”, tradução do inglês “revenge porn”, começou a mobilizar diferentes pessoas a apontar propostas para minimização do fenômeno ou a contenção de seus efeitos. Ativistas feministas começaram a produzir textos buscando romper com a culpabilização ou Lins (2015), ao apresentar brevemente os debates sobre o tema no contexto norte-americano, afirma que “a prática de divulgação de material íntimo de ‘namoradas’ é anterior à popularização da Internet, remetendo-se à década de 1980, quando revistas masculinas de conteúdos eróticos criaram seções para fotos produzidas pelos leitores”.

1

Ver notícia do caso em http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR51737-6014,00. html. Observação: todas as URLs que aparecem neste livro foram acessadas em 30 de maio de 2016.

2

3

Repercussão em http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u67454.shtml.

A matéria seminal, para nós, foi “Como um sonho ruim”, da Agência Pública: http://apublica. org/2013/12/6191/. Mais detalhes sobre os casos podem ser conferidos em: http://oglobo. globo.com/brasil/adolescente-se-mata-apos-ter-video-de-sexo-com-um-casal-divulgado-naInternet-10782350 ehttp://oglobo.globo.com/brasil/jovem-comete-suicidio-depois-de-ter-fotosintimas-vazadas-na-Internet-10831415. 4

O relato da vítima pode ser encontrado nesta reportagem: http://g1.globo.com/fantastico/ noticia/2013/11/nao-tenho-mais-vida-diz-fran-sobre-video-intimo-compartilhado-na-web.html.

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revitimização das meninas e mulheres que tivessem passado por esse tipo de experiência; organizações não governamentais engajaram-se em campanhas sobre proteção de dados na Internet6; políticos passaram a propor Projetos de Leis (PLs) específicos, com a finalidade de combater e punir a prática; e políticas públicas foram formuladas e vêm sem sendo implementadas por órgãos do Poder Executivo. O tamanho do problema no Brasil se expressa também em estatísticas divulgadas: o Helpline da SaferNet, serviço de atendimento psicológico online, indica o que chamam de “sexting” como o principal tema quantos aos quais se buscou ajuda em 2014 (último ano cujos dados estão disponíveis no site)7. Embora os diferentes discursos proponham diferentes soluções, há entre eles, com diferentes nuances, um diagnóstico comum: a ideia da “precariedade das leis vigentes”8 para responder aos casos9. E foi esse diagnóstico que nos levou a escrever este livro. A partir de uma abordagem da sociologia jurídica, ou seja, que pesquisa o direito por meio de práticas e técnicas das ciências sociais, quisemos dar conta de como o direito brasileiro aborda o problema. Esse caminho tem vistas à produção e um diagnóstico útil ao avanço de políticas públicas no campo, mas não só: o percurso e as escolhas metodológicas nos permitiram, também, produzir reflexões sobre as relações entre gênero e as mídias digitais a partir do corpo, da intimidade, das normativas de gênero e da violência. É que os casos que encontramos e as estratégias jurídicas e discursos sobre seu enfrentamento dizem mais do que pode parecer, à primeira vista, sobre o universo de que tratamos e a interface do problema com as instituições do direito. Assim, questões que tentamos responder são: a visão comum que a mídia e os discursos na esfera pública costumam dar ao problema são uma boa descrição de suas nuances? O que falta? Existe uma ausência de respostas jurídicas, ou quais respostas existem e quão satisfatórias são? As soluções e mudanças jurídicas propostas para lidar com o “revenge Uma das mais importantes Organizações Não-Governamentais com trabalhos nesse sentido é a SaferNet Brasil. Detalhes sobre sua atuação podem ser encontrados em: http://www.SaferNet.org. br/site/institucional.

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Foram 222 tópicos de conversa sobre o tema; o segundo foi cyberbullying / ofensa (177 tópicos de conversa). Ver http://www.SaferNet.org.br/divulgue/helplineviz/helpchart-page.html.

7

Tal perspectiva também se afirma no âmbito da produção acadêmica brasileirarecente sobre o tema. Nesse sentido verificar (Hernandez e Sarzedas 2015; Guimarães e Dresh, 2015; Almeida, 2015).

8

O depoimento de uma conhecida ativista feminista brasileira (Lola Aronovich) que vem sofrendo perseguições de grupos masculinistas em um seminário promovido pelo Senado Federal brasileiro é emblemático nesse sentido: “Queria terminar com uma mensagem mais otimista, um discurso de superação. Mas não tenho. Acho que vivemos na impunidade, numa terra sem lei, num país que ainda engatinha no combate a crimes cibernéticos. Minha única superação é sobreviver e continuar com o blog. Não me calar. Existir” (grifo nosso). Para ler relato completo conferir: http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/2015/12/ senado-discute-violencia-contra.html.

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porn” estão bem colocadas, e de que pontos de vista? O que se perde, e o que se ganha com as abordagens propostas, a partir do que os casos nos mostram? Que soluções não estão sendo suficientemente pensadas? Este livro foi escrito a partir de um ano de trabalho de campo, realizado pela equipe de pesquisa da linha Gênero, Raça e Internet do InternetLab, realizado, entre 2015 e 2016, com o apoio financeiro da Fundação Ford. A pesquisa envolveu a realização de (i) quinze entrevistas em profundidade com diferentes pessoas implicadas na temática – advogados/ as, defensores/as públicos, promotores/as, ativistas do campo de gênero e sexualidades10, (ii) coleta e análise de jurisprudência e (iii) um estudo de caso. O livro tem cinco partes, além desta introdução e das considerações finais. Na primeira, apresentamos uma moldura teórica e metodológica para compreender o “revenge porn”. São reflexões que orientaram nossa pesquisa, como leituras teóricas e de pesquisas em áreas semelhantes, mas que também foram orientadas por ela. É que, como um fenômeno em franco desenvolvimento, as categorias estão sendo criadas, inclusive por nós, e é esse esforço que buscamos apresentar. As partes seguintes são orientadas pelas respostas ao problema dadas por cada um dos poderes (Judiciário, Legislativo e Executivo) no Brasil, com uma sessão inteira dedicada aos provedores aplicações de Internet11. Essa organização é um esforço em dar conta do máximo de “pontas” e “atores” envolvendo o “revenge porn” no Brasil, e é orientada também para que políticas possam ser pensadas levando as diferentes abordagens em consideração. Começamos nossa análise pelo Judiciário e instituições do sistema de Justiça (como a Defensoria Pública e a Delegacia), mapeando (i) como a questão chega ao Estado, ao Judiciário (como é feita a denúncia? Quais alternativas possuem as vítimas?), e (ii) quais as respostas dadas por esse órgão ao problema? Como veremos adiante, dedicamos todo um capítulo para as hipóteses de conflitos jurídicos envolvendo vítima e agressor na esfera penal e civil, e outra para casos envolvendo vítimas e provedores de aplicação. Em ambos os casos, apresentamos os principais resultados da pesquisa jurisprudencial a fim de lançar luz sobre a dinâmica dos casos no sistema de Justiça brasileiro, e complementamos esses resultados com informações obtidas de entrevistas com funcionários das instituições do sistema de Justiça. Na Terceira Parte, sobre conflitos envolvendo provedores de Internet, abordamos tanto as discussões sobre as inovações trazidas pela Lei n. 12.965/14 (Marco

A lista de pessoas entrevistadas no projeto e o roteiro semiestruturado de entrevista podem ser conferidos nos Anexo I e II, ao fim do livro. As percepções de tais atores/atrizes poderão ser verificadas ao longo de todo o texto,já que optamos por integrá-las às discussões de acordo com pertinência temática. 10

O Marco Civil da Internet define as aplicações como “o conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à Internet” (art. 5o, VII). Os provedores de aplicações de Internet são, por exemplo, as plataformas – redes sociais, buscadores, serviços de e-mail. 11

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Civil da Internet), quanto importantes controvérsias sobre regulação de Internet e questões de gênero. Na Quarta Parte, analisamos e trazemos discussões sobre as propostas que vêm sendo debatidas no âmbito do Poder Legislativo e Executivo, e as relações que se podem traçar entre essas iniciativas e as nossas descobertas sobre a dinâmica própria dos casos diante da moldura jurídica existente hoje. E, por fim, na Quinta Parte, discutimos o fenômeno do “TOP 10”, o estudo de caso que utilizamos como um caso limite de pesquisa. É que, por sua complexidade e pelo número de problemas envolvidos, o “TOP 10” nos lembra recorrentemente de tudo que foge a definições fáceis e soluções de “canetada”. Antes de terminar esta introdução, façamos duas considerações, uma de forma (linguagem e público) e outra conceitual. A primeira é que este livro é uma apresentação de resultados de pesquisa, onde buscamos expor de forma ampla e completa nossos achados empíricos e reflexões. Como tal, o texto acompanha nosso percurso de pensamento e de descobertas; as informações serão por vezes detalhistas e por vezes também “cruas”, como, por exemplo, trechos relativamente longos de entrevistas ou de decisões judiciais. Quisemos expor ao leitor, quando julgamos necessário, a própria voz dos atores e atrizes do campo estudado, sem os nossos filtros. Pretendemos que o livro sirva como a referência completa e transparente para outros materiais futuros nossos, mais pontuais, com linguagens diferentes, menos presos às fontes em si. Seguindo ainda essa primeira consideração, buscamos escrever um texto que seja ao mesmo tempo relevante para juristas e outras pessoas versadas na linguagem do direito, e clara para pessoas de outras formações. Fizemos esse esforço por saber do interesse que o assunto levanta no Brasil, a importância destas reflexões para a elaboração de políticas públicas e a pouca quantidade de materiais sobre o tema. É um imenso desafio, e temos certeza de que alguns momentos desapontarão a um ou a outro dos públicos. De uma forma geral, no entanto, acreditamos que o livro tem poder explicativo. A segunda consideração é que tivemos de tomar uma decisão terminológica, que expomos aqui, mas cujos motivos ficarão mais claros ao longo do texto. O tema de que estamos tratando tem ficado conhecido, principalmente na mídia e no ativismo, por “revenge porn”. Não quisemos abandonar totalmente o termo, porque entendemos que é importante que esta pesquisa seja encontrada por pessoas que conhecem o fenômeno por esse nome. No entanto, nosso trabalho e nosso contato com outras pessoas pensando o campo nos levou à certeza de que o termo tem, de um lado, baixo teor explicativo, e, de outro, reforça visões que carregam preconceitos. Na busca de como nomear o problema, deparamo-nos com algumas expressões:

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1. o próprio “revenge porn”; 2. a tradução simples do termo, “pornografia de vingança” ou “pornografia de revanche”; 3. “vazamento de imagens íntimas”, que consideramos pouco adequado, por passar a impressão de que imagens íntimas são espalhadas sem o envolvimento consciente de ninguém; 4. “sexting / exposição íntima”, termos usados pela organização SaferNet, uma das organizações da sociedade civil brasileira mais dedicada ao assunto. O termo também nos parece restrito ou não tão explicativo, diante dos casos que estudamos; 5. violação de privacidade / intimidade com base em gênero / sexualidade, termo que adotamos, por um tempo, por julgá-lo explicativo; 6. disseminação não consensual ou consentida de intimidade; 7. NCII, a sigla para “non consensual intimate images”, que tem sido adotada por ativistas e acadêmicos/as de língua inglesa. Por motivos conceituais e práticos, decidimos adotar a expressão “Disseminação Não Consensual de Imagens Íntimas”, o que nos permite adotar a sigla NCII (excluindo-se o D de Disseminação) e, assim, dialogar com a literatura internacional sem mais mediações.

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PRIMEIRA PARTE

FUNDAMENTOS TEÓRICOS

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1. DISCUTIR VIOLÊNCIA DE GÊNERO NA INTERNET: PREOCUPAÇÕES TEÓRICO - METODOLÓGICAS O desenvolvimento acelerado das tecnologias de informação e comunicação (TICs) tem colocado desafios para distintos campos sociais. Mais que impactado vidas e relações, a Internet aparece, sobretudo, como elemento constitutivo de subjetividades e sociedades. Assim, questões envolvendo mídias digitais desenrolam-se como preocupação temática e metodológica em todas as áreas tradicionais das ciências sociais. Em especial, tem levantado atenção a forma de uso e o papel dessas novas mídias para grupos minoritários e atuação política em geral. Processos e fenômenos que estão em franco desenvolvimento, como os que tratamos neste texto, apresentam imensos desafios à observação e à pesquisa. Como pessoas com vidas conectadas, sentimos que nos falta constantemente o distanciamento afetivo e temporal necessário para descrever e analisar acontecimentos contemporâneos e muitas vezes próximos de nós12. Do ponto de vista metodológico, temos de nos preocupar constantemente com evitar nos deixar levar por entusiasmos exacerbados que circulam nos discursos sobre as mídias digitais, sejam eles otimistas ou pessimistas13, ou seja: entender as mídias digitais a partir do lugar que ocupam nas relações, e que muitas vezes é apenas o de potencializar e transformar parcialmente meios anteriores de comunicação, que por sua vez já vinham produzindo seus impactos nos processos sociais e de subjetivação (MISKOLCI, 2011, p. 10). Além disso, de saída, uma questão se impõe, em especial se o estudo se desenvolve em países como o Brasil: estudar mídias digitais passa também necessariamente pela consideração de quem se encontra incluído e quem se encontra excluído delas, e das significativas diferenças geracionais que implicam diferenças nos seus usos; assim, pesquisar do ponto de vista das ciências sociais um fenômeno ligado à Internet implica discutir o que não está na Internet. Quando tratamos de questões como gênero e sexualidade e sua relação com as mídias digitais, essas proposições podem ser ainda radicalizadas. É que esses campos do saber vêm marcados de saída por discussões sobre corporalidade, subjetivação, o essencialismo A dificuldade tem sido sentida de forma generalizada pelos pesquisadores que se debruçam sobre o fenômeno digital. Nesse sentido, afirmam Pelúcio, Pait e Sabatine que “mal desenvolvemos novas técnicas para coletar dados, passamos a dominar determinadas ferramentas, começamos a nos ambientar com certas plataformas e seus usos mudam, quando não é o próprio ambiente de pesquisa que desaparece ou perde centralidade” (2015, p. 8). Os autores queixam-se, também, da ausência ou insuficiência de conceitos para lidar com esse universo.

12

No âmbito da produção sobre gênero e tecnologia, a corrente “otimista” via nos avanços tecnológicos a possibilidade de suplantação/superação dos marcadores sociais da diferença (conferir: Manifesto VNS Matrix (1991); Plant (1997); Haraway (2009)). A corrente que relativiza tal ponto de vista é bem representada pelos estudos de Wajcman (2004).

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e a (falsa, ou no mínimo controversa) dicotomia natureza x cultura. Na medida em que práticas e relações envolvendo gênero e sexualidade se desenvolvem pela Internet, que é um conjunto de comunicações incorpóreas (apesar de que, não nos esqueçamos, dependam de estruturas físicas), podemos nos encontrar carentes de categorias e ferramentas de análise. Em outras palavras, não é tarefa simples compreender, nos objetos a serem estudados, as correlações de mão dupla entre marcadores sociais como gênero, raça, sexualidade e geração e as mídias digitais.

1.1. UM MUNDO VIRTUAL? Nesse processo de desenvolver um instrumental metodológico adequado às relações entre gênero e Internet - no nosso caso, no estudo da violência de gênero online -, surge como preocupação primeira a questão sobre a especificidade ou não das mídias digitais. Ou seja, se existem razões para que seja empreendido um estudo delimitado nas mídias digitais, como um campo em separado, ou ainda se elas devem ser compreendidas simplesmente como um alargamento do “mundo real”. Nossa experiência de pesquisa em campo apontou claramente para a inoperabilidade dessa separação entre o real e o virtual, quando o objeto de pesquisa são relações sociais e respostas jurídicas; nessa percepção, estamos acompanhados por outros cientistas sociais que se debruçaram sobre questões de gênero e sexualidade e o uso da Internet. Assim, por exemplo, a antropóloga Larissa Pelúcio depreende de sua pesquisa sobre usos da plataforma Ashley Madison que a corporificação presente nas vidas virtuais significa “imprimir nesse mundo digital marcas da cultura na qual estamos imersos, valores de classe, acentuar marcas de raça/etnia, ou borrálas. (...) O fato de estarmos imersas em ambientes on-line não nos isenta de ter um corpo, ao contrário. A criação de um avatar, nossa identidade iconográfica, passa por corporificar-se” (2015, p. 92). Para além disso, a autora busca refletir sobre o quanto nossas ideias e formas concretas de se relacionar são co-constituídas pelas novas formas de comunicação - relacionamentos iniciados em aplicativos, desenvolvidos total ou parcialmente à distância, no tempo da mensagem instantânea. Em sentido semelhante, o sociólogo Richard Miskolci, a partir de pesquisas sobre desejo e relacionamentos virtuais online, afirma que Minha experiência de pesquisa nesses últimos 5 anos me provou que o campo não tem suas fronteiras delimitadas por um site assim como precisa compreender a articulação entre online e off-line, um continuo no qual nos inserimos assim como nossos sujeitos de pesquisa. Ao contrário das primeiras investigações que trabalhavam

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com a oposição real-virtual, atualmente se tornou quase consenso o fato de que as novas mídias não criam um universo social à parte – o qual alguns chamaram de ciberespaço (LÉVY, 2005) – antes mediam e modificam a forma como vivemos nossa vida off-line dentro de um contínuo articulado e interdependente. (2011, pp. 15-16)14. A divisão entre o “real” e o “virtual”, como a bibliografia tem sugerido, pode ser uma armadilha metodológica para compreender a experiência humana transformada reiteradamente pelo domínio do tecnológico, já que, nos parece, a experiência não é algo que se possa cindir.

1.2. UMA VIOLÊNCIA ONLINE É TAMBÉM UMA VIOLÊNCIA? Nossas experiências com a pesquisa sobre disseminação não consensual de imagens íntimas com base em gênero colocaram-nos essas inquietações de forma bastante explícita. Em novembro de 2015, uma equipe de alunas da Unicamp entrevistou nossa equipe de pesquisa, para um documentário sobre “revenge porn”. As alunas mostraram-se surpresas com o fato de utilizarmos reiteradamente a palavra violência – algo que alegaram ser novo, em relação aos entrevistados que nos antecederam. Discutindo com elas, tornou-se claro para nós que nomear práticas como o “revenge porn” como violência constitui uma espécie de statement - uma afirmação forte. Outros acontecimentos evidenciaram a força do uso da palavra violência. Na edição de

Em outro trecho do mesmo texto, Miskolci elabora tal afirmação: “Como sociólogo inserido na área de estudos de gênero e sexualidade, o que tenho acompanhado nesse campo investigativo me mostra que boa parte dos estudos tende a focar nas plataformas ou em seu público alvo replicando os interesses de seus criadores ou comercializadores em detrimento das maneiras divergentes e criativas com que os usuários as utilizam. A vertente que parte de um site como objeto de pesquisa, por exemplo, tende a circunscrever a investigação à plataforma ao invés de reconhecer seu campo nos interesses que regem o uso do site, o qual nunca é único e tende a se articular ao uso de outros assim como a formas off-line de interação. Até podemos reconhecer como relevante o estudo de um site em particular e começar a pesquisa nele, mas é fundamental reconhecer que o campo é maior do que o site. Se os usuários dificilmente se restringem ao uso de um só, assim como tendem a articulá-los com formas off-line de interação, então o que leva ao uso das mídias digitais é o mais importante e para o que devemos dirigir nossas análises. (idem, p. 14).

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Sobre sua própria experiência de pesquisa, Miskolci afirma: “Em linguagem puramente metodológica, o deslocamento da pesquisa das mídias para seus usos vinculou essas tecnologias comunicacionais aos interesses sociais e subjetivos conferindo ao objeto de pesquisa contornos mais precisos e, portanto, mais promissores para a investigação alcançar resultados substantivos. Empiricamente, passei do interesse inicial pela internet como foco da pesquisa para a forma como as pessoas a usam, ou melhor, para o desejo que rege seu uso. Um desejo que precisa ser reconstituído em termos históricos, sociais e subjetivos, afinal ele expressa uma relação entre o que se quer com os valores e as condições tecnológicas atualmente existentes” (idem, p. 17-18)

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novembro de 2015 do Internet Governance Forum (IGF), evento da ONU que congrega o setor privado, Estados e o terceiro setor para discussões sobre Internet, quatro das mesas foram dedicadas a questões de gênero e Internet, em todas incluída a questão da violência15. O IGF vem adotando, também, o compromisso de desenvolver pesquisas aprofundadas sobre temas considerados relevantes, por meio de seu Best Practices Forum (BPF): em 2014, um dos seis temas escolhidos foi a violência contra mulheres online, no âmbito do qual foi elaborado um relatório que foi apresentado durante o IGF 2015. Em outubro de 2015, a equipe responsável pelo Best Practices Forum iniciou uma campanha na Internet para colher relatos de violência online, utilizando-se da hashtag #TakeBackTheTech. A campanha foi atacada por grupos que, alegando preocupação com as consequências para liberdade de expressão das discussões ali propostas, argumentaram principalmente que a iniciativa da ONU utilizava-se da narrativa da violência sem qualquer propriedade, e buscava igualar o que ocorria na Internet com a violência física fora dela – o que, para eles, seria irreal, impertinente e perigoso. O ataque foi agressivo e, supostamente, proveniente de grupos masculinistas conhecidos pelo envolvimento com o episódio GamerGate16. Para as ciências sociais, e em especial para a antropologia, violência e sexualidade tendem a ser compreendidos antes como categorias relacionais do que como conceitos pré-estabelecidos. Isso quer dizer que se tratam de relações construídas na cultura, e não necessariamente universalmente válidas. Tratar da violência em geral, de um ponto de vista teórico, é difícil em si, seja porque a literatura sobre o tema é vasta, e o debate vem sendo conduzido em disciplinas e lugares muito diferentes, seja porque o tema é tão próximo do nosso cotidiano que uma tentativa de delimitá-lo seria sem sentido e até talvez de mau gosto (HARVEY; GOW, 1994, p. 1). Se a literatura é vasta, de outro ponto de vista, “apesar de uma grande quantidade de escritos, pesquisa e especulação, o conceito de violência nas ciências sociais ainda parece consideravelmente subteorizado” (MOORE, 1994, p. 138). É mesmo difícil encontrar um mínimo, do qual fosse impossível divergir, para o conceito de violência. De acordo com Riches, citado por HARVEY e GOW (1994, p. 12), um conceito mínimo válido transculturalmente seria o de violência como aquilo que é dano

físico não legítimo, ou contestável. Foi precisamente esse conceito mínimo de violência que foi mobilizado pelos grupos online que contestaram a campanha da ONU. Maria Filomena Gregori, entretanto, aponta para “a fronteira tênue em que se confrontam o exercício

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Ver programação em https://igf2015.sched.org/.

O GamerGate foi um episódio em que várias mulheres, envolvidas na discussão de videogames, foram perseguidas predominantemente por usuários de fóruns anônimos, por diversos motivos. Para mais informações, ver: http://time.com/3510381/gamergate-faq/. Para ver o registro da articulação desse grupo emhttps://www.reddit.com/r/KotakuInAction/comments/3oa04u/goal_ op_take_back_the_truth_phase_ii_the_apc_has/. Nesse material, acusa-se a ONU de estar “pushing its bullshit ‘cyberviolence’ narrative, and pushing a path towards Internet censorship”. 16

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da sexualidade, no marco de sua significação como liberdade individual, e a violência, conotada como atos abusivos passíveis de condenação moral, social ou de criminalização” (GREGORI, 2008, p. 575) – aqui, portanto, já entendendo como violência o ato abusivo não necessariamente definido como dano físico17. É em meio a essa dificuldade que se situa a nossa discussão sobre se atos como o “revenge porn” podem ser discutidos na chave da violência, e sobre se faria sentido excluir a categoria,–como queriam os grupos que atacaram a campanha #TakeBackTheTech–, pelo fato de se tratarem de atos praticados “exclusivamente na Internet”. Essa discussão deixa de guardar qualquer sentido se abandonamos, como pretendemos, essa dicotomia offline x online. Adiante, quando tratarmos dos casos de disseminação não consensual de imagens íntimas tramitando no Judiciário brasileiro, a inutilidade da separação aparece de forma contundente. Pensar a violência para práticas virtuais pode ser também perseguido por uma linha que, em vez de buscar definir violência teoricamente, investiga suas relações com gênero e sexualidade. Carole Vance é uma autora particularmente útil para essas reflexões, por explorar o erotismo como algo co-constituído por prazer e perigo: estupro, abuso e espancamento são fenômenos ligados ao exercício da sexualidade. Seria a violência online, ou mais especificamente uma prática como o “revenge porn” , um novo significante do perigo ligado ao exercício da sexualidade? Para Gregori, essa relação tensa entre prazer e perigo pode ser chamada de limites da sexualidade. O que é abusivo e o que é normal são constantemente ressignificados. Essa fronteira é montada, e a antropologia teria o papel essencial de mostrá-lo: não poderia ser o caso, quanto ao tema de nossa investigação, de estarmos observando uma ampliação dessas fronteiras, em especial se consideramos o papel cada vez mais central das tecnologias da informação e da comunicação nas nossas vidas?18 Apesar das dificuldades conceituais, a questão da violência sexual e inclusive moral vem sendo exaustivamente regulada, controlada, estudada: a violência ligada à sexualidade contém o paradoxo de ser erotizada pelas sociedades ocidentais e de conter em si o signo do inaceitável; “além disso, é transgressora; transgressora do nosso sentido de integridade física e do espírito ligado a ela, o que permite que violência seja aplicado a não apenas a agressão física” (HARVEY; GOW, 1994, p. 2).

O próprio estupro é uma questão tanto moral quanto física – o conceito de atentado violento ao pudor é mais adequado, inclusive, por lidar com a violação da integridade da pessoa, para além da questão da atividade sexual em si (DAY, 1994, p. 172).

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Sobre a questão de violência ser algo relacional, Gregori cita uma série de trabalhos de apoio: Lauretis, 1997; Moore, 1994; Saffioti, 1994; Gregori, 1993, 2004; Gregori &Debert, 2008. 18

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Ora, o material apresentado parece nos sugerir que não exista uma resposta dada de antemão sobre se os atos lesivos praticados contra a mulher na Internet sejam violência, como se violência pudesse ser definida no dicionário e assim permanecer estável nas culturas. Ainda assim, a literatura e as discussões da disciplina parecem apontar para uma pertinência na utilização da palavra: de um lado, nosso campo mostra que a violência aplicada a esses contextos é categoria nativa, utilizada pelas próprias vítimas e militantes trabalhando com os casos. De outro, se a categoria pode evidentemente ser contestada, como efetivamente tem sido, existe aparentemente um efeito performativo no nomear tais práticas como violentas, que é chamar para a questão a atenção que a cultura dá para tudo aquilo que é proibido, transgressor, ilegal.

1.3. R E V E N G E, O P RO B L E M A DA M OT I VAÇÃO E A S N O R M AT I VA S D E G Ê N E RO Ao trabalhar especificamente o “revenge porn”, enfrentamos a complicação que se dá também em sede de outras violências associadas a sexualidade e gênero, que é o que poderíamos chamar de dano focalizado. O que queremos dizer é que o acompanhamento de casos de “revenge porn”, que, como afirmamos atrás, fizemos via (i) pesquisa de jurisprudência, (ii) estudo de caso (o Top 10, em Parelheiros e Grajaú)19 e (iii) entrevistas e acompanhamento de mídia, mostra claramente que, com poucas exceções, é o sexo feminino que é afetado, ainda que a exposição seja de um casal heterossexual. Apresentase diante de nós o suposto paradoxo de que, em tempos de superexposição e desvalorização da privacidade, e possivelmente de uma certa liberalização dos costumes, principalmente por adolescentes, a exibição da nudez e de cenas sexuais envolvendo mulheres ainda seja um tabu tão extremo, com o condão até mesmo de destruir vidas. A literatura que associa sexualidade a perigo, e busca entender como essa chave ainda tem lastro, ajuda a responder a esse suposto (mas falso) paradoxo: Vance, em especial, ajuda a formular essa questão ao evidenciar que as mulheres, ainda quando instadas e gozando de abertura para exercer sexualidade, são punidas por isso. A tensão entre perigo sexual e prazer sexual é poderosa na vida das mulheres. A sexualidade é simultaneamente um domínio de restrição, repressão, e perigo, assim como de exploração, prazer e agência. O foco somente no prazer e na gratificação ignora a estrutura patriarcal em que as mulheres agem, mas também falar somente de violência sexual e opressão ignora a experiência das mulheres com agência sexual e escolha, e inadvertidamente aumenta o terror sexual e o desespero sob o qual as mulheres vivem (VANCE, 1984, p. 1). Refletimos sobre o caso - que consiste na exposição da intimidade de meninas adolescentes por meio de aplicativos e redes sociais - em: Valente, Neris e Bulgarelli (2015). V. Quinta Parte deste livro. 19

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Vance esclarece que a barganha tradicional estabelecida em torno da sexualidade da mulher e suas relações com o homem é que, se ela se comporta como esperado (de acordo com normativas de gênero, ou representações dominantes), é protegida pelo homem; se não, o homem pode violá-la e puni-la. Essa barganha estaria sendo enfraquecida pelas mudanças capitalistas e pelo movimento das mulheres. No século XIX, as feministas elaboraram a ideia de assexualidade e contenção sexual dos homens, como saídas para superar a assimetria; a segunda onda do feminismo apostou no aumento de autonomia sexual das mulheres, e, nesse fluxo, muitas mulheres se sentiram, no entanto, mais vulneráveis. “Apesar do declínio da velha barganha, que posicionava a segurança sexual das mulheres e sua liberdade sexual em oposição, o medo que as mulheres sentem de repreensão e punição pela atividade sexual não diminuiu” (idem). Para além dos danos físicos e psicológicos causados pela ameaça, o perigo do ataque sexual passa a operar como uma lembrança do privilégio masculino, com o intuito de restringir o comportamento das mulheres. É isso que engendraria o discurso do better safe than sorry (melhor prevenir que remediar)20, e a vivência dos impulsos sexuais femininos como perigo: se os homens são vistos como desejantes, agressivos, impetuosos, cabe à mulher, nessas representações dominantes, o papel de custodiar o comportamento masculino, não lhe provocando desejos. Os custos de agir de outra forma são altos. A autora explicita também os efeitos internos dos sistemas de gênero nas mulheres, que sofrem de dúvidas sobre si e ansiedades – e a própria formação do desejo feminino sob o patriarcado estaria ainda por ser explorada. Um de seus aspectos seria a competição feminina que se coloca na disputa por atenção, e na separação em relação a outras mulheres, como a mãe e irmãs reais e metafóricas, que a transgressão do gênero provoca. Mas veja a complexidade da questão: Assim como concordar em não falar dos perigos faz com que a autobiografia de uma pessoa seja mutilada, decidir não falar sobre prazer exige uma alquimia igualmente desonesta, a transmutação da sexualidade em perigo absoluto e vitimização incessante (VANCE, 1984, p. 5). Henrietta Moore, em argumentação semelhante, lembra-nos de que a violência (e a ameaça de violência) é uma forma efetiva de controle social: ela aparece como uma crise de representação e resultado de conflito entre estratégias sociais que estão ligadas a essa representação21. Se identidade é algo ligado à experiência de poder, quaisquer

Um exemplo afeito ao nosso estudo: “caso não queira ter a intimidade violada, não registre e sua intimidade”, o que no limite é obstar o livre exercício da sexualidade pelas mulheres. 20

O exemplo que Moore apresenta é o do homem colombiano, que lida com as duas principais representações sociais dominantes, a do homem de família e homem parrandero – e nas parrandas também está uma grande fonte das redes que trarão benefícios econômicos dos quais as mulheres, ou os homens que não frequentam esses espaços, ficam excluídos.

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contestações ao exercício do poder são percebidas como ameaças de identidade, e viceversa – especialmente se as contestações no nível da identidade de gênero estão refletidas no comportamento do outro com quem o indivíduo está conectado de forma próxima. Em outras palavras, a violência constantemente surge como forma de reafirmar poder em situações de ameaça a representações ligadas à identidade, que surgem especialmente em relações próximas e íntimas. (...) Violência é frequentemente o resultado da incapacidade de controlar o comportamento sexual de outras pessoas, ou seja, a administração dos outros de si mesmos como sujeitos generificados. Isso explica não somente a violência entre homens e mulheres, mas também entre mães e filhas, entre cunhadas, entre os homens mesmos. Em todas essas situações, o que é crucial é a forma como o comportamento do outro ameaça as auto-avaliações e avaliações sociais de uma pessoa. Então, é o perpetrador da violência que é ameaçado e experiência frustração. Interessantemente, muitos dos eventos violentos discutidos neste livro ocorrem em situações em que a parte frustrada está sujeita a sofrer perdas materiais, como resultado de insuficiências – assim percebidas – da vítima da violência. Mais uma vez, fantasias de identidade estão ligadas a fantasias de poder, o que ajuda a explicar por que a violência é tão frequentemente o resultado de uma ameaça percebida, em vez de real.(MOORE, 1994, p. 152). Essa moldura teórica, segundo a mesma Moore, ajuda a entender a violência não como uma

quebra da ordem social, mas como um sinal da luta pela manutenção de certas fantasias de poder e identidade – e que envolvem não somente gênero, mas também classe e raça22. Esse processo se dá de forma contínua, ressignificando-se ao longo do tempo. Do ponto de vista de gênero, a violência que vem sendo denominada como “revenge porn” reforça, portanto, as normativas de gênero, entendido gênero a partir da definição de Scott: organização social da relação entre os sexos, de forma a sublinhar “o aspecto relacional das definições normativas das feminilidades” (SCOTT, 1995, p. 72)23. Um dos elementos implicados no gênero é No mesmo sentido, Maria Filomena Gregori aponta que os estudos antropológicos com foco na violência, ou seja, abusos sociais e como são tratados pelas instituições sociais (como Corrêa, 1983; Ardaillon e Debert, 1987; Vargas, 1997; Carrara, 2000) mostram que nos homicídios contra mulheres existe a motivação do passional da defesa da honra, “em que há claramente a pressuposição de perda do controle sobre a sexualidade feminina” (GREGORI, 2008, p. 580). 22

O modo como Alice Bianchini, advogada e pesquisadora entrevistada, interpreta a prática de “revenge porn” é emblemática nesse sentido: “Meio parece que é até uma coisa mais moderna daquela coisa antiga que dizia assim ‘não é minha não é mais de ninguém’. Agora é: ‘se não é minha é de todos’. É de todo mundo pra não ser de mais ninguém, na verdade, é como se fosse mais uma forma de chegar à mesma ideia de não ser de ninguém, porque na medida em que ele difama essa mulher ela vai ter dificuldades de novos relacionamentos. Então é uma forma dele de chegar ao mesmo objetivo, não é minha não é de ninguém, porque vai ser de todos. Então é muito parecido só que é uma coisa mais moderna de chegar à mesma coisa. Mas o fundo me parece que é muito... Continua o mesmo”.

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precisamente a normatividade de conceitos que, expressos em doutrinas de distintas ordens – religiosas, educativas, jurídicas, etc. – afirmam de forma binária o sentido de masculino e feminino (SCOTT, 1995, p. 86); por mais que as posições estejam em disputa, uma delas (o masculino) é de forma ampla apresentada como dominante e aparece como se fosse produto de consenso social (e não do conflito). É nesse mesmo sentido, já em nossas palavras, que em nosso campo surgem com clareza, a respeito de casos de “revenge porn”, discursos no sentido de que a mulher “não deveria ter feito isso” (ter realizado prática sexual, ou ter-se deixado fotografar ou filmar nessa prática), como normativa primordial, a se sobrepor ou mesmo substituir a condenação moral do compartilhamento não autorizado das imagens íntimas (pelos homens, em geral). O dever de castidade das mulheres e meninas, ainda que descolado das práticas em uma determinada comunidade ou cultura, apresenta-se como mais forte. Ainda assim, a própria realização pelas mulheres dos atos proibidos, documentada em imagem, é paradoxalmente o questionamento dessa normativa24.

1.4. O “REVENGE PORN”, A SUPEREXPOSIÇÃO E OS REGIMES DE VISIBILIDADE Esse paradoxo –que envolve incentivos e desincentivos ao exercício da sexualidade pelas mulheres –é, como abordamos brevemente acima, potencializado pelo fato de que estamos todo o tempo instados pelas mídias digitais a uma grande exposição de nossos corpos e imagens. É útil, para a análise da violência que consiste na quebra da privacidade em um mundo em que se valoriza seu abandono espontâneo, pensar na questão a partir da categoria, trabalhada por Richard Miskolci, de regimes de visibilidade. Na esfera da sexualidade, regime de visibilidade é uma noção que busca sintetizar a maneira como uma sociedade confere reconhecimento e torna visíveis certos arranjos amorosos, enquanto controla outras maneiras de se relacionar por meio de vigilância moral, da coibição de sua expressão pública, em suma, pela manutenção dessas outras

Numa confirmação dessa instabilidade, Scott: “Só podemos escrever a história desse processo se reconhecermos que ‘homem’ e ‘mulher’ são ao mesmo tempo categorias vazias e transbordantes; vazias porque elas não têm nenhum significado definitivo e transcendente; transbordantes porque mesmo quando parecem fixadas, elas contêm ainda dentro delas definições alternativas negadas ou reprimidas. Em certo sentido a história política foi encenada no terreno dogênero. É um terreno que parece fixado, mas cujo sentido é contestado e flutuante. Se tratamos da oposição entre masculino e feminino como sendo mais problemática do que conhecida, como alguma coisa que é definida e constantemente construída num contexto concreto, temos então que perguntar não só o que é que está em jogo nas proclamações ou nos debates que invocam o gênero para justificar ou explicar suas posições, mas também como percepções implícitas de gênero são invocadas ou reativadas” (SCOTT, 1995, p. 93).

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formas amorosas e sexuais em relativa discrição ou invisibilidade. Um regime de visibilidade traduz uma relação de poder sofisticada, pois não se baseia em proibições diretas, antes em formas indiretas, mas altamente eficientes, de gestão do que é visível e aceitável na vida cotidiana. “Assim, um regime de visibilidade é também um regime de conhecimento, pois o que é visível e reconhecido tende a estabelecer as fronteiras do pensável” (MISKOLCI, 2014, p. 64). Para o autor, a década de 1960 teria inaugurado um novo regime de visibilidade, que passou a ser associado a demandas de reconhecimento e agência no processo de trazer sexualidade ao campo do político, e separar definitivamente sexo de reprodução. Nesse processo, afirma, a expansão comercial da Internet nos anos 1990 teve um papel impactante, dado que, ao permitir a construção de redes de apoio (e a consequente diminuição da sensação de isolamento daquele/a que em outras circunstâncias se sente “estranho” e “anormal”) e a criação de novas formas de ativismo, como a “Marcha das Vadias” e o próprio ciberfeminismo, deu lugar também a novas formas de reconhecimento e, assim, visibilidade. O paradoxo que ele observa em seu campo de análise, a homossexualidade, é que esse regime de visibilidade é marcado por novas formas de normalização dos corpos, ligadas ao mercado e à erotização (normalizada), “mecanismo compensatório para sua experiência de serem frequentemente associados ao desvio e à anormalidade” (MISKOLCI, 2015, p. 143). Ele se refere ao fenômeno de exposição de corpos esculturais no universo de relacionamentos homossexuais pela Internet. Trazendo o problema para o nosso campo de análise, ou seja, para a disseminação não consensual de imagens íntimas, vale lembrar que, como afirma o próprio autor, “ganhar visibilidade não traz apenas ganhos. Ao contrário, pode trazer perdas e danos para quem apenas em segredo ou discrição consegue negociar seus desejos com as normas sociais vigentes” (2015, p. 133). É que nada é visível sem formas de ver, que estão ligadas a posições privilegiadas de poder, que “podem levar à objetificação e submissão de quem é visto. (...) Entre o que vemos e o significado que atribuímos ao que foi visto estão sempre as representações sociais correntes”, o que faz da visibilidade algo sempre contextual. O que aparece como especialmente cruel nos fenômenos envolvendo o “revenge porn” é o frágil limiar entre o incentivo à exposição enquanto corpo feminino, aí incluídas as próprias demandas feitas por setores do movimento feminista em torno de temas como a representação autônoma de corpos em redes sociais, e a exposição que destrói vidas. Situar esse limiar no consentimento seria uma forma de lidar com a questão, bastante afeita, aliás, à lógica jurídica, mas é simplista. Como veremos adiante, ao lidar com os casos, o consentimento traz consigo um elemento de autonomia importante, mas, em sociedades marcadas pelo sexismo, não é somente a exposição não consentida que pode trazer consequências negativas à vida de mulheres.

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SEGUNDA PARTE

OS PROCESSOS JUDICIAIS CONTRA INDIVÍDUOS

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2. VIOLAÇÃO DE INTIMIDADE E PRIVACIDADE: OS CASOS NO JUDICIÁRIO As reflexões de caráter teórico e metodológico que apresentamos atrás são resultados de trabalho de campo que realizamos, utilizando metodologias distintas, também já destacadas: entrevistas em profundidade, estudo de caso, observação participante, e análise quantitativa e qualitativa de jurisprudência. A utilização de diferentes métodos mostrou-se necessária, especialmente, pela complexidade do objeto: violência é em geral difícil de ser estudada, pela sabida dificuldade na produção de dados estatísticos, baixo grau de denúncia e inexistência, portanto, de fontes oficiais confiáveis. Nosso objetivo em campo era compreender o desenvolvimento dos casos de “revenge porn” e o seu tratamento jurídico, para, à maneira de ciência social aplicada, poder oferecer um diagnóstico que servisse à formulação de políticas públicas. O acompanhamento de casos isolados que empreendemos no início da pesquisa mostrouse pouco frutífero, já que acabávamos por nos tornar reféns da agenda da imprensa. Tomamos então a decisão de fazer uma análise informada pelos processos judiciais envolvendo nudez e mídias digitais. Essa escolha apresenta vantagens e desvantagens. Uma primeira vantagem é que ela permite uma análise ampla de todo e qualquer caso que chegue ao Judiciário, o que, no nosso caso, foi essencial para nos libertarmos das narrativas dominantes a respeito do problema, e descobrirmos outras variantes de casos que não vinham sendo abordadas nem pela mídia, nem pelos movimentos sociais. Outra vantagem é que o Judiciário é um local privilegiado para a compreensão do enquadramento jurídico da discussão, ou seja, o que ocorre com o “revenge porn” quando ele passa pelo filtro do direito. Dessa análise é que podem ser extraídas orientações para a formulação de políticas públicas, já que algumas suposições sobre como o direito lida bem ou mal com os casos são confirmadas ou negadas. A mais óbvia limitação desse método é que, num país como o Brasil, o gravíssimo problema do acesso à Justiça pode resultar, a depender de uma série de fatores, que somente casos com determinadas características sejam analisados, enquanto outros fiquem definitivamente excluídos. Acreditamos que a análise que fizemos nos possibilitou algumas conclusões a esse respeito, e complementamos nosso trabalho também como uma série de entrevistas em profundidade, que, como mostraremos, auxiliam na leitura a respeito do que fica de fora. Pela nossa limitação devido ao grande volume de casos existentes no Judiciário brasileiro, decidimos trabalhar com as decisões judiciais de segunda instância, ou seja, do órgão de apelação. É importante pontuar que, além de haver um menor número de casos em segunda instância (o que viabilizaria nossa pesquisa), algumas das funções dos tribunais de

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segunda instância seriam a harmonização de certos entendimentos e a proteção das partes contra erros judiciais. Dessa forma, as decisões que são tomadas nesse foro adquirem maior peso, ao serem utilizadas como “precedente” ou “jurisprudência”. Também em função do volume, estabelecemos uma limitação territorial e escolhemos trabalhar com as decisões do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Trata-se do maior Tribunal do Brasil, no Estado mais populoso, e, além disso, o local onde a equipe de pesquisa está situada, o que significa acesso facilitado aos agentes da lei, como advogado/as, promotores/as e defensores/as, em sua área geográfica de atuação, para entrevistas e esclarecimentos. Para encontrar os casos que, em sentido lato, estávamos chamando de “revenge porn”, fizemos uma busca no portal do órgão25, por meio do uso de palavras-chave específicas26. Cabe mencionar que nossa primeira busca com os termos “pornografia de vingança” e “revenge porn” não retornou nenhum resultado – a categoria não é utilizada pelos desembargadores, ao menos até o momento. Assim, para testar se nossas palavras-chave estavam captando os casos que queríamos encontrar, testamos se, nas decisões que já conhecíamos de “revenge porn”, os nossos critérios nos fariam encontrálas - e o resultado foi positivo. Selecionamos os casos pertinentes 27, e fizemos uma análise e sistematização detalhada das 90 decisões que ficaram. Cabe lembrar que não fizemos uma seleção inicial com base em gênero ou sexo, inclusive para poder utilizar os padrões como dados de análise28. O sistema de busca de decisões do TJSP pode ser acessado através do site:http://esaj.tjsp.jus.br/ cjsg/resultadoCompleta.do;jsessionid=3F2B5A35C044B19F7CEE3C0EFEBCBDCB.cjsg3.

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As palavras-chave utilizadas foram: “pornografia”, “imagem intima”, “foto intima”, “vídeo intimo”, “dado intimo”, “nudez” e “relação sexual”, como termos principais. Com cada uma de tais palavras, combinamos os termos “Internet”, “Redes Sociais”, “WhatsApp”, “Facebook”, “Virtual” “Online” e “YouTube” o que resultou em 49 combinações de busca diferentes. 26

A filtragem dos casos, inteiramente manual nos levou a excluir principalmente casos de pornografia infantil (bastante freqüente nos resultados da busca), e também casos de ofensas na Internet em que não ficava claro se se tratava de violação de intimidade ou de casos envolvendo nudez. 27

Importa mencionar que o caminho metodológico da pesquisa não se mostra evidente ou linear. A etapa de pesquisa jurisprudencial foi marcada por dois momentos. A primeira busca de decisões que realizamos no portal do TJ retornou 36 resultados. Naquele momento tínhamos como principal critério de pertinência para a pesquisa o fato de que as partes deveriam necessariamente ter tido uma relação afetiva – o que excluía, portanto, casos envolvendo pessoas que não teriam tido uma relação amorosa ou sexual (por exemplo, amigos, conhecidos) bem como casos em que não era possível identificar relação entre acusado/a e vítima. O número reduzido de casos nos levou à revisão de tal critério uma vez que observamos através da leitura dos documentos que decisões em segunda instância em geral apresentam descrições fáticas bastante sintéticas o que poderia nos induzir a perder na análise casos relevantes de disseminação não consensual de imagens íntimas que estariam acessando o Tribunal de Justiça de São Paulo. Refeita a busca num segundo momento, adotando como principal critério a existência 28

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Tendo em vista a natureza dos casos (sobre as quais discorremos com detalhes a seguir), desenvolvemos três conjuntos distintos de categorias para analisá-los: (i) o primeiro para estudo dos casos processados em âmbito penal; (ii) o segundo para casos processados em âmbito civil; (iii) e, o terceiro, uma categoria específica dos casos da justiça civil, daqueles envolvendo pessoas físicas e provedores de aplicação ou empresas de Internet. Estes últimos casos, devido à especificidade dos envolvidos (provedores de aplicação e empresas de internet) e seu papel singular. Além de estarem envolvidos em ações judiciais, tais atores também possuem a capacidade de regular diversos espaços da Internet com seus termos de uso – por exemplo, a depender da politica de uso adotado por alguma rede social, será mais fácil ou não a proteção a mulheres naquele espaço. Assim, por concentrarem também uma função “regulatória” do espaço, decidimos tratar dessas ações em separado, na Terceira Parte. Para o trabalho de tabelamento dos acórdãos, assim, criamos três planilhas distintas, mas que seguiam a mesma lógica, em termos de partes: 1. na primeira, categorias que permitem identificar o pesquisador e o caso (descrição fática); 2. na segunda, categorias que permitem identificar o acórdão: números de registro e processo, tipo de ação, data de julgamento, relator, requerente, vara de origem e câmara; 3. na terceira, categorias que tratam da relação entre as partes e existência (ou não) de motivação de vingança quando da violação de intimidade ou privacidade da vítima; 4. na quarta, categorias que permitem identificar o pedido do recurso, bem como o que ocorreu na primeira e segunda instância em termos de pena ou responsabilização; 5. por fim, categorias que tratam do conjunto probatório (existência de discussão sobre provas, e que discussões eram essas) e fundamentação da decisão (doutrina, jurisprudência e argumentos externos ao direito). Um dos resultados mais importantes da nossa análise foi a simples compreensão das distintas possibilidades de enquadramento que o ordenamento jurídico brasileiro oferece para as diferentes formas como o fenômeno do “revenge porn” se desenvolve. Entendemos que o enquadramento jurídico diz muito sobre os casos em si, e fazemos essa discussão no

de violação de intimidade ou privacidade per se, acrescentamos ao corpus, excluídas as decisões já colhidas anteriormente 55 acórdãos o que nos levou a trabalhar com os já referidos 90 casos.

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item 2.1 (adiante). Em seguida, trabalharemos padrões e tendências nas decisões (item 2.2), para, por fim, por meio da descrição de alguns casos, destacar pontos que nos parecem relevantes para pensar violência online, a questão da vingança, e os paradoxos envolvendo gênero e imagem na Internet, relacionando as reflexões que propusemos na Primeira Parte com o que os casos e a sua expressão jurídica nos revelam (itens seguintes).

Para o leitor não jurista, uma sistematização dos tipos de recursos que aparecem neste relatório: Recursos que cabem tanto no processo quanto no penal Apelação: é o recurso utilizado pra mudar a sentença (resultado) proferida pelo juiz em primeira instância. Agravos: são os recursos contra decisões interlocutórias proferidas pelo juiz que podem prejudicar as partes e o curso do processo. São decisões interlocutórias aquelas que lidam com questões incidentais, ou seja, não ligadas ao objeto principal de uma ação, por exemplo, o juiz vai apreciar se as partes podem estar naquele processo - apesar de isso não ser a questão principal, é fundamental para que a ação continue. A respeito dessa decisão interlocutória, cabe um agravo. Embargos: pelos embargos declarações, as partes pedem ao juiz que esclareça certos aspectos de uma decisão quando houver (i) omissão; (ii) ambiguidade; (iii) obscuridade. Cabem embargos infringentes quando uma decisão for tomada por uma maioria (ex: dois de três desembargadores), e não por unanimidade. A parte que opõe os embargos quer ver o voto vencidp prevalecer. Mandado de Segurança: é concedido para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data - usualmente contra abusos de autoridades policiais ou judiciais. Habeas corpus: é uma garantia constitucional em favor de quem sofre violência ou ameaça de constrangimento ilegal na sua liberdade de locomoção, por parte de autoridade legítima. Por exemplo: prisões ilegais, conduções coercitivas desnecessárias, etc. Recursos no processo penal Recurso em sentido estrito: é o recurso previsto no art 581 do Código de Processo Penal contra situações específicas, como quando o juízo não receber a denúncia ou queixa, negar-se ordem de habeas corpus, relaxar prisão em flagrante, etc.

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Revisão Criminal: é nova ação que pretende reparar erros judiciários. De acordo com o art. 621 do Código de Processo Penal, ela será admitida quando a decisão for claramente contrária à lei, à evidência nos autos ou quando os documentos no qual a sentença for baseada forem falsoz. Quadro I: sistematização dos tipos de recursos

2.1. O ENQUADRAMENTO DO “REVENGE PORN” NO DIREITO BRASILEIRO Quando ocorre uma disseminação não consensual de imagens íntimas envolvendo mídias digitais, levá-la ao Judiciário significa enquadrá-la em âmbito penal e/ou civil. Na esfera penal, há uma diferença primeira a ser considerada: se a vítima é menor de dezoito anos, o caso é geralmente regido pela Lei 8.069/90 (o Estatuto da Criança e do Adolescente ECA)29 e pelos tipos penais ali presentes. Nos casos envolvendo vítimas adultas, ou seja, com dezoito anos ou mais, os crimes em questão são aqueles do Código Penal: (i) injúria e (ii) difamação, para processar a difusão de imagens em si, mas ainda (iii) ameaça, (iv) extorsão e (v) estupro, para casos relacionados à possibilidade de difusão dessas imagens, como veremos adiante. Abaixo, uma sistematização desses crimes, com exemplos, e suas penas. É importante observar que, a depender de certos elementos, há a possibilidade de combinação de mais de um tipo penal. Cabe também a combinação com outros elementos presentes em outras leis - por exemplo, posso ter um crime de difamação e também invocar a Lei Maria da Penha, caso exista ou tenha existido laço afetivo entre vítima e agressor.

Antes de 1990, existiam outras legislações reguladores de situações envolvendo crianças e adolescentes, como o Código do Menor (que teve sua última edição em 1979). A lógica dessa legislação, entretanto, era a regulação da prática de delitos por menores de 18 anos. O ECA é uma lei mais compreensiva, que prevê direitos e deveres da sociedade e do Estado em relação à criança e ao adolescente, com vistas a seu desenvolvimento. Consultar lei em http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/LEIS/L8069.htm. 29

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GRUPO

PREVISÃO LEGAL

TIPO PENAL E DESCRIÇÃO

Crimes contra a honra

Injúria (art. 140 do Código Penal):

No crime de injúria, não há se requer que terceiros fiquem cientes das ofensas proferidas à vítima, visto que o bem jurídico tutelado é a dignidade e não a reputação. Um exemplo de injúria seriam alguns casos de cyberbullying, nos quais a interação ocorre somente entre vítima e agressores.

Detenção, de um a seis meses, ou multa.

Difamação (art. 139 Código Penal)

Consiste em imputar fato ofensivo à reputação de alguém. Como a difamação atinge a reputação do individuo, o fato ofensivo deve chegar a conhecimento de terceiros e não apenas da vítima de tal crime. Os casos de disseminação de imagens íntimas podem ser enquadrados como difamação, por exemplo.

Detenção, de três meses a um ano, e multa

Ameaça (art. 147, Código Penal)

Consiste em ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal grave.

Detenção, de um a seis meses, ou multa.

Extorsão (art. 158, Código Penal)

Consiste em constranger alguém, mediante violência ou ameaça, com o intuito de obter vantagem econômica.

Reclusão, de quatro a dez anos, e multa.

Crimes contra a liberdade pessoal

24

PENA

Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência, a pena é de reclusão de um a três anos e multa.

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Crimes contra a liberdade sexual

Estupro (art. 231, Código Penal)

Caracteriza-se pelo ato de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ato libidinoso.

Reclusão, de seis a dez anos.

Crimes contra a administração da justiça

Coação no curso do processo (art. 344, Código Penal)

Usar de violência ou grave ameaça, com o fim de favorecer interesse próprio ou alheio, contra autoridade, parte, ou qualquer outra pessoa que funciona ou é chamada a intervir em processo judicial, policial ou administrativo, ou em juízo arbitral.

Reclusão, de um a quatro anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

Quadro II:sistematização dos tipos do Código Penal que aparecem na pesquisa

Vale notar que utilizamos a expressão “geralmente” para os casos envolvendo menores de idade porque, de acordo com nossos resultados, podemos concluir que nem todo caso em que há vazamento de imagens de adolescentes e exposição será tutelado pelo ECA, dadas as restrições dos tipos penais ali existentes – por exemplo, a exigência de que haja conteúdo pornográfico em sentido estrito, como será melhor explicitado adiante. O ECA passou por uma reforma significativa30, em 2008, que alterou o regramento sobre posse de material com conteúdo sexual envolvendo crianças e adolescentes – o objetivo era que houvesse mais efetividade especialmente no combate à pedofilia online. De acordo com o próprio sumário da lei, o objetivo era aprimorar o combate tanto à venda e distribuição quanto à mera posse desse tipo de material – o que não era criminalizado explicitamente antes da reforma. Antes dessa reforma, o ECA já criminalizava as condutas de “produzir”, “dirigir”, “fotografar”, “publicar”, “apresentar”, “vender”, “fornecer”, “divulgar”, “publicar” imagens pornográficas, de sexo explícito ou vexatórias envolvendo crianças e adolescentes, em representações teatrais ou televisivas, ou em “fotografias ou imagens”. Previam-se já também penas para quem contracenava, no caso de representação teatral ou televisiva, e, no caso de fotografias ou imagens, assegurava-se já que o crime se aplicava no caso da difusão pela “rede mundial de computadores”, e criminalizava-se também a conduta de agenciar ou assegurar o acesso às imagens. A reforma ampliou e

Lei no. 11.829/08.Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/ lei/l11829.htm. 30

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detalhou sobremaneira as condutas criminalizadas31, incluindo agora então o “possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente” (art. 241-B), e condutas mais específicas como “transmitir” e “distribuir”. Também se criminalizou a simulação de participação de crianças ou adolescentes em cenas de sexo explícito, o que inclui a montagem ou adulteração de qualquer tipo de mídia. A mesma reforma estabeleceu que “cena de sexo explícito ou pornográfica compreende

qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais” (Art. 241-E). Diante dessas mudanças, é bastante claro que casos de disseminação não consensual de imagens íntimas envolvendo sexo explícito ou exibição de órgãos genitais de crianças e adolescentes serão processados penalmente de acordo com o ECA. Isso tem consequências processuais importantes, do ponto de vista da lei brasileira: já que o artigo 227 da mesma lei determina que “os crimes definidos nesta Lei são de ação pública incondicionada”. Isso significa que, o Ministério Público, dará início à ação penal ainda que sem qualquer manifestação ou autorização do/a ofendido/a. A lógica por trás disso é que a gravidade da conduta justifica que o Estado assuma por completo a função de acusar e processar o réu, visto que o bem jurídico atingido é demasiado caro para a sociedade como um todo. A distinção é relevante, já que uma conduta semelhante realizada em relação a uma pessoa adulta será processada como injúria ou difamação, via ação penal privada (art. 145 do Código Penal). Isso significa que o ônus de promover a ação é da vítima, que deverá constituir advogado/a para apresentar uma queixa-crime (BADARÓ, 2012, p.125). Os custos da ação correm por conta da pessoa ofendida, que pode, em determinadas circunstâncias, buscar assistência jurídica gratuita na Defensoria Pública. Há outra diferença importante, que diz respeito aos prazos: no caso da ação penal privada, além dos prazos de prescrição dos crimes (que seguem as mesmas regras da ação penal pública, consultar tabela abaixo), existe o prazo de decadência de seis meses para que o/a ofendido/a exerça o direito de queixa, a partir do momento que toma conhecimento do autor do delito.

31

Foram alterados artigos. 240 e 241, e incluíram-se os arts. 241-A, 241-B, 241-C, 241-D e 241-E.

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TIPOS PENAIS TIPO DE AÇÃO Ação Penal Privada

CARACTERÍSTICAS Ação que depende da iniciativa da vítima ou de seu representante legal (art. 30 do Código de Processo Penal). A vítima pode optar por não levar a questão para a justiça e tem o ônus de constituir advogado, ou comprovar pobreza para ter um advogado nomeado pelo juiz (art. 32 CPP).

( RELEVANTES PARA A PESQUISA)

Injúria (art. 140 do Código Penal); Difamação (art. 139 CP)32.

A vítima tem de oferecer a queixacrime em até 6 meses a partir do momento em que vem a saber quem é o autor do crime (art. 38 CPP). Ação Penal Pública Incondicionada

Na ação penal pública, é o Ministério Público quem oferece a denúncia (art. 24 CPP), podendo requerer o arquivamento do inquérito policial ou das peças de informação (art. 28 CPP). A ação ocorre independe de representação ou de manifestação de interesse da vítima. Assim que o Estado toma ciência do fato, ele é obrigado a investigá-lo e tomar as providências legais cabíveis. É importante lembrar que, caso o Ministério Público não obedeça ao prazo para oferecer a denúncia, o indivíduo pode intentar a ação privada (art. 29 CPP).

Ofensas previstas no ECA; Extorsão (art. 158 CP); Estupro* (se a vítima é menor de idade, ou adultas, em casos de lesões corporais graves ou morte. A compreensão acerca das vítimas adultas baseia-se em sólida jurisprudência)33.

CP32 jurisprudencia33

Esses tipos de delitos, assim como o delito de ameaça,são apenados com penas baixas e, portanto, seus perpetradores gozam dos benefícios da Lei 9.099/95 (Lei de Juizados Especiais Cíveis e Criminais, que julgam por causas consideradas de menor complexidade pela legislação brasileira). Isso faz com que a esses crimes se aplique a “transação penal” - o que resolve os casos definitivamente em primeira instância – impedindo por consequência, sua apreciação pelos Tribunais de Justiça.

32

33

Agradecemos ao advogado Bruno Salles Pereira Ribeiro por nos alertar sobre este ponto.

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Ação Penal Pública Condicionada

Ao Ministério Público cabe oferecer a denúncia, mas a vítima precisa representar, ou seja, autorizar o início da apuração do caso, ao juiz, ao Ministério Público ou à autoridade policial. Além disso, até o momento do oferecimento da denúncia pelo Ministério Público, a vítima pode voltar atrás. Embora seja uma questão processual a natureza da ação nos parece um fator relevante no que se refere à juridificação de determinados conflitos.

Ameaça (art. 147 CP); Injúria*, desde que seja qualificada. Ou seja, se a injúria envolver elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência; Estupro*, excepcionados os casos de Ação Penal Pública relacionados acima. Quadro III: natureza das ações

deficiência34

Necessário ressaltar que, quanto aos crimes contra a honra, por serem condenados com penas baixas (causas consideradas como de “menor potencial ofensivo”), seus perpetradores gozam dos benefícios da Lei n. 9.099/95 (Lei de Juizados Especiais Cíveis e Criminais)35. Esses crimes são processados pelos Juizados Especiais Criminais (JECRIM), nos quais intenta-se que os procedimentos sejam mais próximos de uma conciliação do que de um julgamento36. Nos procedimentos diante do JECRIM, a não ser que algumas condições se apliquem (por exemplo, o réu ser reincidente), ao réu é dada a oportunidade da transação penal – um “acordo” pelo qual não se assume a culpa, mas se aceita o cumprimento de penas alternativas à prisão, como prestação de serviços à comunidade, para evitar o processo criminal. Nesses casos, o procedimento termina aí. Uma outra possibilidade que se abre com a Lei n. 9.099 é a da composição civil dos danos – o estabelecimento de um acordo direto com o ofendido ou ofendida, envolvendo um ressarcimento, e mediante o qual a vítima perde direito à queixa-crime, nos casos de crime de ação penal privada. É importante pontuar que a lei não cita explicitamente a possibilidade de transação nos casos de ação penal privada, o que, a depender da interpretação legal, pode ter como consequência que, em crimes contra a honra, só seja possível a composição civil dos danos.

Há ainda a hipótese de a injúria ser processada por Ação Penal Pública, se dela resultar violência corporal (art. 145 CP). Não contemplamos essa possibilidade na tabela por não estar relacionada ao nosso objeto de estudo, ao menos em relação ao universo que analisamos. 34

Da Lei 9.099/95: “Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.” 35

36 Da Lei 9.099/95, quando fala-se dos procedimentos: “Art. 73. A conciliação será conduzida pelo Juiz ou por conciliador sob sua orientação.”.

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De qualquer maneira, mesmo que não haja transação penal ou composição civil, aquilo que é apreciado pelo JECRIM não chega, em recurso, aos Tribunais de Justiça - as apelações às causas apreciadas no JECRIM são examinadas por uma turma composta por três juízes de primeira instância. Portanto, a não ser que os casos de crime contra honra estivessem associados à Lei Maria da Penha (a partir de sua entrada em vigor em 2006, crimes tutelados por tal lei não foram mais considerados de menos potencial ofensivo), não tivemos acesso a eles por nossos meios de pesquisa. Ainda no âmbito penal, como viemos afirmando, um importante instrumento legal pode ser mobilizado nos casos relacionados a “revenge porn”: a Lei 11.340/06 (a Lei Maria da Penha). Reconhecida como um marco no enfrentamento da violência contra a mulher pelo Estado brasileiro37, a lei prevê uma série de instrumentos legais e políticas públicas com finalidade de prevenir e punir situações de violação de direitos das mulheres. O artigo 5º da Lei Maria da Penha define que violência doméstica e familiar se baseia em

“qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial” (grifos nossos), e seu art. 7º, incisos II e V define que violência psicológica pode ser entendida como qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação, e violência moral como “qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.”. Nesses casos, o/a juiz/a tem a possibilidade de aplicar medidas protetivas de urgência, como a determinação de que o agressor se afaste do lar, não se aproxime ou tenha contato com a vítima, restrinja ou suspenda visitas aos dependentes menores; quaisquer outras medidas protetivas de urgência, mesmo não previstas na lei, podem ser tomadas a critério do/a A Lei é assim popularmente conhecida em homenagem a Maria da Penha Maia Fernandes, uma mulher vítima de violência doméstica que sofreu duas tentativas de homicídio por seu então marido. O caso ganhou ampla repercussão justamente pela omissão e inação do Estado brasileiro no que se referia à punição do agressor. Tal fato culminou na formalização de uma denuncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que resultou numa condenação ao país. Esse fato colaborou para o processo de aprovação da lei específica com a finalidade de combater a violência doméstica contra a mulher, e que tramitava desde meados de 1990 no Congresso Nacional. Para saber mais sobre a atuação do Estado brasileiro frente à questão da violência doméstica, ver SANTOS (2010); para ver a lei: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm.

37

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O CORPO É O CÓDIGO

magistrado/a, em qualquer momento do processo (art. 22, §1o). Há que se ressaltar, todavia, que a Lei Maria da Penha estabelece que seu âmbito de aplicação se restringe a casos de violência ocorridos no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação (art. 5º, incisos I - III). Assim, para mobilizar a lei, necessariamente a vítima de NCII (disseminação não consensual de imagens íntimas)deve possuir (ou ter possuído) algum tipo de relação doméstica ou íntima com o agressor. Como a lei não prevê crimes, mas apenas agrava as penas dos crimes já existentes, a natureza da ação (se será pública incondicionada, pública condicionada ou privada) depende da previsão do crime em questão38. A principal consequência da aplicação da Lei Maria da Penha é que ela afasta a competência dos Juizados Especiais, ou seja, crimes que ocorram com base em violência doméstica e familiar não serão crimes de menor potencial ofensivo, e a eles não se aplicarão as soluções da transação penal e da composição civil: Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995. Na esfera civil, o ônus de promover a ação é sempre daquele/a que se sente lesado/a, com o objetivo de reparação pelos danos materiais e/ou morais (arts.186 e 927 do Código Agradecemos à advogada Gabriela Biazi por nos esclarecer sobre esse ponto. A discussão sobre o caráter da ação nos casos de lesão corporal praticada em situação de violência doméstica e familiar contra a mulher ocupou juristas e ativistas nos seis primeiros anos de vigência da Lei Maria da Penha, até que o STF decidiu que, nesses casos, a ação penal seria pública incondicionada, ou seja, prescindiria de representação da vítima. Os demais casos continuam a ser processados de acordo com a respectiva previsão no Código Penal. Ver decisões na Ação Declaratória de Constitucionalidade 19 e na Ação Direta de Constitucionalidade 4424: 38

http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento. asp?numero=19&classe=ADC&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M e http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento. asp?numero=4424&classe=ADI&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M.

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O CORPO É O CÓDIGO

Civil). Muitas das ações do nosso universo de pesquisa mobilizam exclusivamente o direito processual civil, com o objetivo de que o/a magistrado/a decida por uma obrigação de fazer ou não fazer, ou seja, determine providências para que um determinado objetivo seja atingido (art. 461 do Código de Processo Civil). São principalmente os casos em que o objetivo da vítima é que os provedores de aplicações forneçam o IP (endereço lógico por meio do qual dispositivos que se conectam às redes são identificados) relativo a alguma postagem, ou ainda a retirada de conteúdo de redes sociais ou portais. Como já mencionado, esses casos que consistem em ações contra provedores de aplicação e que foram profundamente afetados pela aprovação do Marco Civil da Internet (Lei 12.965 de 2014), serão analisados detidamente na Terceira Parte deste trabalho. Vale lembrar que as ações contra provedores de aplicação que encontramos não se referem exclusivamente a ações de fazer – há ações cujo objetivo é buscar compensação material ou moral do provedor, a partir de um entendimento da parte a respeito da ação ou inação daquela pessoa jurídica. Lembrando que ações de fazer são aquelas no qual a parte fica obrigada a alguma ação, por exemplo: tirar um link do ar, não mais ter determinada conduta etc.

Gráfico 1: Número de Casos

54 casos

36 casos

Esfera Penal

Esfera Civil

Assim, verificamos que legislação acionada pelas vítimas está diretamente relacionada à idade, tipo de relação entre as partes e objetivo da ação. Adiante apontamos as tendências encontradas nas decisões proferidas pelo tribunal nos 36 casos processados na esfera penal e nos 54 casos processados na esfera civil.

31

O CORPO É O CÓDIGO

2.2. A S P E CTO S G E RA I S E Q U A N T I TAT I VO S DA S D E C I S Õ E S A N A L I S A DA S Gráfico 2: Dos 36 casos em âmbito penal 1 caso 17 casos 18 casos

Com maiores de idade

Com adolescentes

Não identificado

Das 36 decisões de direito penal, 18diziam respeito a casos envolvendo pessoas maiores de idade, ou seja, a metade. Em 1 dos casos, não foi possível saber se a vítima era menor ou maior de idade; os outros 17 envolviam crianças e adolescentes. Os casos em que as vítimas eram adultas envolveram condutas que foram qualificadas como:

Gráfico 3 Penal: Qualificações dos 18 casos com maiores de idade

Extorsão

7 5

Ameaça Crimes contra a honra Coação no curso do processo Estupro Lei Maria da Penha

2 1 1 2

Esses números foram, para nós, extremamente surpreendentes. No início da pesquisa, acreditávamos que nos depararíamos com um número razoável de casos disseminação não consensual de imagens íntimas na Internet, sem nos dar conta, entretanto, da possibilidade de ocorrência de uma série de violações afeitas ao “revenge porn”.

32

O CORPO É O CÓDIGO

Ora, a ocorrência de casos qualificados como extorsão e estupro em função da posse de imagens íntimas revelou para nós que nosso objeto era mais amplo que havíamos elaborado de início: a violência não ocorre somente quando da NCII, espetaculosamente reportados pela mídia. É no cotidiano e no segredo que muitos desses casos se desenvolvem, até que, a vítima quebre o silêncio e leve o caso as autoridades. Veremos adiante que há também hipóteses de caráter jurídico processual (a maioria desses crimes possui pena de detenção inferior a dois anos, o que faz com que sejam processados pelo JECRIM, como será desenvolvido no item 2.9) para que a efetiva disseminação não consensual de imagens íntimas de adultas chegue tão pouco à segunda instância - são dois casos, entre os 18 envolvendo adultas na esfera penal. Ainda assim, não há como negar que casos como os de ameaça e extorsão fazem parte do problema que analisamos, o que nos leva de volta à necessidade de olhar para o fenômeno, e não para a mídia social ou a Internet. São casos que não necessariamente chegaram à Internet, e podem se desenrolar totalmente fora dela. Eles existem, entretanto, em referência a ela – a ameaça de divulgação online. É por essa razão que caíram em nosso filtro, e pela mesma razão permaneceram em nossa análise. Outra conclusão geral elaborada nos mostrou que, nesses casos do universo do direito penal aplicável a pessoas adultas, condenações são a regra (15 casos). Além disso, julgamentos a favor do réu ocorreram: (i) nos dois casos envolvendo crimes contra a honra, por motivos processuais (que discutiremos no próximo item); e (ii) em um caso por ausência de provas. A mais alta das penas ocorreu em um caso de extorsão - 6 anos de reclusão, e o único caso de uma condenação de prisão em regime inicial fechado. Vale destacar também que, somente dois dos 18 casos envolvendo adultas foram enquadrados na Lei Maria da Penha (de violência doméstica).

Gráfico 4: Dos 17 casos de adolescentes em âmbito penal as decisões foram

8 casos

9 casos

A favor do réu

A desfavor do réu

33

O CORPO É O CÓDIGO

Já nos 17 casos envolvendo crianças e adolescentes, ou seja, em que o ECA é aplicado, apenas 9 decisões foram em desfavor dos réus. Mesmo dentro dos casos nos quais os réus foram condenados, em 2 casos as penas preventivas de liberdade foram substituídas por penas restritivas de direitos (o que não ocorreu em nenhum caso envolvendo adultas): em um caso foi deferida a continuação de uma prisão preventiva (no entanto, esse caso se tratou de estupro qualificado, crime gravíssimo). Além disso, houve 3 condenações ao regime semiaberto, além de outros deferimentos de pedidos de cautelares e de manutenção de condenações. Gráfico 5 Dos 17 casos de adolescentes em âmbito penal as decisões foram:

Das 8 decisões favoráveis ao réu houve reforma da decisão:

8 decisões

2 casos

9 decisões

6 casos

A desfavor do réu

A favor do réu

Casos com reforma

Casos sem reforma

É interessante constatar que 6 das 8 decisões que foram favoráveis aos acusados consistiram em modificações em relação à sentença contra a qual se recorreu. Em primeira instância, essas decisões determinavam a condenação dos réus a penas mais rígidas, e o reexame em segunda instância determinou absolvições, anulações de sentença e substituições de pena privativa de liberdade. Gráfico 6 Dos 17 casos de adolescentes em âmbito penal as decisões foram:

Das 9 decisões desfavoráveis ao réu houve reforma da decisão:

9 decisões

2 casos

8 decisões

7 casos

A desfavor do réu

A favor do réu

Casos com reforma

34

Casos sem reforma

O CORPO É O CÓDIGO

Das 9 decisões desfavoráveis aos réus, duas sofreram modificações da primeira para a segunda instância: (i) em um caso de exploração de menores (a única pena a ser cumprida em regime fechado, como mencionado anteriormente), os réus haviam sido absolvidos em primeira instância e foram então condenados39; e (ii) uma decisão pelo deferimento da prisão preventiva do agressor que havia praticado estupro qualificado40. A média das penas também foi menor - a mais alta foi de detenção de 5 anos, 5 meses e 10 dias em regime inicial semiaberto. Como já apontamos atrás, a segunda instância e os recursos têm como função o reexame de ações judiciais para reduzir eventuais erros na aplicação da lei e também para maior uniformização de entendimento do Tribunal sobre determinado assunto. Apesar de no Brasil não haver regras tão claras sobre o funcionamento de precedentes, uma decisão emitida em segunda instância terá mais peso para ser usada como jurisprudência ou para justificar o raciocínio utilizado em determinada decisão. Dessa forma, é relevante o fato de que um tribunal esteja alterando mais decisões em prol do réu do que das vítimas na aplicação do ECA41. O fato de haver mais absolvições e as penas em geral serem mais baixas nos fez questionar o pressuposto de que a legislação voltada à criança e ao adolescente fosse mais protetiva. Como analisaremos em mais detalhes em seguida, houve uma série de casos em que os magistrados entenderam que a legislação não poderia se aplicar – seja por uma discussão sobre o acusado não ter como saber que a vítima era menor (a ausência de dolo), seja porque o ECA é restritivo quanto ao que se considera pornografia, e não prevê outras violações de privacidade. O que ocorre, então, é que se entende que a legislação não se aplica, e a vítima acaba descoberta. Nos casos processados em âmbito civil contra provedores de Internet (38 do total de 90 casos)42, observamos que as controvérsias referiam-se à remoção de conteúdo/link, identificação de IP, ou desindexação dos mecanismos de busca, principalmente43.

39

Apelação n. 2101095-54.2014.8.26.0000, 11a Câmara de Direito Criminal, TJ/SP, 03/08/2005.

40

Recurso n. 0001041-02.2014.8.26.0587, 4a Câmara de Direito Criminal, TJ/SP, 02/12/2014

Outras investigações, entretanto, seriam necessárias para compreender se o mesmo ocorre em outros tipos de crimes previstos no ECA. 41

Como já indicamos, trataremos detalhadamente dos casos envolvendo provedores bem como sobre suas políticas com mais detalhes na Terceira Parte deste livro. 42

Determinações estabelecidas como “obrigações de fazer”, tipificada pelo Código do Processo Civil, e em decisões mais recentes (pós 2014), como vimos, pelo Marco Civil da Internet. 43

35

O CORPO É O CÓDIGO

Gráfico 7: Os 54 casos no âmbito civil

16 casos

33 casos

Casos em que o réu é indivíduo

Casos em que o réu é provedor

Nos demais 16 casos processados na esfera civil, esses, portanto, contra indivíduos, 1 resultou em indenização por danos materiais (no valor de cerca de R$ 3.000,00) e 9 por danos morais (com valores entre R$2.000 e R$ 35.000,00). Gráfico 8: Indenização nos 16 casos em que o réu é indivíduo

1 indenização 6 decisões 9 indenizações

Indenizações por danos morais

Indenização por danos materiais

Decisões sem informação

Gráfico 9: Das 9 indenizações por danos morais

2 casos 2 casos 5 casos

Casos com decisão mantida

Casos com decisão alterada

36

Casos com nova indenização

O CORPO É O CÓDIGO

Esse conjunto de decisões envolve majoritariamente adultas (há registro de apenas uma decisão envolvendo menor de idade)44; que, em metade dos casos, possuíam relação prévia com o acusado. Há 3 casos em que figuram colegas de trabalho entre as decisões em que é possível identificar relação entre as partes. Dois destes são emblemáticos da perspectiva do entendimento jurisprudencial sobre a responsabilização pelo compartilhamento de material íntimo45. Trata-se de um caso ocorrido em uma pequena cidade de São Paulo que vitimou uma funcionária de instituição bancária. Fotografias de um casal mantendo relações sexuais onde ela supostamente aparecia foram encaminhadas à uma lista contendo quarenta e oito e-mails. A vítima entrou com ação por danos morais contra todas as pessoas que constavam na lista. Consta em um dos acórdãos sobre o caso que, em um primeiro momento, a sentença da primeira instância foi anulada e foi requerido prosseguimento de instrução probatória a fim de melhor analisar as circunstâncias dos fatos: (...) aferir se as partes possuíam algum tipo de relação pessoal ou profissional anterior ao ocorrido, viabilizando analisar-se com maior precisão a efetiva configuração do ilícito relatado na petição inicial, bem como, em caso positivo, auxiliar na quantificação da indenização. Buscou-se, assim, melhor elucidar, se a conduta da apelante, que comentário algum teceu sobre o conteúdo do e-mail, limitando-se a repassá-lo a uma única colega, do seu convívio pessoal, evidenciaria uma intenção deliberada ou imprudente de prejudicar a reputação da apelada ou, pelo contrário, se se tratou de um descompromissado encaminhamento de mensagem envolvendo fato que tivesse entendido curioso ou inusitado, o que revelaria, ao menos em um primeiro momento, uma simples curiosidade, que é inerente ao comportamento humano46. O desembargador, após ouvir as testemunhas, considera que o abalo emocional e as consequências para a vítima (que chegou a solicitar alteração de posto de trabalho, dado que realizava atendimento ao público numa cidade muito pequena em que era facilmente reconhecida) fora incontestavelmente relevante e, embora a acusada não tivesse agido necessariamente com dolo, incorreu em ato ilícito: Não há elementos que permitam afirmar tenha ela agido com dolo, mas certamente laborou com culpa, na modalidade imprudência, ao repassar mensagem contendo fotografias de um casal mantendo

44

Apelação n. 0177347-31.2011.8.26.0100, 6a Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 24/10/2013.

Apelação n. 9000022-43.2010.8.26.0360, 4a Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 02/10/2014 e Apelação 0000937-51.2010.8.26.0360, 10a Câmara de Direito Privado, TJ/SP,03/09/2013. 45

46

Apelação n. 9000022-43.2010.8.26.0360, 4a Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 02/10/2014.

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relação sexual e que, sabendo não se tratar da própria apelada, ou pelo menos tendo séria dúvida a esse respeito, indicava o nome e o posto de trabalho da apelada, dando a entender que se tratava dela mesma. Nesse sentido, considerando que apelante conhecia a apelada antes de repassar o e-mail, e mais, que era sua colega de agência, o repasse da mensagem não foi despretensioso ou isento de outro propósito, que não o de prejudicar a imagem de Milene no seu ambiente de trabalho, uma vez que a destinatária do e-mail, também era funcionária da instituição financeira à época dos fatos. Assim, ainda que considerado ter a apelante encaminhado o e-mail a uma única destinatária, integrante do seu convívio pessoal, diante da sistemática que é própria do universo da internet, assumiu ela o risco de que tal fosse repassada a um sem número de pessoas indeterminadas, circunstância essa de que tinha pleno conhecimento ou deveria ter -, sendo suficiente a evidenciar sua culpa. (...) Verifico que o ocorrido foi além de uma simples brincadeira ou perturbação de menor importância, configurando verdadeiro abalo moral47. Corroborando com decisão que impunha indenização por danos morais o desembargador apresenta argumentos comuns em decisões do tipo (magnitude da lesão, condição financeira das partes), mas também um aspecto da estratégia usada pela vítima (de ajuizar demandas individuais contra cada um dos integrantes da lista de e-mails). Nesse sentido a fixação do valor deveria levar em consideração a quantidade de ações movidas a fim de não propiciar à vítima o enriquecimento ilícito. Considerando que vencendo todas as ações a vítima poderia receber mais de R$200.000,00 (montante a que

nem sempre se chega em ações envolvendo questões de maior gravidade, como erro médico ou morte de alguém) reduziu então a indenização a ser recebida por cada membro da lista de R$ 8.000,00 para R$ 2000,0048. *** O que as decisões na esfera cível e penal parecem indicar é que a responsabilização pela disseminação não consensual de imagens íntimas no Tribunal é frequente, embora sem necessariamente seguir as determinações da primeira instância. Embora substituições de regime de pena ou alterações no valor da indenização ocorram, bem como condições para 47

Apelação n. 9000022-43.2010.8.26.0360, 4a Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 02/10/2014.

No outro recurso sobre o mesmo caso, encontramos o mesmo posicionamento acerca da responsabilização (Apelação 0000937-51.2010.8.26.0360, 10a Câmara de Direito Privado, TJ/ SP,03/09/2013), entretanto, o valor estabelecido em R$ 6.000, 00 foi mantido pelo desembargador. 48

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retirada de conteúdo sejam estabelecidas (como apresentação de URL pelas vítimas), as decisões comunicam reprovação da conduta e enquadramento em dispositivos jurídicos de responsabilização, quando de fato comprovada materialidade e autoria dos delitos. Chamou-nos atenção que tenham ocorrido mais demandas na esfera cível, e especialmente contra provedores de aplicação. Isso parece indicar interesse primordial das vítimas pela paralisação da disseminação ou bloqueio dos conteúdos, em vez de responsabilização ou penalização dos agressores– inclusive porque, mesmo na esfera penal, muitos casos envolvem a possibilidade da exposição mediante ameaça, extorsão ou mesmo estupro. Há diferentes hipóteses para explicar o porquê disso, e nenhuma delas pode ser extraída das decisões em si, embora elas indiquem algumas evidências. Para esses fins, as entrevistas que realizamos com advogados/as, promotoras de justiça, defensoras públicas, delegadas de polícia, representantes de organizações da sociedade civil e militantes e ativistas do campo do feminismo foram mais úteis, embora tenham divergido. Uma dessas hipóteses foi afirmada de forma veemente pela advogada especializada em casos de “revenge porn”, Gisele Truzzi, e diz respeito ao desgaste emocional que os casos trazem às vítimas. Uma vez que elas conseguem o que querem, ou seja, remover o conteúdo, dificilmente se sentirão ainda dispostas a levar o caso adiante num processo penal - e inclusive porque isso significa expor novamente o caso, e provavelmente as imagens, a um juiz e a outros servidores do sistema de justiça. Truzzi afirma: Não, eu acho que a questão é mais pessoal mesmo, da vítima, sabe? Eu acho que a maioria dos casos de “revenge porn”, às vitimas de fato não levam o caso à frente, elas têm a sensação de vergonha, de exposição, porque no contato com ela eu vejo que elas acabam tendo que passar por vários filtros de vergonha. Não sei se vocês se lembram daquela lenda das três peneiras – não sei se é Aristóteles ou Sócrates – em que se fala das três peneiras da verdade? Eu faço um comparativo com as peneiras da vergonha dentro da “revenge porn”: a primeira peneira da vergonha é a da família, porque quando ela se descobre nessa situação, ela acaba chegando num ponto que ela precisa contar para alguém porque ela não vai suportar esse fardo sozinha, e aí a primeira pessoa geralmente acaba sendo alguém da família. Quem? A mãe, o pai, a irmã, o namorado atual? Ou um amigo ou uma amiga? Vai ser alguém próximo e em quem ela confia. Em muitas vezes ela já é julgada nesse ponto, então quando ela conta a situação a pessoa fala “Mas você também, hein? Já foi mandar as fotos? Por que você tinha que mandar? Poxa, você pisou na bola, não deveria ter mandado a foto assim, assim, assado, com o rosto aparecendo ou a sua tatuagem”. Então é o primeiro medo que ela tem de quando falar com alguém não receber apoio, e sim julgamento. Ela acaba tendo que quebrar essa barreira, a primeira.

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Aí a segunda: “bom, já falei para alguém, agora vamos resolver”. “O que nós vamos fazer? Procurar ajuda. Quem?”. A pessoa vai ficar vendo as fotos minhas, o que ela vai fazer com essas fotos? Eu já tive casos de mulheres que falaram, “ai, eu vim atrás de você porque eu achei o seu nome na internet, vi seu escritório, seus materiais, gostei da forma que você trabalha, gostei do que você fala, me identifiquei, mas, principalmente, porque você é mulher.” Outras delas falaram “a pior coisa que poderia acontecer comigo agora era ter um advogado desses assim e assado e que fosse salvar as minhas fotos e iria ficar me vendo nua em uma situação que eu já estou exposta”, e existe. Isso existe. Há profissionais e profissionais. É uma situação delicada, pois muitas vezes essas mulheres fazem o contato comigo pelo nosso site, ou por e-mail, ou ainda por indicação, e aí elas já relatam o ocorrido, me mandam os links, então eu acabo vendo essas mulheres na intimidade antes de conhecê-las. É uma barreira muito forte para que elas quebrem, então elas já quebraram essa barreira e vieram falar comigo, ou com outro profissional. Aí bom, “vamos ajuizar uma ação? Vamos. Mas, quem vai ver o meu processo?” E se for um juiz homem, desses bem machistas, e que também vai fazer o download dessas fotos? Vai ficar vendo quando ele não tiver trabalhando? E no cartório? “Será que vão taguear o meu processo com uma fichinha vermelha” com um “olha lá, aquela do processo das fotos”, então, é outra barreira. São várias barreiras de vergonha que elas acabam tendo que quebrar e aí elas preferem não ir adiante. E aí tem a questão do custo: o processo, uma ação é algo caro para a maioria das pessoas, e é trabalhoso, demanda tempo; às vezes vai um mês, seis meses, dois anos e a gente não sabe qual vai ser a decisão. A gente sempre espera que seja a melhor possível até por conta dos casos parecidos que nós temos, mas nunca vai saber o que vai sair dali, porque cada juiz entende de uma maneira. Eu acredito que essa sensação de ter que enfrentar a vergonha, o julgamento e a lei, acaba coibindo as vítimas de entrar com uma ação. Muitas, até por falta de conhecimento, pois acreditam que “ah, não vai dar em nada, neste mundo de internet não existe lei, vai ser impossível achar alguém dentro dessa situação”. Às vezes falta conhecimento. (grifos nossos) Para além da exposição, a advogada e pesquisadora Alice Bianchini atribui a não notificação dos casos às características das relações afetivas em si: (...) A subnotificação é muito grande, porque ela também não quer se expor, não quer expor a ele, tem toda uma relação afetiva.

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Então as subnotificações quando envolve principalmente pessoas que são casadas, que têm todo um... Tem filhos envolvidos, tem patrimônio envolvido, tem o álbum de casamento envolvido... (grifos nossos) Irina Bacci - uma das gestoras responsáveis pela política “Humaniza Redes”49 - reforçou as posições acima, e ressaltou também o desconhecimento das leis e instituições pelas vítimas: (...) Talvez, o outro motivo é a falta de conhecimento, de não saber que o fato de você ter tirado uma foto e compartilhado com uma pessoa e a pessoa ter vazado, pois isso é um crime e a pessoa desconhece e acaba não denunciando porque não sabe que isso é um crime, não sabe que poderia denunciar e esse tipo de coisa. A grande maioria das pessoas que faz exercícios aqui conosco desconhecem seus direitos, desconhecem que podem denunciar e que quando denunciam, e há efetividade na denuncia e no encaminhamento feito pelos órgãos responsáveis, as pessoas entram em contato dizendo que não imaginavam que tinham esse direito; um delegado ia bater na porta da minha casa, um investigador, eu ia contar a ele, ser respeitada... Ainda há muito conhecimento de como funciona o sistema de X dos órgãos que proteção os órgãos de responsabilização e isso talvez também esteja no papel do Humaniza Redes e a gente vai, aos poucos, contar a função de cada órgão, você pode denunciar, você não pode denunciar o que cada cidadão é seu por direito e tem que ser feito. Há também duas hipóteses de ordem processual: de um lado, os casos envolvendo adultas precisarem ser processados como ação penal privada; de outro, injúria e difamação serem crimes de menor potencial ofensivo, que são processados pelo Juizado Especial Criminal, e os recursos apresentados ao JECRIM são resolvidos em primeira instância, o que significa que essas ações não chegam aos Tribunais – os casos de efetiva disseminação não estariam chegando à segunda instância e não estariam caindo no nosso filtro. Pela complexidade do tema, nós o desenvolveremos em item próprio adiante. Apresentados os aspectos e percepções gerais sobre as decisões adiante trataremos de características mais específicas e questões ou discussões relevantes, notadamente sua presença ou ausência no processo de prolação das decisões.

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Abordaremos o desenho e características desta política na Quarta Parte deste livro.

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2.3. CO N S E N TIMENTO E A PROB L E M ÁT I CA AP LICAÇÃO D O E CA As discussões sobre a mera posse de imagens, sobre o valor do consentimento (o fato de a vítima ter outrora consentido com o registro de imagens) e sobre disseminação nos casos envolvendo menores de idade é mais complexa do que nos casos de adultas. Isso porque, nas ações envolvendo adultas, essa discussão se daria exclusivamente nos processos por injúria e difamação, visto que nos casos de ameaça, extorsão, coação e estupro, o consentimento ou a disseminação não são elementos centrais na discussão dos magistrados. Em alguns casos, as imagens até foram feitas com consentimento durante relacionamento entre vítima e agressor, que posteriormente as utilizou para ameaçar ou extorquir a vítima, mas isso não chega a ser discutido, já que a caracterização dos crimes de extorsão independe desses fatores – não é central para o julgamento se houve ou não consentimento ou se tratava-se de uma relação afetiva prévia ou não. Como os únicos casos de injúria e difamação que aparecem em nossos resultados não foram julgados em seu mérito por motivos processuais, os casos em si não foram profundamente discutidos. Usualmente, nos casos envolvendo menores de idade, além do Código Penal, temos a aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – não tivemos casos envolvendo menores de idade em que fosse aplicado simplesmente o Código Penal. No entanto, para que o ECA seja aplicado, e, portanto, o adolescente protegido, há alguns funis. Em um dos 17 casos penais envolvendo crianças e adolescentes e de aplicação do ECA, o réu foi inocentado, pois teria tido indícios para supor que a pessoa com a qual se relacionava não seria menor de idade. O julgador alegou que, pelo fato da vitima já estar fazendo faculdade e ter sido noiva, o réu poderia muito bem ter incorrido em dúvida. Assim, a legislação que protege crianças e a adolescentes não deveria ser aplicada, visto que seu objetivo, de acordo com o magistrado, seria proteger principalmente aqueles que ainda guardam certa inocência nas práticas sexuais, o que não seria o caso da vítima. Esse resultado permaneceu por mais que o réu tivesse divulgado fotos de sexo explícito entre ele e a vítima sem o consentimento dela50. Essa decisão confirmou uma afirmação de um advogado entrevistado pela equipe, que afirmara: Você tem aí a questão de propósito. Então, a pessoa que quer divulgar, sabendo que quem estava envolvido naquela imagem, naquele vídeo, é menor, então, tem como saber ou sabe que é menor, em termos de pornografia infantil, não é pedofilia porque é algo mais psicológico, mas a pornografia infantil. E outras situações em que fica difícil você

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Apelação n. 990.09.147029-5, 1a Câmara de Direito Criminal, TJ/SP, 09/11/09.

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diferenciar, até porque a pessoa em 17 anos, mas parece 20, e a pessoa não tem como saber e você, no Direito Penal, você afastaria o dolo. (...) há uma distinção com relação ao propósito consciente ou inconsciente. Que é determinante para condenação. Se a pessoa tem como saber que ela é menor de idade, ela corre o risco de praticar pornografia infantil. Se não tem como saber, ela tem um grande argumento a seu favor. (Renato Opice Blum) Em outro exemplo, o consentimento na tomada das imagens foi considerado como elemento inocentador, mas somente porque a disseminação teria sido feito por um terceiro: dois adolescentes (L e M) mantinham um relacionamento amoroso e, um dia, resolveram fotografar a relação. Contudo, as fotos teriam sido disseminadas pelo primo da vítima. O julgador considerou que, apesar do jovem L ter praticado a conduta de fotografar cena pornográfica envolvendo a adolescente M (o que, como vimos, é tipificado no ECA), não agiu com dolo, visto que tudo não passou de um momento de intimidade entre um casal de jovens, ela adolescente ainda com 16 anos de idade à época, mas ele também havia acabado de completar 18 anos. A própria vítima afirmou categoricamente que consentiu que seu namorado, o réu L, tirasse as fotos íntimas, mas que ambos não tinham intenção de divulgá-las, tanto é que a pessoa responsável pela divulgação na internet foi o primo de M. O legislador, ao editar a regra do art. 240, do ECA, visou punir a prática de pedofilia e divulgação de material pornográfico de menores em redes usadas para esse fim. No presente caso, restou claramente demonstrado que o réu não tirou as fotos da adolescente com esse fim, mas sim porque eram namorados e tinha destinação apenas ao casal51. Num terceiro caso, a defesa do acusado argumentou que o consentimento da vítima na tomada das imagens poderia afastar a condenação. Nesse processo, o réu filmou uma relação sexual entre ele e a vítima e o tal vídeo teria sido, depois, visto por várias pessoas em sua escola. Aquela tese foi recusada pelo julgador, com o argumento de que o consentimento da vítima não importa nesse tipo de situação, especialmente porque se tratava de um relacionamento entre um maior de idade e uma menor de idade: o maior teria pleno conhecimento da ilicitude do ato praticado, enquanto o mesmo raciocínio não poderia ser aplicado a menor. Afirmou o Ministério Público que é bom lembrar que o consentimento da vítima, em delitos dessa natureza, não tem relevância alguma, porquanto se trata de uma menor que não tinha noção das consequências de suas ações e de 51

Apelação n. 990.09.147029-5, 1a Câmara de Direito Criminal, TJ/SP, 09/11/09.

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direito indisponível a intimidade, a vida privada motivo pelo qual, atento a essa circunstância, o legislador prevê para tais delitos a ação penal pública incondicionada, visando a resguardar o interesse das crianças e adolescentes52. Dessa forma, parece que o consentimento pela tomada de imagens e também pela sua disseminação assume diferentes pesos nas decisões, a depender, principalmente, de idade e aparência de idade. Outro problema ainda apareceu em um caso em que o ex-namorado fez fotos da vítima com trajes íntimos, sob o pretexto de enviar para uma agência de modelos e divulgouas, sem seu consentimento. Aqui, o magistrado não chegou a levar em consideração a ausência de consentimento, pelo fato de que as fotos não continham conteúdo explicitamente pornográfico53 - de acordo com o conceito de pornografia do Estatuto da Criança e do Adolescente que discutimos atrás, que restringe o conceito à exibição de genitais. Trata-se de uma questão que nos foi também apontada por uma Promotora de Justiça entrevistada, Fabíola Sucasas, que afirmou que a forma como o ECA tipifica as condutas envolvendo crianças e adolescentes pode ser restritiva a ponto de deixá-las menos protegidas relativamente às adultas, em situações como essa. Na esfera civil, por sua vez, a questão do consentimento não foi explicitamente discutida em nenhuma das decisões. É possível identificar nas decisões, além do consentimento, a importância atribuída a “inocência” ou não da adolescente. A priori, a letra do ECA não faz diferença entre o adolescente menos ou mais inocente. No entanto, esse foi um elemento importante para determinar se uma adolescente gozaria da proteção da legislação ou não, e a resposta foi negativa. A pesquisa jurisprudencial mostra que, apesar das facilidades (ex. não precisar constituir advogado, já que é o Ministério Público quem vai acusar), do ponto de vista estatístico, o ECA acaba sendo menos protetivo, ao contrário do que parece ser o conhecimento geral, e do que inclusive nos foi afirmado por entrevistados, –como outra promotora de justiça54. Em casos envolvendo dois menores de idade, a situação é ainda mais complexa. Em primeiro lugar, se o responsável pela disseminação for um menor, ele também gozará de algumas proteções do ECA. Como afirmou a advogada Gisele Truzzi, menor de idade

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Apelação n. 0009872-24.2009.8.26.0099,1a Câmara de Direito Criminal, TJ/SP, 19/05/14.

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Apelação n. 0008771-58.2007.8.26.0539, 4a Câmara de Direito Criminal, TJ/SP, 24/04/14.

“As crianças estão melhor amparadas pelo ECA, existe um dispositivo específico de exposição de imagem da criança, indevida, na rede, porque tem um artigo específico do ECA. Se não me engano 241, não lembro agora. A mulher, não.”

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não pratica crime, ele pratica ato infracional; além disso, em sua opinião, menor de idade não poderia “produzir” pornografia infantil: um eventual disseminação poderia ser considerado um ato infracional de difamação. A advogada afirma que, caso houvesse um vínculo afetivo, poderia ser evocada a Lei Maria da Penha, o que talvez acarretasse em um agravante. É fato que adolescentes exploram sua sexualidade e, talvez, o enquadramento do ECA não seja o mais adequado para situações de NCII que envolvem dois menores de idade. O advogado entrevistado Leopoldo Louveira afirma que não podemos fechar os olhos para a realidade do sexting, por exemplo, e que a lógica seria diferente do intuito dos legisladores ao criarem essas proteções no ECA. O que eles teriam em mente, com tais tipos penais, seria a proteção das crianças e dos adolescentes contra atos de pedofilia. De outro lado, a entrevistada Juliana Cunha, psicóloga da SaferNet, não defende a mesma penalização, mas reforça a necessidade de caracterizar os casos corretamente, já que há casos de divulgação de imagem íntima entre adolescentes que não estariam tão distantes da produção de pornografia. Ela relata que, com o crescimento de casos de divulgação não consentida de imagens íntimas, teria se criado uma demanda por certos tipos de vídeos e fotos (mesmo por parte de menores de idade), ou seja, uma categoria de fetiche com a “garota que mora ao lado”, “vídeos amadores”. Ela está se referindo à existência de páginas em que as imagens são divulgadas junto dos links com os perfis das vítimas em redes sociais (ou, por vezes, informações de contato), de forma que quem as acessa possa verificar que a pessoa existe efetivamente.

2.4. POSSE SEM DISSEMINAÇÃO, OU MERO COMPARTILHAMENTO, PELO ECA Como brevemente discutido no tópico anterior, quando não há provas cabais de que o réu foi realmente o responsável por disseminar as imagens, em geral não ocorre condenação. Isso é curioso, visto que o ECA proíbe a mera posse de conteúdo pornográfico envolvendo adolescentes. Assim, por mais que o réu não fosse o responsável por vazar as imagens, ele um dia as teve em seu domínio. Além disso, o ECA determina ser crime “aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso” (art. 241-D), o que poderia ser o caso em algumas hipóteses de solicitação de imagens sexuais. Em um caso, por exemplo, o réu foi condenado em primeira instância por ter mostrado (divulgado) fotos de sua ex-namorada para um amigo. Os dois estavam em uma praça pública e ele tinha em sua posse as fotos impressas de sua ex-namorada. No entanto, mesmo tendo a posse das imagens e de seu amigo ter visto aquele conteúdo, o desembargador afirmou que

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muito menos se vislumbra o dolo do recorrente, visto que tudo não passou de um momento de intimidade entre um casal de jovens (...) Além do mais, as fotos não foram divulgadas ‘por qualquer meio de comunicação, inclusive rede mundial de computadores ou Internet’, como referido na norma penal. Algumas fotos estão a indicar sexualidade, o que se distingue de ‘pornografia ou cenas de sexo explícito’. Não se vislumbra que tivessem tirado tais fotos visando dar a elas um conteúdo pornográfico e as mesmas não foram produzidas para veiculação pública” (grifo nosso)55. Em outro caso, citado anteriormente, o réu teria fotografado uma adolescente nua com o pretexto de enviar o material para uma agência de modelos. A mãe da vítima foi avisada por vizinhos de que tais fotografias estariam na Internet, e recebeu uma cópia impressa. O réu foi inocentado por duas razões: 1. não haveria provas concretas de que as imagens teriam vazado na internet (apesar da mãe e vizinhos terem tomado contato com tal material); 2. que fotografia “na nudez natural” não se enquadraria como pornografia56. Também se destaca aqui um caso mencionado no tópico anterior, no qual uma adolescente registrou sua relação sexual com uma pessoa e tal fato foi divulgado por um terceiro. Não era intenção de seu “parceiro” que as fotos fossem divulgadas – o responsável por tal ato foi um amigo do réu. O julgador não condenou nenhum dos dois réus. Nesse caso, houve um problema de enquadramento: considerou-se que aquele que teve relações sexuais com a vítima não teve a intenção de divulgar as imagens e que seu amigo poderia não ter ciência de que a vítima era menor de idade, o que impossibilitaria a aplicação de crime contra adolescentes. Uma exceção a esse padrão foi a decisão relativa a um caso que o réu gravou imagens suas e da namorada durante a relação sexual e, posteriormente, tomou ciência pelos amigos da escola que o vídeo havia sido divulgado via bluetooth. O réu afirmou que seu celular teria sido roubado e que, por isso, não fora responsável pela divulgação das imagens, mas o desembargador considerou que, como não foi apresentada nenhuma prova do roubo (como um boletim de ocorrência), prevaleceria a condenação57. Diante dessas decisões, pode-se identificar uma série de hipóteses em que o réu é absolvido

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Apelação n. 0019439-91.2008.8.26.0462 , 12a Câmara de Direito Criminal, TJ/SP, 27/02/13.

Apelação n. 01038330.3/1-0000-000, 10a Câmara do 5o Grupo de Direito Criminal, TJ/SP, 12/12/07. 56

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Apelação n. 0009872-24.2009.8.26.0099, 1a Câmara de Direito Criminal, TJ/SP, 19/05/14.

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quando o processo acontece com base no ECA. Seja pela definição estrita de pornografia, seja pela inaplicabilidade da lei quando o acusado não tem como saber a idade da vítima (ainda que não tenha ocorrido consentimento), ou ainda pelo afastamento da aplicação da lei por considerações de cunho social (“adolescentes fazem isso mesmo”), percebe-se que essas hipóteses corroboram com a noção já mencionada de que as adolescentes podem ficar mais desprotegidas em relação às adultas. Ou seja, apesar de o ECA ser considerado uma legislação extremamente protetiva, sua aplicação, nestes casos, revela o contrário.

2.5. O TERMO “PORNOGRAFIA DE VINGANÇA (“REVENGE PORN”) E SUAS LIMITAÇÕES Como indicamos, um primeiro aspecto a nos chamar atenção, ainda no contexto de busca de casos no portal do Tribunal de Justiça, foi a ausência da utilização do termo “pornografia de vingança” nas ementas (ou ao longo) das decisões. Isso se deve parcialmente à ausência de uma legislação específica sobre o tema. A análise dos 90 casos que se enquadravam nessa chave de disseminação não consensual de imagens íntimas na Internet, com base em gênero, mostraram estar ausente ou ser difícil auferir, na grande maioria dos casos, a presença da motivação de vingança: somente em 15 dos 90 casos essa motivação estava explícita. A ausência da motivação de vingança pode decorrer da própria característica dos documentos – já que acórdãos, por se tratarem de revisões de sentenças, trazem mais informações processuais do que descrições fáticas extensas dos casos –, ou ainda pode ter relação com a dinâmica dos casos de violência baseada em gênero. Quando da apreciação dos casos, imaginamos que a dificuldade de identificação desse elemento pode ser semelhante à dificuldade na comprovação de dolo, em casos, como por exemplo, de racismo no Brasil; todavia, essa é uma hipótese ainda em aberto58. Nos casos em que a vingança se explicita, ela aparece em ao menos três aspectos ou sentidos: (i) não cumprimento, pela vítima, de expectativas (de diferentes naturezas) do acusado; (ii) inconformismo com término de relacionamento; (iii) represália por desentendimentos em relação de trabalho. No primeiro sentido (i), cinco casos são emblemáticos: A comprovação da intenção ou motivação racista é de fato bastante subjetiva e constitui-se como um dos principais desafios no que se refere a aplicação da legislação antirracista no Brasil. A inexistência do dolo fundamentou a maioria de absolvições em levantamento e analise jurisprudencial realizada por Machado, Santos e Ferreira (2015). 58

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1. O ex-companheiro ameaçou divulgação de vídeos íntimos do casal, exigindo entrega de dinheiro e bens móveis, e ameaçou a ex-companheira de morte59; 2. O acusado usou de ameaça contra sua ex-companheira, enviando-lhe e-mails nos quais dizia que divulgaria na Internet fotografias da vítima nua e seminua, tiradas durante a convivência marital, caso ela não desistisse da demanda judicial em que pretendia, mediante o reconhecimento e dissolução de sociedade de fato, a partilha de um bem imóvel60; 3. O acusado exigia o prolongamento do tempo a ficar com o filho comum do casal para além do determinado. Nesse caso, sua fala é emblemática: “Faça

alguma coisa contra mim, alguma coisa...pense bem. Vou esperar mais uma semana. Ele vai ficar comigo até dia nove. Pense bem se você vai fazer alguma coisa. Tem um monte de fotos suas. Você vai ver o que vai acontecer com você. Já tô avisando. É só um simples aviso... É um simples avisinho... você não me conhece... você sabe que eu não tenho medo. Eu só tô te avisando...pra depois falar que eu sou ruim... que eu não te avisei... Ó... eu tô esperando a hora certa pra usar. Pode ficar tranquila que a hora certa você vai ter uma surpresa... tem um monte de gente que vai gostar de ver o que eu tenho... Principalmente o seu amantezinho aí...Faça alguma coisa que eu tenho mesmo. Tá prontinha no e-mail já pra mandar pro monte de gente... o jeito que você é piranha”61. 4) Em outro caso, o agressor utilizava-se de imagens obtidas durante relacionamento amoroso para coagir a vítima a ter relações sexuais com ele. Ela foi estuprada uma vez pelo réu e foi ameaçada e torturada psicologicamente constantemente62. 5) No último caso, a perspectiva do cerceamento da autonomia da vítima. No acórdão, relata-se que o acusado realizou cadastro como usuário em comunicador instantâneo, mantendo contato com a vítima por aproximadamente oito meses. Utilizou tal programa para registrar vídeos íntimos da mesma no seu computador e ameaçou publicá-las, caso não recebesse a quantia de R$ 2.000,00 (dois mil reais). Ressalvou que sua intenção “era apenas desmentir a vítima e lhe mostrar que ela não seria aquela pessoa honrada que dizia ser” (grifos nossos).. Há no acórdão a informação de que o casal teve um relacionamento na adolescência e a princípio a vítima não sabia que o mesmo era autor das ameaças63. É interessante notar que, em sua defesa, o acusado utiliza-se de um argumento que fundamenta difamação para negar tentativa de extorsão. 59

Apelação n. 3001162-74.2013.8.26.0114, 2a Câmara de Direito Criminal, TJ/SP, 28/08/14.

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Apelação n. 0282772-90.2010.8.26.0000, 16a Câmara de Direito Criminal, TJ/SP, 19/03/13.

61

Apelação 0229123-44.2009.8.26.0002, 1a Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 12/08/14.

62

Habeas Corpus2101095-54.2014.8.26.0000, 11a Câmara de Direito Criminal, TJ/SP, 27/08/14.

63

Apelação 0010973-08.2011.8.26.0526, 9a Câmara de Direito Criminal, TJ/SP, 25/06/15.

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No segundo conjunto de situações (ii), relativo ao inconformismo com o término de relacionamento, dois casos saltam aos olhos: 1) aquele em que, após rompimento do namoro de oito anos, o acusado ameaçou divulgar fotos íntimas do casal na Internet, e apresentá-las aos pais da ofendida, dizendo também que “se [a ex-namorada] não ficasse com ele, esta não ficaria com ninguém”64; 2) o caso em que a vítima noticiou que seu ex-namorado, que residia no Maranhão, inconformado com o término da relação, ameaçou publicar imagens íntimas dela na Internet e matá-la. O acusado também cancelou as passagens aéreas de retorno da namorada à sua cidade (São Paulo), causando-lhe sérios transtornos.65 Por fim, em um dos acórdãos em casos ocorridos entre colegas de trabalho (iii), conta-se que o perfil da vítima em rede social foi alterado para prejudicar sua imagem, criando um fato despertador da curiosidade e propulsor de comentários que a desabonaram em seu círculo social. O desembargador considera o fato grave, porque os réus não se limitaram a modificar os dados e introduzir frases e fotos picantes da autora, pois, em seguida e para fechar o golpe, deram publicidade ou espalharam a ocorrência para que o conhecimento da irrealidade alcançasse uma repercussão intensa, o que é típico da vingança ou de atos de represália por motivos banais ou sórdidos” (grifos nossos)66. É interessante pontuar que, na esfera criminal, apenas em um dos casos envolvendo menores de idade a motivação de vingança é explícita. A hipótese aqui é que, como o foco dos casos envolvendo menores de idade é a exposição e exploração sexual de adolescentes, estando tipificada apenas a posse desse tipo de material, a discussão da presença ou ausência de vingança pode não ser relevante da perspectiva da elaboração da decisão. Do ponto de vista do debate público sobre o “revenge porn”, analises como esta são de extrema relevância, dado que, nas discussões envolvendo projetos de lei, quando se apresenta a motivação de vingança, uma das soluções comumente propostas é o agravamento de penas67. No entanto, tais proposições lidam com um conceito muito estrito

64

Apelação 0006183-21.2012.8.26.0663, 4a Câmara de Direito Criminal, TJ/SP, 16/06/15.

Mandato de Segurança n.2103605-06.2015.8.26.0000, 16a Câmara de Direito Criminal, TJ/SP, 28/07/15. 65

66

Apelação 0001236-21.2008.8.26.0482, 5a Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 25/06/14.

Como discutido na Quarta Parte, dois dos Projetos de Lei em tramitação prevêem agravamento de pena nesses casos (PL 6630/2013 e PL 63/2015), um dos Pls trata explicitamente da criminalização 67

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de vingança. Se, como elaboramos na parte anterior, podemos refundar sociologicamente o conceito de vingança – no sentido de que o “revenge porn”, ou as violências relacionadas a ele, vêm ligada a uma espécie de punição a normativas de gênero e posições de poder ameaçadas –, temos que as proposições se restringem a pouquíssimos casos e não são capazes de entender vingança no sentido amplo, sendo que na maioria dos casos não temos essa “vingança em sentido estrito”. De fato, o debate sobre a forma de nomear a conduta está em disputa na esfera pública. Dentre nossos entrevistados e entrevistadas, houve quem concordasse com o uso do termo “revenge porn”, mas há também vozes que apontaram para os problemas de sua utilização, tais como “revitimização” (dado o uso do termo “revenge”), ou ainda e uma possível condenação moral da nudez ou pornografia em geral (por conta do uso do termo “porn”). Há também a percepção de que o termo pressupõe a existência de uma relação entre as partes. Vejamos: Pesquisadora: A gente começou trabalhando na pesquisa com essa categoria de “revenge porn”, enfim, a gente começou a trabalhar com os casos e hoje a gente pergunta para os nossos interlocutores o que eles acham dessa categoria, se ela funciona, se ela dá conta... Silvia Chakian - Desse termo, você diz? Pesquisadora - Isso. Silvia Chakian - Péssimo. Péssimo, totalmente contra, um termo pejorativo que atribui o termo pornografia de vingança, já julga né? Que aquilo é pornográfico, que é imoral, que a mulher... Tem um julgamento moral embutido nisso, que a mulher que... E são muitos os casos em que aquele conteúdo foi produzido com o consentimento dela, e ela tem esse direito. Muitas mulheres o fazem como determinação de gênero, “eu quero tirar, para mim é importante, eu me acho bonita, eu quero divulgar”. Mas quando você embute a palavra pornografia você já julga, você já diz que aquilo é errado, que é condenável sob o aspecto moral. Acho que essa nomenclatura tinha que mudar, a gente não tinha que adotar essa “pornografia de vingança” e outra: o termo vingança também pressupõe que a mulher fez alguma coisa de errado e o sujeito está se vingando, mas o que ela fez de errado? É porque ela rompeu um relacionamento? Então eu vejo problema nas duas palavras: vingança e pornografia. Então, alguma coisa no sentido de exposição indevida da imagem, sabe? Divulgação indevida... Isso é muito mais condizente com a conduta de quem veicula a imagem de forma inapropriada, da mulher. Não da conduta de pornografia de vingança (PL 6713/2013).

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sei se eu fui clara. (grifos nossos) Alice Bianchini - Eu acho que tem uma questão de gênero aí. Porque de novo, tudo o que vocês escreveram sobre essa questão né, da questão da própria mulher, porque ela se sente sua honra afetada? Não precisaria se sentir sua honra afetada, porque que se fosse o contrário o homem não se sente com a honra afetada e sim é até, se sente de alguma forma mais valorizado? Então, quando você coloca esse tema como chamam de pornografia, é uma coisa que não é pornografia. Então você está diminuindo mais ainda a questão das vítimas. Então me parece assim, eu sempre achei um horror esse nome “pornografia de vingança”, não é pornografia que você faz numa relação sexual, isso não tem nada a ver com pornografia. Você pode usar aquelas imagens para pornografia, mas é uma outra coisa. Mas então essa questão de pornografia de vingança me parece que já é, já está dentro desse contexto que... Pesquisador - Induz mais uma vez... Alice Bianchini - Que induz ainda mais essa vitimização, uma segunda vitimização da mulher. Uma terceira, quarta, quinta, sei lá quanto que a gente já vitimizou essa mulher nessa situação. Então já tem a questão da dupla moral, uma moral para os homens que valoriza isso; uma moral para mulheres que deprecia essa conduta. Depois tem essa mulher que vai ter que enfrentar a justiça e as pessoas vão querer saber quem é essa mulher, será que ela não está se autopromovendo, quer dizer, de novo né um problema com a vítima, e ainda mais chamando de pornografia uma coisa que não é pornografia, realmente para criar um constrangimento ainda maior. Isso não digo que são coisas assim que foram feitas para isso, mas é o contexto cultural machista, o contexto cultural patriarcal, o contexto cultural dessa dupla moral que acaba levando a isso, e a gente tem que tomar muito cuidado com isso, realmente tomar muito cuidado. (grifos nossos)

Pesquisadora - O que você acha dessa categoria? Você acha que ela responde, funciona, é um bom termo para se pensar esses problemas...? Ana Paula Nader - Eu acredito que sim, mas foi o que eu falei, o problema do “revenge porn” é que ele também me dá a sensação que tem uma relação prévia ali de intimidade e de afeto, né, que por conta disso a gente poderia excluir alguns grupos vulneráveis que também sofrem essa forma de violação, mas eu acho sim que é um conceito importante. É um conceito importado, mas que tem se adequado a nossa realidade. O

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que a gente tem enfrentado hoje... Até porque a maioria das violações acabam acontecendo por conta de pessoas que você tem sim alguma relação, ainda que seja uma relação de confiança. (grifos nossos) Cabe pontuar também, como já detalhamos na Introdução, que, internacionalmente, o termo “revenge porn” tem sido criticado por ativistas e pesquisadoras pelas mesmas razões. Um termo que tem sido crescentemente adotado como alternativa, conforme apuramos na nossa participação em eventos internacionais nos anos de 2015 e 2016, é o NCII –

Non-Consensual Intimate Images, que tira o foco tanto de revenge, quanto de porn, e busca focar no aspecto da autonomia da mulher, com o foco na ideia de consentimento.

2.6. NOS CASOS ESTUDADOS, AS PARTES TINHAM RELACIONAMENTO AFETIVO ENTRE SI? Na esfera penal, em 24 dos 36 casos que analisamos as partes já haviam estado ou estavam em um relacionamento afetivo, ou tinham alguma espécie de vínculo emocional. Dentro dessa categoria, consideramos pessoas que tinham uma união estável, que foram namoradas ou que tinham uma relação de amizade. Gráfico 10: Relações entre as partes nos casos de esfera penal

12 casos

24 casos

Casos em que as partes já haviam tido ou tinham relação

Casos que não possuiam relação ou não foram identificados

Na esfera cível, por sua vez, ora não é possível identificar vínculo, ora ele é inexistente nos casos. Em apenas 15 casos, de um total de 54, identificamos que as partes mantinham algum tipo de relação; grande parte das situações envolvia a criação de perfis falsos e o vazamento de conteúdos produzidos sem conhecimento das partes.

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Gráfico 11: Relações entre as partes nos casos de esfera civil

15 casos

39 casos

Casos que não possuiam relação ou não forma identificados

Casos em que as partes já haviam tido ou tinham relação

No total, em cerca de 40% dos casos ficou evidente que existia relação prévia entre as partes, contra 60% em que não é possível identificar ou em que não havia vínculos; isso evidencia a multiplicidade de formas que a disseminação não consensual de imagens íntimas pode alcançar. Além disso, a partir da observação dos casos, vimos que há extrapolação dos limites de categorias como “revenge porn” ou de violência em “relação doméstica ou familiar”. Gráfico 12: Relações entre as partes no total dos casos

39 casos

51 casos

Casos em que as partes já haviam tido ou tinham relação

Casos que não possuiam relação ou não foram identificados

Ainda assim, como indicamos, somente em dois casos a Lei Maria da Penha foi aplicada. Isso sinaliza que essa importante lei de proteção à violência contra a mulher não tem sido mobilizada para os casos de NCII, o que merece atenção de pesquisadores e operadores do Direito.

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2.7. A QUESTÃO DE GÊNERO NOS CASOS E NA PERCEPÇÃO DOS MAGISTRADOS Outro fator que nos chama atenção nas decisões é o fato de que a questão de gênero não é explicitamente discutida ou tematizada nos acórdãos. Na esfera penal, entre os casos envolvendo adolescentes (ECA) cujas imagens foram divulgadas na Internet, todos referem-se a mulheres cisgêneras, à exceção de um em que figuram duas travestis68. Os elementos importantes para a tomada de decisão dos desembargadores foram: a) se o réu tinha consciência da idade da vitima; b) se o réu foi o responsável pela divulgação das fotos; e c) se as fotos possuem conteúdo pornográfico. Ou seja, por mais que o bem jurídico protegido nesse caso fosse a integridade de vítimas menores que, em sua totalidade, eram mulheres, o foco da argumentação do juiz está quase sempre no réu. Acrescenta-se na discussão ainda que, na decisão envolvendo as duas travestis, o magistrado demonstra insensibilidade ou desconhecimento em relação a questões de orientação sexual e identidade de gênero. Tratava-se de um caso em que os réus eram um casal de adultos que filmava cenas de sexo explícito entre as adolescentes, chegando a contracenar com elas em algumas ocasiões. Durante a descrição do caso, o desembargador chegou a falar que se tratavam de dois adolescentes “transvestidos de mulher”, e que uma das vítimas havia admitido que “desde os dez anos tinha comportamento homossexual”. O desembargador, ao esclarecer o que significaria o termo “drag”, define-o como pessoa do sexo masculino que se passa por uma do sexo feminino “como um dragão, isto é, serpente com o corpo coberto de escamas”. Em outros momentos, ao julgar a questão da corrupção de menores, o magistrado passa a impressão de que estaria apreendendo a gravidade da conduta em função de o sexo entre dois homens ser mais degradante do que práticas não homoafetivas69. A insensibilidade, o desconhecimento, e mais do que isso, a cegueira para questões de gênero por parte do sistema de Justiça como um todo é também apontada por entrevistadas: Aqui na vara central, na capital, nós até temos uma situação privilegiada para as vítimas, porque contam com um grupo especializado e contam com uma Defensoria, mas essa não é a realidade do restante do país. Aliás, não é a realidade do restante do estado de São Paulo. Então, no interior, por exemplo, não

Apelação 418995.3/3-0000-000, 9a Câmara Ordinária do 5o Grupo de Direito Criminal, TJ/SP, 31/08/05. 68

Apelação 418995.3/3-0000-000, 9a Câmara Ordinária do 5o Grupo de Direito Criminal, TJ/SP, 31/08/05. 69

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há especialização das promotorias, muitas vezes não há varas especializadas, esses casos tramitam em varas cumulativas, então você imagina, chega lá o caso de uma menina que teve a imagem compartilhada no celular de outro, uma imagem lá de um nu ou de um vídeo íntimo, junto na mesa do juiz que cai um latrocínio, um tráfico praticado pelo PCC, que cai o homicídio, uma chacina. Então, qual que é o olhar desse juiz para esse caso dessa menina que teve a imagem compartilhada? “Ah, não é tão grave assim”. É o que a gente fala da cegueira de gênero dos operadores do direito. A falta da perspectiva de gênero na análise dos casos. Numa vara onde todo tipo de crime está sendo apurado a tendência do aplicador da lei é valorar o que é mais grave e o que é menos grave ali, e esses casos de violência contra a mulher até por essa questão cultural acabam tidos como de menor importância ainda. A situação da capital é um pouco diferenciada porque tem essa especialização. A gente precisa lutar para que esse olhar de gênero seja aplicado por todos. Seja na delegacia que não é especializada em violência contra a mulher, seja na vara da infância, do júri, de crimes patrimoniais, qualquer... Por qualquer operador do direito. (Silvia Chakian) Alguns os juízes não deferem a liminar, eles entendem que não há urgência, não há necessidade. (...) Eu percebo que quando as juízas são mulheres, é mais tranquilo o trâmite; quando são homens a maioria tem uma tendência a dizer não, não defere a liminar, eu quero ouvir a outra parte primeiro, caso de provedores de Internet pra fornecer os logs pra identificar então não, não vou deferir a liminar, quero ouvir o provedor primeiro pra apresentar como prestação. (Gisele Truzzi) Nas ações envolvendo adultas, também não há grande discussão acerca de questões de gênero. Em alguns casos, discute-se a dor e o sofrimento das mulheres com a exposição de suas imagens. Por exemplo, em um caso, o julgador afirma que “não se põe em dúvida

a afirmação feita na inicial no sentido de que a exposição criminosa da nudez da querelante causou-lhe trauma profundo e foi motivo de vergonha e tristeza para ela e seus familiares”70. Contudo, esse tipo de discussão se dá do ponto de vista da injúria individual, e não aparece em nenhum momento como consideração coletiva ou social, ou que ocorra em função de estruturas. Há, dentre os casos com adultas, uma decisão penal em que a vítima é um homem. Nessa ação, ele teve alguns encontros com uma prostituta, que o fotografou e, posteriormente, passou a exigir que ele pagasse sua faculdade, desse-lhe presentes e quantias em dinheiro. Se seus pedidos não fossem atendidos, ela afirmou que colocaria as fotos de suas relações 70

Recurso n. 0000162-06.2009.8.26.0058, 10a Câmara de Direito Criminal, TJ/SP, 30/07/12.

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íntimas na Internet - o que ocorreu, ao final, além do envio das fotos à sua esposa por correio71. É de se observar que, neste caso, não é o mero exercício da sexualidade que faz com que o homem procure a Justiça: parece ser necessário algo que “saia da norma” para que homens sejam expostos. Por exemplo, o homem vítima foi fotografado enquanto exercia práticas sadomasoquistas, e também estava em um relacionamento extraconjugal, o que seriam práticas que poderiam ser consideradas por muitos como “fora da norma”. No âmbito civil houve apenas cinco casos envolvendo vítimas do sexo masculino. Para além do objetivo difamatório envolvendo pessoas públicas (um prefeito e um vereador), de dois casais heterossexuais (no qual o homem figura, além da mulher, como alguém prejudicado pela exposição por terceiros), chama atenção um caso em que um homem constata a presença de fotografias suas em site de conteúdo pornográfico homossexual72. Nesses casos, o foco dos juízes esteve na comprovação da materialidade do fato e nos prejuízos causados pela exposição às vítimas. Assim, muito embora os dados expressem marcadamente que a exposição de imagens sexuais sem consentimento vitimiza majoritariamente mulheres, em apenas uma decisão encontramos uma fundamentação para indenização baseada nessa percepção. Nesse caso, o magistrado afirma: “os atos cometidos pelo réu geraram, sem sombra de dúvidas, inúmeros danos para a autora. É que, infelizmente, vivemos em uma sociedade em que o comportamento da mulher, inclusive no que se refere à sua vida íntima, é imensamente criticado e questionado, sendo de consequências imensas quaisquer fatos a ela imputados em especial no aspecto sexual. Os documentos juntados com a inicial, inclusive aqueles desentranhados dos autos como medida de proteção à intimidade da autora, dão conta de que o requerido ultrapassou todo e qualquer limite, expondo a requerente a uma situação imensamente constrangedora73.” (grifos nossos)

2.8. OUTROS MARCADORES SOCIAIS DA DIFERENÇA O caráter radicalmente marcado por gênero da agressão de que estamos tratando foi sistematicamente afirmado também pelos nossos entrevistados e entrevistadas; não parecem existir dúvidas no sentido de que se trata de um problema vivenciado pelas Recurso em Sentido Estrito n. 0003344-89.2010.8.26.0405, 7a Câmara de Direito Criminal, TJ/ SP, 16/05/15. 71

72

Apelação n. 0013676-49.2008.8.26.0482, 7a Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 20/12/13.

73

Apelação n. 0003141-93.2007.8.26.0224, 1a Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 29/10/13.

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mulheres. Juliana Cunha, coordenadora psicossocial da SaferNet (associação privada que recebe denúncias anônimas de crimes e violações contra os Direitos Humanos na Internet, e que tem também um serviço de apoio – o Helpline, sobre o qual discorreremos adiante), destacou que, em 2014, 81% das vítimas que acessaram seus serviços foram mulheres. Afirmou ainda que, em geral, nos casos em que a vítima é homem, o agressor também é do sexo masculino e ameaça revelar a orientação sexual do outro na rede. Questionada sobre a participação de travestis e transexuais, ela relatou que a maior parte dessas vítimas não se queixa de exposição sexual, mas sim de humilhação e difamação - são casos envolvendo cyberbullying ou violência doméstica74. Outro dado relevante levantado pela entrevistada revela que a maioria dos atendimentos relacionados a exposição de imagens do SaferNet tem como vítimas adolescentes. Igualmente, a Delegada da Delegacia de Defesa a Mulher, Magali Vaz, afirmou que, apesar de não poder fornecer nos números exatos, a maioria das vítimas de “revenge porn” e crimes relacionados que denunciam são adolescentes. A análise de decisões judiciais não permite que se depreenda muito sobre as vítimas; questionamos sobre perfil socioeconômico em todas as entrevistas que realizamos, mas também obtivemos poucas respostas consistentes. Por vezes, profissionais do sistema de Justiça afirmaram que casos como esses não ocorreriam nas periferias das cidades, pela falta de acesso à Internet ou a equipamentos. A afirmação nos pareceu despropositada, dado que estávamos concomitantemente realizando estudo de caso sobre o Top 10 (v. Quinta Parte, adiante). A Delegada Magali Vaz, por sua vez, afirmou que crimes envolvendo gênero são sempre “democráticos”: atinge pessoas de todas as faixas etárias e todas as classes sociais. A percepção nos parece correta, mas, como exploraremos a seguir, tal “democracia” não se expressa no Judiciário, em grande parte por problemas relacionados ao acesso à Justiça. Chamou-nos atenção, também, que o perfil socioeconômico da vítima ocupou um papel importante em diversas decisões judiciais que analisamos, em especial naquelas contra provedores de Internet. Para os magistrados em questão, parecia que a descrição da ocupação das vítimas no contexto da narrativa sobre o dano ou gravidade da conduta do agressor (ora pela própria vítima, ora pelo/a desembargador/a) era um dado importante: figuram nesses acórdãos empresária, pesquisadora, modelo, advogada. A agravada afirma na inicial que é empresária de renome, pertencente a uma família de artistas, e que, embora seja figura reconhecida publicamente, não perde o direito de manter em sigilo A SaferNet diferencia sexting e cyberbullying pelo primeiro envolver imagens de sexo e nudez e o segundo não. Em 2014, foram 224 casos de sexting e 177 de cyberbulling. A entidade tem percebido um aumento dos casos envolvendo sexting no último ano – no início do projeto, havia muito mais atendimentos envolvendo cyberbullying. 74

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sua vida particular, assim como os detalhes de sua intimidade. Alega, em apertada síntese, que fotos e dados pessoais foram acessados por terceiro, que ameaçou divulgá-los na mídia, o que de fato ocorreu em agosto de 2013 (...)75 A vítima teve montagens de fotos com o seu rosto foram divulgadas na internet com a finalidade de denegrir sua imagem. Algumas dessas montagens estão sendo divulgadas em sites de pornografia. É bióloga, mestre e doutoranda pela Unifesp. Passa por constrangimentos que destroem sua reputação. Tem vários trabalhos publicados na rede, o que motiva a pesquisa de seu nome em sites de busca por acadêmicos76. O juiz afirma que os danos potenciais à autora que é ‘advogada militante e sócia de banca sediada na Capital’ que justificam a excepcional concessão de tutela77.

2.9. O ACESSO À JUSTIÇA E O PERFIL DAS VÍTIMAS Os únicos dois casos de ação penal privada de crimes contra a honra que fizeram parte de nosso corpo de análise, ou seja, nos únicos casos de injúria e difamação a que tivemos acesso, a discussão era de cunho processual – sobre prazos, sobre constituição de advogados etc. No primeiro caso, a vítima teve imagens suas nuas divulgadas no Facebook. Decidiu-se manter a rejeição da queixa-crime deliberada em primeira instância: a vítima não havia apresentado os documentos corretos quanto à representação por advogado na propositura da ação, e, quando o fez, já havia passado o prazo decadencial (de seis meses após o conhecimento da autoria do crime). O segundo caso também foi de confirmação da rejeição por extrapolamento do prazo. Isso pode indicar que as vítimas não tinham conhecimento dos prazos para apresentarem queixa-crime, ou não estiveram bem assistidas. No caso de crimes processados por ação penal privada, apesar de não ser possível aferir um perfil das vítimas, esses dois casos podem indicar que a falta de conhecimento sobre processo penal e de um bom defensor façam com que as vítimas não consigam ter seus direitos garantidos. Como apontamos anteriormente, dificuldades processuais envolvendo esse tipo de ação podem constituir uma das razões para termos poucos casos de processos penais relativos a “revenge porn” no Judiciário. Uma vez que no caso de adultas, como afirmamos, os 75

Apelação n. 2071057-93.2013.8.26.0000, 4a Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 13/03/14.

76

Apelação n. 0253091-07.2012.8.26.0000, 3a Câmara de Direito Privado, TJ/SP,12/03/13.

77

Apelação n. 1029222-36.2013.8.26.0100,6a Câmara de Direito Privado, TJ/SP,25/05/14.

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casos são enquadrados como injúria e/ou difamação (que são crimes contra a honra) e processados como ação penal privada. Isso significa que a ofendida deve constituir advogado e apresentar a queixa-crime no prazo (decadencial) de seis meses, a partir do conhecimento de quem é o autor da ação. Além disso, como também afirmamos (item 2.1 atrás),aos crimes contra honra correspondem penas baixas, e eles serão, então, crimes de menor potencial ofensivo, por esta razão, gozando dos benefícios trazidos pela Lei n. 9.099/95 (Lei de Juizados Especiais Cíveis e Criminais). De acordo com o art. 61 dessa lei, são crimes de menor potencial ofensivo todos aqueles cuja pena máxima não seja superior a dois anos. A pena máxima para os casos gerais de injúria é de seis meses; a de difamação, de um ano. Isso faz com que aos réus seja dada a possibilidade da “transação penal” – um acordo entre o réu e a promotoria, de acordo com o qual o réu não assume autoria, mas aceita a aplicação de penas alternativas à prisão, o que significa que o processo não terá prosseguimento. Também como apontamos, cabe a composição civil dos danos, um acordo entre réu e ofendido/a, que tem o mesmo efeito de evitar o processo. E, como indicamos, há controvérsias sobre a aplicação da transação penal nos casos de ação penal privada, enquanto a composição civil é entendida inequivocamente como cabível. Vale lembrar que a Lei Maria da Penha, quando combinada aos crimes em questão, afasta a aplicação da Lei n. 9.099/95. Também é importante apontar que, no Juizado Especial Criminal, a vítima não necessariamente precisa de um advogado para a audiência, enquanto isso é obrigatório para o acusado. Na Lei, está descrito que a vítima pode requerer um advogado; não sabemos, no entanto, se isso realmente ocorre – se em todos os casos as vítimas são bem assistidas ou conseguem um advogado. Esse fato poderia ser mais um entrave ao acesso à Justiça. Além disso, os procedimentos no JEC incluem audiência de conciliação, o que pode ser um problema, caso a vítima tenha receio de ficar frente a frente com seu eventual agressor. É uma situação bem distinta do que ocorre nos casos de ação penal pública incondicionada: nesses casos, o mero boletim de ocorrência em uma delegacia de polícia pode engendrar um processo de investigação que culmine numa denúncia pelo Ministério Público e no prosseguimento da ação, sem a necessidade de participações ativas da vítima. Os relatos obtidos em nossas entrevistas dão conta das dificuldades envolvidas na ação penal privada desde o início - o desconhecimento da vítima de que existe uma proteção jurídica para sua situação pode ser agravado, se, ao procurar uma delegacia, não for informada dos procedimentos que deve seguir, e do exíguo prazo que tem. Alice Bianchini, advogada e pesquisadora, trata da exiguidade deste prazo: Há total desconhecimento [sobre os prazos]. E seis meses passam

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muito rápido. E seis meses para a pessoa se reconstituir, para ela pensar, ela fica muito assustada nesse período todo não é, e até ela... “Poxa vida, então o que eu vou fazer? Vou tomar uma decisão...” Pronto passou o prazo. De acordo com Juliana Cunha, da SaferNet, a maioria das denúncias que a ONG recebe encaixaram-se no tipo penal de crimes contra a honra. A entrevistada afirma que, de acordo com os depoimentos das vítimas, há muita desinformação de todos os lados – tanto por parte das autoridades policiais quanto por parte dos advogados–e,segundo sua impressão, esse tipo de crime não é levado tão a sério pelas autoridades. A Delegada Magali Vaz,apresentou uma visão parecida: as violações de que tratamos são consideradas crimes contra a honra e, especialmente em delegacias não especializadas, esse tipo de crime não é prioridade. Se a vítima quer prosseguir com a ação, pode constituir advogado/a privado/a ou, a depender de sua situação econômica, procurar os serviços da Defensoria Pública do Estado; esse órgão, conforme nos foi relatado por uma defensora atuante em questões de gênero, Thais Nader, encontra-se extremamente sobrecarregado e não tem estrutura para apresentar ações penais privadas. Mais sorte com a Defensoria terá a vítima que consiga enquadrar seu caso na Lei Maria da Penha, dado que há defensores/as trabalhando exclusivamente nos Juizados de Violência Doméstica. Caso a violação não tenha ocorrido no âmbito de uma relação doméstica, a lei prevê ainda que o juiz deve nomear advogado, “a requerimento da parte que comprovar a sua pobreza” (art. 32 do Código de Processo Penal). Quando indagamos Thais Nader sobre a possibilidade de alguém sem renda promover a ação penal privada contra seu agressor, sua reação foi incisiva: “senta e reza”. Com essa expressão, Thais evidenciou as baixas chances que essa pessoa terá de ver sua demanda jurídica atendida, devido, principalmente, à problemas estruturais do sistema de justiça brasileiro. Se essa situação parece apontar para a inadequação do regime da ação penal privada para os casos em questão, cabe a nós também apresentar pontos de vista alternativos. A advogada especializada em casos de “revenge porn”, Gisele Truzzi, discorda veementemente que os casos devessem ser processados por ação penal pública, por se tratarem de questões “do foro mais íntimo da pessoa”. A advogada apresentou, com a intenção de sinalizar por que, em diversos casos, não há processos ou acusações por vontade das vítimas, sua teoria das “três peneiras da vergonha”. A teoria procura abarcar os sucessivos problemas envolvendo exposição: a vítima de “revenge porn” precisa, primeiramente, ultrapassar a primeira (1) peneira, que é contar o que está ocorrendo para seus familiares e pessoas próximas; a segunda (2), que é procurar uma delegacia e um/a advogado/a, ou seja, pessoas desconhecidas, para quem terá de contar seu caso e possivelmente apresentar as imagens que considera vexatórias; e

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a terceira (3), que é fazê-lo também para o sistema de Justiça, sabendo que o cartorário, o juiz e os assistentes do juiz terão acesso aos autos do processo. Cada um desses momentos é uma nova vitimização. Para a advogada, seria uma violência institucional que o sistema de Justiça encaminhasse o caso, independentemente da decisão da pessoa envolvida. Para ela, assim, a solução também está em fortalecer as instituições que atendem a quem não pode pagar um/a advogado/a. Outro aspecto que tem de ser levado em consideração é que o objetivo de todas as vítimas não é o mesmo. Nem todas querem que seu agressor seja preso; muitas desejam simplesmente que o conteúdo seja retirado do ar. A advogada Gisele Truzzi afirma que isso deve fazer parte da orientação jurídica, visto que as providências devem ser diferentes – se a vítima desejar apenas retirar o conteúdo da Internet, usualmente se encaminham notificações extrajudiciais para os sites no qual o conteúdo está hospedado (independente de ser um portal ou uma rede social). A advogada conta que a maioria dos sites exclui o conteúdo rapidamente, principalmente sites americanos (com servidores nos EUA), que parecem ter mecanismos eficientes para lidar com esse tipo de demanda. Se a pessoa deseja identificar quem foi aquele que disseminou, o procedimento é diferente e necessita do auxílio dos poderes de investigação da justiça. A entrevistada da SaferNet e a Delegada Magali Vaz concordam que, caso o objetivo seja apenas a exclusão do conteúdo, é muito mais fácil lidar com imagens que são compartilhadas em sites da web; no caso de disseminação por aplicativos, o acompanhamento é mais difícil. A polícia usualmente vai precisar localizar o telefone da pessoa que foi responsável pelo compartilhamento inicial, mas é complexo controlar e saber quantas pessoas já tiveram acesso àquele conteúdo.

2.10. NOTAS SOBRE A PRODUÇÃO DO CONJUNTO DE PROVAS Dentro do problema de acesso à justiça, também encontramos o problema de produção de provas. A Defensora Thais Nader afirma que é uma situação bastante delicada, pois, em casos como esse, a palavra da vítima nem sempre é suficiente, o que não ocorre em outros tipos de crime – ela dá exemplo do furto e do roubo, crimes patrimoniais, no qual basta a palavra da vítima para o acusado ser indiciado. Por essa razão, durante o atendimento na Defensoria, a vítima é orientada a guardar certos tipos de informação para que elas possam já integrar o processo. A delegada Magali Vaz afirma que é muito comum que a vítima, impulsionada pela vergonha, não guarde as evidências necessárias para processar um possível autor – a vítima acaba apagando arquivos, mensagens, printscreens, o que faz com que seja mais

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difícil prosseguir com a investigação. No caso de menores de idade, a família também pode se opor a eventualmente entregar o aparelho celular à polícia, o que às vezes é necessário para que eles possam ter acesso à lista de contatos da pessoa. Uma informação relevante, trazida tanto pela entrevistada Juliana Cunha da SaferNet quanto pela delegada Magali Vaz, é que, ao contrário do que se poderia supor, na grande maioria dos casos de “revenge porn”, a vítima saberia quem foi a pessoa responsável pelo vazamento dos vídeos, ou sabe pelo menos para quem mandou. Assim, provas periciais mais complexas podem ser também desnecessárias. Um avanço importante foi a otimização dos Boletins de Ocorrência como prova. A partir da iniciativa do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica (GEVID), foi publicada a Recomendação DGP-04, de 06-10-2015, que recomenda diretrizes para uniformização e aperfeiçoamento do atendimento de ocorrências policiais que envolvem violência doméstica tanto na Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher (DDM), quanto em demais Unidades Policiais. Entre as medidas, está a orientação de: 6 - No caso da existência de histórico reincidente de vítima e/ou autoria, consignar esta situação no momento do registro do fato, bem como providenciar a juntada dos correspondentes boletins de ocorrência no respectivo procedimento investigatório criminal. Ou seja, já no atendimento na delegacia, caso a mulher ou o agressor tenham mais Boletins de Ocorrência (B.O), eles deveram ser juntados pelo/a delegado/a e isso será utilizado durante a investigação. Por exemplo, se a vítima já tiver registrado mais de um B.O contra algum agressor, isso será juntado e levado em conta durante o processo investigatório e julgamento – o fato de um agressor já ter sido mencionado em vários Boletins de Ocorrência dá mais consistência para que possam traçar seu perfil. Teríamos, dessa forma, uma otimização do Boletim de Ocorrência. Uma questão que frequentemente se levanta, em se tratando de crimes ocorridos pela Internet, é a da admissibilidade de printscreens como prova. A promotora Silvia Chakian do GEVID afirma que o ideal é que a vítima faça um registro do print de uma conversa ou qualquer outro conteúdo que foi divulgado na internet por meio de uma ata notarial78, para que a prova ganhe em legitimidade. Costuma-se afirmar que juízes são refratários a meros printscreens, pela facilidade de falsificação. Essa discussão não apareceu, no entanto, em nenhum dos casos judiciais que analisamos; além disso, entrevistadas como a advogada Gisele Truzzi afirmaram que os juízes têm aceito os prints, sem exigir a ata notarial. No caso de suspeita de fraude, um perito poderia ser nomeado para sanar a dúvida. É evidente que a ata notarial, que nada mais é que o print feito em cartório, por agente do

Documento que pode ser lavrado pela vítima em qualquer Cartório de Notas e que possui validade jurídica – sua validade e autenticidade, portanto, não pode ser contestada em processos judiciais. 78

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Estado, dando então fé pública ao documento, garante segurança ao processo e à vítima; entretanto, a ata notarial é cara, e poderia inviabilizar o procedimento, a depender do perfil socioeconômico da vítima.

2.11. ADENDO:O ENFRENTAMENTO FORA DA LINGUAGEM DO DIREITO O caráter de gênero da violência que atinge pessoas que tiveram sua intimidade exposta pela disseminação não consensual de conteúdo pessoal também é percebida com clareza pelos profissionais que entrevistamos, e que atuam no sistema de Justiça. No entanto, como pontuamos, a preocupação com a violência de gênero que se traduz em um fenômeno coletivo não é encontrada nos acórdãos – os desembargadores tratam apenas do problema de forma individualizada, sem que apareçam considerações de se tratar de algo reiterado ou que atinge a diversas mulheres, e menos ainda das diferenciações decorrentes de normativas de gênero. Para as advogadas, promotoras e defensoras públicas entrevistadas, é necessário investir um olhar em relação ao marcador de gênero, ou seja, reconhecer que há um problema coletivo, relacionado ao gênero e às formas de controle da sexualidade feminina, que pode favorecer a produção de violência nas relações. Elas também ressaltam a importância de empatia, ou o papel da sororidade entre vítima e a operadora do direito (mulher). A situação resultante do processo de disseminação não consensual de imagens íntimas permite auferir, por parte das profissionais do sistema de Justiça, que todas estão vulneráveis e passíveis de se tornar vítimas. Nas palavras de Gisele Truzzi: Tem um desgaste emocional muito grande por parte da vítima e tem um envolvimento emocional nosso com o caso. Por mais que a gente tente separar, eu ainda não consigo; eu ainda me coloco muito no lugar das minhas clientes, me envolvo a ponto de chorar junto com elas em reunião, de às vezes não conseguir dormir direito porque eu sempre parto do princípio que todos nós somos vítimas em potencial do “revenge porn”. Os entrevistados e as entrevistadas apontam, ainda, dificuldades comuns a situações de exposição de intimidade ou privacidade que costumam aparecer mesmo antes da judicialização. O agressor, que nem sempre corresponde ao imaginário popular do “maníaco do parque”, pode ser alguém próximo ou mesmo do convívio familiar ou social. Essa impressão se confirma pelo fato de que, na pesquisa jurisprudencial, em pelo menos 40% das decisões as vítimas tinham algum tipo de relação afetiva com seu agressor. Nessas situações, o trabalho de advogados/as, promotores/as e defensores/as, muitas vezes, ultrapassa o âmbito da representação jurídica e atinge processos de revitimização

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e conscientização em uma relação com a vítima que, no mais das vezes, opera em meio à confiança e ao segredo. É neste sentido que salienta a promotora Silvia Chakian: Vocês podem imaginar que, se é difícil o discurso de conscientização das mulheres no sentido da importância de sair de um ciclo de violência, imagina o discurso para uma mãe denunciar o próprio filho, ou colocá-lo para fora de casa. É muito... É uma outra realidade. Se, por um lado, o trabalho de agentes públicos e advogados muitas vezes precisa dar conta de outras necessidades da vítima que não apenas jurídicas, por outro, suas atuações precisam existir meio a um sistema que ainda, na opinião de alguns profissionais, não prevê suporte normativo e institucional para essas situações. No caso do Ministério Público, por exemplo, o amparo do Estado precisa ser encarado em uma relação em cadeia, o que faz com que o trabalho da Promotoria, muitas vezes, não se restrinja às atribuições do MP. Assim explica a mesma promotora: Essa é a expectativa da sociedade, encontrar no Ministério Público um amparo, um canal de proteção e muitas vezes essa é a única porta que essas mulheres encontram. Já bateram na Delegacia, já foram mal atendidas, já foram para o serviço de saúde e não foram compreendidas, então quando chega no Ministério Público muitas vezes essas mulheres já estão desacreditadas do sistema de Justiça. Mas não se muda, não se enfrenta, em verdade, um problema que é cultural e cujas raízes estão nas causas sociais desse problema que é atrelado ao machismo, a uma sociedade ainda patriarcal, só trabalhando no âmbito individual. A dificuldade em lidar com aspectos emocionais e psicológicos do problema é relatada também em relação às delegacias de polícia, que são, em muitos casos, o primeiro contato da vítima com o sistema de Justiça. A delegada Magali Vaz, entrevistada por nós, relata as dificuldades decorrentes de uma grande demanda e severa limitação de estrutura, o que faz, em sua opinião, com que não se consiga oferecer um maior apoio psicológico, visto que, muitas vezes a vítima quer conversar mais sobre o ocorrido de forma mais ampla, sem se ater aos aspectos legais. Dessa forma, por mais que haja um atendimento efetivo do ponto de vista legal, a vítima pode, ainda, considerar-se “culpada” pela violência, ou “envergonhada”, ao mesmo tempo em que o agressor ou a família da vítima podem não enxergar a gravidade dos atos79. A necessidade de incorporar demandas que extrapolam as competências de órgãos como a Nas decisões judiciais que lemos, há relatos de casos nos quais os autores que fizeram ameaças graves afirmam que, na verdade, o ocorrido foi apenas um “descontrole emocional”, ou atos que fizeram “de cabeça quente” – ou seja, tentam desqualificar o sofrimento da vítima e tirar a gravidade de sua agressão. Isso, somado à culpabilização da mulher que sofre a violência, torna o processo de desconstrução dessas noções sociais muito difícil. 79

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Defensoria Pública e o Ministério Público, em algumas situações, tem resultado em ações na proliferação de projetos atrelados às instituições judiciárias. Assim, por exemplo, a fim de incentivar as mulheres a identificar situações de violência o Ministério Público, e especificamente o Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica (GEVID)80, tem atuado em parceria com Agentes Comunitários de Saúde, por meio do Projeto “Prevenção da Violência Doméstica com a Estratégia de Saúde da Família”. De acordo com sua idealizadora, a promotora Fabíola Sucasas (também por nós entrevistada), o projeto, a princípio implementado na Cidade Tiradentes, buscou capacitar agentes comunitárias de saúde a desenvolver ações visando o combate à violência doméstica. Tais trabalhadoras são estratégicas do ponto de vista do alcance de mulheres em situação de vulnerabilidade, uma vez que, como afirma a promotora, se mostram como uma das poucas faces do Estado em regiões periféricas; na implementação do projeto, elas distribuíram cartilhas informativas sobre a Lei Maria da Penha nas próprias casas de mulheres atendidas pelo serviço de saúde, e, eventualmente, deram orientações a mulheres vítimas sobre instituições governamentais – principalmente judiciárias – às quais recorrer81. Também realizado pelo MP, com um enfoque diverso, o Projeto Acolher objetiva trabalhar com as consequências e externalidades que marcam as violências, as vítimas e os agressores. No âmbito dessa política, as mulheres residentes da região central da capital paulista que já registraram algum boletim de ocorrência ou que relatam algum episódio de violência são convidadas a participar das reuniões de orientação no Fórum da Barra Funda feita pelo Ministério Público. Trata-se, em suma, de um trabalho centrado em orientação jurídica especializada, contando também com os serviços do setor técnico do escritório do MP na capital, que se estendem a serviços de assistência social e acompanhamento psicossocial. De acordo com a promotora Silvia Chakian: Então a grande maioria das mulheres que chegam aqui, elas querem uma ajuda, elas não querem ficar longe do parceiro, elas querem ficar longe da violência. Então o discurso é “Dra. eu preciso de uma ajuda para que ele pare de me agredir”, que ele pare de me humilhar, de me ameaçar, mas eu gosto dele, eu quero ficar com ele. É isso que a gente tem que trabalhar. Outras redes de comunicação e acolhimento aparecem neste contexto não só para suprir demandas de vítimas, mas para servir como apoio às instituições públicas e aos advogados.

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Núcleo Leste 2, que abrange as regiões de Itaquera e São Miguel Paulista.

Material institucional sobre a política pode ser conferido no documentário “Enfrentamento da Violência Doméstica pela Estratégia de Saúde da Família”,disponível em: 81

https://www.youtube.com/watch?v=QSQekx-xY-8&feature=youtu.be

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Esse é o caso do serviço de Helpline da organização não governamental SaferNet, que funciona como uma intervenção pontual, mas que pode servir de porta de entrada ao atendimento policial e judicial. A SaferNet, de acordo com a entrevistada Juliana Cunha, é um projeto piloto, com intuito de se tornar serviço público, que opera com diferentes funções:de um lado, oferece uma central de denúncias para violação de direitos humanos (racismo, homofobia, pedofilia, xenofobia); de outro, atendimento psicológico não necessariamente orientado à resolução jurídica da questão, mas que sempre envolve informar a vítima das possibilidades existentes (o Helpline). A SaferNet conta atualmente com planos de cooperação firmados com o MP, Disque 100, e Conselhos Tutelares. Do lado da Central de Denúncias, a SaferNet encaminha os casos para a Polícia Federal, procedendo, inclusive, com notificação no exterior em situações que envolvam conteúdo íntimo hospedado fora do país. As denúncias são processadas de forma anônima, embora caiba às vitimas fornecer os links das páginas que contenham o material exposto. Ao se tratar de crime de aliciamento, a SaferNet pede autorização para que as vítimas informem os dados, para repassar à Polícia Federal. De acordo com Juliana Cunha, o serviço Helpline acaba por funcionar como uma porta de entrada para a rede de proteção; a percepção, no entanto, é que muitas das pessoas buscam o serviço na falta de redes de apoio, e não darão a denúncia ou darão encaminhamento de forma privada. Uma das razões apontadas é que há casos em que a vítima menor de idade não deseja que os pais tomem conhecimento da violência e, portanto, não dão os encaminhamentos. Iniciativas como essas indicam possibilidades de atuação de instâncias jurídicas que demonstram criatividade no desenho institucional das políticas de combate à violência contra a mulher: os projetos levam em consideração os desafios do fenômeno. O engajamento de promotoras e psicóloga de organização não governamental em tais políticas joga luz em novas abordagens de enfrentamento da violência que parecem relevantes de serem conhecidas, estudadas e mapeadas por diferentes atores/atrizes envolvidos com a questão. *** Para além da atuação fora da linguagem do direito mas que mantém uma relação ao sistema de Justiça, cabe pontuar, também, que o enfrentamento da NCII tem sido feito por uma série de iniciativas da sociedade civil que, por não lidarem diretamente com estratégias jurídicas, não entraram no nosso âmbito de investigação. Por serem estratégias de conscientização e ação direta, elas estão mais ligadas ao espírito de mudança cultural e educação, que discutiremos na Quinta Parte deste livro. É o caso das campanhas de contra-comunicação, que consistem principalmente em mobilizações online para reverter as consequências que a NCII tem na vida das vítimas, feitas seja pela própria vítima, que assume uma militância no sentido de minimizar a gravidade da publicização de

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imagens, via valorização da liberdade sexual da mulher, seja por indivíduos e coletivos que assumem uma posição de apoio – um exemplo foi a campanha #SomosTodasFran, que mencionamos na introdução. Uma outra espécie de iniciativa de enfrentamento do tema são as cartilhas de segurança nas comunicações focadas na troca de conteúdos sexuais, que têm como objetivo declarado reverter o discurso de proibição que acaba por circundar a prática, substituindo-o por outro de aceitação, mas com precauções – focando em privacidade e autonomia. Um importante exemplo é a cartilha SaferNudes, elaborada pela organização brasileira Coding Rights82. Uma discussão mais aprofundada sobre essas estratégias ficará para outra oportunidade.

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http://www.codingrights.org/pt/manda-nudes/.

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TERCEIRA PARTE

OS PROCESSOS JUDICIAIS CONTRA PROVEDORES

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3. O MARCO CIVIL DA INTERNET E DECISÕES ENVOLVENDO PROVEDORES DE APLICAÇÕES DE INTERNET A preocupação com a pornografia em geral, e tentativa de coibir violações sexuais na Internet em particular, sempre andaram lado a lado com propostas polêmicas de regulação da Internet. Isso não é nenhum privilégio do Brasil. Esse tipo de preocupação esteve ligado, mundialmente, a iniciativas regulatórias baseados em uma concepção da Internet exclusivamente como um lugar de riscos e perigos especiais. A exploração sexual de crianças, num ambiente em que a cópia de arquivos é ilimitada tanto economicamente quanto por fronteiras nacionais, tem lugar privilegiado dentre essas preocupações. De fato, a única previsão relacionada a conteúdos na Convenção de Cibercrimes de 2001 (Convenção de Budapeste) – da qual o Brasil não é signatário – é a criminalização da “pornografia infantil”. Se a exploração sexual de crianças e adolescentes é entendida, de uma forma geral, como algo a se combater (embora se divirja quanto a métodos), mais complexas foram as disputas em torno da pornografia em geral. O discurso público sobre a pornografia tende a não diferenciar entre conteúdos que são ilícitos para adultos, como pornografia infantil e mesmo a NCII, e material sexual não considerado ilegal para adultos, mas que pode ser sensível para crianças e adolescentes. O agravante é que, ao contrário do mundo físico, separar acesso a espaços por idade, na Internet, não é tarefa simples. A regulação ou tentativa de regulação da nudez e da pornografia na Internet tem esbarrado, sempre que surge, em preocupações relativas à defesa da liberdade da expressão na Internet. Ainda em 1995, a revista norte-americana Time publicou uma história de capa sobre “Cyberporn” que é entendida em geral como o que desencadeou o

Communication Decency Act (CDA) daquele país, aprovado em 1996. Naquele momento, a pornografia online (em geral) tornou-se propriamente um pânico moral (COHEN, 2005)83. Embora tenha sido substancialmente modificada após questionamento constitucional, a primeira proposta do CDA foi considerada tão ultrajante pelos defensores de liberdades na Internet que foi em resposta a essa legislação que John Perry Barlow publicou sua

De acordo com o sociólogo Stanley Cohen, o pânico moral é caracterizado por uma ausência de congruência entre ação e reação, objetos sociais e sua interpretação – embora a desproporcionalidade seja um tema difícil, dado que toda medida é socialmente construída. É também um pânico moral uma reação que exagere determinados fatos ou negue, ou ainda diminua, outros que sejam significativos (COHEN, 2005:xxii). Admitir que um assunto tornou-se um pânico moral, ainda segundo Cohen, não é implicar que esse assunto é desimportante, ou ainda fantasioso; significa apenas que o discurso em torno desse tema envolve exagero, em si ou em relação a outros problemas, mas também que o assunto envolve valores caros a uma comunidade, e que são objetos de preocupação, ansiedades e hostilidade (COHEN, 2005:viii, xxvii). 83

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famosa Declaration on the Independence of Cyberspace84. É que o CDA criminalizava quem disponibilizasse online conteúdo obsceno que pudesse ser acessado por menores de 18. Na prática, pela dificuldade de controle, isso significaria a abolição de conteúdo considerado obsceno e indecente na Internet, e foi precisamente neste ponto que a Suprema Corte norte-americana mitigou os efeitos da lei, eliminando partes dela (Reno v. ACLU, 1997 – a Internet viraria, com o CDA, o equivalente a uma “children’s reading room”). Em 2008, quando o Reino Unido proibiu a posse do que determinou “pornografia extrema”, defensores de liberdades civis argumentaram que a medida tinha o condão de restringir, na Internet, o que não era proibido no mundo anterior a ela, e que a medida (que também criminalizava, por exemplo, animes, cartoons e imagens feitas por computador) criava uma área nebulosa que poderia proibir uma série de conteúdos que não estariam na zona do ilícito, mas do indesejável (EDWARDS, 2009, p. 23). Também no Brasil a preocupação com pornografia infantil e conteúdo pornográfico de outras sortes tem gerado mudanças legislativas e outras propostas. A reforma do Estatuto da Criança e do Adolescente de 2008 (Lei n. 11.829/08), por exemplo, criminalizou a mera posse de material envolvendo pornografia infantil, reunindo diferentes propostas legislativas (PL 4144/04, PL 4990/05, e PL 546/99, todos da Câmara dos Deputados). E há uma série de outras proposições em torno da mesma preocupação. O PL 2552/11, por exemplo, determina que provedores de Internet devem, ao mostrar conteúdo impróprio, solicitar prova de idade; o PL 384/11 proíbe a publicação de erotismo, pornografia ou obscenidade em qualquer mídia, inclusive a Internet, a não ser em publicações direcionadas especificamente ao público adulto; e o PL 4426/01 propõe a criação de controles de acesso para crianças em redes públicas. Se a busca é por regulação da obscenidade na Internet, encontramos, seguindo Paulo Rená (2010), uma série de propostas, na chamada “pré-história da regulação da Internet no Brasil”, buscando criminalizar a mera publicação de material pornográfico na Internet (como os PLs 4581/98, 3258/97 e 1050/95), e inclusive o PL 84/99, que, depois de apensado a outras proposições, tornou-se o infame Projeto Azeredo. Paulo Rená utiliza a expressão “pré-história legislativa” para se referir a esses projetos que surgiram antes do PL 84/99,

“A Declaração de Barlow era um manifesto pela soberania do ciberespaço como “lar da Mente”, em oposição aos “Governos do Mundo Industrial, esses exaustos gigantes feitos de carne e aço”. O ciberespaço teria uma ética e um código próprios, que não poderiam se submeter a um poder externo, já que estaria fundando o seu próprio Contrato Social. Seu funcionamento seria superior ao das instituições governamentais, pois, no ciberespaço, não haveria lugar para distinções de classe ou de poder econômico ou militar. Além disso, a coação física não seria um meio aplicável a um ambiente incorpóreo. Termina por declarar os indivíduos virtuais imunes a toda regulamentação” (VALENTE, 2013, p. 55).“Vamos criar uma civilização da Mente no Ciberespaço. Que ela seja mais humana e justa que o mundo até agora construído por nossos governos” (BARLOW, 1996). 84

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que mobilizou verdadeiramente a sociedade civil sobre a temática dos crimes e direitos na Internet. Naquele momento, O termo “obscenidades” apresenta um uso retórico estratégico. E as palavras pedofilia, pornografia, erotismo e até pirataria passam a ser termos utilizados de forma quase que indistinta. Esse léxico nutre o discurso do medo, que por sua vez alimenta a mitologia da necessidade e urgência de um forte e ilimitado combate criminal da perversão dos jovens, instrumentalizada pela tecnologia (RENÁ, 2010, p. 53).

O PROJETO AZEREDO O Projeto Azeredo, também conhecido como Projeto de Lei de Crimes Cibernéticos, ou ainda AI-5 Digital, foi o resultado da aglutinação de alguns projetos de lei que tramitavam no Senado, em um substitutivo proposto por Eduardo Azeredo (PMDB/MG), em 2008. O projeto tramitava na Câmara com a numeração 84/99, referência ao PL proposto pelo deputado Luiz Piauhylino (PSDB/PE), que agregava os demais como “apensos” – e que previa a criação de uma série de tipos penais para punir crimes eletrônicos como destruição de dados de programas ou de computadores, acesso indevido a computadores ou redes, difusão de vírus, e veiculação de pornografia sem aviso etário, entre outros. Durante os andamentos, junções e mudanças nas duas casas do Congresso, o Projeto Azeredo foi ficando conhecido por ser veementemente rechaçado por organizações e indivíduos da sociedade civil brasileira, que se preocupavam com o que acreditavam ser uma agenda legislativa que entendia a Internet como um lugar primariamente de crimes. A reação organizada, chamada de #MegaNão, é entendida como o embrião da articulação #MarcoCivilJá, que começou, nos anos seguintes, a disputar a criação de uma lei protetiva de direitos civis na Internet. O Projeto Azeredo foi sendo desnaturado, durante sua tramitação, até que passou como Lei n. 12.735/12, basicamente prevendo delegacias especializadas em crimes cibernéticos. Uma outra lei foi aprovada, um pouco antes, criminalizando a invasão de dispositivos informáticos: a Lei n. 12.373/12, conhecida como Lei Carolina Dieckmann. Quadro IV – O Projeto Azeredo

Até 1999, podemos talvez afirmar que as soluções propostas para lidar com a questão eram, no Brasil, “desajeitadas”: tecnicamente inviáveis, por vezes inocentes, por vezes flagrantemente incompatíveis com a ordem constitucional. Não nos cabe analisar aqui as significativas mudanças que ocorreram após a proposta do Projeto Azeredo (para esse tema, remetemos às dissertações de mestrado de Paulo Rená, 2010, e de Francisco Brito Cruz, 2014); parece-nos significativo que tenha ocorrido uma mudança na forma de encarar a questão da pornografia, infantil ou outras, a partir de 2006. Foi o ano em que a ONG SaferNet começou a adotar uma série de medidas em relação ao Google, então responsável pela rede social Orkut (hoje desativada). O motivo era a

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recusa do Google em dar à polícia e ao Ministério Público informações sobre usuários que estariam envolvidos em redes de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. A SaferNet teria adotado a estratégia de informar a anunciantes do Google que seus anúncios apareciam relacionados a comunidades envolvidas com os crimes em questão, com a finalidade de afetar o valor comercial da empresa(CORREA; SÍVORI; ZILLI, 2012: 2). Com isso, o Google assinou um Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público. Parece-nos que esse momento inaugura uma abordagem do problema focada de maneira mais clara nos provedores de aplicações. Lidar com a pornografia infantil e com outros problemas como o NCII, nosso objeto, passou a se dar a partir de uma dupla estratégia: o foco, de um lado, no agente individual perpetrador do crime (via criminalização de conduta), e, de outro, no provedor de aplicação, por meio da criação de obrigações legais, como a guarda de logs, e modelos de responsabilização, seja pela não remoção de conteúdos infringentes, seja pela não entrega de informações aptas a identificar os perpetradores (nesse caso de forma instrumental, portanto, para a punição individual).

DO TAC GOOGLE X MPF AO MARCO CIVIL DA INTERNET Por Fabiane Midori Sousa Nakagawa Medidas de combate à pornografia infantil no Orkut foram o marco inicial da discussão da responsabilidade de intermediários por conteúdos ilícitos disponibilizados por terceiros em seus sites. Em meados de 2005, um relatório produzido pela ONG SaferNet Brasil, a pedido da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, chamou atenção para o fato de que perfis e comunidades do Orkut – uma rede social então muito popular entre os brasileiros – estariam sendo utilizados na propagação de racismo, outros discursos de ódio contra minorias, e, principalmente, pornografia infantil. O relatório provocou uma explosão no número de denúncias com tal teor ao MPF, através da Procuradoria da República em São Paulo, a ponto de 90% dos casos de difusão de pornografia infantil na Internet investigados à época envolverem o Orkut. Isso levou o MPF a, de um lado, se aproximar da ONG SaferNet, firmando uma parceria para prevenir e combater essas práticas; de outro, entender como necessário ao combate desses crimes que a Justiça Federal ordenasse a quebra de sigilo pelo Google Brasil de comunidades e perfis investigados. O Google Brasil, no entanto, discordava que devesse fornecer tais informações e afirmava que pedidos de informações dessa natureza não deveriam ser endereçados ao Google Brasil, que atuava no país apenas na área de marketing e vendas, mas ao Google Inc.

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(EUA), que gerenciava os servidores que hospedavam os dados relativos ao Orkut. Embora a Justiça brasileira considerasse o Google Brasil solidariamente responsável pelo conteúdo postado no Orkut, o MPF efetivamente passou a dirigir os pedidos em alguns casos ao Google Inc., o qual passou a constituir advogados para atuar nos processos e a prestar informações, mediante decisão judicial. O MPF, porém, afirmando que o Google continuava a descumprir as ordens judiciais porque haveria prestado informações incompletas, ajuizou em 22 de agosto de 2006 uma Ação Civil Pública, exigindo o cumprimento pelo Google de mais de cinquenta decisões judiciais de quebra de sigilo. O juiz da 17ª Vara Federal Cível, em decisão liminar de 30 de agosto de 2006, atendeu ao pedido, aceitando o argumento do MPF de que a posição do Google revelaria “uma política deliberada de não colaborar com as autoridades judiciais brasileiras”. O litígio teve fim com a homologação de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) assinado pelo o Google e o MPF, com a participação da ONG SaferNet. Por meio do TAC, o Google se obrigava, principalmente, (i) a notificar automaticamente todas as ocorrências de pornografia infantil detectadas em perfis e comunidades do Orkut, preservando todos os conteúdos publicados e todos os dados necessários a investigações pelo prazo mínimo de seis meses, e (ii) a fornecê-los ao Ministério Público e à polícia brasileira, mediante autorização judicial; (iii) a retirar conteúdos ilícitos do ar mediante ordem judicial, e (iv) a desenvolver tecnologias de filtragem e implementação de moderação humana para impedir a publicação de fotografias e imagens de pornografia infantil no serviço, além de promover informações a esse respeito. Vale lembrar que, em 2005, o MPF havia estabelecido uma cooperação com a AOL, UOL, Click 21, Terra e IG, além da Abranet (Associação Brasileira dos Provedores de Acesso, Serviços e Informações da Rede Internet), por meio de um Termo de Compromisso, com a intenção de que esses provedores se comprometessem a realizar campanhas para combater conteúdos de pornografia infantil e discriminações, a informar imediatamente ao MPF quando descobrissem que abrigavam conteúdo desse tipo e a armazenar e preservar, pelo prazo mínimo de seis meses, dados de acesso dos usuários responsáveis pela postagem. A diferença fundamental é que o TAC com o Google previa multas no caso de descumprimento. Os dois instrumentos podem ser entendidos como um marco do início do estabelecimento das obrigações dos provedores quanto a conteúdos ilícitos postados por terceiros. Questão que só foi resolvida com o Marco Civil da Internet, em 2014. Quadro V – do TAC Google x MPF ao Marco Civil da Internet

No que diz respeito à responsabilização dos provedores, todas as discussões passaram a se centrar, a partir de 2009, no Marco Civil da Internet. É que, desde o início dos debates na plataforma da consulta pública viabilizada pelo Ministério da Justiça, ficou

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estabelecido que se discutiria um regime de responsabilidade para provedores de conexão e de aplicações de Internet. No entanto, tem-se apontado que, apesar de a pornografia infantil ter sido um catalisador para esses debates (estando no cerne das discussões sobre o Projeto Azeredo, que foram o estopim para as campanhas que levaram à ideia do Marco Civil), não foram estabelecidos diálogos entre as comunidades ativistas feministas/ LGBT/ de proteção da criança e do adolescente e os ativistas defensores de direitos de usuários de Internet. Essa ausência de conversações entre os atores relevantes da sociedade civil mobilizados em torno a políticas da sexualidade explica, pelo menos em parte, a hegemonia do discurso pelas lógicas de proteção contra abuso e moralismo sexual, que lançou mão do dogmatismo religioso e de alianças com outros setores conservadores (CORREA; SÍVORI; ZILLI, 2012: 5). Como apontam os autores, descrições espetaculares e distorcidas sobre o abuso sexual de crianças na rede justificam propostas de controle e vigilância generalizados; a consequência pode ser que pautas legislativas relacionadas a direitos sexuais são recebidas com uma antipatia prévia, e possivelmente resistência, por outros grupos da sociedade civil engajados com temas de direitos digitais, o que acaba por “comprometer os termos em que são discutidos temas da sexualidade”.

3.1. O MARCO CIVIL DA INTERNET, SEXUALIDADE E RESPONSABILIDADE DE INTERMEDIÁRIOS Está inscrita na própria ideia de elaboração do Marco Civil que se trata de uma lei que estabelece direitos, garantias e que pretende uma abordagem civil, e não penal para as questões envolvendo Internet. Assim, a questão da sexualidade entrou no Marco Civil pela via da responsabilidade (civil) das empresas de Internet por conteúdos infringentes – ou seja, na regulação da responsabilidade de intermediários. O tema da responsabilidade de intermediários ganhou momentum com o advento da chamada Web 2.0, como ficou conhecida, de forma um tanto publicitária, a tendência de que plataformas de Internet ganhem valor conforme alimentadas por conteúdos inseridos por usuários. A plataforma Web 2.0 não oferece o conteúdo pronto, como é o caso de um jornal ou revista online: ela oferece a ferramenta para que o conteúdo seja postado, e usuários interajam uns com os outros de diferentes maneiras. Do ponto de vista da persecução a ilícitos, o que se passa a questionar, então, é o papel que essas plataformas têm. Alguns modelos são possíveis: deveriam elas assumir uma função editorial, e, assim, responsabilizar-se por ilícitos cometidos por usuários? Deveriam elas ser isentas por completo de qualquer responsabilidade, de forma que somente aquele que

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inseriu o conteúdo pudesse responder por ele, no caso de ilícito? Ou ainda deveriam existir gatilhos que ativassem a responsabilidade da plataforma em alguns casos, como, por exemplo, o momento em que ela é oficialmente notificada da presença daquele conteúdo alegadamente ilícito? Diferentes modelos têm sido pensados e adotados por diferentes países. Não havia uma regra explícita sobre o tema no Brasil até o advento do Marco Civil, O modelo que saiu vitorioso, após as consultas públicas sobre o anteprojeto de lei e a tramitação do PL no Congresso, foi o que isenta os provedores de aplicações (as plataformas) de responsabilidade até o momento que recebem uma ordem judicial para remoção daquele conteúdo – e serão responsabilizados apenas se não o fizerem85. A vitória, nesse caso, foi das empresas e dos ativistas defensores de direitos digitais, que defendem o modelo por acreditar que ele é mais afeito à defesa da liberdade de expressão dos usuários: o juiz é a autoridade legítima para definir se um conteúdo infringe a legislação e ordenar sua indisponibilização, ficando o provedor responsável pela sua veiculação apenas se não proceder à sua remoção após essa ordem. Os argumentos em favor desse modelo vão na direção de que, quando agentes privados são responsabilizados por conteúdos potencialmente infringentes, eles tendem a bloquear excessivamente, e a consequência é a censura. O modelo brasileiro foi assim celebrado mundialmente por equilibrar os direitos humanos envolvidos na utilização da Internet, embora também tenha recebido críticas, em especial dentro da comunidade jurídica brasileira (BRITO CRUZ, 2014, p. 104-5)86. Assim, a regra geral para provedores de aplicação, positivada no Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965) em 2014, é: Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de Internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário. Mas essa regra geral comporta exceções, oriundas de um processo de negociação. Conforme relata Brito Cruz, após as consultas públicas e durante a negociação da lei no Congresso Nacional, grupos de pressão buscaram modificar o modelo, introduzindo outro que é conhecido por “notificação e retirada” – notice and takedown (BRITO CRUZ, 2014, p. 99). Esse modelo, em geral defendido pela indústria de entretenimento, responsabiliza o Atente-se que o provedor de conexão, ou seja, aquele que “conecta o usuário à Internet”, não é responsabilizado sob nenhuma hipótese: Art. 18. O provedor de conexão à Internet não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros. 85

Um dos debatedores nas consultas públicas do Marco Civil, Marcelo Thompson, argumentava por exemplo que o modelo que saiu vitorioso privilegiaria a liberdade de expressão, em detrimento de outros direitos. 86

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provedor a partir da notificação privada (e não a feita por um juiz), o que facilita a remoção de conteúdos. O relator do projeto na Câmara dos Deputados, Alessandro Molon (então PT-RJ), costurou acordos pela sua aprovação que consistiram na flexibilização da regra, excluindo dela os conteúdos protegidos por direitos autorais, para os quais o procedimento continua em suspenso até a aprovação de regra específica. A pressão teria vindo de atores como Rede Globo, Abert e ABPD (PAPP, 2014, p. 75). No texto final: § 2o A aplicação do disposto neste artigo [refere-se ao artigo 19] para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5o da Constituição Federal. Foi na reta final da tramitação que foi inserida a disposição que mais nos interessa neste trabalho – e também na forma de uma exceção a esse regime geral. Duas adolescentes cometeram suicídio após terem vídeos íntimos espalhados na Internet, isso gerou uma comoção pública, que, de acordo com o relator do projeto (PAPP, 2014, p. 109) resultou na inserção, no Marco Civil, de uma regra dedicada a esses casos: Art. 21. O provedor de aplicações de Internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo. Parágrafo único. A notificação prevista no caput deverá conter, sob pena de nulidade, elementos que permitam a identificação específica do material apontado como violador da intimidade do participante e a verificação da legitimidade para apresentação do pedido. Na redação original dada ao artigo, não existia a condição, para responsabilização após notificação extrajudicial (privada, pela parte interessada), de que o pedido de remoção fosse feito pelo(a) participante na imagem. Isso gerou reações na sociedade civil mobilizada pela aprovação do Marco Civil, que se preocupava com o dispositivo passar a ser utilizado para a remoção de todo e qualquer conteúdo envolvendo nudez na Internet. Seguindo recomendação de entidades civis, antecipada durante um debate na Campus Party, em janeiro de 2014, Molon incluiu no artigo que a notificação do provedor por esse tipo de conteúdo tinha de ser feita exclusivamente “pelo ofendido ou seu representante legal”. O objetivo era evitar, como dizia a carta enviada pelos coletivos, o “patrulhamento” na Internet.

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O texto também passou a especificar que a notificação deveria conter, “sob pena de nulidade, elementos que permitam a identificação específica do material apontado como violador de direitos da vítima e a verificação da legitimidade para apresentação do pedido” (PAPP, 2014, p. 111). O ônus da identificação específica do conteúdo, assim, passava a ser da vítima, e não dos provedores87. Assim, ainda que esse assunto não tenha sido discutido nas consultas públicas prévias à elaboração final do Marco Civil, a lei nascia com uma regra específica de responsabilidade dos provedores de aplicação na Internet para os casos de imagens íntimas não consensuais (NCII), visando a incentivar as plataformas a remover o conteúdo o quanto antes, sem obrigar a vítima a cumprir formalidades, constituir advogado, ou buscar a Justiça. Se esse foi o objetivo declarado na edição da norma, o que é de se questionar é se os efeitos sobre o desenrolar dos casos foram sentidos. Em concreto, se a regra fez com que os provedores de aplicações se tornassem mais céleres na remoção dos conteúdos de nudez não consentida pelos participantes. Responder a essa pergunta não é simples. Aprovado em 2013, ainda não decorreu tempo suficiente para se verificar, por meio da comparação de decisões judiciais pré e pósMarco Civil, a diferença no padrão. Isso é agravado se, como decidimos fazer na nossa pesquisa, observamos apenas decisões de segunda instância, dado que leva tempo para que as decisões sejam revisadas. Mas, para além disso, há uma dificuldade metodológica: a verdade é que a exceção prevista no Marco Civil no regime geral de responsabilidade de intermediários estará funcionando tanto melhor quanto menos casos chegarem ao Judiciário. É que o baixo número ou a ausência de casos poderia significar que os provedores de aplicações estão removendo os conteúdos mediante notificação, no prazo previsto na norma, ou ainda num prazo considerado razoável pelas pessoas afetadas. Mais uma vez, buscamos suprir essas deficiências com entrevistas; neste caso, reuniões, análise de termos de uso e observação de desenrolar de casos também nos auxiliam.

3.2. AS DECISÕES JUDICIAIS SOBRE RESPONSABILIDADE DE PROVEDORESPRÉ E PÓS - MARCO CIVIL Como indicamos atrás, das 90decisões judiciais do Tribunal de Justiça de São Paulo analisadas nesta pesquisa, 54 eram casos cíveis, e, desses 54, 38 eram processos que se referiam a provedores de aplicações.

Agradecemos a Maike Wile dos Santos pela observação sobre a decisão ser, em última instância, uma decisão sobre divisão de ônus. 87

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Gráfico 13: Réus recorrentes nos 38 casos contra provedores

Google Facebook

23 2 3

Globo Micorsoft

2

NET

2

Outros

6

Desse universo, a Google Brasil Internet Ltda. é quem mais figura nos processos, dentre os provedores. Em 15 deles, recorre sozinha contra a decisão de primeira instância; em dois, Google e a vítima recorrem; em um deles, recorre com a Microsoft Internet Ltda. Há ainda uma decisão de agravo de instrumento interposto pelo YouTube, em 2012, quando a empresa já havia sido comprada pelo Google, e embargos declaratórios do YouTube em conjunto com o IG, de 2008. Ou seja, o Google aparece como a parte que recorre em 20 das 38 decisões envolvendo provedores que analisamos. A empresa também é parte em outras 3 decisões, casos em que a outra parte recorreu. Ou seja, do universo de 38 decisões analisadas, 23(mais da metade) envolvem o Google. Há 2 decisões em recursos movidos pelo Facebook, que também aparece como parte (recorrida) em mais um recurso, movido por uma vítima. A Globo Comunicações e Participações (G.C.P.) é recorrente em 3 casos, e a Microsoft Informática Ltda. recorre em dois casos (além do já mencionado caso em que recorre em conjunto com o Google). Vale mencionar que um provedor de conexão, a NET Serviços de Comunicação Ltda., é recorrente duas vezes; em uma delas, em conjunto com um provedor de hospedagem (Metaweb Internet); outro provedor de hospedagem (Blink Informática) surge como recorrente em uma apelação. Em três casos, a parte recorrente é a vítima, fora outros dois em que a vítima recorre e o Google também. Os recursos foram, portanto, majoritariamente movidos por empresas provedoras de aplicações de Internet. Foram recursos de espécies bastante diferentes – majoritariamente agravos de instrumento (18, no caso de empresas), 8 apelações e 8 embargos de

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PARTES RECORRENTES, NAS DECISÕES CONTRA PROVEDORES Vítimas

3

Vítima, em conjunto com provedor de aplicações

2

Ministério Público Estadual

1

Provedores de conexão

2

Provedores de aplicações e de hospedagem

30

TOTAL

38 Quadro VI: Partes recorrentes, nas decisões contra provedores

declaração88; nos diferentes instrumentos, as empresas pediam: (i) anulação da tutela antecipada concedida em primeira instância; (ii) concessão de efeito suspensivo ou nulidade da decisão de primeira instância; (iii) extinção de multa. Os quatro recursos interpostos pelas vítimas, por sua vez, relacionam-se a duas questões: (i) remoção do conteúdo, e (ii) determinação de indenização. A desproporção no caráter dos recorrentes, com empresas provedoras de aplicações representando a grande maioria dos casos (30, no total), pode indicar para algumas conclusões diferentes. Se é possível pensar na hipótese de que poder econômico favorece estratégias jurídicas mais agressivas, ao mesmo tempo, outras conclusões que tiramos da leitura das decisões parecem apontar para a possibilidade de que, em primeira instância, as decisões em casos envolvendo nudez online e provedores de Internet têm sido favoráveis àquela parte que ingressa em juízo com um pedido de remoção e/ou indenização. Apresentamos alguns dados quantitativos e informações gerais sobre as decisões que reforçam essa hipótese:

A) DECISÕES EM QUE O PEDIDO NÃO FOI ACEITO Em 24 decisões (do total de 38), os desembargadores mantiveram os resultados de primeira instância, negando por completo, portanto, os pedidos feitos pelas partes que 88

Para informações sobre o que significam esses recursos, ver Quadro I: sistematização dos tipos de recursos.

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recorriam. 23 desses casos foram recursos (negados) de provedores, e somente um foi de vítima. São casos relativos a (i) obrigação de remoção de conteúdo; (ii) necessidade ou não de apresentação da URL do conteúdo alegado infringente; (iii) identificação de IP de autores de postagens; (iv) fornecimento de dados cadastrais de contas de e-mail; (v) desindexação dos mecanismos de busca; (vi) pagamento de indenizações por danos morais; (vii)e pagamento de honorários periciais. Gráfico 14: Das 38 decisões em que os provedores são réus

14 casos

24 casos

Casos em que a decisão foi mantida

Casos de reforma da decisão

1. Desses 24 casos, somente uma era um recurso exclusivamente da vítima, que se insurgia contra a decisão de cassação de liminar que tinha obtido para remoção de conteúdo, por não ter oferecido as URLs das imagens que queria removidas – ou seja, a decisão de agora, um Agravo Regimental, confirmou que, para remoção, a vítima deveria ter fornecido as URLs89. Num outro caso, a vítima opôs embargos de declaração contra um acórdão, e a outra parte, o Google, também o fez; a vítima desejava esclarecimentos sobre o valor da indenização (se incluía ou não a multa)90. 2. Em quatro dos 24 recursos que confirmavam as decisões anteriores, a questão girava em torno de os provedores alegarem impossibilidade de cumprimento da obrigação imposta, porque seus servidores estariam em outro país, sob jurisdição de empresas diferentes (embora do mesmo grupo, em diferentes condições de participação). Esse tipo de argumento não encontrou acolhida em nenhum dos casos91. 89

Agravo de Instrumento n. 20150000615714,9ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 18/12/2013.

90

Embargo de declaração n. 20110000310877, 4ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 1/12/2011.

Apelação n. 02613716, 8ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 22/09/2009; Agravo de Instrumento n. 03327719, 10ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 23/11/2010; Agravo de Instrumento n. 91

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3. Em 11 deles, manteve-se a multa acessória fixada anteriormente a fim de garantir obrigação de fazer, nos valores de R$ 10.000,00 diários (em 5 deles)92, em R$ 10.000 total para cada uma das duas rés (em duas decisões referindo-se ao mesmo caso)93, e em R$ 1.000,00 (em três casos)94, e um caso em que o valor não é especificado95. Há um caso que foge muito à regra, em que foi imposta (e confirmada em segunda instância ) multa diária de R$ 250.000,00 pelo descumprimento – o conhecido caso Cicarelli96.

B) DECISÕES DE ACOLHIMENTO (PARCIAL OU INTEGRAL) DO PEDIDO Foram 14 os casos em que, em segunda instância, houve reforma da decisão da primeira instância. Em dois deles, a recorrente era a vítima; em outro, vítima e o Google recorreram. 1. Em sete desses casos, a decisão anterior foi reformada no sentido de condicionar a remoção ou desindexação de conteúdo de resultados de buscas à indicação precisa da URL onde estariam os conteúdos infringentes. Ou seja, eram casos em que a decisão anterior havia determinado a remoção dos conteúdos, mas agora se determinava que isso só seria feito com a localização precisa. Pela importância e volume desse tema, reservamos uma discussão só para ele, abaixo. 2. Em duas apelações, determinou-se que a indenização por danos morais estipulada contra o Google em primeira instância, nos dois casos no valor de R$ 5.000,00, deveria ser revista, já que a plataforma teria removido o conteúdo 20130000130477,3ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 12/03/2013(os três da Microsoft); Agravo de Instrumento n. 2994911, 8ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 12/05/2010 (Yahoo). 92 Embargos de Declaração n. 20140000220285, 4ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 10/04/2014; Embargos de Declaração n. 20140000275847, 4ª Câmara de Direito Privado, TJ/ SP, 08/05/2014;Agravo de Instrumento n. 20140000137193, 4ª Câmara de Direito Privado, TJ/ SP, 13/03/2014; Agravo de Instrumento n. 20140000076825, 4ª Câmara de Direito Privado, TJ/ SP, 13/02/2014;Agravo de Instrumento n.20130000794199,8ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 18/12/2013.

Apelação n.20140000106983, 1ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 25/02/2014; e Embargos de Declaração n.20140000377033, 1ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 24/06/2014.

93

Agravo de Instrumento n.20120000539988, 4ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 11/10/2012; Agravo de Instrumento n. 20120000632557, 3ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 27/11/2012; Agravo de Instrumento n. 20130000130477, 8ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 12/03/2013 (os dois últimos referem-se ao mesmo caso, mas são agravos interpostos por empresas diferentes). 94

95

Embargos de Declaração n. 03814303, 2ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 26/06/2012.

96

Embargos de Declaração n. 02025775, 4ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 25/09/2008.

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infringente mediante intimação judicial – era o caso de um vereador que teve vídeos íntimos publicados no YouTube, de um lado, e o de uma mulher com imagem utilizada no Orkut, de outro97. Em um terceiro caso, ficou determinado que a indenização por danos morais de R$ 20.000 imposta ao provedor de hospedagem não teria lugar, porque ele não fora notificado antes do processo judicial98. Também tratamos desses casos abaixo, junto com uma discussão sobre como o Tribunal vem entendendo a responsabilidade dos provedores nesses casos. 3. Em outros dois casos, o Tribunal decidiu pela diminuição do valor estipulado em primeira instância. Em um deles, o caso envolvendo vazamento de vídeo intimo de modelo (caso Cicarelli), a multa diária estabelecida em R$ 250.000,00 em muito destoava dos valores comumente determinados nesses casos (como vimos anteriormente, R$ 10.000,00 diários) – e, no caso em questão, ficou estabelecido somente que “o recurso é parcialmente provido, apenas e tão somente para determinar a aferição do valor da multa cominatória mediante a liquidação por arbitramento”, ou seja, sem definição de novo valor99; Em caso também envolvendo uma modelo, o valor de R$100.000 em primeira instância fora reduzido para R$ 5.000 (multa diária)100. 4. Há um caso de recurso das vítimas que resultou em revisão da posição de primeira instância no sentido de obrigar YouTube, IG e Globo a remover conteúdos (caso Cicarelli)101. Tanto os casos em que se mantém a decisão anterior, no recurso, quanto os casos em que a nova decisão altera a anterior indicam a imensa proeminência de decisões favoráveis ao autor inicial da ação, que inevitavelmente, no nosso recorte, é a pessoa que se sentiu lesada pela exposição de sua imagem (com a exceção do caso envolvendo o Ministério Público, que tratava da proibição do aplicativo Secret)102. No total, nos cinco casos em que é a vítima a fazer um pedido em recurso (ver Quadro VI, atrás), houve: (a) um caso em que a vítima pediu (e lhe foi concedida) indenização por danos morais, embora tivesse conseguido a remoção do conteúdo em primeira

97 Apelação n. 20140000531106, 6ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 28/08/2014; Apelação n. 20140000335189, 9ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 3/06/2014. 98

Apelação n.20130000777773, 4ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 12/12/2013.

99

Agravo de Instrumento n.03839760, 4ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 27/09/2012.

100

Agravo de Instrumento n.20120000162554, 2ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 17/04/2012.

101

Apelação Cível n.1814199, 4ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 12/05/2008.

102

Aplicativo que permitia a publicação de segredos pelos usuários sem revelar suas identidades.

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instância103; (b) um caso em que a vítima não teria apontado os conteúdos ilícitos104; (c) uma pretensão de esclarecimento de valores indenizatórios obtidos105; (d) um outro caso em que a vítima queria majoração da indenização obtida do Google106. (e) Em um único caso houve verdadeiramente uma virada em favor da vítima, e foi a apelação envolvendo o caso Cicarelli107. Esse universo mostra que os diferentes pedidos formulados – remoção de conteúdos, identificação de usuários sobre os quais recai suspeita do ilícito, indenização – têm sido resolvidos, em primeira instância, ao menos parcialmente em favor da vítima, o que é uma resposta parcial para entendermos por que grande parte dos recursos vêm dos provedores de aplicação. Na próxima seção, aprofundamos nos pontos que mais se destacam numa observação geral das decisões envolvendo provedores no Tribunal de Justiça de São Paulo.

3.3. A NECESSIDADE ( OU NÃO ) DE INDICAÇÃO DA LOCALIZAÇÃO ESPECÍFICA DO CONTEÚDO ( URL ) E O IMPACTO DO MARCO CIVIL DA INTERNET Mencionamos atrás que o regime de responsabilização de intermediários de Internet por conteúdos infringentes foi estabelecido pela interpretação conjunta dos artigos 19 e 21 do Marco Civil da Internet. O Marco Civil foi sancionado pela presidenta Dilma Rousseff no dia 23 de abril de 2014, e entrou em vigor 60 dias depois (art. 32), ou seja, no dia 22 de junho de 2014. Antes disso, vinha sendo desenvolvida certa uniformização, na jurisprudência brasileira, a respeito da responsabilidade dos provedores de Internet e dos requisitos para sua responsabilização – como a necessidade ou não de indicação, numa notificação, do lugar preciso onde se encontra um conteúdo. Pouco importa, para nossos fins, a análise geral dessa jurisprudência, dado que o Marco Civil tende a uniformizar os entendimentos. O que faremos é observar o nosso corpus de decisões, ou seja, as decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo sobre nudez ou sexualidade não consentida na Internet, e verificar os padrões existentes. A identificação exata de um conteúdo que se deseja remover por ilicitude parece uma 103

Apelação n. 20130000167613, 7ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 20/03/2013.

104

Agravo Regimental n. 20150000615714, 9ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 25/08/2015.

105

Embargo de Declaração n. 20110000310877, 4ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 1/12/2011.

106

Apelação n. 20130000777773, 4ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 12/12/2013.

107

Apelação Cível n.1814199, 4ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 12/05/2008.

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questão meramente técnica, mas envolve a difícil questão da conjugação dos diferentes direitos e interesses nos usos da Internet. O que está em jogo é qual a extensão do ônus daquele que quer a remoção de algo, e daquele que deve efetivamente realizar a remoção. Assim, se eu quero um conteúdo de nudez não consentido meu removido, para que eu possa contar com as consequências estabelecidas pelo Marco Civil em termos de responsabilização dos intermediários, o que eu preciso indicar? Posso apenas solicitar a “remoção de todas as imagens em que eu apareço” em determinada rede social? Preciso indicar precisamente todos os locais onde a imagem aparece, no serviço de responsabilidade daquele provedor, ficando eventualmente excluídas da remoção imagens que eu não tenha identificado? As empresas provedoras de aplicações insistem constantemente na necessidade de se indicar precisamente onde se encontra algo que se deverá remover – o que tem significado a identificação da URL. De um lado, isso tem relação com seu interesse em trabalhar com mais segurança e menos dispêndio. De outro, a indicação genérica de conteúdos a remover pode levar a remoções de conteúdos lícitos ou a abusos de direito. O pedido de remoção de todo e qualquer conteúdo envolvendo uma determinada pessoa, por exemplo, pode fazer com que sejam removidos também conteúdos não relacionados ao ilícito – existem alguns exemplos nesse sentido dentre as nossas decisões analisadas –, ou ainda de outras pessoas que tenham o mesmo nome, ou mesmo de um comentário sobre o caso de remoção daquele conteúdo, que pudesse servir ao debate entre outras pessoas. O outro lado é que a velocidade de multiplicação das mídias digitais pode fazer com que um pedido de remoção de conteúdos via indicação de URL se torne obsoleto antes mesmo de ser analisado pela empresa ou por um juiz. Indicam-se 10 URLs, o conteúdo já se espalhou por outras 5. As vítimas e suas defensoras queixam-se, frequentemente, do que chamam de um “trabalho infinito” na identificação de novas URLs após as remoções. O Marco Civil trouxe então uma regra aparentemente clara: Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de Internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário. § 1o A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material.

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(...) Art. 21. O provedor de aplicações de Internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo. Parágrafo único. A notificação prevista no caput deverá conter, sob pena de nulidade, elementos que permitam a identificação específica do material apontado como violador da intimidade do participante e a verificação da legitimidade para apresentação do pedido. São sete as decisões, no nosso conjunto, que determinam a necessidade de indicação das URLs (numeraremos de i a vii). A decisão mais antiga que encontramos no TJSP sobre este tema é de 2008, num caso em que foi criado um e-mail para disseminação de fotos da vítima, e um perfil falso com suas imagens no Orkut (i)108. O que a vítima (autora da ação) pretendia, além da eliminação do e-mail, era a remoção de “qualquer forma de comunicação (MSN, Orkut) que contenha o nome da autora”. Já naquele momento, os desembargadores da 9a Câmara de Direito Privado determinaram que a vítima deveria indicar as URLs específicas, receando sobretudo que a pretensão da autora não levaria aos resultados almejados. Com efeito, a decisão impõe à empresa o ônus de rastreamento constante de todas as informações constantes do site “Orkut”, que envolve uma infinidade de páginas, entre perfis de usuários e comunicações entre as pessoas ali cadastradas, o que, pela dificuldade prática, foge a qualquer parâmetro de razoabilidade. A situação difere do pedido direcionado especificamente da indicação de uma determinada página, de endereço (URL) informado precisamente pela agravada, onde eventualmente haja conteúdo ofensivo à sua pessoa, ocasião em que a agravante pode facilmente localizar e remover da Internet o registro da informação. Apenas nesse caso é possível o deferimento da medida. (...) Ressalta-se, ainda, que os documentos de fls. 297/298 não contêm fotos ou alusão ao sobrenome da agravada e, considerando-se que o site tem amplitude mundial e o

108

Agravo de Instrumento n.2077421, 9ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 18/11/2008.

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primeiro nome da agravada não é incomum, não se recomenda provocação do juízo por conta de cada {primeiro nome da autora} no mundo cujo nome se faca acompanhar da expressão “pelada” na Internet, sem que se possa ter certeza de que se trata da mesma pessoa. Assim, a decisão deve ser reformada, para determinar-se que, no que tange à agravante, a retirada de informações da Internet, referentes à pessoa da agravada, dependerá de prévia indicação da localização da página ofensiva, com indicação clara de se tratar da sua pessoa, por meio do fornecimento da URL. Apesar do vanguardismo da decisão de 2008, foi um outro acórdão de 2011109 que serviu como referência para pelo menos outros dois julgados posteriores (que se encontram no nosso conjunto de decisões) (ii)110. Foi um caso sobre inserção sem autorização de ensaio sensual de uma aeromoça em sites de caráter pornográfico indexados pelo Google; na decisão, o desembargador relator Luiz Ambra argumenta pela desvinculação do buscador do Google dos “links” para aqueles conteúdos, pouco importando “que os sites continuem ativos; excluídos do índice que aparelha, sem dúvida sua localização se tornará mais difícil, a pesquisa correspondente deverá ficar a cargo do próprio interessado na localização”. Isso, entretanto, seria condicionado à indicação das URLs. Nos anos seguintes, outras decisões viriam a reafirmar esse entendimento: em 2013, em um caso de apropriação de imagens íntimas de celular extraviado e disseminação dessas imagens íntimas na Internet, o TJ manteve multa do provedor por descumprimento (não desindexação dos resultados de busca), mas condicionou a obrigação de desindexação à apresentação das URLs (iii)111; outra decisão de 2013, por conta de agravo da Globo Comunicações e Participações, serviu para diferenciação entre provedor de pesquisa e de conteúdo, ao determinar que, no caso do de busca se deva indicar as URLs específicas, e no caso do de conteúdo que fique proibida, além disso, a veiculação das imagens em conteúdos de produção própria (iv)112. As decisões seguintes sobre a obrigatoriedade ou não de indicação de URL já foram proferidas após a aprovação do Marco Civil. Uma delas, ocorrida no vacatio legis (período entre a sanção e a entrada em vigor da lei), dizia respeito a um pedido de desindexação

109

Agravo de Instrumento n.3544016, 8ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 18/05/2011.

Apelação n. 20150000599252, 8ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 12/08/2015; Agravo de Instrumento n.20150000289054, 8ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 20/04/2015.

110

111

Agravo de Instrumento n.20130000793651, 8ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 18/12/2013.

112

Agravo de Instrumento n. 20130000794199,8ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 18/12/2013.

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de imagens pornográficas associadas a si por uma advogada (v)113. O acórdão traz decisão de acordo com o Marco Civil, ou seja, pela exigibilidade de URL para remoção (e consequente responsabilização do provedor, no caso de não remoção), mas sem nem ao menos citar a lei recém-aprovada. É que sem adentrar no mérito da possibilidade técnica de criação de filtros, a ordem genérica para a remoção de todo e qualquer conteúdo desabonador traduziria, não só indevido controle prévio dos resultados da busca o que se afigura inadmissível, como exigiria um juízo de valor que certamente não poderia ficar à mercê, seja de um programa de computador, seja da subjetividade de uma eventual equipe técnica da ré. E as duas decisões seguintes, ambas de 2015, determinando a necessidade de apresentação das URLs como condição para remoção de conteúdo, citam o Marco Civil como justificativa. O que é bastante surpreendente é que se tratam de dois casos envolvendo nudez – e, em nenhum deles discute-se o artigo 21, que, em seu parágrafo único, também estabelece a regra de identificação inequívoca de conteúdo, no mesmo modelo do 19, mas que é a norma específica para os casos de que estamos tratando (enquanto o art. 19 é a regra geral para todos os casos). Assim, em um caso, a vítima pediu ao Google a desindexação de links relativos a um vídeo seu fazendo sexo em lugar público (observe-se aqui que se tratava de sexo entre duas pessoas, possivelmente um casal heterossexual), e a decisão obrigou a vítima à indicação das URLs, por conta do art. 19 (vi)114; em outro caso (vii), em agravo regimental, a vítima argumentou que a obrigação de indicar URLs era do Facebook; desembargador relator discordou, porque conforme art. 19, §1o, do Marco Civil da Internet, e vários precedentes deste Tribunal de Justiça, a ordem judicial para exclusão de conteúdo depende da identificação clara e específica do material apontado como infringente, permitindo-se, assim, a sua localização inequívoca pelo provedor115. Mas encontramos, também, decisões que se manifestaram contrárias à necessidade de apresentação das URLs para remoção de conteúdos e/ou responsabilização dos provedores. O tom geral dessas decisões é que não seria adequado exigir a indicação precisa de onde se encontra o conteúdo de nudez ou infringente, porque o provedor tem condições de fazê-lo. A última delas, no entanto, se deu no mês de aprovação do Marco Civil (cerca de 15 dias antes). O fato de não termos encontrado nenhuma decisão nesse sentido após 23 de abril de 2014, apesar de uma incidência relativamente alta de decisões 113

Apelação n.20140000324960, 6ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 29/05/2014.

114

Agravo de Instrumento n. 20150000289054, 8ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 30/04/2015.

115

Agravo Regimental n. 20150000615714, 9ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 25/08/2015.

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sobre provedores a partir desse período, pode ser indicativo de uma uniformização no entendimento sobre a forma de pedir a remoção desses conteúdos. E, aqui, vale reforçar que não é só o aparecimento desse entendimento em processos judiciais que pode indicar sua generalização – na lógica do art. 21, como afirmamos, os casos de remoção de conteúdo que estivessem nessa regra da lei seriam resolvidos sem a necessidade de uma intervenção judicial. Assim, um entendimento uniformizado de que indicação inequívoca do material significa indicação de URL poderia significar que as vítimas estão indicando as URLs, e os provedores estão aceitando tal indicação como o cumprimento do requisito estabelecido por lei; isso levaria a menos casos judiciais envolvendo esse ponto, o da a necessidade de indicação específica. DECISÕES SOBRE NECESSIDADE DE INDICAÇÃO DE URL COMO REQUISITO PARA REMOÇÃO DE CONTEÚDO A favor

Contra

#

Ano

Desembargador

Câmara

#

Ano

Desembargador

Câmara

1

2008

Grava Brazil

9 DPr

1

2012

Fabio Tabosa

2a DPr

2

2011

Luiz Ambra

8a DPr

2

2012

Fabio Tabosa

2a DPr

3

2013

Grava Brazil

8a DPr

3

2013

4

2013

Grava Brazil

8a DPr

4

2014

5

2014

Vito Guglielmi

6a DPr

5

2014

6

2015

Silvério da Silva

8a DPr

6

2014

7

2015

Alexandre Lazzarini

9a DPr

*

2012

Jesus Lofrano

3a DPr

a

Galdino Toledo Junior Carlos Henrique Miguel Trevisan Carlos Henrique Miguel Trevisan Carlos Henrique Miguel Trevisan

9a DPr 4a DPr 4a DPr 4a DPr

Quadro VII: decisões sobre URLs

Observações: (i) as duas decisões de Fabio Tabosa e as três de Carlos Henrique Miguel Trevisan referem-se aos mesmos casos; (ii) a decisão marcada com (*) é uma decisão sobre URLs que não entra propriamente no mérito da necessidade de apresentá-las. De qualquer maneira, encontramos seis decisões pré-Marco Civil em que a obrigatoriedade de indicação das URLs foi afastada, sendo que duas referem-se a um único caso, e outras três a outro caso (em processos distintos, mas envolvendo a mesma situação) – numeraremos de i a vi. Em uma decisão de 2012 (i), a multa aplicável ao Google por conta de fotos de nudez em um blog operado pela empresa é diminuída, e afasta-se a necessidade de indicação de URL, com o argumento de que

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(...) no tocante à pretensa impossibilidade material de cumprimento da decisão, é enganosa a dificuldade relatada pela agravante, valendo-se de argumentação genérica e padronizada e tangenciando a litigância de má-fé. No mais das vezes, reconhece-se que não se pode esperar uma varredura ampla pelo sítio de buscas, em todo o universo da Internet, de modo a localizar referências indesejadas que o particular alegadamente ofendido não identifique com clareza. Mas, no caso dos autos, não há qualquer dificuldade à ré no sentido da localização das páginas passíveis de exclusão. O blog em que postadas as fotos da autora (negrasemulatasdobrasil. blogspot.com) foi devidamente identificado, sem que a agravante negue estar hospedado em seu provedor Blogger. Por outro lado, a localização das fotos tampouco oferece maiores dificuldades, pois, como se vê ao exame do conteúdo reproduzido nos autos, estão elas associadas a página virtual com o título {Nome da Vítima}- Ensaio Vírgula Girl. Basta, pois, que a agravante remova todo o conteúdo dessa página principal116. O argumento é indissociável da percepção de que os provedores estariam dificultando propositadamente o cumprimento de decisões judiciais. Como esse tipo de percepção é recorrente nas decisões envolvendo provedores, separamos um tópico abaixo para discorrer sobre isso. Em uma decisão sobre o mesmo caso (ii), o mesmo desembargador relator, Fabio Tabosa, dois meses depois (junho de 2012), julgando embargos de declaração opostos pelo Google a respeito do agravo de instrumento que citamos acima, reafirma sua posição, declarando que No caso dos autos, foi expressamente declinado no acórdão como sendo enganosa a impossibilidade material do embargante em cumprir a determinação, pois não há dificuldade em localizar as páginas passíveis de exclusão, que contenham as fotos de nudez da embargada, isso porque o Blog, no qual foram postadas as referidas fotos foi perfeitamente identificado117. Em 2013, uma decisão da 9a Câmara de Direito Privado do TJSP aparentemente argumentava em favor da indicação da URL, mas, em nossa opinião, acabou por decidir contra (iii). A autora da ação reclamava pela remoção de fotos íntimas publicadas sem autorização em um blog hospedado no Blogger, do Google (e também pedia a identificação dos usuários). Na decisão, o desembargador relator afirma que não há responsabilidade por conteúdo inserido por terceiros e nem necessidade de prévia censura sobre os 116

Agravo de Instrumento n. 20120000162554, 2ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 17/04/2012.

117

Embargos de declaração n. 03814303, 2ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 26/06/2012.

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conteúdos divulgados, mas que, “por não exercer controle prévio do que é divulgado, havendo nova inserção deve providenciar a agravante para que esta seja excluída nas 24 horas subsequentes, pena de desrespeito a ordem judicial” – ou seja, posteriores inserções do mesmo material deveriam ser controladas pelo provedor. Para além disso, a decisão determinou que a indicação da URL do blog, e não do conteúdo infringente específico, era suficiente para o cumprimento da obrigação de remoção; ou seja, a URL geral da página seria o suficiente (não seria necessário indicar os conteúdos infringentes especificamente). Não se verifica, ademais, in casu, qualquer dificuldade à ré em cumprir o pedido de exclusão das fotos referidas, posto que o blog em que postadas (barracodaputaria.blogpost.com.br) foi devidamente identificado, inclusive com indicação do responsável pelo envio do link, o qual a agravante não nega estar hospedado no serviço por ela mantido118. Em 2014, três decisões relativas a um caso envolvendo uma mesma vítima e diferentes provedores trouxeram também a posição de que a indicação de links não seria absolutamente necessária. Tratou-se de um caso de “empresária de renome, pertencente a uma família de artistas”, que teria tido fotos e dados pessoais acessados por terceiros e divulgados na mídia em agosto de 2013. As imagens teriam sido divulgadas em diversos sites, inclusive comerciais. Analisando um Agravo de Instrumento da Globo Comunicações e Participações (iv)119, em que ela alegava estar ausente a indicação de quais seriam as fotos íntimas e que lhe estaria sendo imputado o dever de fiscalização e censura prévia, o desembargador relator, Carlos Henrique Miguel Trevisan, alegou em março de 2014 que, apesar de a condição de cumprimento da decisão ser algo a ser analisado em primeira instância, na fase de conhecimento, a falta de URLs não parecia obstar o cumprimento da decisão: De outro lado, não se verifica, a princípio, dificuldade alguma à réagravante em cumprir a ordem de remoção de material ofensivo à autora em sua página na Internet, ainda que sirva apenas como provedora de hospedagem, e a fiscalização de eventual conteúdo nesse sentido, de modo a possibilitar o atendimento da ordem judicial, ficando, porém, ressalvada a ela a possibilidade de demonstrar perante o juízo de primeiro grau a veracidade da alegação de que está impossibilitada de dar cumprimento à ordem, sobretudo porque tal controvérsia deve ser dirimida na fase de execução, além de ser prescindível também a prévia indicação pela autora das fotos objeto de ato ilícito em relação ao qual se busca remover, como reclama a agravante, pois não é difícil

118

Agravo de Instrumento n. 20130000338495, 9ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 11/06/2013.

119

Agravo de Instrumento n.20140000137193, 4ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 13/03/2014.

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concluir que o material relacionado à agravada contém forte potencial ofensivo ao seu nome e à sua imagem, e, ao mesmo tempo, transcende o direito à crítica e à livre manifestação do pensamento (grifos nossos). O exame mais aprofundado da veracidade dos fatos narrados na petição inicial, inclusive no tocante à ausência de abuso de direito a justificar a remoção de conteúdo, está reservado ao juízo de primeiro grau, que, após a regular instrução probatória e por ocasião do julgamento do feito disporá de todos os elementos de convicção necessários. Em embargos de declaração de outra provedora de Internet em relação ao mesmo caso (a vítima moveu ação contra mais de um provedor), o argumento foi reforçado pelo mesmo desembargador relator (v)120. E, em 13 de fevereiro de 2014, portanto dois meses antes da aprovação do Marco Civil da Internet, uma decisão relativa a Agravo de Instrumento interposto pela empresa YBI relativo à divulgação de imagens da mesma empresária e relatada pelo mesmo desembargador havia citado jurisprudência do STJ pela responsabilização solidária do provedor pelo conteúdo infringente mediante mera notificação, e afirmado também da desnecessidade de indicação do local (vi). De outro lado, não se verifica, a princípio, dificuldade alguma à réagravante em cumprir a ordem de remoção do material ofensivo à autora e a fiscalização de eventual conteúdo nesse sentido, de modo a possibilitar o atendimento da ordem judicial, ficando, porém, ressalvada a ela a possibilidade de demonstrar perante o juízo de primeiro grau a veracidade da alegação de que está impossibilitada de dar cumprimento à ordem, sobretudo porque tal controvérsia deve ser dirimida na fase de execução, conforme, aliás, mencionado pelo relator na decisão de fl. 407, que indeferiu pedido de reconsideração formulado pela agravante121. Há ainda outra decisão, de 2012, sobre URLs, mas em que parece que o desembargador relator considera que o provedor estava errado, porque sim, as URLs teriam sido corretamente indicadas em primeira instância (sem que nos seja possível, com o nosso recorte, verificar como foi a indicação do material infringente) (*)122. Nossa conclusão é que, em que pese o número semelhante de decisões encontradas a favor e contra a necessidade de indicação de URLs como o cumprimento do requisito de indicação específica do material infringente para remoção no caso de “revenge porn”, 120

Embargos de Declaração n. 20140000220285, 4ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 10/04/2014.

121

Agravo de Instrumento n. 20140000076825,4ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 10/04/2014.

122

Agravo de Instrumento n. 20120000632557, 3ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 27/11/2012.

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nos parece que a importância do conjunto de decisões contra essa necessidade deve ser minimizado. Isso porque, das seis decisões que negaram a necessidade de indicação da URL, três referem-se a um mesmo caso e foram relatadas pelo mesmo desembargador, em relação a um mesmo caso; outras duas referem-se a outro mesmo caso, e a sexta não entra propriamente no mérito. Além disso, como indicamos, todas são anteriores ao Marco Civil. É evidente que o número é baixo, para que possamos ter qualquer conclusão definitiva sobre tendências; separando temporalmente os resultados, ainda assim, apresentamos o seguinte quadro: Número total de decisões contra provedores 11

8

5 4

4 3 2 1 2008

2009

2010

2011

2012

2013 2014

2015

Observações: (i) Nossa coleta de acórdãos, em 2015, foi feita em junho, de forma que só captamos o primeiro semestre. (ii) Enquanto parece haver uma tendência de aumento no número de acórdãos sobre o tema ao longo do tempo, o ano de 2008 sobressai: as três decisões foram relativas ao caso Cicarelli. Para além das tendências observadas no Tribunal de Justiça de São Paulo, vale também lembrar que o Superior Tribunal de Justiça (STJ), recentemente, decidiu um caso, conhecido como caso Botelho, determinando que a obrigação de fazer de “retirada de páginas de rede social” (o caso refere-se a violação de direito autoral em comunidades do finado Orkut) fica afastada, se as URLs específicas não forem indicadas123. Antes dessa decisão, que é pós-Marco Civil, o STJ havia se manifestado de formas diferentes sobre o assunto124. Outra observação a ser feita é que, como apontamos previamente, em sede de discussão sobre o que significa indicar precisamente onde se encontra um material infringente

123

Recurso Especial n. 1.512.647 – MG, Ministro Luís Felipe Salomão, 13/05/2015.

124

V. REsp nº 1.396.417/MG e REsp 1.274.971/RS, ambos de 2013.

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na Internet, o dispositivo do Marco Civil que diz respeito à responsabilização por não remoção de materiais de nudez não é citado nas decisões pós Marco Civil (embora todos os nossos casos sejam referentes a essa questão). Como veremos logo a seguir, a diferenciação entre casos envolvendo nudez e outros casos de conteúdos infringentes é feita nas discussões sobre responsabilização da plataforma que não envolvem a questão das URLs. A razão principal para essa diferença pode ser justamente que o art. 21 estabelece um procedimento extrajudicial. Ou seja, a discussão judicial geral sobre necessidade ou não de indicação das URLs nos parece ainda assim importante, porque provavelmente ela vai estabelecer o padrão do que passará a ser considerado, para os provedores, a “identificação específica do material” a ser apontada extrajudicialmente. Retomando o art. 21: Art. 21. O provedor de aplicações de Internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo. Parágrafo único. A notificação prevista no caput deverá conter, sob pena de nulidade, elementos que permitam a identificação específica do material apontado como violador da intimidade do participante e a verificação da legitimidade para apresentação do pedido. Como esse dispositivo repete a regra do artigo 19, que contém a norma geral de remoção de conteúdos mediante ordem judicial ( não apenas conteúdo de nudez), no que diz respeito à necessidade de indicação específica do material apontado, a definição a respeito dos requisitos da indicação específica feita em torno do art. 19 certamente pautará a compreensão da indicação específica do art. 21, para a notificação extrajudicial que, em funcionando a lei, deve servir à remoção rápida dos conteúdos de nudez não consentida. Em outras palavras: é possível suspeitar que os provedores condicionarão a remoção do conteúdo à apresentação das URLs consideradas infringentes.

3.4. A RESPONSABILIDADE DOS INTERMEDIÁRIOS EM CASOS DE NCII Em algumas das decisões, não se discutiu o que significa propriamente o requisito de indicação específica do material, mas sim o regime geral de responsabilidade dos

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provedores em relação a conteúdos infringentes de terceiros. Ou, em palavras menos jurídicas, o papel dos provedores no problema que estamos a discutir. Em março de 2013, o TJSP julgou o caso de um homem que descobriu, em 2007, que fotos íntimas suas tinham sido inseridas, sem sua autorização, na página do Orkut de pornografia homossexual Brazilian Genetic. Comunicou, no dia seguinte, o fato às autoridades policiais, ajuizou uma ação em junho de 2008, e o conteúdo foi removido pela empresa Google em 2009, quando o caso foi decidido em primeira instância. Naquela ocasião, foi-lhe negada qualquer indenização; na decisão de 2013, no TJSP, decidiu-se que o Google deveria ter removido o conteúdo uma vez tinha sido notificado extrajudicialmente pela vítima, e que ela deveria então ser indenizada em R$ 30.000,00; nas palavras do relator, Se o provedor Google, de início, não pode ser responsabilizado automaticamente pelo dano causado, uma vez que apenas hospeda páginas eletrônicas, isso não impede que, ciente do abuso, tome as providências para eliminar os eventos danosos. Na espécie, o que se viu é que, o autor só conseguiu a retirada do perfil falso após ajuizar a r. sentença recorrida. Omitiu-se culposamente, portanto, aguardando decisão judicial, quando, por análise perfunctória, poderia ter concluído pela preservação indevida das fotografias do autor em página de conteúdo pornográfico homossexual. Essa discussão, a nosso sentir, é externa à aplicação ou não do Código de Defesa do Consumidor, já que o próprio Código Civil, em seu art. 927, caput, que cuida da responsabilidade civil subjetiva125. Ora, no mesmo ano, outra câmara (a Quarta de Direito Privado) do TJSP decidia em contrário – a favor do Google pelo descabimento de indenização de R$ 5.000,00 por parte do Google por ter “demorado para atender o pedido” de remoção de conteúdo supostamente sexualmente ofensivo contra a vítima – a remoção só ocorreu após ordem judicial. Nesse caso, entendeu-se que, como o Google não teria dever editorial prévio, seriam descabidos os danos morais; se, de fato, o conteúdo fosse de imagens íntimas, o padrão de responsabilização adotado então foi mais leve que o estabelecido posteriormente pelo Marco Civil. Por outro lado, por entender que a Google demorou a atender pedido de {Nome da Vítima}, que só foi cumprido após ordem judicial, Sua Exa. condenou a empresa no pagamento de indenização por danos morais de R$ 5.000,00. No caso, a publicação reclamada é de autoria de terceiros, sendo impossível a empresa Google prever, ou até mesmo censurar o conteúdo nas páginas de seus usuários.

125

Apelação n. 20130000167613, 7ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 20/03/2013.

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Ademais, ainda que a autora tenha demonstrado que pleiteou a retirada dessas publicações junto a Google (fls. 20), não caberia a ela julgar o caráter ofensivo; além do que, a empresa se compromete a combater imagens de caráter obsceno e pornografia (fls. 23/24). Por outro lado, ainda que as postagens realmente tivessem caráter ofensivo, o certo é que a empresa detentora do site “Orkut” não é responsável por publicações de terceiros126. Também em 2014, um mês antes da aprovação do Marco Civil (em março), foi julgada a apelação relativa a um caso em que um ex-namorado criou uma comunidade no Orkut para divulgação de fotos íntimas da autora da ação, convidando pessoas de sua convivência para fazer parte da comunidade. Ela teria provas de ter notificado o Google, que não teria removido a página após 30 dias. Em juízo, o Google alegou a falta de indicação das URLs (a vítima teria indicado o nome da comunidade, o Google teria alegado que o nome da vítima não bastava para localização inequívoca do conteúdo), mas essa questão não ganhou discussão específica no acórdão. O desembargador relator argumentou no sentido de que o Google deveria responder por negligência, uma vez que havia recebido a notificação, utilizando-se de julgados diversos, inclusive de referência ao Código de Defesa do Consumidor127. A partir da aprovação do Marco Civil (23 de abril de 2014 – entrou em vigor em 22 de junho do mesmo ano), aparecem no Tribunal de Justiça de São Paulo dois casos curiosos. Apesar de a nova lei já estar ter sido sancionada, em um caso, e estar em vigor, no outro, e estabelecer normas específicas para a responsabilização dos provedores em ambos casos, ela sequer é citada pelos desembargadores relatores –ainda que fosse para afastar sua aplicabilidade por alguma razão. Em dezembro de 2014, o Google, em apelação, teve acolhida sua tese de que não seria responsável por conteúdos antes de uma ordem judicial – ou seja, o oposto do que estabeleceu o Marco Civil para esses casos. Tratavase de um vereador que teve vídeos íntimos divulgados no YouTube. O desembargador relator cita jurisprudência do TJ do Rio Grande do Sul, doutrina sobre responsabilidade de intermediários e sobre danos morais, mas nada sobre a legislação específica: Isso porque, como vêm entendendo, com acerto, a doutrina e a jurisprudência, inexiste dever de fiscalização ou controle por parte dos provedores de serviços de Internet sobre o conteúdo veiculado por usuários de seus sistemas, máxime quando o prestador de serviços se limita, como na hipótese, a disponibilizar aos usuários, livre e gratuitamente, a visualização de vídeos por eles mesmos adicionados

126

Apelação n.20130000777773, 4ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 12/12/2013.

127

Apelação n. 20140000152561, 2ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 18/03/2014.

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ao sítio, sem controle prévio128. A decisão que ocorre na vacatio legis do Marco Civil diz respeito a um caso em que se reverte a indenização que um provedor de hospedagem teria de pagar a vítima, por ter sido identificada em uma página hospedada por ele como garota de programa, com a afirmação de que a autora da ação nem sequer tinha notificado o provedor extrajudicialmente, antes da propositura da ação. A decisão parece estar em conformidade com o Marco Civil, mas tampouco o cita129. A exceção a esse padrão identificado nos casos analisados é a decisão de novembro de 2014, em uma apelação a respeito de um caso em que a vítima teria entrado em contato com o Facebook para remoção de imagens íntimas em 2013, mas o Facebook só as teria removido mediante ordem judicial. Aqui, o desembargador relator determinou que a demora injustificável enseja necessidade de indenização, confirmando o valor de R$ 10.000,00, dado em primeira instância, e notou que, à época dos fatos, o Marco Civil não estava em vigor, mas que o artigo 21 reforçaria a posição do acórdão. Como bem fundamentado na r. sentença apelada, a responsabilidade da empresa provedora da rede social não advém da criação do perfil falso, nem do dever de monitoramento ou filtro do conteúdo das informações publicadas no Facebook, mas sim da injustificável demora em providenciar a exclusão dos dados após comunicada acerca da ilicitude pela vítima. No caso, é inquestionável que em 01 de agosto de 2013 a apelante já tinha notícia da falsidade do perfil e de seu conteúdo difamatório. Para tanto, basta a leitura do e-mail confirmatório do recebimento da denúncia realizada pela autora no site requerido a fls. 28. Preferiu, todavia, aguardar decisão judicial para providenciar a exclusão requerida, da qual somente foi intimada em 30/09/2013 (fl. 32). A inércia injustificada constitui ilicitude. Nesses termos, inclusive, é o artigo 21 da Lei 12.965/2014 que, apesar de – a época dos fatos – ainda não estar em vigor, presta-se a reforçar a posição aqui adotada130. Basicamente, parece cedo para avaliar o impacto do Marco Civil sobre as decisões de responsabilidade de provedores, dado que os casos demoram para chegar ao Tribunal. Há indícios de que haverá uniformização no entendimento sobre a necessidade de remoção

128

Apelação n. 20140000531106, 6ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 28/08/2014.

129

Apelação n. 2014.0000335189, 9ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 03/06/2014.

130

Apelação n. 20140000752055, 3ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 18/11/2014.

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mediante notificação extrajudicial, sob pena de responsabilização. Questionada sobre o impacto do Marco Civil da Internet na remoção de conteúdos de nudez, a advogada Gisele Truzzi afirma que teve diversas experiências em que o provedor não removeu o conteúdo com a notificação extrajudicial, e que, então, o procedimento é ingressar com a ação judicial pela remoção, na qual a notificação extrajudicial servirá como prova da ciência do provedor sobre a existência daquele material. Pesquisadora - Já houve julgamentos, após o Marco Civil, de o provedor não ter removido o conteúdo e vocês terem judicializado? Gisele Truzzi - Ainda não. Pesquisadora - Queria saber se os juízes estão aplicando a regra do Marco Civil no sentido de... Gisele Truzzi - Nós ainda não tivemos aqui um caso nesse sentido. O Marco Civil fez um ano agora em junho e ainda não tivemos o desfecho de caso que tenha sido julgado após o Marco Civil. Mas eu tenho visto que nas decisões os juízes estão fundamentando mais no Marco Civil.

3.5. ALEGAÇÕES DE IMPOSSIBILIDADE PELOS PROVEDORES, E DESCONFIANÇAS DOS MAGISTRADOS Em algumas das decisões, fica claro que os provedores trouxeram, desde a primeira instância, argumentos sobre impossibilidade de cumprimento da decisão não por conta de não conseguirem identificar o conteúdo, mas por questões técnicas ou de ilegitimidade passiva, ou seja, de não serem as pessoas jurídicas contra as quais se deveria estar direcionando a ação. Um exemplo é o caso de 2015 em que o Facebook alegou não ter ingerência sobre o WhatsApp, apesar de a compra ter se concretizado131. Em 2013, julgou-se caso em que Google teria alegado, dentre outros argumentos, sujeitar-se às leis americanas132. A Microsoft Informática Ltda., em dois dos três casos em que é a recorrente, decisões de 2009 e 2010, alegou ilegitimidade passiva, afirmando que não tem os dados pedidos, que pertencem à Microsoft Corporation133. O Yahoo alegou não poder “bloquear” conteúdo porque o servidor estaria em outro país134. Em todos esses casos, a

131

Agravo de Instrumento n. 20150000012862, 5ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 23/01/2015.

132

Agravo de Instrumento n. 20130000338495, 9ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 11/06/2013.

Apelação n. 02613716, 5ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 22/09/2013; e Agravo de Instrumento n.03327719, 10ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 23/11/2010. 133

134

Agravo de Instrumento n. 2994911, 8ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 12/05/2010.

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resposta dos magistrados foi de desacreditar ou discordar das posições apresentadas: Igualmente não pode se escudar a prestadora de serviços na singela alegação de que está sujeita às leis americanas, ou que a sua central ali se encontra, na medida em que, ao que se dispor a prestar os serviços mundo afora, deve se adaptar ao exercício da atividade nesses diversos locais, sob pena de indevida irresponsabilidade [20130000338495, a respeito do Google]. Identificar exatamente as formas e veículos de divulgação do vídeo, bem assim a existência e extensão de relações entre a empresa Facebook e o aplicativo Whatsapp, é coisa que só se mostrará possível com a dilação probatória na ação de conhecimento, razão pela qual a arguição de ilegitimidade passiva é matéria que se confunde com o próprio mérito [20150000012862, a respeito do Facebook e WhatsApp]. Preliminarmente, não há que se afastar a legitimidade ad causam da apelante, sob o simples argumento de que possui personalidade jurídica diversa de suas sócia estrangeira, Microsoft Corporation. (…) Ademais, embora a empresa norte-americana seja responsável pelo serviço intitulado hotmail, é também verdade que a empresa brasileira deve guardar e processar informações pessoais dos titulares brasileiros desta conta. Não se pede que os provedores ajam como fiscalizadores, transformando-se em policiais, senão que repassem dados sobre origem, hora e data das conexões dos endereços de e-mail hotmail, para apuração do ilícito. Isso em nada prejudicaria a apelante. [2613716, a respeito da Microsoft]. Com efeito, inegável o vínculo entre a recorrente e a “Microsoft Corporation”, que, pelo instrumento de fls.22/34, se apresenta como sendo sua proprietária ao lado de duas outras empresas (ROUND ISLAND e MSHC), o que afasta a alegada ausência de representação da “Microsoft Corporation” no Brasil, podendo a agravante substituíla [3327719, também sobre a Microsoft]. Se o acesso aos sites na Internet é irrestrito e não pode ser impedido, evidente que qualquer pessoa estará, a partir da indiscrição, da desfaçatez vingativa ou de pura inveja sujeito a se ver denegrido na honra com evidente dano psíquico. Acresce que não se trata de promover censura deste excelente meio de comunicação e informação, antes de garantir que a Ética e a Moral sejam preservadas e que o serviço seja prestado após garantido o sigilo e a lisura das informações. O que tem que ser repelido é escudar-se o prestador de serviços na singela alegação de que não poderá impedir a divulgação - seja de que notícia for uma vez que a central (provedor) encontrase em outro país ou hemisfério. Se não possuir meios de bloquear, é evidente que não poderá exercer a atividade. Caso contrário a

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agravante, assim como outras congêneres, será a detentora de nossa moral ou de nossa execração pública [2994911, sobre o Yahoo]. Para além das respostas aos argumentos de impossibilidade por questões societárias ou de jurisdição, que formam uma discussão complexa que vai muito além das pautas às quais aqui nos restringimos, uma parte considerável das decisões evidencia, principalmente pela escolha de palavras, uma percepção dos magistrados de que existiria uma má vontade, por parte dos provedores, em colaborar com o problema da disseminação não consensual de imagens íntimas na Internet. No caso envolvendo a exposição de um homem em página do Orkut, o relator afirma que “a leniência e o descaso da empresa ré em providenciar a exclusão das publicações a tornava solidariamente responsável pelos danos morais ocasionados pelas ofensas.”135 Os magistrados parecem também ser pouco sensíveis aos argumentos de que o cumprimento da decisão ou a assunção de outros deveres de remoção prévios ao processo podem configurar censura ou violação ao direito de liberdade de expressão: Não se trata de censura prévia, violação à liberdade de expressão ou coisa do gênero, estes os argumentos de costume, de que invariavelmente lança mão. A agravada tem direito de não ter sua imagem - é aeromoça e não prostituta - divulgada em sites de pornografia, sob os auspícios da agravante, de seus computadores que saem à cata de informações de todo tipo. É o mesmo que ocorre, guardadas as devidas proporções, com as restrições constantes de órgãos de proteção ao crédito. Quem negativa, tem também a obrigação de desnegativar, quando não haja mais motivo para a persistência da restrição. Aqui, se logrou inserir, que se aparelhe para desinserir136. O provedor se saiu com as evasivas de sempre: remoção seria de impossível cumprimento, haveria censura prévia, afronta ao direito constitucional de livre expressão e o mais que fosse. Nos embargos, insiste nisso tudo, afirma-se simples provedora de hospedagem, como se isso lhe conferisse o direito de acolher pornografia ou licenciosidades. Menciona precedente em contrário do STJ, aqui não há mais o que discutir, aclarar ou prequestionar. Se não se conformou com o julgado, que acorra às Cortes Superiores137.

135

Apelação n. 20140000804643, 9ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 02/12/2014.

136

Agravo de Instrumento n. 03544016, 8ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 18/05/2011.

137

Embargos de Declaração n. 20130000735155, 8ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 27/11/2013.

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3.6. O VALOR ATRIBUÍDO ÀS PESSOAS, A CULPABILIZAÇÃO DAS VÍTIMAS E OUTRAS CONSIDERAÇÕES SUBJETIVAS Assim como nas decisões não envolvendo provedores, salta aos olhos como a posição social privilegiada que uma pessoa carrega, surge nas decisões como ensejadora de um agravamento maior nos fatos ocorridos, mesmo em se tratando de materiais tão sucintos como esses com os quais estamos trabalhando (decisões de segunda instância). Assim, por exemplo, É bióloga, mestre e doutoranda pela Unifesp. Passa por constrangimentos que destroem sua reputação. Tem vários trabalhos publicados na rede, o que motiva a pesquisa de seu nome em sites de busca por acadêmicos138. A agravada afirma na inicial que é empresária de renome, pertencente a uma família de artistas, e que, embora seja figura reconhecida publicamente, não perde o direito de manter em sigilo sua vida particular, assim como os detalhes de sua intimidade139. A agravada tem direito de não ter sua imagem – é aeromoça e não prostituta - divulgada em sites de pornografia, sob os auspícios da agravante, de seus computadores que saem à cata de informações de todo tipo140. Ainda que a recorrente seja mera operadora do sistema de busca sem qualquer responsabilidade, portanto, sobre o conteúdo produzido e disponibilizado por terceiros em páginas externas, são os danos potenciais à autora advogada militante e sócia de banca sediada nesta Capital (fls. 09/22) que justificam a excepcional concessão da tutela também em relação à ré, embora não haja ato ilícito praticado por esta141. Portanto, é inegável que o fato em si desperta não só curiosidade, como induz a uma polêmica bem mais acentuada porque associado a pessoas públicas, sabe-se, de trato diverso das outras. Aliás, os próprios agravantes invocam essas virtudes pessoais e isso mostra que toda e qualquer análise desse episódio não pode ser dissociada deste contexto que é de permanente exposição à mídia em geral, ou, de tudo aquilo que é da sua pessoa, do seu cotidiano, ou mesmo da sua

138

Agravo de Instrumento n. 20120000632557, 3ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 27/11/2012.

139

Agravo de Instrumento n.20140000076825, 4ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 13/02/2014.

140

Agravo de Instrumento n. 03544016, 8ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 18/05/2011.

141

Apelação n. 20140000324960, 6ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 29/05/2014.

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atividade profissional [caso Cicarelli]142. Cuida-se de demanda de obrigação de fazer cumulada com pedido de indenização por dano moral proposta por vereador em face de provedor de conteúdo de Internet, sob o fundamento da indevida divulgação de vídeos íntimos do autor, sem a devida autorização. Julgados procedentes os pedidos, sobreveio, então, o presente recurso de apelação da demandada, o qual, com efeito, merece mesmo parcial acolhida [destaque ao fato de ser vereador]143. É de se questionar o peso que caracterizações como essas acabam por ter nas decisões, em especial em uma pesquisa que elegeu como estudo de caso o Top 10 em bairros periféricos da Zona Sul de São Paulo, com o agravante de serem adolescentes. O que parece se presumir é que o dano causado a pessoas mais “públicas” pode ser maior que o causado a pessoas menos públicas, o que é uma presunção problemática, por não levar em conta fatores como agência, ou ainda os pormenores do desenrolar das histórias para pessoas em posições de menor destaque social. As considerações de caráter subjetivo podem ser observadas, também, no valor das multas aplicadas para o descumprimento – enquanto as multas por descumprimento de decisão aplicadas aos provedores variou, em todos os casos, entre R$ 1.000,00 e R$ 10.000, no caso Cicarelli, a multa aplicada foi de R$ 250.000,00/dia. Valores das multas aplicadas por descumprimento / número de casos (total: 17 decisões) 2 multas 6 multas

2 multas

1 multa 7 multas

Multa sem definição de valor

1 multa

25.000 / dia

10.000 / dia

5.000 / dia

1.000 / dia

10.000 total

Observação: os dois casos em que a multa foi de R$ 250.000,00 referem-se a um único processo, o Caso Cicarelli.

142

Apelação Cível n.1814199, 4ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 12/05/2008.

143

Apelação n. 20140000531106, 6ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 28/08/2014.

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Das observações acima, vale também trazer a discussão outra consideração subjetiva extremamente relevante, que é a do gênero das vítimas ou autoras dos processos: somente em duas das 38 decisões analisadas as vítimas eram do gênero masculino, exclusivamente, e em outra, a outra parte era o Ministério Público; em um caso, tratava-se do vereador mencionado acima; no outro, da inserção de fotos em página destinada a público homossexual. Obtivemos essa informação ao analisar os nomes das partes, bem como no gênero utilizado e, quando eram empregadas apenas iniciais, analisamos os relatórios dos casos. Assim como na análise anterior de casos não contra provedores, também nesta parte a caracterização da exposição de nudez e sexualidade como uma violência de gênero se aplica. Em um dos casos, o relato faz referência a um vídeo de um casal, presumidamente heterossexual, que foi filmado em cenas de sexo em lugar público. É revelador que somente a mulher, no entanto, tenha ingressado com a ação. A autora ingressou com ação cominatória, c.c. indenizatória contra o agravante e contra o Facebook, porque cenas onde aparece fazendo sexo em local público foram gravadas à sua revelia e inseridas na rede mundial de computadores, por terceiros, podendo ser acessadas por qualquer pessoa, o que lhe gerou diversos dissabores144. Outro caso a se ressaltar é o que viemos chamando de Caso Cicarelli, presente em três decisões – a forma como nos referimos a ele, que é também como ficou conhecido no meio jurídico, diz também o suficiente. Nesse caso, ambos, Daniela Cicarelli e o então namorado Renato Aufiero Malzoni Filho, ingressaram com as ações conjuntamente; havia o agravante de Daniela ser mais conhecida que ele, mas é evidente que todo o caso envolveu claras normativas de gênero, de forma a culpabilizar a modelo. Daí também cabe a observação de que, em algumas poucas decisões, percebeu-se o julgar do comportamento da vítima, de forma concorrente ao comportamento de quem espalha as imagens e dados (e que não faz parte dos processos, nestes casos envolvendo provedores). O primeiro é o caso Cicarelli: Os apelantes estão suportando violações não somente do direito à imagem, como da intimidade [leia-se vida privada] e convém colocar um fim a essas invasões. As cenas são de sexo, atividade mais íntima dos seres humanos. Ainda que as pessoas tenham errado e errare humanum est quando cederam aos impulsos dos desejos carnais em plena praia, a ingerência popular que se alardeou a partir da comercialização do vídeo produzido de forma ilícita pelo paparazzo espanhol, afronta o princípio de que a reserva da vida privada é absoluta, somente cedendo por intromissões lícitas [Caso Cicarelli]145.

144

Agravo de Instrumento n.20150000289054, 8ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 20/04/2015.

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Apelação Cível n.1814199, 4ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 12/05/2008.

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No outro caso, ainda de 2011, dá-se a entender que o provedor em questão, o Google, buscou diminuição da indenização obtida em primeira instância, R$ 50.000,00, alegando que a vítima havia concorrido com culpa, ao enviar vídeo erótico para destinatário conhecido: Já a GOOGLE BRASIL INTERNET LTDA. requer a redução da indenização de R$ 50.000,00, reforçando que houve culpa da vítima e que agiu para minimizar o constrangimento gerado (art. 884, do CC). (...) De toda forma, convém ressaltar que a participação da vítima na divulgação que torna impossível o cumprimento do acordo feito por parte da GOOGLE e as tentativas desta de excluir novas publicações indevidas foram notoriamente consideradas no julgado. Essas circunstâncias, inclusive, foram tomadas como fundamento para a conversão da obrigação em perdas e danos e fixação da indenização em R$ 50.000,00146. Tratavam-se de embargos de declaração contra acórdão que havia declarado: Devem ser levadas em consideração as circunstâncias objetivas e subjetivas do fato ensejador da causa petendi e do espírito público que se antevê na causa da transação aceita pela provedora de busca, que não é responsável pela inserção dos textos e imagens na rede de computadores. A questão da moça que se exibe e manda o vídeo de cunho erótico, com nudez explícita, não pode render multas vultosas a serem pagas pela parte inocente e, ainda que se cogite da vantagem financeira da GOOGLE e do risco de sua atividade, jamais seria permitido que lhe impusesse a obrigação de limpar ou derrubar todos os links abertos com arquivos do filme que a própria recorrente produziu e, conscientemente, repassou por computador. Uma das entrevistadas, a advogada Gisele Truzzi, posicionou-se de forma veemente a respeito desse tipo de decisão, também corroborando nossa percepção de que a culpabilização não aparece de forma recorrente nos acórdãos de São Paulo, mas fazendo referência ao mesmo ponto que destacamos acima: Gisele Truzzi – Então assim, às vezes a gente tem um bocado de dificuldade nos casos, mas, na grande maioria, de uns dois anos pra cá, nos despachos iniciais os processos estão melhorando, em relação há dois anos. Então os juízes estão se atualizando sobre o direito digital, estão se atualizando sobre essas questões de gênero, de “revenge porn”, de Internet, então eu acho que eles estão começando a ler mais sobre o assunto, a lidar com casos práticos nesse sentido e até, talvez, se colocando mais no lugar dessas pessoas, pensando não na lei separada, mas no caso a caso. Eu acredito que daqui a 146

Embargos de declaração n. 20110000310877, 4ª Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 1/12/2011.

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uns cinco anos talvez a gente tenha, então, um judiciário com um pensamento um pouco mais moderno. Mas, ainda assim, ainda há casos extremamente bizarros – que para mim seria a palavra mais adequada – em que a gente lê duas, três vezes a decisão e a gente fala “não é possível que eu esteja em 2015”. Teve um caso na justiça de Minas Gerais – é uma matéria que saiu até na revista Marie Claire sobre isso –, era uma moça que estava interagindo com um ex-parceiro dela, um ex-namorado, via Skype, e eu não sei se ela abriu a câmera pra ele e ele printou fotos dela nua, ou se ela mandou fotos dela enquanto falava com ele. Essas imagens foram parar na Internet e a ação era para retirar essas imagens e para processar o individuo, que ela tinha certeza da autoria, requerendo indenização pelos danos morais que ele causou. Os desembargadores votaram unanimemente dizendo que ao abrir a câmera, ao se expor fisicamente na Internet ela estava aceitando o risco e, portanto, ela tinha culpa concorrente. Então, quando a gente fala em culpa concorrente, a gente culpa a vítima pelo fato, culpa pelo crime, culpa pelo dano. E vítima é vítima. A vítima não é culpada por um individuo divulgar as fotos dela sem autorização. Você ler isso de um acordo de um TJ de Minas Gerais dizendo que a vítima tem culpa e que ao encaminhar essas fotos ela concordou com o risco, ela assumiu o risco, não, não dá para acreditar que a gente está lendo isto em 2015. Pra mim não desce esse tipo de coisa. Pesquisadora - Em São Paulo você nunca viu uma coisa dessas? Gisele Truzzi - Em São Paulo, por enquanto não. Tem caso de juiz que condena a indenização muito baixa, mas aí até dentro do conceito deles é comum que um juiz dê uma indenização baixa porque ele sabe que a pessoa irá recorrer, mas uma decisão judicial que coloque a vítima como concorrente da culpa não dá. Se a vítima encaminhou a imagem foi porque ela confiou na pessoa e não dá para aceitar.

3.6. CASOS ENVOLVENDO OS PROVEDORES DE CONEXÃO Um último ponto relativo a esses acórdãos é a observação de que duas decisões vêm de recursos de provedores de conexão, ou seja, na linguagem do Marco Civil, provedores que fazem “a habilitação de um terminal para envio e recebimento de pacotes de dados pela Internet, mediante a atribuição ou autenticação de um endereço IP”. Trata-se de um caso em que a autora da ação havia pedido pela suspensão da exposição de fotos íntimas, de cunho sexual, tiradas sem sua autorização em festa na Fundação

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Getúlio Vargas em São Paulo. A ação foi movida contra alguns provedores, inclusive a Net, provedora de conexão. Quando recebeu a ordem judicial, a Net “desabilitou os serviços de acesso do cliente que gerou o IP de onde proveniente o site que realizou a divulgação das suas fotos íntimas”, ou seja, na prática, bloqueou o site. Em primeira instância, a Net foi condenada, entretanto, a multa de R$ 10.000,00 e a pagar verbas sucumbenciais (despesas do processo e honorários advocatícios). Recorreu, então, da decisão, afirmando que, sem ter vinculação com o site, e tendo prontamente atendido ao pedido, não devia nada à autora da ação. Na decisão da apelação, o desembargador relator entendeu que a multa era aplicável no caso de “nova ocorrência da situação que a autora pretende evitar”, e que como tal era medida de apoio necessária e adequada; entendeu também que a Net ficou vencida na primeira instância, e que a regra então seria mesmo arcar com as despesas de sucumbência, “independentemente do fato de não ter apresentado resistência à pretensão da autora” (referindo-se ao art. 20 do Código de Processo Civil então em vigor)147. A segunda decisão é referente a embargos de declaração sobre essa mesma apelação, não aceitos148. É digno de nota que a Net tenha sido condenada ao pagamento das verbas sucumbenciais, e tratada como vencida no processo, sem uma discussão mais profunda sobre sua responsabilidade. O Marco Civil foi aprovado depois dos casos e das decisões em questão, mas estabeleceu, em seu art. 18, que o provedor de conexão não será considerado responsável por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros; nos perguntamos, então, se obrigá-lo a pagar verbas sucumbenciais não seria contrariar essa lógica (que, lembremos, ainda não tinha sido aprovada em lei).

3.7. OS PROCEDIMENTOS PARA REMOÇÃO DE CONTEÚDOS E IDENTIFICAÇÃO DE AGRESSORES, A PARTIR DAS PESSOAS ENTREVISTADAS O alto número de decisões encontradas envolvendo provedores (38, de um total de 90) parece indicar a importância dessas ações no contexto de violações na Internet. Como discutimos na segunda parte, no desenvolvimento desses casos, parece determinante o desejo de fazer o material parar de circular, em primeiro lugar. Isso não necessariamente passa por procedimentos judiciais – inclusive, a regra trazida pelo Marco Civil estará funcionando tanto melhor quanto menos judicializações houver, no caso de remoção de conteúdos. Isso quer dizer que os provedores estão removendo os conteúdos de nudez não consentida mediante notificação da pessoa envolvida, nos termos do art. 21 do Marco Civil. 147

Apelação n. 035230- 95.2003.8.26.0100, 1a Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 25/02/2014.

Embargos de declaração n. 0035230-95.2003.8.26.0100/50000, 1a Câmara de Direito Privado, TJ/SP, 24/06/2014. 148

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Vale apontar que, nas possibilidades jurídicas que estamos apresentando para lidar com o problema, há outra frente de procedimentos judiciais contra provedores que não apareceu nos nossos resultados de pesquisa – possivelmente por não terem sido resistidos (e, portanto, não terem chegado à segunda instância), ou ainda porque os acórdãos podem não ter relatado os casos (e assim não cairiam no nosso filtro). São os procedimentos para identificação dos agressores, para posterior ingresso de ação judicial de responsabilização individual contra eles. A primeira observação sobre esse tema é que, durante a realização das entrevistas e análise das decisões judiciais, fomos surpreendidos por ele ter uma importância menor que imaginamos de início. O que se revelou para nós é que a disseminação não consensual de imagens íntimas na Internet se dá predominantemente entre pessoas conhecidas, ou seja, a vítima em geral sabe quem é o agressor, e provavelmente terá outras provas, caso queira responsabilizá-lo (ou caso o Ministério Público vá perseguir o caso), de forma que o procedimento judicial para identificação não seria necessário. No universo das decisões contra provedores, é mais difícil fazer essa afirmação, dado que, pela própria natureza das pretensões processuais, nem sempre se conta em detalhes o desenrolar dos casos. Assim, das 38 decisões analisadas, em 6 fica claro que se tratou de disseminação de imagens íntimas de mulheres por seus ex-namorados; em outras três, não é o caso – tratava-se da exposição midiática de pessoas famosas (caso Cicarelli). Nas demais, não é possível identificar qual era a relação entre as pessoas ou a história por trás da disseminação sem consentimento das imagens. No caso de civil e penal, os casos nos quais não pudemos identificar a relação (ou a ausência de relação prévia) entre as partes foi exceção. A posição de que a identificação é mais simples no caso de se suspeitar da autoria de alguém foi corroborada pela delegada de Delegacia da Mulher, entrevistada por nós: Pesquisadora –Você conseguiria me descrever, assim, se eu chego aqui falando “Olha, tirei uma foto, mandei para o meu namorado, meu namorado colocou num site ou espalhou no WhatsApp...”. Delegada –Assim é mais fácil, com um namorado... Porque você está apontando o autor. Aí você chama o namorado e ele vai ser o primeiro autor. Mas o fato de ele compartilhar: para quem foi, para quem elemandou e quem começou a passar? É difícil, entende? Pegar os vários caminhos do... Pesquisadora – Às vezes a pessoa não sabe que está passando... Delegada – Não sabe! Um passa para o outro e você nem sabe mais... Pesquisadora – Dá para fazer um Boletim de Ocorrência sem saber quem...

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Delegada – Lógico! Sempre faz, de autoria de conhecido ou de desconhecido. Quando é o namorado é muito mais fácil. Você sabe quem é o autor e ele pode ser processado, tem um inquérito em relação a ele. Agora, quando não tem autoria é mais complicado. Pesquisadora – E a autoria, vocês pedem alguma prova para a vítima indicar quem começou ou... E se ela disser... Delegada – Se ela apontar que foi o namorado, mandou para o namorado, ele vai ser o primeiro a ser investigado. (...) Pesquisadora – Chegam mais casos de fotos ou vídeos que estão em algum site da Internet, ou que foram compartilhados por Whatsapp? Delegada – Compartilhados por Whatsapp. Pesquisadora – E que meios vocês têm de investigação? Delegada – Só sabendo para quem ela passou e quais são os contatos dela. É evidente, entretanto, que há casos em que não se tem outras provas da autoria. Nesses casos, será necessário tomar providências para identificação, com os provedores que hospedaram aquele conteúdo, caso o objetivo seja ingressar com processos de responsabilização. A advogada Gisele Truzzi descreve da seguinte forma o procedimento que utiliza para identificação: Pesquisadora - Vocês entram com uma ação primeiro contra o provedor sempre, pra identificar? Gisele Truzzi - Isso. Quando a gente tem uma situação em que a gente precisa remover o conteúdo e identificar, então primeiro a gente analisa onde está este material, se está num blog do Google, então essa ação vai ser contra o Google. Então a gente pede a remoção e a identificação dos logs de conexão daquele usuário responsável por aquele blog. Identifica-se se o provedor do serviço em que está hospedado o conteúdo e ele ingressa ação contra provedor. Pesquisadora - E depois, se a pessoa quiser [processar o agressor...] Gisele Truzzi - Isso, aí é questão da segunda ação, porque nessa ação inicial só vai servir para remover identificar o conteúdo. Então supondo esse exemplo que eu dei do Google. Se o Google identificar os logs de conexão desse usuário ele vai passar pra gente o IP, o horário e o e-mail vinculado a esse usuário. Nós vamos analisar e

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vamos verificar esses IPs de conexão dele a essa conta. Analisando esses IPs nós vamos ver qual foi o provedor de conexão. O Google agiu como um produtor de serviços, somente, ele forneceu o canal para a publicação do material, que foi o blog. Poderia ser um provedor de e-mail, também, ou poderia ser um provedor de hospedagem, como se fosse um site. Com os dados que o provedor de serviço fornece nós analisamos, verificamos qual o provedor de conexão. No mesmo processo nós pedimos para que o juiz encaminhe um ofício para esse provedor de conexão informar os dados cadastrais agora, e não mais os dados de conexão, mas os dados cadastrais desse usuário. Aí se o juiz acatar o nosso pedido, depois da resposta, nós vamos ter a identificação do pedido do responsável pela conta. Como muito do conteúdo é acessado via celular, muitas vezes, com a análise de alguns IPs, a gente descobre, além de um provedor de conexão, como UOL, Terra, às vezes a gente descobre um provedor de telefonia – TIM, Vivo, Oi – e aí nós pedimos um ofício para todos esses provedores, porque alguém vai ter, principalmente provedor de telefonia porque ele funcionou também como um provedor de conexão. Se você acessou o conteúdo do seu celular e aí o provedor vai ter os dados de quem acessou por meio daquela linha e como hoje em dia com a conta do Google você também usa número de celular, no nosso pedido nós pedimos que o Google forneça o número de celular vinculado à conta. Agora toda a autenticação da conta Google é via celular, então, se o Google nos atender completamente nós vamos ter, além dos dados de conexão, um número de celular também, e isso é importante porque a gente descobre qual é a operadora responsável por aquele celular e aí já pedimos ofício para todos: provedores de conexão, planos de telefonia e aí aguardamos. O trecho descreve o caminho que deve ser percorrido para obtenção do IP e dos dados cadastrais; a advogada refere-se a um procedimento que foi estabilizado também com o Marco Civil da Internet, que determinou: Art. 10. A guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de Internet de que trata esta Lei, bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas, devem atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas. § 1o O provedor responsável pela guarda somente será obrigado a disponibilizar os registros mencionados no caput, de forma autônoma ou associados a dados pessoais ou a outras informações que possam contribuir para a identificação do usuário ou do terminal, mediante ordem judicial, na forma do disposto na Seção IV deste Capítulo, respeitado o disposto no art. 7o.

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§ 2o O conteúdo das comunicações privadas somente poderá ser disponibilizado mediante ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer, respeitado o disposto nos incisos II e III do art. 7o. § 3o O disposto no caput não impede o acesso aos dados cadastrais que informem qualificação pessoal, filiação e endereço, na forma da lei, pelas autoridades administrativas que detenham competência legal para a sua requisição. e Art. 22. A parte interessada poderá, com o propósito de formar conjunto probatório em processo judicial cível ou penal, em caráter incidental ou autônomo, requerer ao juiz que ordene ao responsável pela guarda o fornecimento de registros de conexão ou de registros de acesso a aplicações de Internet. Parágrafo único. Sem prejuízo dos demais requisitos legais, o requerimento deverá conter, sob pena de inadmissibilidade: I - fundados indícios da ocorrência do ilícito; II - justificativa motivada da utilidade dos registros solicitados para fins de investigação ou instrução probatória; e III - período ao qual se referem os registros. Com o declarado objetivo de resguardar a privacidade dos cidadãos (v. item 4.4 de BRITO CRUZ, 2014), o Marco Civil estabeleceu que os logs de acesso a aplicações e registros de conexão só serão fornecidos mediante ordem judicial; essa é a regra geral, também (guardadas as exceções previstas em lei), para dados cadastrais. No entanto, o próprio Marco Civil afirma que dados cadastrais poderão ser diretamente requisitados por autoridades competentes – a polêmica é que a lei não trouxe uma definição de quem seriam tais autoridades. Essas provisões do Marco Civil têm sido criticadas por alguns atores, que entendem que elas dificultam o processo de identificação do agressor. Assim, por exemplo, o advogado Renato Opice Blum afirmou em entrevista que É importante dizer que o que o Marco Civil, em vez de facilitar, acabou dificultando essa fase da identificação. Você acaba tendo de tomar duas ações: uma de quebra de sigilo para saber o IP e uma para saber quem usou o IP. E isso, por mais rápido que seja, acaba atrasando um pouco o processo. E esse atraso pode custar o insucesso dessa natureza já na identificação. Se eu não souber quem é, não dá para processar. O advogado queixou-se, também, do período de retenção de dados determinado pelo Marco

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Civil da Internet. No art. 13, a lei determina que os provedores de conexão devem guardar os registros de conexão pelo prazo de um ano; no art. 15, que os de aplicações (pessoa jurídica, exercendo atividade de forma organizada, profissional, com fins econômicos) devem guardar os logs por 6 meses. O advogado crê que, mesmo com a possibilidade de extensão da guarda desses dados mediante pedidos ao juiz, eles seriam exíguos: O Marco Civil diminuiu o tempo jurisprudencial que era de 3 anos, para 6 meses. Então, muitas vezes a gente tem essa dificuldade, não vou dizer necessariamente o escritório em si, porque é o nosso foco. Nós temos, por obrigação, de ser rápidos. Mas eu também não posso impedir, pelo contrário, tenho de estimular, estimular, que outros profissionais que trabalham nessa área, que se eles não forem rápidos, esse prazo pode ser muito curto. Então eu discordo desse prazo de seis meses, ele está errado foi um retrocesso efetivo. E o que acontece, muitas vezes, é o seguinte. Os juízes não entendem... não adianta. Porque às vezes, o juiz não dá de imediato a ordem de notificação. Inclusive nesses casos. Ele pede para preservar. Pede para aguardar a manifestação do provedor. E na cabeça do juiz, “eu mandei preservar, então está preservado”. Mas não é verdade, porque você manda preservar uma parte do processo que é o IP da aplicação. Falta o IP da conexão que eu só vou saber quando eu tiver conhecimento da aplicação. Então, nesse ponto dificultou muito, o Marco Civil complicou a compreensão dessa fase de mostrar para o juiz porque o Marco Civil fala de preservação, mas acabou confundindo, então há uma dificuldade hoje, que nós vivemos aqui, de mostrar isso para o Judiciário, não adianta a preservação sem o outro. Argumentos nesse sentido, críticos às provisões sobre guarda e acesso a dados do Marco Civil, são levantados frequentemente por agentes de investigação e persecução criminal, que têm em vista um acesso mais célere e direto a essas informações, sem precisar de autorização do juiz. Do outro lado, organizações da sociedade civil que trabalham na defesa do direito à privacidade e da liberdade de expressão valorizam que a entrega de dados seja feita somente após ordem judicial, o que em tese evitaria abusos e equilibraria as demandas de investigação com outros direitos dos cidadãos. Vale mencionar que os pedidos de registros e logs de acesso podem ser feitos também pela autoridade policial ao juiz, no curso de uma investigação; como mencionamos em outro lugar, também nos foi relatada uma falta de preparo da Polícia Civil para esses procedimentos: Delegada - Nós tivemos um caso de pedofilia. Nós apreendemos o computador, apreendemos tudo. Só que aí o juiz solicitou para que fosse quebrado o sigilo para saber qual era o site que o pedófilo estava utilizando. Nós não temos meios, então, nós mandamos para o

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DHPP (Departamento de Homicídio e Proteção à Pessoa), de crimes de pedofilia, e o DHPP falou que também não tinha meios para fazer esse tipo de coisa. eles disseram que não era da competência deles. Daí, mandamos para os responsáveis por Crime Cibernéticos; também não era da competência deles. Daí, mandamos para... Eu estava perdida, quase colocando o inquérito debaixo do braço e falando “olha, Dr. Fernando, eu não sei para onde eu vou. Eu não tenho meios, não sei nem por onde começar”. Daí, eu mandei para a Polícia Federal, e eles não mandaram de volta para nós, então, eu acredito que eles tenham abraçado. O mesmo advogado mencionado previamente trouxe à tona também outra possibilidade de recurso judicial, que é a Medida Cautelar de Proteção Antecipada de Prova Pericial: Pesquisadora – E supondo que eu seja a vítima, e chegue ao seu escritório com um caso desses. Qual seria a instrução que você me daria? Renato Opice Blum – Tecnicamente você guardou, você tem evidências? Se a reposta for positiva, nós iremos promover as medidas de preservação, que podem ser desde uma ata notarial, até uma ação cautelar, em que o juiz nomeia peritos para que eles preservem aquelas evidências. Pesquisadora – Como funciona? Renato Opice Blum – A cautelar? Quer ter uma preservação com um menor índice de questionamentos, você entra com esse processo que se chama Medida Cautelar de Proteção Antecipada de Prova Pericial, o juiz nomeia um perito da confiança dele e esse perito vai constatar e vai preservar e vai responder perguntas além da própria constatação em si, relacionadas com aquela evidência da preservação. É uma perícia oficial, feita por um perito nomeado pelo juiz.

3.8. A REGULAÇÃODE NCII FEITA COM BASE EM TERMOS E POLÍTICAS DE USO Compreendendo o papel central ocupado pelas plataformas no ecossistema de proteção à violência de gênero ou sexualidade online, solicitamos entrevistas às três provedoras de aplicações mais utilizadas no Brasil – Facebook, Google e Twitter. Não logramos realizar as entrevistas. Em dois casos, obtivemos conversas informais para sanar dúvidas, sem que isso pudesse resultar num posicionamento oficial das empresas sobre as questões que fizemos. A principal observação a ser feita a respeito de seu papel é que, para além da discussão

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acerca da regulamentação de sua responsabilidade, as plataformas são regidas por políticas e termos de uso aceitos por seus usuários. Esses termos de uso contêm padrões que podem ter efeitos práticos mais relevantes no enfrentamento às violências que a judicialização dos casos. É evidente que o regramento jurídico da responsabilidade dos provedores de aplicações acaba por delinear, também, as políticas das plataformas; elas podem, entretanto, fazer um controle ou estabelecer padrões mais estritos que os demandados por lei. Tomemos como exemplo os Padrões da Comunidade do Facebook, tais como disponíveis na plataforma em 26 de abril de 2016 (https://www.facebook.com/communitystandards#). Ali está descrita a política geral a respeito de nudez na rede social: Nudez Às vezes, as pessoas compartilham conteúdos contendo nudez devido a campanhas de conscientização ou projetos artísticos. Restringimos a exibição de nudez, pois alguns públicos da nossa comunidade global podem ser mais sensíveis a esse tipo de conteúdo, principalmente devido à bagagem cultural ou idade. Para tratar as pessoas de forma justa e responder às denúncias rapidamente, é essencial termos políticas que nossas equipes globais possam aplicar de maneira simples e uniforme quando estiverem analisando os conteúdos. Como resultado, nossas políticas podem ser mais duras do que gostaríamos e restringir conteúdos compartilhados com objetivos legítimos. Nós sempre trabalhamos para melhorar a avaliação desse tipo de conteúdo e fazer com que nossos padrões sejam cumpridos. Removemos fotos de pessoas exibindo órgãos genitais ou com foco em nádegas totalmente expostas. Também restringimos algumas imagens de seios que mostram os mamilos, mas sempre permitimos fotos de mulheres ativamente engajadas na importância da amamentação ou mostrando os seios após uma mastectomia. Também permitimos fotos de pinturas, esculturas e outras obras de arte que retratem figuras nuas. As restrições relativas à exibição de nudez e de atividade sexual também se estendem aos conteúdos digitais, exceto quando a publicação do conteúdo se der por motivos educativos, humorísticos ou satíricos. Imagens explícitas de relações sexuais são proibidas. Descrições de atos sexuais que exponham detalhes muito vívidos podem também ser removidos. Outras formas de violência não contendo nudez são previstas em outras das regras; assim, por exemplo, o Top 10, caso a que nos referiremos principalmente na Quinta Parte, poderia ser combatido também com a previsão anti-cyberbullying: Bullying e assédio: como lidamos com o bullying e o assédio?

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Não toleramos bullying ou assédio. Permitimos que os usuários falem livremente sobre assuntos e pessoas de interesse público, mas removemos conteúdos que pareçam atacar propositalmente indivíduos privados com a intenção de constrangê-los ou humilhá-los. Esses conteúdos incluem, mas não se limitam a: •

Páginas que identificam e humilham indivíduos privados,



Imagens alteradas para humilhar indivíduos privados,

• Fotos ou vídeos de bullying físico publicados para humilhar a vítima, • Compartilhamento de informações pessoais para chantagear ou assediar as pessoas, e • Solicitações de amizade ou mensagens indesejadas enviadas repetidamente. Definimos indivíduos privados como pessoas que não receberam atenção da mídia nem interesse do público em consequência de suas ações ou de uma profissão pública. Qualquer conteúdo pode ser denunciado por qualquer usuário da rede social, diretamente no conteúdo. A Central de Ajuda do Facebook (https://www.facebook.com/help/) fornece também uma série de ferramentas para que se possa denunciar, por exemplo, conteúdos caso você não seja membro do Facebook (mas acredite que seu direito está sendo violado na plataforma). É preciso selecionar “Denunciar um problema”, e dali surgem uma série de opções. As páginas são relativamente circulares e contém muitas informações. Se, por um lado, são muitos os recursos, por outro, vítimas e ativistas já relataram dificuldades em encontrar facilmente formas de denunciar conteúdos abusivos. O Facebook garantiu, em diferentes e diversas ocasiões, que todas as denúncias são analisadas de forma individual, por uma equipe permanentemente dedicada à análise da violação dos termos de uso e Padrões da Comunidade. Em diferentes ocasiões, representantes da empresa também alegaram que padrões estritos para lidar com nudez – mais estritos que parte de seus usuários gostaria – existem em razão da necessidade de se criar um ambiente seguro e confortável para usuários com diferentes sensibilidades, de forma global. O “superbloqueio” vem sendo reiteradamente criticado por diversos e diversas ativistas, e particularmente pelo movimento feminista que se utiliza ostensivamente da ferramenta. Casos considerados ultrajantes de bloqueio são justificados em geral pela empresa como erros (humanos, dos controladores), e não problemas em suas políticas em si. O problema é relevante e merece discussão, mas ela foge aos nossos objetivos neste momento. Parece-nos haver, ao menos da parte do ativismo online em torno de gênero

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e sexualidade, mais reclamações referentes a bloqueios entendidos como indevidos que à falta de bloqueio de conteúdos de nudez, ou conteúdos que poderiam ser relatados como “revenge porn”. As estritas políticas de nudez fazem com que o Facebook seja uma plataforma pouco afeita à disseminação desse tipo de material. Quanto ao Google, embora uma série de diferentes serviços seja oferecido, fica evidente, a partir das entrevistas e da leitura dos acórdãos, que a maior demanda das vítimas de violência dessa sorte é a eliminação de links nos resultados de busca – ou seja, a desindexação de páginas na Internet. Essa discussão apareceu em vários dos processos que analisamos: embora a desindexação não elimine o conteúdo da Internet, eliminar o resultado do buscador faz com que se torne muito mais difícil encontrá-lo. É comum a preocupação, também, de que um buscador como o Google seja utilizado para encontrar todo tipo de resultados relativos a uma pessoa, como, por exemplo, para entrevistas de emprego. Surge a preocupação de ter aqueles resultados indesejados associados ao próprio nome (não somente para o problema de que estamos tratando, mas também para toda sorte de problemas associados à complexa questão do direito ao esquecimento). O Google anunciou, em 19 de junho de 2015, ter modificado suas políticas de remoção para atender ao que chamou de “histórias perturbadoras de revenge porn”149, oferecendo um formulário para denúncia. De fato, nos termos de uso do Google tais quais disponíveis em 24 de abril de 2016, é possível encontrar, nas perguntas frequentes, a seguinte orientação: Como posso remover minhas informações pessoais dos resultados de pesquisa do Google? Os resultados de pesquisa do Google são um reflexo do conteúdo disponível para o público na Web. Os mecanismos de pesquisa não podem remover conteúdo diretamente de websites. Ou seja, a remoção de resultados da pesquisa do Google não remove o conteúdo da Web. Se desejar remover algo da Web, você deve entrar em contato com o webmaster do site em que o conteúdo está postado e pedir a ele para alterá-lo. Após o conteúdo ser removido e o Google registrar a atualização, a informação não aparecerá mais nos resultados da pesquisa do Google. Se tiver uma solicitação de remoção urgente, você também poderá visitar nossa página de ajuda para mais informações150. Há, portanto, as informações que o Google tratará de forma excepcional para remoção. No link indicado, há uma indicação para as políticas de remoção, onde se verifica: 149

http://googlepublicpolicy.blogspot.com.br/2015/06/revenge-porn-and-search.html.

150

https://www.google.com.br/intl/pt-BR/policies/faq/.

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Como decidimos se informações pessoais devem ser removidas Para decidir se uma informação pessoal cria riscos significativos de roubo de identidade, fraude financeira ou outros danos específicos, perguntamos: •

É um número de identificação emitido pelo governo?



É confidencial ou é informação de domínio público?



Pode ser usada para realizar transações financeiras comuns?

• Pode ser usada para obter mais informações sobre uma pessoa que possa resultar em dano financeiro ou roubo de identidade?

É uma foto ou vídeo com nudez ou conteúdo sexualmente explícito que permite a identificação pessoal e que foi compartilhado sem consentimento?



Esta política é aplicada caso a caso. Poderemos recusar uma solicitação de remoção se acreditarmos que ela esteja sendo usada para tentar remover outras informações não pessoais dos resultados de pesquisa. Observação: geralmente não removemos informações que possam ser encontradas em websites oficiais do governo, uma vez que a informação está disponível ao público (nosso itálico)151. E existe, então, um formulário de remoção por meio do qual é possível indicar as páginas que se quer ver removidas do resultado de buscas do Google. O procedimento é: - O que você deseja fazer? a) Remover informações encontradas na Pesquisa Google b) Impedir que as informações sejam exibidas na Pesquisa Google - As informações que desejo que sejam removidas são: a) Nos resultados de pesquisa do Google e em um websites b) Somente nos resultados de pesquisa do Google Para o caso de b), ou seja, de o conteúdo estar aparecendo nos resultados apesar de ter sido removido de um site: Se o conteúdo foi excluído de um site, mas ainda é exibido nos resultados da pesquisa do Google, é possível que o cache ou a descrição da página esteja desatualizado. Para solicitar a remoção de 151

https://support.google.com/websearch/answer/2744324.

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conteúdo desatualizado: 1.

Acesse a página Remover conteúdo desatualizado.

2. Digite o URL (endereço da Web) da página que apresenta o conteúdo desatualizado que você deseja remover. 3.

Selecione Solicitar remoção. •

Se a mensagem “Acreditamos que a imagem ou página da Web que você está tentando remover não foi removida pelo proprietário do site” aparecer, siga as etapas exibidas na tela para fornecer mais informações.



Se a mensagem “Este conteúdo não existe mais” aparecer, selecione Solicitar remoção.

É possível verificar o status da sua solicitação na página Remover conteúdo desatualizado. Para o caso de a), ou seja, de o conteúdo estar sendo mostrado no site de buscas porque está em outro site: - Você já entrou em contato com o webmaster do site? Não, como eu faço isso? Não, não encontrei qualquer informação de contato Não, prefiro não fazer isso devido à natureza das informações mostradas Quero remover informações sobre mim de acordo com a legislação europeia de proteção de dados Sim, mas eles não responderam Em se selecionando a primeira opção, o formulário informará sobre a importância de pedir a remoção do conteúdo diretamente ao site onde ele se encontra, e dá orientações de como fazê-lo. Nos outros casos, ele dá acesso a um formulário no qual se pode selecionar que o conteúdo que se quer remover é uma imagem de si mesmo, se é sexualmente explícito (caso contrário, informa o formulário, o conteúdo não é removido das buscas), se houve consentimento para publicações em outros sites (caso em que o formulário direciona para a ferramenta de remoção por motivos jurídicos), e, se não, abre uma série de campos para informação sobre o conteúdo a ser desindexado.

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É curioso que a remoção de conteúdos por nudez não consentida seja tratada, pelo Google, como remoção por motivos não jurídicos. A página de remoção de conteúdos por motivos jurídicos contém temas como phishing152 e direitos autorais153. Muitos outros sites oferecem ferramentas para denúncia e remoção; assim, por exemplo, o Pornhub, conhecida página de vídeos pornográficos, anunciou154, em 13 de outubro de 2015, a criação de um formulário específico para denúncia155. Não temos informação sobre a efetividade desse canal. A Microsoft também anunciou uma nova página de denúncias, em 22 de julho de 2015156, e, em fevereiro de 2016, anunciou ter recebido 537 pedidos de remoção em função de “revenge porn”, e ter atendido a apenas 63%. As razões para isso foram, alegadamente, dificuldades como falta de dados, impossibilidade de identificação

152 Termo utilizado para caracterizar uma forma de fraude eletrônica, como tentativas de adquirir dados pessoais de diversos tipos. 153

https://support.google.com/legal/answer/3110420.

http://www.huffingtonpost.com/entry/pornhub-revenge-porn-removal_ us_561eb29fe4b0c5a1ce61bf3f. 154

155

http://www.pornhub.com/content-removal.

http://blogs.microsoft.com/on-the-issues/2015/07/22/revenge-porn-putting-victims-back-incontrol/. 156

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da vítima, ou ausência de nudez157. Existem alguns manuais sobre como reportar imagens íntimas não consentidas em diferentes sites. O escritório norte-americano C.A. Goldberg, por exemplo, oferece orientações de remoção atualizadas em 11 de novembro de 2015 para produtos Microsoft, Google, Instagram, Facebook, Twitter, Reddit, Pornhub e Tumblr (em inglês)158. O governo do Estado da Califórnia também criou uma página exclusivamente para apoio às vítimas, jurídico e nos procedimentos de notificação dos sites159. Questionada sobre a efetividade da remoção de conteúdos mediante notificação, a advogada Gisele Truzzi respondeu que A maioria desses sites acabam excluindo sem grandes problemas, sem muita demora, principalmente os sites estrangeiros, os sites americanos tem um tempo de resposta muito rápido. Quanto aos sites americanos, afirmou utilizar constantemente a notificação extrajudicial tal qual prevista no DMCA – Digital Millenium Copyrights Act, uma lei federal norteamericana que lida com violação de direito autoral na Internet. Se a fotografia ou vídeo foi feita pela própria pessoa que está retratada – uma selfie, por exemplo – a pessoa detém o direito autoral sobre aquela imagem. Isso faz com que o DMCA, que responsabiliza um provedor após notificação e não remoção do conteúdo infringente em até 48h, seja um instrumento utilizado para a rápida remoção desse tipo de conteúdo em sites norteamericanos. Também nos EUA existe uma lei, Communications Decency Act, que protege os provedores contra responsabilidade até uma ordem judicial; o DMCA, entretanto, estabelece um regime específico para o direito autoral. Existem páginas na Internet ensinando a submeter uma notificação por DMCA160. “Eu lembro até que a gente tem a resposta mais rápida de um site americano do que de um site brasileiro”, afirmou Gisele. Questionada sobre o que fazer quando um site no exterior não responde à notificação para a remoção de conteúdo, Truzzi também ofereceu uma experiência: Teve um caso que foi bem específico: o site não tinha escritório de representação no Brasil, nós encaminhamos notificações e eles não responderam, não deram nenhum retorno apesar de termos encaminhado várias vezes. E seria inviável para a vítima ingressar com uma ação lá fora, e aí, o que a gente fez, como esse caso http://www.forbes.com/sites/emmawoollacott/2016/03/25/microsoft-figures-reveal-littleaction-on-revenge-porn/#507337cb1d82. 157

158

http://www.cagoldberglaw.com/how-to-report-revenge-porn-on-social-media/.

159

http://oag.ca.gov/cyberexploitation.

160

Esta, por exemplo: http://www.womenagainstrevengeporn.com/#!dmca-notice/co0y.

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envolvia outros provedores locais também, aí sim com representação no Brasil, eu tive a ideia de pedir a expedição de uma carta rogatória para esse site específico. Eu pensei “ah, vamos tentar. Nunca fizemos, vamos tentar por essa via, e se a gente conseguir, ótimo, aí a gente encaminha via correio e eles que se virem lá para atender a decisão do juiz”. Chamamos um tradutor juramentado para traduzir com precisão essa carta rogatória e encaminhamos via correio, pedi a expedição da rogatória e foi deferida. Então o cliente ficou surpreso porque já estávamos acreditando que o juiz não iria aceitar e que ele ia fundamentar que fosse ingressado uma ação lá fora, mas o juiz acatou de pronto, sem qualquer resistência. Ele deferiu a participação dos outros provedores alocados aqui no Brasil e em relação a esse site americano ele deferiu a rogatória, inclusive a publicação saiu semana passada. Pesquisadora - Demorou? Gisele Truzzi - Demorou. Demorou uns três meses para sair esse deferimento, a gente vai retirar essa revogatória essa semana.

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QUARTA PARTE

O LEGISLATIVO E O EXECUTIVO ENCARAM NCII

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4.1. PROPOSTAS LEGISLATIVAS EM CASOS DE DISSEMINAÇÃO NÃO CONSENSUAL DE IMAGENS ÍNTIMAS Em 2013, foi proposto o primeiro Projeto de Lei (PL) para tratar da questão da exposição não consentida de imagens íntimas no Congresso Nacional. A proposição esteve ligada a um caso de violação de privacidade na Internet que ganhou a mídia161: a vítima buscou um deputado de seu estado, para sugerir a proposição de uma lei que tipificasse e criminalizasse a disseminação de imagens íntimas sem consentimento. O deputado estadual entrou em contato com o Deputado Federal João Arruda (PMDB-PR), que o apresentou na Câmara dos Deputados em maio daquele ano162. Trata-se do PL 5555/13. É bastante claro que o tema mobilizou a esfera pública em 2013: no mesmo ano, foram apresentados outros quatro projetos sobre o tema. Em novembro, o suicídio de duas garotas num intervalo de dez dias em razão de disseminação de suas imagens íntimas163 impulsionou a publicização da temática e a das buscas de sua resolução e minimização. Como discutimos na Terceira Parte, foi exatamente nesse momento que foi inserida, também no projeto de lei então em discussão do Marco Civil da Internet, uma disposição específica sobre responsabilidade de provedores para lidar com hipóteses como essas. De qualquer forma, outros projetos continuaram sendo propostos, totalizando, no momento em que fechamos este texto (maio de 2016), dez projetos de lei (nove com origem na Câmara dos Deputados e um no Senado Federal). Embora versem sobre o mesmo tema, são latentes as diferenças entre as propostas, seja quanto às penas ou agravantes sugeridas, seja quanto a que leis visam alterar – em alguns casos, a Lei n. 11.340/06, e, em outros, o Código Penal. Tendo em vista as diferenças que tais alternativas ensejam em termos de tramitação dos casos, abaixo apresentamos um quadro que sistematiza as principais informações de cada proposta, conforme se encontram em maio de 2016: A exposição da jornalista Rose Leonel por seu ex-companheiro no ano de 2005. Para mais informações sobre o caso conferir matéria “’Dormia com inimigo’: diz mulher que teve fotos publicadas pelo ex”. Disponível em: http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2011/08/dormiacom-o-inimigo-diz-mulher-que-teve-fotos-publicadas-pelo-ex.html 161

Foi possível acessar tal informação a partir da intervenção do Deputado Federal João Arruda (propositor do PL) em uma das audiências públicas sobre “revenge porn” realizadas no Congresso ambas promovidas pela Comissão Permanente Mista de Combate à Violência contra a Mulher – e sobre as quais discorremos com mais detalhes adiante. 162

Indicamos notícias sobre os casos na Introdução deste livro; todavia, para mais informações sobre mobilização em termos de propostas legislativas, após suas ocorrências conferir matéria “Pornografia de vingança: nossa sociedade julga mulheres como se o sexo denegrisse a honra – diz Romário”: http://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2013/11/pornografia-derevanche-nossa-sociedade-julga-mulheres-como-se-o-sexo-denegrisse-honra-diz-romario.html

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PL n./ano, Autor: PL 5555/13, Câmara (Original – 31/05/2013) João Arruda, PMDB/PR. Que lei modifica? Lei Maria da Penha. Tipo penal: Violação da intimidade da mulher passa a ser violência doméstica e familiar: (Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:) VI – violação da sua intimidade, entendida como a divulgação por meio da Internet, ou em qualquer outro meio de propagação da informação, sem o seu expresso consentimento, de imagens, informações, dados pessoais, vídeos, áudios, montagens ou fotocomposições da mulher, obtidos no âmbito de relações domesticas, de coabitação ou de hospitalidade.” Pena: Aplicam-se então as disposições da Lei Maria da Penha: medidas protetivas, agravante do art. 61 CP, obrigação de comparecimento do agressor a programas de reeducação. Causas de aumento? Nada consta. Quanto? Nada consta. Penalidades (outras): §5º Na hipótese de aplicação do inciso VI do artigo 7º desta Lei, o juiz ordenará ao provedor de serviço de e-mail, perfil de rede social, de hospedagem de site, de hospedagem de blog, de telefonia móvel ou qualquer outro prestador do serviço de propagação de informação, que remova, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, o conteúdo que viola a intimidade da mulher.

PL n./ano, Autor: PL 5555/2013, Câmara (Substitutivo, 17/12/2015) (Apensados a ele: PLs 5.822/13, 6.630/13, 6.713/13, 6.831/13. 7.377/14 170/15). Que lei modifica? Código Penal (Crimes contra a dignidade sexual) e Lei Maria da Penha. Tipo penal: Código Penal - Art.216 - B. Divulgar, publicar, oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, compartilhar, disseminar, por qualquer meio, sem consentimento da vítima, fotografia, vídeo ou outro registro, incluso montagem, que contenha nudez, ato sexual ou conteúdo sexualmente explicito.

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§ 1º Configura-se o crime ainda que a vítima tenha consentido na captura ou no armazenamento da imagem ou da comunicação. Lei Maria da Penha - O art. 7º da Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006 – Lei Maria da Penha, passa a vigorar acrescido do seguinte inciso VI: - a violação da intimidade da mulher, entendida como a divulgação, por meio da internet ou outro meio de propagação de informações, de dados pessoais, vídeos, áudios, montagens e fotocomposições da mulher, obtidos no âmbito das relações domésticas, de coabitação ou hospitalidade, sem seu expresso consentimento. Pena: Código Penal - Detenção de três meses a um ano e multa. Lei Maria da Penha - Nada consta. Causas de aumento? Código Penal - Se o crime é cometido contra pessoa com deficiência ou contra vítima que não pode oferecer resistência ou não tenha o necessário discernimento. Lei Maria da Penha - Nada consta. Quanto? Código Penal - Reclusão de um a dois anos e multa. Lei Maria da Penha - Nada consta Penalidades (outras): Código Penal - Nada Consta Lei Maria da Penha - Nada consta

PL n./ano, Autor: PL 5822/13, Câmara (25/06/2013) - Rosane Ferreira PV/PR. Que lei modifica? Lei Maria da Penha. Tipo penal: Idem PL 5555/13 Pena: Idem PL 5555/13

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Causas de aumento? Nada consta. Quanto? Nada consta. Penalidades (outras): Nada consta.

PL n./ano, Autor: PL 6630/13, Câmara (23/10/2013) - Romário PSB/RJ (Apensados a ele: PL 6713/2013; PL 6831/2013; PL 7377/2014). Que lei modifica? Código Penal (Crimes contra a dignidade sexual). Tipo penal: Art. 216-B. Divulgar, por qualquer meio, fotografia, imagem, som, vídeo ou qualquer outro material, contendo cena de nudez, ato sexual ou obsceno sem autorização da vitima. §1o Está sujeito à mesma pena quem realiza montagens ou qualquer artifício com imagens de pessoas. Pena: Detenção, 1 a 3 anos, e multa. Indenização da vítima, sem prejuízo de reparação civil. Causas de aumento? a) Fim de vingança ou humilhação; Por agente que era cônjuge, noivo, namorado, manteve relacionamento amoroso com ou sem habitualidade. b) Menor de 18 ou com deficiência Quanto? a) 1/3 b) 1/2 Penalidades (outras): Art. 5o Se o crime foi cometido por meio da Internet, na sentença penal condenatória, o juiz deverá aplicar também pena impeditiva de acesso as redes sociais ou de serviços de e-mails e mensagens eletrônicas pelo prazo de até dois anos, de acordo com a gravidade da conduta.

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PL n./ano, Autor: PL 6713/13, Câmara 12/11/2013 (Apensado ao 6630/2013) Que lei modifica? Nova lei. Tipo penal: “Postagens pornográficas de vingança na internet”. Pena: 1 ano de reclusão, mais 20 salários mínimos. Causas de aumento? Nada consta. Quanto? Nada consta. Penalidades (outras): Nada consta.

PL n./ano, Autor: PL 6831/13, Câmara 03/12/2013 (Apensado: 6630/2013). Que lei modifica? Código Penal (Crimes contra a dignidade sexual). Tipo penal: Art. 216-B. Expor publicamente a intimidade física ou sexual de alguém. § 1º Se a exposição é feita por meio de comunicação de massa, inclusive pela Internet. Pena: Reclusão, 1 a 3 anos; Na Internet: reclusão, 2 a 5 anos. Causas de aumento? a) Vítima menor de 18; b) Decorrente de relação íntima de afeto, família ou parentesco, e relação de trabalho. Quanto? a) 1/3 b) 1/2

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Penalidades (outras): Nada consta.

PL n./ano, Autor: PL 7377/14, Câmara07/04/2014 Que lei modifica? Código Penal (Crimes contra a dignidade sexual). Tipo penal: 216-B Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar, sem consentimento da vitima, imagem em nudez total, parcial ou em ato sexual ou comunicação de conteúdo sexualmente explicito, de modo a revelar sua identidade, utilizando-se de qualquer mídia, meio de comunicação ou dispositivo. §2o Configura-se o crime ainda que a vitima tenha consentido na captura ou no armazenamento da imagem ou da comunicação. Pena: Reclusão, 2 a 6 anos, e multa. Causas de aumento? Com finalidade de assediar psicologicamente; Em ato de vingança; Para humilhação pública ou vaidade pessoa; Contra cônjuge, companheira, namorada ou com quem conviva ou tenha convivido em relação íntima, ou, ainda, prevalecendose o agente das relações doméstica, de coabitação ou de hospitalidade. Quanto? 1/3 Penalidades (outras): Nada consta.

PL n./ano, Autor: PL 170/15, Câmara (19/02/2015) Carmen Zanotto, PPS/SC. Que lei modifica? Lei Maria da Penha. Tipo penal: Violação da intimidade da mulher passa a ser violência doméstica e familiar.

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Art. 7º - São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: VI – a violação da intimidade da mulher, entendida como a divulgação, por meio da internet ou outro meio de propagação de informações, de dados pessoais, vídeos, áudios, montagens e fotocomposições da mulher, obtidos no âmbito das relações domesticas, de coabitação ou hospitalidade, sem seu expresso consentimento”. Pena: Aplicam-se então as disposições da Lei Maria da Penha: medidas protetivas, agravante do art. 61 CP, obrigação de comparecimento do agressor a programas de reeducação. Causas de aumento? Nada consta. Quanto? Nada consta. Penalidades (outras): Nada consta.

PL n./ano, Autor: PL 3158/15, Câmara (XXX) Iracema Portella – PP/PI Que lei modifica? Código Penal (Do ultraje público ao pudor). Tipo penal: Art. 233-A. Promover a exposição pública da intimidade física ou sexual de alguém: § 1º Se o crime é praticado pelos meios de comunicação social ou pela rede mundial de computadores Pena: Caput: reclusão, de um a dois anos. § 1º Pena: reclusão, de dois a quatros anos. Causas de aumento? I - a vítima é menor de 18 (dezoito) anos; II - a vítima possuir enfermidade ou deficiência mental; ou III - o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado,

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proteção ou vigilância Quanto? Em todos os casos aumentada da metade. Penalidades (outras): 3º Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa.”

PL n./ano, Autor: PL 63/15, Senado (03/03/2015) Romário, PSB/RJ OBS: Idêntico ao projeto PL 6630/2013 da Câmara) Que lei modifica? Código Penal (Crimes contra a dignidade sexual). Tipo penal: Art. 216-B. Divulgar, por qualquer meio, fotografia, imagem, som, vídeo ou qualquer outro material, contendo cena de nudez, ato sexual ou obsceno sem autorização da vitima. §1o Está sujeito à mesma pena quem realiza montagens ou qualquer artifício com imagens de pessoas. Pena: Detenção, 1 a 3 anos, e multa. Indenização da vítima, sem prejuízo de reparação civil. Causas de aumento? a) Fim de vingança ou humilhação; Por agente que era cônjuge, noivo, namorado, manteve relacionamento amoroso com ou sem habitualidade. b) Menor de 18 ou com deficiência Quanto? a) 1/3 b) 1/2 Penalidades (outras): Art. 3º O agente fica sujeito a indenizar a vítima por todas as despesas decorrentes de mudança de domicílio, de instituição de ensino, tratamentos médicos e psicológicos e perda de emprego.

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Art. 4º O pagamento da indenização prevista no artigo anterior não exclui o direito da vítima de pleitear a reparação civil por outras perdas e danos materiais e morais. Art. 5o Se o crime foi cometido por meio da Internet, na sentença penal condenatória, o juiz deverá aplicar também pena impeditiva de acesso as redes sociais ou de serviços de e-mails e mensagens eletrônicas pelo prazo de até dois anos, de acordo com a gravidade da conduta.

PL n./ano, Autor: PL 4527/16, Câmara (24/02/2016) Carlos Henrique Gaguim (PMB/TO). Que lei modifica? Código Penal e Lei Maria da Penha (Do ultraje público ao pudor). Tipo penal: Código Penal: Art. 233-A. Divulgar foto ou vídeo íntimo de mulher. Lei Maria da Penha: A conduta tipificada no artigo anterior insere-se no âmbito protetivo do inciso II do art. 7º da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Pena: Código Penal: Detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. Lei Maria da Penha: Nada consta Causas de aumento? Código Penal: Nada consta Lei Maria da Penha: Nada consta Quanto? Código Penal: Nada consta Lei Maria da Penha: Nada consta

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Penalidades (outras): Código Penal: Nada consta Lei Maria da Penha: Nada consta Quadro VIII: os projetos de lei

Como já apontamos, são 9 projetos de lei propostos na Câmara a partir de 2013, e um proposto no Senado (PL 63/15) pelo Senador Romário (PSB/RJ) – este, uma reapresentação de proposta anterior que ele havia feito enquanto Deputado Federal. Descartando-se um dos projetos (PL 6713/13), – que propõe, de forma vaga, que seja punido por uma nova lei o autor de “postagens pornográficas de vingança na Internet” com pena de 1 ano de reclusão, mais 20 salários mínimos – os demais projetos (7, considerandose que o do parlamentar Romário aparece duas vezes, com o mesmo teor) giram em torno de três modelos:

1) A criação de um tipo penal específico, no capítulo de Crimes Contra a Liberdade Sexual do Código Penal (CP) em vigor, sempre com o número 216-B (PLs 7377/14, 6831/13, 6630/13). São poucas, porém significativas, as diferenças entre as proposições. No caso do PL 7377/14, aparece a necessidade de que a identidade da vítima seja revelada pelas imagens para o enquadramento no tipo, e surge o adendo de que o consentimento no momento da captura das imagens não exclui a tipicidade. No PL 6831/13, a linguagem é extremamente genérica: o crime refere-se a “expor publicamente a intimidade física ou sexual de alguém” (sem que se especifique se se tratam de imagens, por exemplo), e há a determinação de um agravante na pena caso o ato seja cometido pela Internet. O projeto 6630/13, por sua vez, determina que comete crime também quem realiza “montagens ou qualquer artifício com a imagem de pessoas” - sem especificar, assim, se tais montagens referidas no texto teriam necessariamente cunho sexual. Embora a interpretação topográfica leve a esse entendimento (capítulo de Crimes Contra a Liberdade Sexual do CP), a linguagem é perigosamente aberta e poderia dar brechas para englobar mais que o que se pretendeu criminalizar. As penas propostas variaram também significativamente: no primeiro caso (PL 7377/14), reclusão de 2 a 6 anos e multa; no segundo (PL 6831/13), 1 a 3 anos ou 2 a 5 anos, se crime for perpetrado na Internet; no terceiro (6630/13), detenção de 1 a 3 anos, e multa, além de possibilidade de reparação pelos danos causados. 131

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Nesse último caso, prevê-se também que o juiz poderá determinar o impedimento do agente de usar redes sociais, e-mail e serviços de mensagens eletrônicas por até dois anos164. Em nenhum desses projetos de lei propõe-se que a criminalização deva ser condicionada ao abuso de relações de confiança ou ainda a motivação de revanche ou vingança. Ou seja, essas propostas de criminalização não se restringem aos casos entendidos de forma mais direta como “revenge porn”, na acepção simplista que foi criticada na primeira e segunda partes deste trabalho. Contudo, em dois casos a “revanche” é motivo de aumento de pena(6630/13 e 7377/14) e, em todos eles, entra a condição do agente de ter ou ter tido relação íntima com a vítima. Como nesses três casos o crime seria inserido capítulo de Crimes Contra a Liberdade Sexual do Código Penal, e não há nenhuma previsão específica, a ação penal em todos esses casos seria a mesma da regra geral daquele capítulo, ou seja, pública condicionada à representação. Outra observação é que nos três casos a pena máxima é superior a 3 anos, o que significa que não se tratam de crimes de menor potencial ofensivo e, portanto não se sujeitariam à Lei n. 9099/95 (Juizados Especiais Criminais), como é o caso dos crimes de injúria e difamação. 2) A criação de um tipo penal específico, no Capítulo do Ultraje Público ao Pudor do Código Penal com o número 233-A (PLs 3158/15 e 4527/16). Enquanto o PL 3158/15 prevê punição a quem promover exposição pública da intimidade física ou sexual de alguém, o segundo restringe o crime a fazêlo (textualmente “divulgar foto ou vídeo íntimo”) contra a vítima mulher. No PL 4527/16, existe a previsão expressa de que a conduta pode ser enquadrada na Lei Maria da Penha (especificamente Artigo 7º, inciso II). No primeiro projeto, é previsto o aumento de pena pela metade nos casos envolvendo menores de idade, deficientes e quando o autor mantiver ou tiver mantido algum tipo de relação com a vítima (afetiva, parentesco ou trabalhista). Além disso, a proposta prevê multa se o crime for motivado por obtenção de vantagem econômica. 3) A alteração na Lei n. 11.340/06 (Lei Maria da Penha), que cria mecanismos de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher. As três propostas (PLs 170/15, 5822/13, 5555/13) adotam como estratégia Pena, como sabemos, impraticável e ainda que possível bastante nociva em termos de exercício de outros direitos pelo réu. t

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inserir a “violência de intimidade” dentre os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, que são definidos de forma não exaustiva no art. 7º da Lei Maria da Penha. A violência de intimidade seria entendida como a divulgação de imagens, dados pessoais, informações, vídeos, áudios, montagens e fotocomposições da mulher (sem restrição explícita aos casos de divulgação com cunho sexual), sem seu consentimento, valendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade. Esses projetos de lei não preveem a criação de um novo crime. O que ocorre é que, se a violação de intimidade passa a ser entendida como violência a ser enfrentada pela Lei Maria da Penha, toda a sistemática da lei passa a se aplicar a esses casos. Assim, as medidas protetivas previstas no Capítulo II da Lei passam a ser aplicáveis. Outra consequência é que, sendo aplicável algum crime do Código Penal à conduta (como difamação), seria aplicável a agravante de pena do art. 61, inciso II, f, ou seja, de o crime ter ocorrido com “violência contra a mulher na forma da lei específica”. Uma das principais consequências, por fim, é que aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena, não se aplica a Lei n. 9.099/95 (art. 41 da lei). Isso quer dizer que uma queixa-crime por injúria combinada com a Lei Maria da Penha não seria julgada pelos Juizados Especiais, porque o crime em questão deixaria de ser de menor potencial ofensivo. As proposições de mudança da Lei Maria da Penha abordam, portanto, somente os casos em que a violação de intimidade se dá valendo-se de “relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade” - com a ressalva de que esses termos têm recebido tratamento bastante liberal, entendendo-se as relações domésticas de forma alargada (para relações íntimas em geral). Além disso, esses projetos não têm qualquer referência à motivação dos agentes, ou seja, a ideia de vingança ou revanche não é contemplada.

4.1.1. CARACTERÍSTICAS COMUNS ENTRE OS PROJETOS Embora apresentem “modelos” diversos, os projetos baseiam-se em justificativas semelhantes que destacam: (i) o diagnóstico de que os casos em geral ocorrem em relações íntimas ou

domésticas e contra mulheres: Essa conduta é praticada por cônjuges ou ex-cônjuges que se valem da condição de coabitação ou de hospitalidade para obter tais registros, divulgando-os em redes sociais como forma 133

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de constrangimento à mulher. (Justificativa do PL 5555/13 e do PL 5822/13 – com poucas diferenças) Essa conduta tem sido praticada por cônjuges ou ex-cônjuges que se valeram da condição de coabitação ou de hospitalidade para obter tais informações e divulgá-las, principalmente em sites de redes sociais – que já figuram como verdadeiros espaços públicos virtuais. (...) Pretendemos, portanto, tipificar essa forma de violência, que atinge principalmente as mulheres, também na Lei Maria da Penha, garantindo maior proteção à vida íntima de todas as brasileiras e suas famílias. (Justificativa do PL 170/15) (ii) gravidade da conduta e a ausência de legislação específica para

enfrentá-la: Há uma dimensão da violência doméstica contra a mulher que ainda não foi abordada por nenhuma política pública ou legislação, que é a violação da intimidade da mulher na forma da divulgação na Internet de vídeos, áudios, imagens, dados e informações pessoais da mulher sem o seu expresso consentimento. (Justificativa do PL 5555/13) Para o delegado José Mariano de Araújo Filho, especialista da Polícia Civil de São Paulo em investigações de crimes praticados por meios eletrônicos, a dificuldade operacional e a ausência de regulamentação legislativa para coleta das provas são os principais entraves à resolução desses casos.

(Justificativa do PL 6630/13) A disciplina que se iniciou com a chamada “Lei Carolina Dieckmann”, porquanto em tal diploma não se previu a específica incriminação concernente à divulgação do material em foco. Ademais, na Lei nº 12.737, de 2012, ao cuidar da publicação indevida, restringiu-se a cuidar dos casos de invasão de dispositivo informático. (Justificativa do PL 3158/15) (iii) a necessidade de maior intervenção estatal: (a) seja pela perspectiva de aumento do número de casos graças ao incremento do uso de computadores no Brasil: De acordo com as projeções da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o Brasil terá, em 2016, um computador por habitante, o que torna cada vez mais danosa e progressiva a forma de violência que evidenciamos e buscamos coibir.

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(Justificativa do PL 5822/13)

(b) seja devido à gravidade dos casos, em si: Cumpre, portanto, ao legislador, dar uma resposta efetiva à sociedade, aterrorizada com o rumo dos acontecimentos. (Justificativa do PL 6713/13) A mulher merece ser mais respeitada em nosso País. Com efeito, é imperioso que não fechemos os olhos para a necessidade de ampliação da proteção das mulheres, parcela renitentemente menosprezada em nossa sociedade. A covardia da violência contra as mulheres, infelizmente, vem se reinventando, daí a necessidade de o legislador permanecer atento às novas maneiras de ataque contra elas. Desta maneira, ora se busca inovar na ordem jurídica pátria, modernizando o repertório normativo, para que os casos de agressões contra as mulheres, mediante a divulgação de foto ou vídeo íntimo, seja objeto da mais viva resposta estatal, que é a responsabilização criminal. (Justificativa do PL 4527/16) Entre as justificativas, é relevante destacar também a do PL 7377/14, que pretende o enquadramento da conduta de violação de intimidade no capítulo sobre Liberdades Sexuais do Código Penal. Para o autor da proposta, a proteção da norma deve incidir sobre a integridade e não a honra da vítima: Prosseguir tipificando tais condutas como difamatórias, vale dizer atentatórias à honra, é reforçar o viés machista com que a vida sexual da mulher é julgada no meio social. É um paradoxo que a mulher tenha de se afirmar “honesta” diante da mera acusação de estar exercendo livremente sua sexualidade. O que a legislação brasileira precisa proteger é a integridade psicológica da vítima, que tem sua intimidade violada e exposta à apreciação pública, diante da divulgação no mundo cibernético, no qual não tem qualquer controle da disseminação. Os danos são graves e muitos deles irreparáveis: demissão, reprovação escolar, banimento social e até desenvolvimento de quadros traumáticos e doenças psíquicas que podem conduzir ao suicídio, especialmente entre jovens. O tipo penal proposto insere-se no capítulo dos crimes contra a liberdade sexual, sendo que o nome violação de privacidade demonstra tratar-se de delito a ofender a liberdade sexual por meio de propagação desautorizada do conteúdo violador, de forma a afastar eventual enquadramento de condutas praticadas em ambiente público, quando não se cogita privacidade e também excluir a hipótese de reprodução não autorizada de material de conteúdo erótico, eis que ilícito abordado no capítulo dos crimes contra a propriedade intelectual.

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Tal posicionamento – relevante na perspectiva da autonomia das vítimas, um dos cernes do debate sobre relações de gênero - é corroborado por diversos participantes nas audiências públicas ocorridas no Congresso Nacional entre 2015 e 2016 que tiveram como objeto de discussão o PL 5555/13 (ao qual foram apensados os PLs 5822/13; 6630/13; 6713/13; 6831/13 e 7377/14). Na próxima parte deste livro, nos aproximarmos dos debates ocorridos entre parlamentares, operadores do direito e sociedade civil e apresentaremos os principais posicionamentos de tais atores e atrizes sobre o tema.

4.1.2. AUDIÊNCIAS PÚBLICAS: OS DEBATES SOBRE O PL 5555/13 Foram realizadas três audiências públicas sobre o tema no Congresso Nacional. A primeira em 27 de agosto de 2015 na Câmara dos Deputados; a segunda em 29 de setembro do mesmo ano no Senado Federal e a terceira em 08 de março de 2016, no âmbito da Comissão Parlamentar de Inquérito de Crimes Cibernéticos165. Embora tenham ocorrido em distintos contextos e com participantes diferentes, é possível extrair algumas observações gerais sobre o que cada um dos perfis de participantes tem trazido ao debate sobre os projetos de lei em análise. As audiências realizadas em 2015 foram promovidas pela Comissão Permanente Mista de Combate à Violência contra a Mulher (instância constituída por 10 senadoras/es e 27 deputados/as), responsável pela apresentação de propostas para a consolidação da

Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres , bem como pela busca das possíveis falhas nas ações e serviços da seguridade social e na prestação de segurança pública e jurídica às mulheres vítimas de violência, além de apresentar projetos com o objetivo de corrigir essas lacunas166. Na sessão realizada na Câmara dos Deputados, participaram: •

uma representante do Poder Executivo (Aline Yamamoto, Secretária Adjunta de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de

Criada em julho de 2015, a CPI tem como principal objetivo – de acordo com documento do ato de criação - a investigação dos crimes cibernéticos e seus efeitos na economia e sociedade. Todas as suas atividades podem ser conferidas em: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/ comissoes-temporarias/parlamentar-de-inquerito/55a-legislatura/cpi-crimes-ciberneticos. 165

O plano de trabalho da Comissão - instituída após recomendação da CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) da Violência contra a Mulher em março de 2015 – pode ser conferido em: http://www.compromissoeatitude.org.br/wp-content/uploads/2015/07/CMCVM_ PlanodeTrabalho07072015.pdf 166

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• •

Políticas para as Mulheres da Presidência da República); uma do Poder Judiciário (Sara Gama, Promotora da Vara de Violência contra a Mulher no Estado da Bahia), e um da sociedade civil (Thiago Tavares Nunes de Oliveira, Presidente da SaferNet Brasil).

Na audiência ocorrida no Senado Federal, além das já citadas representantes do Poder Executivo e Judiciário, participaram também: •

• •

Márcia Lisboa Nunes (Juíza titular da Primeira Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Salvador) e Isabel Alice de Pinho (Delegada de Polícia pelo Estado da Bahia); representando o Poder Legislativo Estadual, a Deputada do Rio de Janeiro e Presidente da Comissão da Infância e da Juventude, Tia Ju (PRB). Assim como na audiência da Câmara, houve espaço para participação da sociedade civil, desta vez representada por Camila Nicácio, professora coordenadora do Programa de Pesquisa e Extensão da Clínica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

A CPI de Cibercrimes, por sua vez, contou somente com membros do sistema de Justiça: • • • • •

Valéria Diez Scarance Fernandes - Promotora de Justiça, Coordenadora do Núcleo de Violência Doméstica do Ministério Público de São Paulo; Diana Calazans Mann - Delegada da Polícia Federal; Dulcielly Nóbrega de Almeida - Defensora Pública, Coordenadora do Núcleo de Defesa da Mulher da Defensoria Pública do Distrito Federal; Thiago André Pierobom de Ávila - Coordenador do Núcleo de Defesa da Mulher do Ministério Público do Distrito Federal, e Ana Cristina Melo Santiago - Delegada de Polícia, Chefe da Delegacia de Atendimento à Mulher do Distrito Federal)

O estudo das intervenções das reuniões nos permite identificar três grandes tendências na fala dos participantes: uma de diagnóstico do problema (ressaltando-se dados de pesquisas provenientes, principalmente, da SaferNet, do Instituto Avon e de organizações internacionais, como a ONU, ou ainda o relato de casos emblemáticos ocorridos principalmente no Brasil); a outra, no sentido de constatação de necessidade de intervenção estatal, em geral refletindo a posição do participante (por exemplo, membros do Poder Judiciário bastante enfáticos na necessidade da criação de um tipo penal); e, por fim, uma perspectiva propositiva com base na leitura e análise dos projetos de Lei167. 167

Adiante destacamos as falas/intervenções que consideramos emblemáticas nos sentidos expostos,

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Nas audiências da Câmara e do Senado, a Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM) levou uma exposição dos trabalhos no órgão no sentido de coibir práticas de violência contra a mulher, dentre eles a política pública construída juntamente com a Secretaria de Direitos Humanos: o “Humaniza Redes”168. A SPM apresentou também uma perspectiva propositiva sobre o tema, que se coaduna à justificativa do PL 7377/14: A SPM reforça, em relação às propostas existentes, a importância de pensarmos em modificar o Código Penal, mas sem a perspectiva de olhar para esses crimes como crimes contra a honra. Nós estamos falando de um crime que está além disso. Não é o caso de ficarmos discutindo aqui honra de ninguém. Sabemos que as mulheres têm direito de exercer sua sexualidade. O que está em jogo é a violação da intimidade, é fazer isso sem a autorização, sem o consentimento das meninas e das mulheres. Então, as propostas que alteram o Código Penal são as que inclusive trazem causas de aumento para deixar clara essa questão das relações íntimas de afeto. Muitas vezes também já se faz uma referência à questão da Lei Maria da Penha. Para nós, essa é uma questão crucial que precisa constar desse debate. Embora a gente saiba que não é a absoluta maioria das mulheres e meninas que são as vítimas desse crime, mas é, sim, a maioria delas. Então, isso precisa ser considerado, criando, portanto, uma causa de aumento que reflita essa desigualdade, essa discriminação. Se a gente continuar legislando sempre com base na suposta neutralidade, a gente vai simplesmente continuar repetindo as desigualdades, vai continuar não tratando e não dando a resposta adequada para esses diversos crimes, e aqui se está falando de violência contra as mulheres e desse contexto de desigualdade, de discriminação e de preconceito. Como mencionamos atrás, os representantes do sistema de Justiça, por sua vez, destacam principalmente os problemas da inexistência de um tipo penal específico e inadequação das leis vigentes. Vejamos: (...) O ordenamento jurídico está habilitado a resolver os problemas advindos dessa potencializada e virtual de modo não exaustivo. Para acessar a integra dos debates conferir: http://www2.camara.leg.br/ atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/ccjc/audiencias-publicas/audienciaspublicas-2015/pl-5-555-13-combate-a-condutas-ofensivas-contra-a-mulher-na-internet (Audiência Câmara); http://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaoaudiencia?id=5153 (Audiência Senado) http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/ parlamentar-de-inquerito/55a-legislatura/cpi-crimes-ciberneticos (Audiência CPI de Cibercrimes). 168

Discorreremos com mais detalhes sobre tal política no próximo tópico.

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interconexão? Não, não está. Atualmente, não está. Por quê? O que nossas leis oferecem? Nos chamados crimes contra a honra, há os arts. 138, 139 e 140 do CP (calúnia, injúria e difamação), com penas muito pequenas, que variam de seis meses a dois anos, no caso de calúnia; de três meses a um ano, no caso de injúria, e de um a seis meses no caso de difamação. Há a Lei Carolina Dieckmann, que eu vinha até comentando. É uma lei que surgiu em face de terem sido roubadas as imagens da Carolina; ali, não havia conexão entre Carolina, a vitima, e o autor. É diferente dos nossos casos com a roupagem da Lei Maria da Penha. Na nossa abordagem, o autor tem uma relação íntima com aquela mulher, ou teve. Ele tem, ele conhece. Aí, é uma abordagem completamente diferente. E temos o art. 65 da Lei de Contravenções Penais, de 1938: perturbação da tranquilidade. Olha, eu não sei o que me revoltaria mais: se alguém fosse condenado numa situação a pegar 15 dias a 2 meses ou multa por fazer uma coisa dessas, ou se não houvesse condenação. Sinceramente, eu não sei o que aconteceria, porque eu não vejo resposta. Com o que nós temos aí, para mim, a Justiça não está dando resposta. (Sara Gama, Promotora de Combate à Violência Doméstica contra a Mulher do Estado da Bahia na Audiência do Senado Federal); (...)Porque antigamente como era? “Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher.” E o Estado não intervinha. Agora, não! É obrigação do Estado intervir, porque quem não intervier pode ser responsabilizado também, porque você tem o dever de ajudar o seu próximo. É uma inação, é um crime de omissão. Então, isso é muito importante que se veja! É claro que isso tem de ser colocado em leis, para que nós possamos trabalhar. (Márcia Lisboa Nunes, 1ª Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Salvador); (...) Aproveitando que estou aqui, meu pedido como mulher, como pessoa, como promotora é que os senhores nos permitam trabalhar, que os senhores criem mecanismos para que mulheres possam dizer não, sem que suas fotos, sem que seus nomes sejam jogados na Internet. Sem que pessoas e famílias tenham suas mortes civis decretadas. (...) (Valéria Diez Scarance Fernandes, Promotora de Justiça, Coordenadora do Núcleo de Violência Doméstica do Ministério Público de São Paulo, na CPI de Cibercrimes); “As leis vão ajudar a modificar alguma coisa?”. A minha sentença vai modificar a vida dessa mulher? Não vai; vai dar um alento, vai poder ajudá-la, mas não vai modificar efetivamente a vida dos filhos dela que precisam dessa conjuntura do Poder Legislativo,

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do Executivo e do Judiciário juntos. (Márcia Lisboa Nunes1ª Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, do Estado da Bahia). Para além da perspectiva da necessidade da criação de normas, os representantes do sistema de Justiça – em especial Thiago André P. de Ávila, Coordenador do Núcleo de Defesa da Mulher do Ministério Público do Distrito Federal e a Delegada da Policia Federal/Chefe da Divisão de Direitos Humano, Diana Calazans Mann - destacam a necessidade de aprimoramento das condições de trabalho dos operadores do direito. São sugeridas a implementação de novas delegacias de crimes cibernéticos169, qualificação dos quadros para investigação, estruturação das policias civis e Ministério Público, ampliação de acordos internacionais de cooperação, formação de policiais e agentes públicos e promoção de ações de educação para o uso da Internet e para a prevenção à violência contra as mulheres. Ainda apresentando uma perspectiva de atuação estatal, a fala de representante do Poder Legislativo estadual aponta também para saídas que não envolvem apenas a mudança da letra da lei: Assim, eu acho que o ambiente escolar ainda é uma grande ferramenta que podemos utilizar para informar e orientar essas meninas no sentido de que elas não devem ter medo de falar para os seus parentes, seus amigos, seus vizinhos, caso tenham percebido que suas imagens foram jogadas na rede; que elas não deixem de buscar ajuda do adulto em quem elas confiam. Às vezes, a adolescente não tem a confiança que precisa ou que acha que é necessária dos pais, mas há sempre um vizinho, um amigo, um parente a quem ela pode recorrer. (Deputada Estadual Tia Ju)170 A perspectiva propositiva, analítica dos projetos de lei, embora realizada pela maioria dos participantes, foi apresentada de forma sistemática pelos atores que representam a sociedade civil, a saber: Thiago Tavares, da SaferNet Brasil e Camila Nicácio, da UFMG. Tavares fez duas ponderações relevantes acerca dos projetos: a primeira tem a ver com as leis a serem alteradas pelo PL. Segundo o participante, o lugar mais apropriado para

Thiago Tavares da ONG SaferNet, na audiência realizada na Câmara, informa que há no Brasil apenas 8 delegacias especializadas em crimes cibernéticos. Estas estão localizadas nas capitais e contam com uma estrutura deficiente para lidar com os casos: são “2, 3 delegados cerca de 2,3 mil processos”. Outro ponto importante, é que atualmente as delegacias de crime cibernético recebem apenas demandas relacionadas a crimes contra o patrimônio, como estelionato, logo uma reestruturação deveria levar em conta a ampliação de suas atribuições. 169

Como veremos adiante, na exposição do estudo de caso sobre o TOP 10, esta visão é compartilhada por ativistas que trabalham diretamente com crianças e adolescentes. 170

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a tipificação do crime de violação de privacidade é o Código Penal (no capítulo das liberdades sexuais), dada a sua abrangência e também porque considera a Lei Maria da Penha um diploma principiológico, tão-somente – de acordo com ele, essa lei não criaria nenhum crime novo, apenas organizaria delitos já existentes sobre uma perspectiva de gênero. A segunda ponderação refere-se ao prazo descrito no projeto de lei para retirada do conteúdo pelos provedores. Vinte e quatro horas, tal como previsto, é considerado um prazo longo pelo participante (“Vocês imaginam o que acontece em 24h na Internet?”), e então propõe que a redação contenha a palavra imediatamente. A representante da UFMG, por sua vez, fez sugestões de redação sobre o PL 5555/13, cujo conteúdo foi objeto de análise de um projeto de extensão na referida Universidade171. A primeira sugestão refere-se à nomenclatura do fenômeno: a professora discorda do uso do termo “pornografia de vingança”: É claro que o componente vingança está dentro da conduta, mas não somente. Nós achamos que ele tem um conteúdo que pode ser restritivo, porque, muitas vezes, aquele envio, aquela distribuição, aquela distribuição de pornografia é feita também por gente que não tem vínculo nenhum com a pessoa. (...) Então, quanto à pornografia de vingança, propomos a substituição, para ampliar o escopo da futura lei, por pornografia não consensual. Quer dizer, o ponto é o não consenso. Não tínhamos consenso em divulgar isso ou não. Isso tem de ser para nós um ponto de partida. Os participantes da sociedade civil estiveram em concordância com diversos outros participantes e parlamentares, nas audiências, quanto à inadequação do enquadramento dos casos no capítulo dos Crimes contra a Honra do Código Penal. Refletindo sobre a severidade da pena, Nicácio pondera que, obedecendo ao principio da proporcionalidade172, ela não deveria ultrapassar 2 anos173. Embora admita que isso possa ser problemático (pertinência da aplicação da Lei 9099/95), a criminalização em si significaria dizer sem

equívoco: “Não concordamos com essa ação, reprovamos essa ação”. A Recomendação da Clínica de Direitos Humanos da UFMG sobre o PL 5555/13 na íntegra, pode ser conferida em: http://www19.senado.gov.br/sdleg-getter/public/ getDocument?docverid=4e23550b-861a-4cce-b9b0-3877413f31e6;1.0 171

Ainda sobre pena a professora alerta que a mesma deve diferenciar-se em relação a quem divulga e quem tão somente compartilha: Não dá para tratar da mesma maneira as duas condutas, que são diversas. O primeiro, o autor, tem uma responsabilidade maior. Se o outro, por torpeza, por diversão ou por qualquer outro motivo, decidiu se divertir com a divulgação, com o compartilhamento, que pague uma multa das boas, Juíza, mas ele não tem que ser tratado da mesma maneira. 172

Recomenda-se também o agravamento de pena caso a vítima tenha tido relação afetiva com o agressor ou seja portadora de deficiência. 173

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A intervenção de Nicácio também ponderou sobre a necessidade de não se restringir do tipo penal à vítima com critérios de gênero, identidade ou orientação sexual, e recomendou a abertura na redação do caput do artigo, de modo a abranger diferentes condutas em relação à violação de intimidade: o caput deve ser mais vasto, sem dar, é claro, ensejo à confusão. Devemos falar, por exemplo, não só em divulgar, porque virão muitos encrenqueiros esquivando-se da lei. É claro que sim! As delegadas estão aqui e poderão falar isso comigo. Sim! Pensamos que devemos trazer palavras como “oferecer”, “trocar”, “disponibilizar”, “transmitir”, “distribuir”, “publicar”, “divulgar”. Por que não? Mas não deve ser só isso. Divulgar é um componente num tipo mais vasto que a gente quer. Há noções de imagem e de nudez total ou parcial, ato sexual, ato obsceno, comunicação de conteúdo sexualmente explícito. Devemos falar um pouco mais sobre esses temas para evitar tanto a redundância como a restrição. Devemos ter um tipo abrangente. Sem descaracterizá-lo, mas que seja abrangente o suficiente para proteger o máximo de pessoas envolvidas Ainda nessa nota, ela sugeriu a inserção dos termos “por qualquer meio” no caput do artigo, e previsão de punição também para realização de montagens (todas as ações devem ser punidas, independente do consentimento da vítima no contexto da filmagem ou captura da imagem). *** Em dezembro de 2015, foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça um substitutivo ao PL 5555/13 (segundo item do quadro VIII, acima) que de fato incorporou as sugestões e recomendações apresentadas nas audiências públicas. Para além da modificação da Lei Maria da Penha174, o projeto prevê a inserção da conduta como Artigo 216-A do Código Penal175 (no capítulo dos Crimes contra a Liberdade Sexual), com a previsão da configuração de crime mesmo que a vítima tenha consentido na captura ou no armazenamento da imagem ou da comunicação, com pena de 3 meses a 1 ano e multa, e seu agravamento de 1 a 2 anos e multa caso o crime tenha sido cometido contra pessoa com deficiência e contra vítima que não pode oferecer resistência ou não tenha o necessário discernimento. Com a redação: “Art 7º........VI – a violação da intimidade da mulher, entendida como a divulgação, por meio da internet ou outro meio de propagação de informações, de dados pessoais, vídeos, áudios, montagens e fotocomposições da mulher, obtidos no âmbito das relações domésticas, de coabitação ou hospitalidade, sem seu expresso consentimento.

174

Com a seguinte redação: “Divulgar, publicar, oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, compartilhar, disseminar, por qualquer meio, sem consentimento da vítima, fotografia, vídeo ou outro registro, incluso montagem, que contenha nudez, ato sexual ou conteúdo sexualmente explicito” 175

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Na audiência da CPI de Cibercrimes, bem como no relatório final apresentado, há forte recomendação de aprovação do PL, que deve ainda ser votado nas duas casas. O olhar para todas as propostas e seu debate nos permite afirmar que há entre os participantes uma visão consensual sobre o poder simbólico da lei. Ou seja: independente da pena aplicada, haveria, em sua opinião, a necessidade da criação de um tipo penal, para que essa conduta fosse reprimida de forma mais sistemática na sociedade – o fato de “existir um crime” já poderia produzir certo efeito. Nas falas dos operadores do direito, entretanto, revela-se de modo bastante evidente elementos do que Álvaro Pires (2004) denomina de racionalidade penal moderna176 – um sistema de pensamento que se construiu no Ocidente a partir do século XVIII que elege uma estrutura normativa na qual a pena aflitiva comunica o valor da norma de comportamento e o grau de reprovação em caso de desrespeito177. Da perspectiva de Pires, a definição do crime pela sua pena, em geral aflitiva, naturaliza ou simplifica soluções e, no limite, impede a inovação ou “a criação de uma nova racionalidade

penal e de uma outra estrutura normativa” (Pires, 2004, p. 43), ou seja, não nos permite a criatividade para, reconhecendo a função simbólica da lei e a gravidade da violação da intimidade, não apenas comunicá-la via criminalização, mas refletir sobre formas outras de penalização (que não as restritivas de liberdade). Não obstante, os diferentes atores/atrizes envolvidos no processo legislativo reconhecem a relevância da combinação da criminalização com políticas e ações diversas de prevenção da conduta. Por essa razão, tratamos adiante brevemente de uma política pública que, durante a elaboração deste trabalho, apresentou-se a nós como a mais direcionada a esse sentido, implementada pelo Poder Executivo – o Humaniza Redes.

4.2. PODER EXECUTIVO: PROGRAMA HUMANIZA REDES O programa Humaniza Redes – Pacto Nacional de Enfrentamento às Violações de Direitos Humanos na Internet – foi lançado em abril de 2015, como uma iniciativa do Governo Federal. Quando da criação do programa, as Secretarias da Igualdade Racial, dos Direitos Humanos e das Mulheres eram independentes e possuíam status de Ministério; em outubro de 2015, com a Medida Provisória 696/15, elas foram unificadas como Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, que passou

Tal racionalidade também fora constatada nos discursos de ativistas negros e legisladores no contexto da demanda por criminalização do racismo. Conferir: Machado, Cutrupi e Santos (2015). 176

De fato, ao longo do debate nos parece que tão somente a representante da UFMG não esboça tal visão. 177

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a coordenar o programa em parceria com Ministério da Cultura, Ministério da Educação, Ministério das Comunicações e Ministério da Justiça178. Enquanto finalizamos este livro, foi promulgada pelo presidente interino Michel Temer a Medida Provisória 726/16, que extinguiu o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (levando suas atribuições para o Ministério da Justiça). Podemos estar tratando de um programa já extinto, portanto – e, nesse sentido, praticamente natimorto. Ainda assim, vale analisá-lo como exemplo de iniciativa de política pública, mesmo que tentada. Quando do lançamento, embora as Secretarias de Direitos Humanos, Políticas para Mulheres e Igualdade Racial já contassem com Ouvidorias para registros também de denuncias de violação de direitos, não havia na estrutura governamental um canal específico para denúncia de casos ocorridos na Internet. Daí o diagnostico da necessidade de criação de um Grupo de Trabalho para implementar uma política com foco em violação online. Assim é narrada a criação da iniciativa pela Diretora da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, Irina Bacci: Pesquisadora: E de onde surgiu a ideia ou a demanda por criar um programa como o Humaniza Redes? Irina Bacci – Cada vez mais, tanto a ouvidoria de Direitos Humanos, quanto a ouvidoria da Igualdade Racial e a ouvidoria da Mulher, que são as três ouvidorias do governo que cuidam de denúncias a respeito da violação de direitos humanos para os públicos que a gente atende, nós observamos o crescimento de denúncias dentro da internet. Além disso, no ano passado foi criado um grupo de trabalho que ficou conhecido como Grupo de Trabalho Crimes de Ódio, mas na verdade era um grupo que trabalhava com violações de direitos humanos na internet.É, ele ficou conhecido pela imprensa com esse nome, mas, na verdade, ele se chamava grupo de trabalho Violação de Direitos Humanos na Internet. E esse grupo de trabalho começou a pensar em diversas formas de entender a dinâmica que começou a se estabelecer cada vez mais nas redes sociais principalmente, mas também na internet como um todo, como um ambiente muito favorável a propagação do ódio e às violações dos direitos humanos, inclusive violações bastante sérias que culminaram na morte de pessoas que tiveram nas redes sociais seus nomes relacionados a determinados hábitos – pessoas que foram linchadas e mortas -, casos que chegaram ao grupo de trabalho e o grupo de trabalho se debruçou para pensar em uma alternativa.

A Portaria Interministerial nº 2/2014 instituiu, primeiramente um Grupo de Trabalho que contou também com a participação do Conselho Nacional do Ministério Público Federal, a Ordem dos Advogados do Brasil e o Conselho Federal e o Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerais. A política em si foi instituída em abril do ano de 2015 por meio da Portaria Interministerial nº 3/2015. 178

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Aí o grupo de trabalho se iniciou no final do ano de 2014. Nós pensamos em uma série de alternativas, mas percebemos que nenhuma delas surtiria efeito se nós não tivéssemos associados a um canal de denúncia uma campanha educativa, no intuito de ter um ambiente seguro pelas empresas que oferecem as aplicações de internet, então nós começamos a conversar com todos os parceiros interessados. Começamos a conversar com as empresas que oferecem aplicações para a internet, com as associações, com o sistema de justiça, com usuários da internet, com parceiros que lidavam com a temática – como a UNICEF, a UNESCO e outros parceiros, como a SaferNet – e a gente foi conversando para propor estudos meio de estudos, e aí desenhamos o pacto que é dividido em três eixos: eixo de educação e direitos humanos; eixo de enfrentamento às violações de direitos humanos na internet e o terceiro eixo, que é de segurança e de uso responsável. Todos eles, obviamente, dialogam entre si e complementam-se. (grifos nossos) Como apresentou a gestora, a política constituiu-se de três eixos. No primeiro indicado estão principalmente as campanhas realizadas em redes sociais e elaboração de materiais contra o racismo, sexismo, LGBTfobia; no segundo está o recebimento e encaminhamento das denúncias à órgãos competentes, bem como a estruturação do canal de recebimentos de demandas de violações ocorridas na internet; o terceiro eixo seria sobre segurança e uso responsável da Internet, focando-se principalmente na divulgação de dicas de segurança. O anúncio da política, por sua vez, apresentava também a proposta da criação de um software que monitoraria e mapearia crimes contra Direitos Humanos nas redes sociais179. Isso despertou preocupação em atores/atrizes parlamentares e da sociedade civil sobre direitos de privacidade e liberdade de expressão dos usuários. Em abril de 2015, foi apresentado pelo deputado Roberto Freire do PPS/SP o Projeto de Decreto Parlamentar de Sustação de Atos Normativos do Poder Executivo47/15180, com objetivo de sustar a Portaria Interministerial nº 3, que criou o Programa Humaniza Redes. Na justificativa, os seguintes argumentos: “Este grupo [o GT instituído por Portaria] terá dentre suas atribuições a de estruturar o canal de recebimento de denúncias no ambiente digital, muito embora não haja no texto nenhum critério, tampouco a destinação dessas denúncias.

http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2014/12/governo-vai-usar-software-contracrimes-de-odio-na-internet 179

Inteiro Teor disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/ fichadetramitacao?idProposicao=1214850 180

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Muito vagamente, estabelece que o Programa deverá observar os direitos e garantias fundamentais, a proteção da privacidade, ao mesmo tempo que deverá considerar a liberdade de expressão, a convivência pacífica, tolerância e respeito às diferenças e à diversidade de manifestações culturais, políticas e religiosas. Ora, o julgamento acerca do conteúdo veiculado na Internet não é tão simplório. Muitas vezes, a liberdade de expressão não caminha no mesmo sentido da convivência pacífica. E este Congresso Nacional não delegou ao Poder Executivo a prerrogativa de decidir o que seria o conteúdo ofensivo nas redes sociais. Ao aprovar o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/14), em seu Art. 19, o Congresso Nacional estabeleceu que caberia ao Poder Judiciário tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário. Ou seja, não há que se falar em Comitê Gestor do Executivo para “humanizar a Rede” sem previsão legal para tanto. Muito embora o Grupo possa vir a diminuir o número de ofensas na Internet, não podemos admitir qualquer medida que venha a ameaçar minimamente a liberdade de expressão e a manifestação do pensamento.” (grifos nossos) É interessante notar que, para além da preocupação com as garantias de direitos de privacidade e liberdade de expressão, o projeto tratava da temática das competências e atribuições dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário: No mesmo sentido, cabe ressaltar que a Portaria carece de clareza na determinação dos atos que serão considerados “ofensas”, ou “redução da violência motivada por ‘outras situações de vulnerabilidade’, “uso seguro e responsável das aplicações de internet e aplicativos”, o que daria ainda mais poder decisório a essa Comissão, ao arrepio da lei e dos demais Poderes. Por fim, cabe lembrar que já existem meios definidos na Constituição destinados ao recebimento de denúncias. As Polícias e o Ministério Público já detêm essa competência. A ideia do Disque-Denúncia tampouco é original, pois já existe a Portaria Interministerial nº 2, de 20 de novembro de 2014, com a finalidade de receber denúncias de crimes de discriminação nas redes sociais online, que inclusive determina o encaminhamento às autoridades competentes. Não há, portanto, nenhum motivo para baixar nova Portaria, sem o estabelecimento de diretrizes claras embasadas em lei, nem da destinação das denúncias. Por essas razões, necessário se faz suspender a eficácia e vigência da Portaria Interministerial nº 3/2015, para que não paire sob este Parlamento a ameaça de um dos pilares da Democracia, que é a liberdade de expressão, seja na Internet, ou fora dela.(grifos nossos) Apreciado pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias em novembro do mesmo ano,

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o projeto foi rejeitado pelo relator Paulo Pimenta (PT/RS), que ressaltou os objetivos da política nos seguintes termos: (...) Essas afirmações são equivocadas, pois não cabe ao Comitê Gestor definir o que são esses conteúdos ofensivos – ele só recebe e encaminha para a Ouvidoria do Ministério que por sua vez manda para os órgãos competentes. Conforme consta na página Humaniza Redes, “depois de feita a denúncia, a Ouvidoria analisa se o link denunciado corresponde ao conteúdo indicado e, se sim, encaminha aos órgãos competentes, conforme ordenamento jurídico brasileiro. Quem verifica se houve violação ou crime são os órgãos de proteção e responsabilização”. Não há nada na Portaria que indique que o Programa poderá fazer “julgamento acerca do conteúdo veiculado na Internet”, como diz o autor na justificativa de seu projeto. O programa Humaniza Redes respeita a liberdade de expressão (diretriz contida no art. 2 da referida Portaria) estando submetido, como toda política pública, às leis e à Constituição Federal. O projeto de decreto legislativo que ora apreciamos tem a louvável intenção de preservar e defender a liberdade de expressão, porém, faz uma leitura equivocada do teor da Portaria, pois não há ameaça a esse direito fundamental na norma que cria o Humaniza Redes. Fora do Congresso, outro ator que demonstrou preocupação com as características da ferramenta que o Programa declarou que utilizaria, principalmente quanto a temáticas e critérios para o recebimento e mapeamento de denúncias foi a ONG Artigo 19; que para obter esclarecimentos, encaminhou seis Pedidos de Informação ao Governo Federal181. No primeiro deles, no final de 2014, a organização solicitou detalhes sobre o mecanismo de mapeamento (qual fora o software utilizado, quando e qual fora o processo para sua obtenção), ao que os responsáveis pela política responderam com informações técnicas (“a adaptação do backend - a estrutura de coleta, processamento e disponibilização de dados - e

frontend - a interface web - do “Hash-DH” será uma construção de 12 meses, embora hoje baseados em scripts públicos) e esclarecendo os passos ou etapas dos trabalhos do programa: O primeiro processo da criação do Hash DH será o da coleta de dados públicos a partir de temáticas definidas pelo Grupo de Trabalho e pela área de Divulgação da Política de Direitos Humanos da SDH/ PR, já que o termo de cooperação com o Laboratório de Internet

Os links consultados para descrição dos pedidos de informação e respostas: http://www.artigo19. org/centro/esferas/detail/706; http:// www.artigo19.org/centro/esferas/detail/701; http://www.artigo19.org/centro/esferas/detail/702; http://www.artigo19.org/centro/esferas/detail/704; http://www.artigo19.org/centro/esferas/ detail/705; http://www.artigo19.org/centro/esferas/detail/703 181

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e Cultura da Universidade Federal do Espírito Santo (Labic/UFES) não está restrito aos trabalhos do GT. Aqui, o foco é monitorar dados temáticos de atos discriminatórios que tenham tipificação penal (denunciados pelos usuários na internet) e a produção de dados que integrem as redes de proteção de direitos humanos. A coleta de dados será feita a partir de scripts públicos e/ou aperfeiçoados dentro da pesquisa científica do Labic/Ufes. Alguns desses códigos podem ser acessados publicamente em diferentes canais na internet uma vez que a cartografia de dados na rede é realizada por perfis, instituições privadas e organizações da sociedade civil. Exemplo de códigos fundamentais para o aperfeiçoamento o desenvolvimento da pesquisa em data science: Pacotes R. Após a coleta de dados, vem a fase da modelagem de tópicos (topicmodelling). Há modelagens top down, quando são definidas termos, co-ocorrência de termos, a partir de critérios estatísticos (desde frequência de termos, média, etc). Esses termos são então analisados pela equipe de modelagem, que, ao final, cria uma biblioteca de termos que serão objetos da coleta e análise de dados182. Hoje há ainda novos mecanismos de modelagem, baseado em métodos de processamento de linguagem natural. Nesse caso algoritmos geram clusterização das frases (agrupam aqueles que possuem semelhanças) e entrega ao pesquisador, que classifica os clusters. Essa classificação volta pra máquina para o algoritmo fazer sozinho o trabalho de classificação a partir do trabalho humano. O algoritmo indexa e retorna novos dados para o pesquisador. Isso segue em espiral (demora meses então) até que o percentual de acerto chegue a índices cientificamente comprovados. Nossa meta é de 95% de acerto. De posse dessa classificação e os dados filtrados, desenvolveremos a interface do HAsh.SDH, que se tornará público. Em paralelo, um conjunto de notas técnicas e artigos científicos serão produzidos sobre a criação do software/WEb e uma reflexão sobre os dados coletados, através de relatórios de pesquisa. Isso em função de grandes fatos que podem ocorrer em 2015183. Em janeiro de 2016, outros pedidos de informação foram encaminhados pela organização. Nestes, buscou-se esclarecimentos sobre os termos do acordo de cooperação entre governo e Universidade responsável pelo desenho do software (Universidade Federal do Espírito Em outro pedido de informação a organização demonstra preocupação com o mapeamento destes “termos”, tendo em vista o seu contexto. A isso, os gestores responderam que se desenharia política de modo a levar tal questão em consideração. 182

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Resposta disponível em: http://www.artigo19.org/centro/esferas/detail/701

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Santo – UFES) e mais detalhes sobre critérios para definição de violação de Direitos Humanos e modo de identificação, processamento e armazenamento das informações coletadas pelo Estado brasileiro. Em resposta, foram enviados para a Artigo 19 o Termo de Cooperação Técnica e Execução do projeto. Quanto aos demais questionamentos, tendo em vista o estágio da implementação, as respostas tendiam a não ser definitivas, embora se reiterasse sempre que a função da política não era o julgamento daquelas eventuais violações, mas o encaminhamento dos casos (que seriam enquadrados como violações de Direitos Humanos quando ferissem Lei 7716/89 e Artigo 140 § 3º do Código Penal). A questões específicas relacionadas a armazenamento e proteção, criptografia, sigilo do banco de dados, estabelecimentos de perfis, a resposta dos gestores da política foi que estes poderiam “ser objetos de diálogo no desenvolver das ações”, e que o Programa “se limitaria a

atuar de acordo com suas atribuições e limites legais, bem como amparado pela Lei do Marco Civil da Internet”184. Entre os atores extraparlamentares, vale citar a crítica (mais do que preocupação com garantia de direitos embasada em questões técnicas e jurídicas) de setores conservadores, entre os quais se destaca um humorista brasileiro que criou a página no Facebook e conta no Twitter do “Desumaniza Redes”. O principal objetivo, segundo o idealizador, seria incitar ofensas na Internet185. A página contém fortes críticas ao Governo Federal, e buscou mobilizar pessoas com a narrativa de que a principal função da política seria a censura na Internet. Tendo em vista tais reações ao Humaniza Redes, buscamos compreender de que modo elas eram interpretadas pela gestora entrevistada. Notamos maior ênfase a este segundo tipo de reação da sociedade civil, de crítica e receio quanto a eventual cerceamento de liberdade de expressão, que sobre temas de fato controversos no que diz respeito ao desenho da política. Vejamos: Pesquisadora – (...). Eram outras duas questões: uma diz respeito ao Marco Civil. Eu ouvi você falando bastante a respeito do Marco Civil no projeto Humaniza Redes e eu acompanhei, nós acompanhamos quando foi lançado, reações dos dois lados, um de movimentos conservadores, e de outro lado houve muitas críticas de movimentos ativistas de internet, também, que começaram a se preocupar se o

Respostas fornecidas ao pedido de informação disponível em: http://www.artigo19.org/centro/ esferas/detail/704 184

Em seu programa de TV, Danilo Gentilli chegou a ofertar um videogame àquele/a que postasse nas redes sociais a melhor ofensa ao programa Humaniza Redes: https://www.youtube.com/ watch?v=BWRRdQp2UIM 185

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Humaniza Redes promoveria algum tipo de vigilância ou se poderia ser prejudicial à liberdade de expressão. Vocês acompanharam essas críticas? Como vocês reagem a elas? Irina Bacci – Por exemplo, uma das críticas que foram protagonizadas por um comediante não tão comediante no Brasil acabou sendo aquela outra rede social acompanhada pelo seu grupo e hoje já não tem tanta repercussão. (...)A Humaniza Redes ela está diretamente relacionadas às críticas ao governo. (...) Pesquisadora – É, desta parte parece mais fácil, essas críticas mais conservadoras que se colocam nessa polarização, eu acho mais difícil as que eu acompanhei e que vieram do movimento de liberdade na internet, de ativismo de internet, e essas eu não sei se chegaram até o Humaniza Redes, se... Irina Bacci – É, algumas pessoas, eu, por exemplo participei do fórum Brasil Internet; de alguns espaços e recebi presencialmente as críticas, e aí quando eu mostrei o que é o Humaniza Redes as pessoas entenderam e desmistificou essa impressão de que o Humaniza Redes diminuiria a liberdade de expressão. Eu acho que a medida que as pessoas forem observando que nós não retiramos conteúdo, como por exemplo, a outra comunidade criada no Facebook está lá até hoje, no Twitter está lá até hoje, cada vez mais desafiada, mas está lá até hoje. Se nós tivéssemos essa força que nos deram, ou essa intenção de tirar conteúdo, estas seriam as primeiras que nós tiraríamos, então o fato deste conteúdo ter permanecido talvez tenha mostrado de que não há e não havia nenhuma intenção de ferir a liberdade de expressão, ainda que eu, Irina, não considere aquela comunidade como uma forma de liberdade de expressão, mas enfim, nós não entramos neste mérito, a comunidade permanece lá, e também as pessoas foram vendo a medida que seus conteúdos foram criticados, sejam eles críticos ou não ao governo, críticos ou não a determinados grupos populacionais, eles foram desmistificando este entendimento de especialistas e que o Humaniza Redes teria essa intenção. O que eu acho, por um lado, e falo isso com muita tranquilidade porque vim de movimentos sociais – eu acho que os movimentos sociais hoje estão na mesma medida, em disputa com todo o País. Não digo polarizados ideologicamente, mas digo polarizados e contaminados por toda essa injeção de informações desconexas que a gente tem vivido no País. Qualquer iniciativa, por exemplo, uma foto da Presidente em um encontro com o presidente do Facebook, ou em um encontro anual no Vale do Silício fez com que toda a comunidade entendesse que agora o Governo Brasileiro vai manipular tudo aquilo que acontece no Facebook, e não foi nada disso. A notícia na verdade era uma parceria, um projeto do

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Facebook, o TheNet.Org, se eu não me engano, com o Governo Brasileiro, que eu acho que nem encaminhou nesse sentido; mas, como eu disse, toda essa tensão que o País tem vivido tanto de um lado quando de outro tenha acirrado os ânimos – acho que essa é a melhor palavra – entre movimentos sociais e Governo, entre especialistas e Governo, porque a gente é ser humano e a gente se contamina com todo e qualquer tipo de informação. *** As controvérsias geradas desde o anúncio da política no primeiro ano de sua vigência revelam que, assim como o Poder Judiciário e Legislativo, o Poder Executivo também enfrenta desafios para lidar com a violação de direitos na Internet. As questões que se impõem ao Executivo, todavia, parecem evidenciar a complexidade do objetivo de mapeamento e monitoramento dos casos: o temor pela violação do direito à privacidade e liberdade de expressão. Até mesmo a potencialidade que reside na possibilidade de prevenção de violações de direitos ensejou reação violenta por parte de setores conservadores da sociedade. Apesar dos desafios, dados relativos ao ano de 2015 revelam grande alcance das campanhas e número expressivo de denúncias de violação recebidas pelo Programa e encaminhadas a órgãos competentes186. Todavia, a instabilidade política evidenciada pelas recentes mudanças na estrutura ministerial podem fazer com que a política apresente descontinuidades ou não implementação187.

Os dados foram expostos em comunicação oral realizada pela ex-ministra de Direitos Humanos Ideli Salvatti na mesa “Aspectos legais das violações de direitos humanos na Internet” do evento “Conferência Racismo e Discurso de Ódio na Internet: narrativas e contra-narrativas” ocorrido no Rio de Janeiro entre 27 e 30 de abril, promovida pelo Berkman Center da Universidade de Harvard, e pela Plataforma VoJo Brasil, vinculada ao Instituto Mídia Étnica. A comunicação pode ser acessada integralmente em: https://www.youtube.com/watch?v=LjnNtR91Abo&feature=youtu.be 186

Essa opinião nos foi também fornecida pela ex-ministra da Secretaria de Direitos Humanos Ideli Salvatti no evento referido na nota anterior. 187

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QUINTA PARTE ESTUDO DE CASO

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5. NOVAS FORMAS DE VIOLAÇÃO DE INTIMIDADE? TOP 10: UM CASO - LIMITE. No início de 2015, casos de suicídio de adolescentes em decorrência da exposição da intimidade ganharam novamente espaço nos principais meios de comunicação, assim como em 2013. Desta vez, os casos pareciam não se relacionar com términos de namoros ou possíveis frustrações de expectativas de parceiros em relação às mulheres com as quais se relacionavam, aos moldes do que observávamos na mídia e nas decisões judiciais. A divulgação de informações íntimas sobre meninas entre 12 e 15 anos parecia ter um fim

em si mesmo. O fenômeno nos chamou atenção, haja vista que neste momento da pesquisa já compreendíamos o quão multifacetada e diversa poderia ser a violência de gênero na Internet. Buscamos então compreender melhor os casos a partir de um olhar que fosse além da narrativa midiática. Para tanto, realizamos entrevistas com duas ativistas atuantes nos casos188 e acompanhamos, a partir desse contato, as atividades por elas desenvolvidas, bem como suas ações em âmbito não institucional e institucional (como a participação em Audiência Pública na Assembleia Legislativa de São Paulo). As próximas páginas são, assim, uma narrativa do fenômeno a partir da sua compreensão por parte de quem de perto vem atuando no sentido de minimizar os efeitos da violência na vida das meninas: os movimentos sociais. O TOP 10 apresentou-se a nós como um caso limite,por motivos que ficarão detalhados adiante, mas, principalmente, porque nos colocava diante de casos que não se referiam estritamente nem a pornografia, nem a vingança189.

5.1. O QUE É O TOP 10? No final de 2014, uma ativista feminista do Coletivo Mulheres na Luta190 ouviu falar pela primeira vez em TOP 10, durante uma oficina sobre gênero e sexualidade,que oferecia enquanto psicóloga, em uma Unidade de Saúde no Grajaú. Naquela ocasião, uma das participantes da oficina comentou o suicídio de uma garota do bairro, após ter sido exposta por um vídeo na Internet – “agora está na moda suicídio, né?”. Em um primeiro 188

Elânia Francisca (Coletivo Mulheres na Luta) e Marilda Santos (Projeto Sementeiras de Direitos).

Uma parte das reflexões desta parte foram feitas pela equipe de pesquisa no artigo seguinte: VALENTE, Mariana Giorgetti.; NERIS, Natália.; BULGARELLI, Lucas. (2015) “Not revenge, not porn: analysing the exposure of teenage girls online in Brazil”. Global Information Society Watch: Sexual rights and the Internet. 1ed., 2015, p. 74-79. Disponível em:https://www.giswatch.org/sites/ default/files/gw2015-full-report.pdf. Utilizamos partes desse texto e ampliamos. 189

Coletivo atuante na região do Grajaú, na cidade de São Paulo. Para mais informações conferir: https://www.facebook.com/Mulheres-na-Luta. 190

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momento, ela pensou se tratar de mais um caso de exposição de nudez para que algo tão grave tivesse acontecido. Foi surpreendida, no entanto, ao saber que não se tratava de um caso de exposição de nudez propriamente, mas do tal TOP 10.E, depois disso, “(...)não ia mais para a escola, não aguentou ser vagabunda”. Ao buscar no YouTube por vídeos sobre o TOP 10, a ativista encontrou conteúdos de várias regiões do Brasil, e muito parecidos: são rankings de pré-adolescentes e adolescentes, que classificam as meninas em categorias que vão desde as “mais bonitas” até as “mais vagabundas”. Os vídeos são produzidos com imagens baixadas da Internet (por exemplo, de seus perfis em redes sociais) muitas vezes sem a autorização das adolescentes, e depois são divulgados no YouTube, compartilhados pelo WhatsApp e, em alguns casos, pelo Facebook. Os vídeos são atualizados, em geral semanalmente, de modo que as garotas sobem ou descem no ranking. De acordo com ativistas do Coletivo Mulheres na Luta e da iniciativa Sementeiras de Direitos191, a prática vinha sendo reconhecida e recorrente nas escolas e comunidades há pelo menos três anos, mas passou boa parte desse tempo “longe dos olhos dos adultos”. A mídia, entretanto, passou a dar atenção aos casos a partir de maio de 2015, quando correram notícias sobre tentativas de suicídio nessas duas regiões, decorrendo do TOP 10192. Os vídeos de TOP 10 podem trazer imagens de meninas nuas –mas, nesse caso, o conteúdo normalmente será compartilhado só por WhatsApp, visto que o YouTube possui uma política de exclusão de vídeos que contenham nudez; essa não parece, no entanto, ser a regra ou ser o único caso em que o TOP 10 se torna problemático para as vítimas. Os vídeos trarão, invariavelmente, os nomes das garotas, onde estudam e comentários, nos próprios vídeos ou nas plataformas onde são divulgados, sobre o que as meninas fariam ou deixariam de fazer sexualmente. Em um dos vídeos, a descrição da garota que havia ficado em primeiro lugar era “evangélica, mas manda foto pelada para o namorado e se faz de

santinha para o pai”. Nos comentários do vídeo, um adolescente perguntou se as pessoas estariam duvidando que aquela menina mandaria fotos para o namorado e, em seguida, mandou link da foto da adolescente nua, que se espalhou pela Internet. A sexualidade das meninas passa a ser, assim, o objeto de competição entre os meninos sobre o que cada um

Projeto desenvolvido pela Organização Não Governamental IBEAC na região de Parelheiros, na cidade de São Paulo. Para mais informações, conferir: https://www.facebook.com/ sementeirasdedireitos. 191

ALBUQUERQUE, S. Meninas abandonam estudos e tentam suicídio após entrar para a lista das mais vadias. Disponível em http://noticias.r7.com/sao-paulo/meninas-abandonam-estudos-etentam-suicidio-apos-entrar-para-lista-das-mais-vadias-27052015. O relato da ativista que atua na região de Parelheiros nos coloca diante da complexidade do fenômeno na medida em que expõe que à princípio as adolescentes gostariam de estar no ranking, terem reconhecida sua beleza entre os colegas, até que tal exposição passasse a ter conteúdo difamatório. 192

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teria conquistado, e, nesse jogo, mais informações e imagens são divulgadas pela rede. O desenrolar do TOP 10 deixa claro que o fato de as imagens divulgadas não envolverem necessariamente nudez não faz com que as consequências sejam menos devastadoras em suas vidas. Mas, para além disso, o TOP 10 é muito significativo para a constatação de que limitar o âmbito de análise de uma violência de gênero a um meio, como a Internet, é produzir uma separação que não existe no desenrolar dos casos, seja para os agressores,seja para as vítimas. No Grajaú e em Parelheiros, comentários feitos em conexão com os vídeos, na Internet, começaram a ser pichados em muros próximos às suas casas e escolas. Embora adultos não soubessem, nos espaços de convivência desses adolescentes as garotas ficavam marcadas, com consequências para sua sociabilidade nas escolas e outros espaços sociais.

5.2. DESDOBRAMENTOS: DO GRAFITAÇO À AUDIÊNCIA PÚBLICA NA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE SÃO PAULO Grajaú, Parelheiros e outros tantos bairros periféricos das cidades brasileiras caracterizamse, de uma forma geral, pelos baixos níveis nos serviços de educação, saúde e renda. Parelheiros tem o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dentre todas as outras subprefeituras do município de São Paulo: 0,68. Grajaú faz parte da subprefeitura de Capela do Socorro e possui índice parecido: 0,75 de IDH. Ambos os bairros possuem mais de 50% de sua população composta por pessoas negras (respectivamente 57.13% e 51%) o que revela a intersecção da vulnerabilidade social e pertencimento racial na cidade de São Paulo193. As ativistas relataram-nos que as vítimas do TOP 10, adolescentes em geral entre 12 e 15 anos de idade, não recebem o acolhimento necessário nas suas escolas, e acionar a polícia tampouco é uma opção: “a polícia não existe aqui para nos ajudar”, disse uma delas194.

Os dados sobre diversidade racial podem ser encontrados no portal: https://www.saopaulodiverso. org.br/. Os dados sobre IDH em cada subprefeitura podem ser encontrados em: http://atlasmunicipal. prefeitura.sp.gov.br/ 193

A quase-ausência do Estado nessas regiões – ou sua presença prioritariamente na forma coercitiva – priva seus moradores do acesso à bens e serviços essenciais e enseja que sua relação com instituições que deveriam à rigor protegê-los seja bastante tensa. Os problemas de acesso à justiça, e, mais especificamente no tema que nos interessa aqui – violência de gênero – revela que os marcadores de raça, classe e gênero exercem forte influência na altas taxas de vitimização de mulheres negras periféricas. Para melhor compreensão deste argumento conferir reportagem “A fogueira está armada para nós” de Andrea Dip e Anna Beatriz Anjos, disponível em: http://apublica.org/2016/03/afogueira-esta-armada-pra-nos/. 194

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O esforço das ativistas, nesse contexto, era triplo: acolher e auxiliar as garotas vítimas desse abuso, preservar suas identidades dentro da comunidade e fora dela, e atuar também com os meninos que compartilham e assistem os vídeos, e que geralmente têm as mesmas idades das adolescentes. Apostando em saídas via educação de gênero e sexual, no Grajaú, o Coletivo Mulheres na Luta mobilizou um “Grafitaço Feminista”: um evento para que um dos muros em que constavam pichações sexistas sobre o TOP 10 fosse coberto por grafiteiras mulheres, com dizeres de empoderamento feminista195, como “Meu corpo, minhas regras”, “Não é não”, “Lugar de mulher é onde ela quiser”. Entre pessoas da própria comunidade e convidados, mais de 50 pessoas envolveram-se. Em Parelheiros, o Projeto Sementeiras de Direito vem desenvolvendo oficinas sobre mulher e mídia, com adolescentes meninos e meninas (incluindo vítimas do Top 10). Uma das repercussões inesperadas do Grafitaço no Grajaú foi a de que, no dia seguinte, alguém havia apagado os dizeres com mensagens com teor mais militante do muro, deixando somente aqueles que remetiam à doçura e feminilidade. As militantes envolvidas, que não souberam apontar quem teria sido o autor do apagamento, apontaram a contradição: as pichações difamatórias às meninas, no muro, nunca tinham sido removidas por ninguém. Além disso, no dia seguinte ao Grafitaço, duas meninas que não puderam estar presentes no evento foram também deixar sua marca no muro e foram impedidas por um homem. Diante da resistência comunidade a certas ideias, as ativistas perceberam que seria interessante fazer uma formação mais intensa não apenas com os meninos e meninas, mas também com os adultos. A primeira tentativa foi uma conversa inicial sobre questões envolvendo o TOP 10 com agentes de saúde. Contudo, não houve interesse expressivo desses profissionais da saúde, ou de pessoas que trabalhavam nas escolas e outros membros da comunidade. Um dos sintomas disso é que, na ocasião da Audiência sobre o TOP 10 na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP), pouca foi a participação desses atores. Diante de pressões e da atenção que a mídia começou a dar ao caso a partir dos suicídios do Grajaú, marcou-se uma discussão sobre o tema na Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, da Cidadania e da Participação e das Questões Sociais da ALESP em 10 de junho de 2015. Em reuniões prévias à audiência, houve insistência por, parte das militantes do Grajaú, na necessidade de interlocução com agentes estatais de

Com uma chamada do evento em que se afirmava “Onde houver uma irmã exposta, haverá também um Bonde Feminista pronto para defendê-la! Nosso Top 10 é outra fita, nosso Top 10 é Feminista!” o coletivo promoveu também conversas com os moradores da comunidade sobre o problema. Mais detalhes sobre a ação pode ser conferido no vídeo hospedado na página do Coletivo no Facebook:www.facebook. com/411459515662514/videos/570654566409674/ e nas imagens disponibilizadas em:www. facebook.com/media/set/?set=a.1601565713417871.1073741850.1458646637709780&type=3.

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saúde e educação para que a questão recebesse a devida atenção e para que pudessem ser desenhadas soluções mais adequadas. No entanto, representantes do governo não participaram da audiência, nem empresas como Google e Facebook, embora tivessem sido convidadas. Compareceram deputados da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, ativistas e um perito em informática. O discurso predominante entre os deputados era que a solução seria a identificação de quem compartilhava os materiais pelo YouTube, bem como a responsabilização das plataformas nas quais os conteúdos circulam196 - o assunto foi tratado, na audiência, como “crime cibernético”.Apesar da complexidade do caso, o encaminhamento predominante foi o da criação de nova legislação sobre o assunto.

5.3. SOLUÇÕES? A INADEQUAÇÃO E OS DESAFIOS ENVOLVENDO AS SOLUÇÕES JURÍDICAS A complexidade dos casos de TOP 10 nos coloca em posição crítica diante de algumas das principais descobertas e achados desta pesquisa. Como os casos do TOP 10 envolvem principalmente adolescentes e pré-adolescentes, uma das respostas jurídicas para o problema dessas meninas poderia ser a aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Tanto a análise das decisões judiciais como as entrevistas nos levam a concluir que (i) há fortes indícios de que o direito penal não seria o instrumento que oferece maior proteção às meninas, e (ii) mais adequado seria investir em educação sobre gênero, já que a aplicação da lei não seria suficiente para transformar a vida das meninas. Como explicitamos no item 2.1, como se tratam de adolescentes, poder-se-ia, em tese, pensar sobre a aplicação dos tipos penais do ECA ao TOP 10. A dificuldade envolvendo essa solução é que, para isso, não bastaria a exposição da imagem da menor de idade:seria geralmente necessário que o conteúdo das fotos ou vídeos fosse considerado “pornográfico”, de acordo com os arts. 240, 241, 241-A, 241-B, 241-C e 241-D. Como vimos, em uma das decisões que analisamos, uma jovem teve fotos nas quais aparecia com roupas íntimas, e o julgador considerou que isso não estaria protegido pelo ECA, já que pornografia envolveria obrigatoriamente nudez e sexo explícito. Talvez outros julgadores considerassem que fotos de uma adolescente em posições sexuais, por mais que ela não estivesse nua, seriam pornografia, mas isso dependeria de uma interpretação não uniforme do conceito do que é ser pornográfico. Ora, pelo relato das entrevistadas e pelos vídeos a que tivemos acesso, nem todos os casos do TOP 10 envolvem fotos de nudez ou de imagens de cunho sexual. Nas montagens de vídeos no YouTube, muitas das imagens são de perfis de redes social. Se, de outra forma, considerarmos a opção de utilização do

Um breve relato das discussões realizadas na Comissão de Direitos Humanos da ALESP na audiência pública foi publicado em sua página oficial. (2015 11 de junho). “Onda de vídeos com conteúdo degradante contra adolescentes é discutida na CDH”..www.al.sp.gov.br/noticia/?id=365141. 196

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direito penal, no caso, via processo pelos crimes contra a honra, as complicações são as que já conhecemos: as adolescentes, nesses casos, em geral, de baixa renda, teriam de contratar advogados para conduzir uma ação penal privada. O natural seria que pensássemos, então, na aplicação das medidas penais existentes em relação às adultas para punir os agentes de violências como o TOP 10; a persecução por injúria e difamação, no entanto, coloca uma questão específica para o caso de adolescentes: a queixa-crime precisará ser oferecida por um responsável legal. Isso, somado à já complicada relação com e acesso à polícia nas periferias, é um fator inibitório para que as adolescentes procurem auxílio legal. A ativista entrevistada do Coletivo Mulheres da Luta apontou que um dos principais motivos para o TOP 10 ter chegado aonde chegou, sem intervenções de adultos, foi o fato de que, por “vergonha” e outras complexidades envolvidas nas relações familiares, as adolescentes tentariam manter o caso longe das famílias, o quanto fosse possível. Nas palavras da ativista, a reação esperada da família seria a de culpabilização das meninas, com afirmações do tipo “se você não fez nada errado, não estaria lá no TOP 10” ou “só está no TOP 10 quem é vagabunda”. O medo desse tipo de reação, além de fazer com que algumas meninas se isolem física e emocionalmente, pode fazer com que elas também destruam as “evidências” – ou seja, tentem apagar todos os tipos de mensagens e prints que poderiam servir em uma eventual investigação. Assim, toda a discussão que vem sendo feita sobre a criação de um novo tipo penal para punir a disseminação não consentida de imagens íntimas poderia ser inócua diante desses casos. O TOP 10 coloca-nos também diante de outra complexidade, que é a identificação de quem dissemina as imagens no caso de compartilhamentos massivos. A disseminação massiva via aplicativos de messaging como o WhatsApp, como ocorre no caso do TOP 10, traz à tona as dificuldades de se coibir o compartilhamento quando ele se dá em meios em que o material não fica hospedado em um servidor de terceiros, mas nos aparelhos das próprias pessoas envolvidas. De fato, Juliana Cunha, psicóloga responsável pela Helpline da SaferNet, apontou, a partir dos casos que acompanha, ser mais fácil lidar com situações em que as fotos foram hospedadas na web do que quando elas são difundidas via aplicativos de mensagem. Principalmente a partir da introdução de criptografia end-to-end nas conversas, os aplicativos como o WhatsApp afirmam-se incapazes tecnicamente de verificar que tipo de material está sendo difundido em suas redes, já que as fotos e vídeos localizam-se nos equipamentos das pessoas, e só podem ser abertos pelo destinatário, no destino197. Assim, embora a possibilidade de punição dos envolvidos fique à disposição,

Ver uma explicação de como funciona a criptografia de ponta a ponta do Whatsapp e algumas consequências da adoção desse tipo de medida para usuários e governo em http://www1.folha. uol.com.br/tec/2016/04/1757710-entenda-como-funciona-o-novo-sistema-de-criptografia-dowhatsapp.shtml. 197

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após sua identificação, não existem meios técnicos ou jurídicos para impedir que as fotos ou vídeos se espalhem pelos aplicativos de mensagem. Um último desafio que o TOP 10 coloca às nossas discussões das partes anteriores deste trabalho é que apareceram, nas entrevistas, também as dificuldades associadas à remoção de materiais que, embora cumpram funções semelhantes à disseminação sem consentimento de imagens íntimas, não envolvam nudez. Esses materiais, além de não serem contemplados no art. 21 do Marco Civil, não estão necessariamente contemplados nas políticas de todas as plataformas como danosos aos usuários –ou, ainda que o material possa ser entendido como violador de termos de uso (na classificação como

cyberbullying, por exemplo, no caso do Facebook), não se tratam de materiais inequívocos, no sentido de que as plataformas ou as pessoas responsáveis pela análise desses materiais podem realizar interpretações diferentes sobre seu significado e sua aceitabilidade, e a necessidade de remoção não seria tão óbvia.

5.4. A SAÍDA PELA EDUCAÇÃO E SEUS OBSTÁCULOS Durante as entrevistas e manifestações em audiências públicas, diferentes atores/atrizes reconheceram a importância do trabalho de educação e conscientização sobre violência contra a mulher e sobre os impactos de práticas como o TOP 10 na vida das vítimas. Como apontamos, é unânime entre as duas ativistas dos coletivos que entrevistamos que é fundamental haver um trabalho intenso com tanto as meninas quanto os meninos, com as escolas, agentes de saúde (profissionais de atuação relevante nas periferias) e a comunidade em geral. Essa via, entretanto enfrenta desafios para efetivar-se. Discorremos sobre eles adiante.

5.4.1. TRABALHO COMUNITÁRIO COM ADOLESCENTES: VIOLÊNCIA E PAPEIS DE GÊNERO Não custa ressaltar que, apesar de termos acompanhado o acontecimento do TOP 10 em bairros da periferia de São Paulo, a exposição da intimidade de meninas e mulheres não se restringe às classes sociais mais baixas. “A violência contra a mulher é democrática”, afirmou Magali Vaz, Delegada de Polícia entrevistada198. Projetos educativos que discutam violência de gênero e identidade de gênero, reconhecem quase todas as atrizes entrevistadas por nós, são importantes em todos os recortes de classe. Pode ser que, na periferia, a questão seja mais premente, pela falta de espaço de discussões – uma das ativistas afirmou que um dos únicos espaços em que os jovens podem se reunir, em bairros periféricos, é o da Supomos que tais acontecimentos são geridos ou solucionados de formas diferentes em escolas particulares – que sem dúvidas - também lidam com tal questão. 198

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Igreja, mas que temas como sexualidade não são abordados abertamente nesse ambiente. A ativista Marilda Santos explicou que para lidar com o TOP 10,o Projeto Sementeiras de Direito tem trabalhado especialmente com a valorização do corpo das meninas199. Em suas palavras: “O que trabalhamos com elas não é o que a mídia anda fazendo ou os meninos fizeram, mas sim a valorização do corpo delas. Se você quer e você se expõe o corpo é seu, ninguém tem que andar de burca para que não seja exposto, mas você tem que ter uma postura, uma firmeza para que ninguém saia te apontando ou intitulando na rua de qualquer coisa. O que o IBEAC e o Projeto Sementeiras têm feito é muito isso, é de valorização. A gente não está indo atrás dos meninos para puni-los ou julgá-los, mas sim para auto afirmar que as meninas podem fazer com os corpos delas o que quiserem. Se querem se expor, beleza, mas isso possui um preço, mas é de direito. Mas isso não deve ser colocado como punição ou como “quebrei regras da sociedade”. (grifos nossos) A ideia desse tipo de projeto é atuar no conjunto de representações de gênero que está na carne da prática, antes de sua transformação em um problema potencialmente jurídico. A culpabilização da vítima é a representação dessas normativas de gênero na fase já do problema200. O mesmo pressuposto foi trabalhado nas oficinas em escolas feitas pelo Coletivo Mulheres da Luta, no Grajaú. A ativista Elânia Francisca relatou ter proposto a discussão das frases do TOP 10 – por exemplo, “espera o pai sair de casa para transar com o namorado” – e questionar o mérito ou demérito implicado naquela afirmação, e ainda as diferenciações de gênero advindas dela, para pensar as represálias a que as vítimas foram submetidas. Um outro tema tratado pelas ativistas nos trabalhos de educação tem sido o da violência. Elas relatam as inúmeras formas como a naturalização da violência aparece nas atividades com adolescentes. Uma delas relata que, em uma das oficinas, um menino descreveu uma cena de estupro que ele mesmo tinha cometido, como uma história engraçada, e que a história teria despertado o riso das meninas, dos meninos, e inclusive do professor que estava parado na porta da sala. Num outro relato, o trabalho com protótipos de vulva e de 199

As atividades do projeto são desenvolvidas em uma biblioteca comunitária em Parelheiros.

A naturalidade com que tratamos da questão da culpabilização da vítima decorre também de observação, mas principalmente de isso ter sido mencionado por praticamente todas as nossas entrevistadas. Nesse sentido, a título de exemplo, a fala de uma delegada de polícia entrevistada: “(...) Tanto que você vê que a mulher é muito mais colocada como culpada do que o homem que compartilha o conteúdo. “Quem mandou essa vagabundinha...” – isso é um absurdo! Um absurdo! Ele é o culpado... A mesma coisa quando uma mulher apanha e chega alguém e fala: “olha, ela apanhou porque ela quis”. Desde quando? Não existe isso. “Ah, apanhou porque ela teve um amante” – não importa se ela teve um amante, não é para apanhar.” 200

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pênis resultou na destruição da vulva; quando questionado, o aluno respondeu afirmando que “puta gosta de ser tratada assim”. O questionamento sobre essa afirmação levou ao relato, por parte do mesmo adolescente, a respeito de uma festa na rua atrás da escola na qual um homem mais velho ensinava técnicas para dar “prazer para uma mulher” – e incentivava a fotografia das meninas. Ou seja, as oficinas educativas têm, para as ativistas, revelado que o caráter das violências associadas ao TOP 10 está ligado a reproduções de comportamentos arraigados entre adultos. A gente não diz assim: “Olha, hoje vamos te ensinar a ser um machista”, você ensina nas relações, você ensina na vida. (...) O menino não inventou o vídeo de TOP 10. O menino só inventou, talvez, o nome. Em todos os nossos contatos com as ativistas, a saída da desconstrução dessas representações por meio de atividades educativas apareceu como primária, e como uma solução que lhes parecia mais adequada que qualquer discussão de caráter criminalizante ou individualizante.

5.4.2. O ( DES ) PREPARO DE PROFISSIONAIS DE SAÚDE E DA EDUCAÇÃO Decorrência dessa crítica das representações, e principalmente de como, dentre adolescentes, as representações dos adultos são apropriadas de maneiras bastante particulares, as ativistas preocupam-se também, com as posições assumidas pelos adultos das comunidades onde atuam, e em especial aqueles em posição de autoridade para os adolescentes, como professores, educadores e agentes de saúde. As ativistas do Grajaú, após a organização do Grafitaço Feminista, perceberam dificuldades em estabelecer diálogos com membros das escolas e do setor da saúde, e passaram a pleitear mais envolvimento dos agentes públicos na questão. Para elas, haveria a tendência de relegar a questão a um “domínio privado”, identificando o problema como algo a ser resolvido pelas famílias – um velho conhecido em se tratando de violências de gênero. A ativista do Mulheres na Luta conta que, após o episódio no qual um menino destruiu o modelo de vagina e contou sobre o homem mais velho que ensinava os meninos a tomarem atitudes violentas, procurou a escola para refletirem sobre algum tipo de atitude. A resposta teria sido que, como o senhor não atuava dentro das escolas, a instituição não teria qualquer função – ofendida, a direção teria ainda respondido que “não era lá que estavam criando estupradores”. Houve também um relato de que as conversas com agentes de saúde comunitários sobre o TOP 10 teriam resultado em afirmações como a de que as meninas envolvidas eram “vagabundas”, e que “menina direita não ia aparecer no TOP 10”. A ativista entrevistada ressaltou que uma das pichações sobre o TOP 10, antes do

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grafitaço, estava na parede de um posto de saúde, e que os agentes tê-la-iam classificado como “brincadeira de moleque”. Diante disso, os agentes de saúde comunitários não estariam aparecendo como uma opção de acolhimento e encaminhamento para as garotas vitimadas por esse tipo de prática. Isso seria agravado pelo fato de que os agentes de saúde são membros da própria comunidade, e muitas vezes próximos das famílias, o que faria com que as adolescentes tampouco vissem neles pessoas com as quais poderiam contar, a despeito de suas situações familiares. Algo semelhante foi relatado em relação a professores e outros funcionários das escolas: diante do bullying e perseguição que as meninas sofriam, alguns professores teriam afirmado, às ativistas, que as próprias adolescentes estariam dando causa ao problema, com a “sexualização precoce” ou avaliação mal feita das consequências das próprias ações. De acordo com um relato de uma das ativistas, fotos íntimas de alunas que figuravam no TOP 10 teriam para um grupo de WhatsApp constituído por professores, que teriam feito comentários sexuais sobre elas201. Ora, na inexistência de políticas pedagógicas definidas para as escolas, a receptividade ou não para tratar desses assuntos por professores e coordenadores escolares depende das disposições individuais; no Grajaú, as ativistas relataram ter conseguido implementar projetos que discutiam gênero em apenas 4 das escolas, pelo interesse (não comum) dos seus profissionais no tema. Nesse contexto, o movimento constituído por setores conservadores e religiosos pela proibição das discussões de “ideologia de gênero” em sala de aula ganha centralidade.

5.4.3. DESAFIOS LEGISLATIVOS E PLANOS DE EDUCAÇÃO No ano de 2015, a inserção da diretriz que propunha “a superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual” foi retirada do Plano Nacional de Educação (PNE), graças ao forte lobby de grupos conservadores no Congresso Nacional202, e substituída pela diretriz, mais genérica, da “promoção da cidadania e erradicação de todas as formas de discriminação”203. Em seguida, a situação se agravou, em âmbito Estadual e Municipal. Além de diversos casos de exclusão desses temas dos planos subnacionais, há uma série

201

“Nossa, mas ela é bem gostosinha, né?”.

http://www.informacoesemfoco.com/2014/04/parlamentares-cedem-pressao-de.html#. Vyup6aMrJn4. 202

Lei 13.005/2014; Artigo 2º, Inciso III. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_ Ato2011-2014/2014/Lei/L13005.htm. 203

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projetos em nível estadual e municipal204 que pretendendo proibir, em sala de aula, discussões sobre o que se tem pejorativamente denominado de “ideologia de gênero” (ou, de acordo com liderança católica,“a pretensão de conquistar inteligências, a fim de utilizar as crianças e os jovens para objetivos de determinados grupos, com instruções duvidosas ou, inclusive, com objetivos bem declarados no nosso meio político cultural.”)205. Projetos dessa natureza já foram aprovados em Santa Cruz do Monte Castelo, do Paraná206. Em outros municípios, como Teresina, no Piauí, projeto similar foi aprovado pela Câmara dos Vereadores e apenas aguarda sanção do executivo207. De acordo com Fernando Penna, professor adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, até novembro de 2015, projetos de lei dessa natureza tramitavam em Assembleias Legislativas de pelo menos nove estados da federação e treze municípios, dentre eles São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba208. Na cidade de Campinas, essa discussão tomou fôlego após o Exame Nacional do Ensino Médio de 2015209, a qual 204 Projetos Estaduais: Rio de Janeiro – PL 2974/2014, Goiás – PL 2861/2014, São Paulo – PL 1301/2015, Espirito Santo – PL 250/2014, Ceará – PL 91/2014, Distrito Federal – PL 53/2015, Rio Grande do Sul – PL 190/2015, Alagoas – PL 69/2015, Paraná – PL 748/2015. Alguns exemplos de projetos em nível municipal: PL 20/2016 (Teresina – PI), PL 26/2016 (Recife – PE). Há também projetos dessa natureza em discussão nos municípios de São Paulo – SP, Campinas – SP, Mogi Guaçu – SP, Rio de Janeiro – RJ, Curitiba – PR, Toledo – PR, Palmas – TO, Joinville – SC e muitos outros. 205 Dom Antonio Augusto Dias Duarte em “Educação ou Ideologias”. Disponível em: https:// pt.zenit.org/articles/educacao-ou-ideologias/. Em relação à (in)adequação do termo, a ativista do Grajaú entrevistada tentou lembrar que discutir gênero não é nem necessariamente propagar o feminismo – “quando se cria, como lá em Uberlândia, uma escola de princesas, isso é falar de gênero também, mas não é de um jeito bacana”. Ela se referia à iniciativa empreendida em Minas Gerais por uma psicopedagoga, exclusivamente para meninas, em que são ensinadas “culinária, costura, noções de etiqueta e princípios humanos” - http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/07/1317885-escolapara-meninas-ensina-modos-de-princesa.shtml.

Lei Complementar n. 009/2014 do município de Santa Cruz de Monte Castelo – PR. A lei foi publicada na edição n. 771, em 24/12/2014, do Diário Oficial do município. 206

Reportagem aborda o conflito em torno da criação do PL em Teresina. Disponível em: http:// g1.globo.com/pi/piaui/noticia/2016/03/projeto-que-proibe-debate-de-genero-na-escola-gerapolemica-em-teresina.html 207

O Centro de Referência em Educação Integral (Iniciativa da OSCIP Associação Cidade Escola Aprendiz) publicou matéria em novembro de 2015 na qual elenca alguns projetos de lei que proíbem a discussão de gênero em sala de aula e professores e entrevistou especialistas em educação sobre esse movimento legislativo. Disponível em: http://educacaointegral.org.br/noticias/projeto-de-lei-preveprisao-de-docente-que-falar-sobre-ideologia-de-genero/ 208

Reportagem aborda com mais detalhes a moção de repúdio dos vereadores da cidade de Campinas em relação a questão do ENEM que trouxe trecho do livro “O Segundo Sexo”, de Simone de Beauvoir. Disponível em: http://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2015/11/apospolemica-envolvendo-enem-camara-debate-ideologia-de-genero.html 209

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tratava sobre violência doméstica e tinha uma questão sobre a filósofa de Simone de Beauvoir – alguns vereadores disseram que o exame refletia uma “ideologia de gênero” e que ele estaria “doutrinando” crianças e adolescentes a pensar de certa maneira. O resultado dessa discussão foi projeto de emenda à Lei Orgânica que veta a inclusão da chamada ideologia de gênero, no Plano Municipal de Educação. Em novembro de 2015, a votação dessa emenda foi adiada devido à mobilização de alguns setores da sociedade, mas pode voltar a entrar em pauta esse ano (2016)210. Justificativa parecida é utilizada para o Projeto de Lei 2731/15211, que visa alterar o Plano Nacional de Educação e também veda a discussão de gênero dentro das escolas prevendo até mesmo pena de prisão para professores que desrespeitarem a determinação. Tem sido tão intensa a atuação de forças conservadoras nesse sentido, no Brasil, que as iniciativas têm ultrapassado o campo legislativo e ganhado campo na sociedade civil: pais e responsáveis por alunos têm se utilizado de notificações extrajudiciais para declarar não autorizar, e estariam atuando com pressões sobre profissionais da educação212. Se a complexidade envolvida num caso como o TOP 10 aponta inequivocamente para a necessidade de discussão de questões envolvendo sexualidade, violência e representações de gênero entre adolescentes, bem como ter agentes públicos preparados para serem a porta de entrada do acolhimento às vítimas, o movimento que crescentemente vilifica e afasta essas discussões da escola aparece-nos como especialmente preocupante, e mais condutor da perpetuação do problema que a inexistência de um tipo penal específico a criminalizar o “revenge porn”. É bastante limitante a visão de que uma suposta “ideologia de gênero” só envolve assuntos ligados ao feminismo. Quando espaços doutrinam ou conversam sobre quais funções as mulheres devem ocupar na sociedade, estamos falando de “gênero”. Como disse a ativista do Coletivo Mulheres da Luta: “Quando se cria, como lá em Uberlândia, uma escola de

Vereador retira projeto e emenda sobre ideologia de gênero não é votada. Disponível em: http:// www.portalcbncampinas.com.br/?p=123852 210

Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/ fichadetramitacao?idProposicao=1672692 211

Em 10 de maio de 2016, organizações atuantes na área de Direitos Humanos encaminharam representação ao Organizações não governamentais de Direitos Humanos encaminharam representação à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC/MPF) a fim de que tais condutas possam ser investigadas. Para mais informações conferir: http://generoeeducacao.org.br/ genero-na-educacao-entidades-denunciam-violacoes-e-exigem-que-ministerio-publico-investiguepressao-conservadora-nas-escolas/. 212

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princesas, isso é falar de gênero também, mas não é de um jeito bacana”213. A diferença é que muitos só enxergam a “ideologia de gênero” em determinados discursos, sendo que o gênero permeia muito mais do que os projetos propõem a proibir.

Iniciativa empreendida em Minas Gerais por uma psicopedagoga, exclusivamente para meninas, em que são ensinadas “culinária, costura, noções de etiqueta e princípios humanos” http://www1. folha.uol.com.br/cotidiano/2013/07/1317885-escola-para-meninas-ensina-modos-de-princesa. shtml 213

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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No início deste livro, afirmamos que nossa abordagem à questão da NCII seria a de, em primeiro lugar, descrever o fenômeno, a partir de um ponto de vista determinado; depois, produzir um diagnóstico sobre a forma como o direito encara o problema, e, por fim analisar as soluções de políticas e mudanças legais propostas por diferentes atores e atrizes. Após discutir as decisões judiciais que selecionamos para análise, as entrevistas, e o caso Top 10, acreditamos que, além de ter enfrentado as questões propostas, acabamos por mapear novos temas e questões para uma agenda de pesquisa em Gênero e Tecnologia.

Descrevendo o alcance e os delineamentos do problema, vimos que a tematização da disseminação não consentida de imagens íntimas sob a denominação de “revenge porn”, principalmente pela mídia, levou à discussão na esfera pública majoritariamente casos que se caracterizavam pela presença da “vingança”. Tanto as discussões teóricas que propusemos como o olhar para os casos que acessaram o sistema de Justiça e para o Top 10 revelam, entretanto, motivações outras nessas situações que compreendemos como um tipo de violência - entendida aqui no sentido de Henrietta Moore (1994) como um sinal da luta pela manutenção de certas fantasias de poder e de identidade. Se as agressões ocorrem fora ou dentro da Internet não faz diferença para esse entendimento; como discutimos, aliás, a própria divisão estanque entre violência online e offline não se sustenta. A conduta dos perpetradores de NCII carrega em seu cerne a frustração com a ruptura de normativas e expectativas quanto a papéis de gênero, e adquire, pela nossa observação, ao menos três formas: a manifestação da vingança per se, a exposição como meio para perpetrar outros tipos de violência , e a exposição como um fim em si mesma. Discutimos, também, que são observáveis práticas afeitas à NCII, mas que não se encaixam exatamente no imaginário sobre o fenômeno - são casos de ameaças e extorsão com base na posse de imagens íntimas, ou ainda de agressões que não necessariamente envolvem o uso da nudez explícita. O segundo ponto que enfrentamos foi a realização de um diagnóstico sobre o tratamento do tema pelo direito e, de forma mais ampla, pelo Estado brasileiro - ou, de acordo com algumas pessoas do campo, o não tratamento. O olhar para o Judiciário permitiunos relativizar a ideia do vácuo normativo, ou aquele diagnóstico que de a Internet é “terra sem lei”. Vimos que existem, sim, no ordenamento jurídico brasileiro, seja na esfera penal, seja na esfera civil, instrumentos que podem garantir a responsabilização pela violência, bem como mecanismos para obstar a circulação de material íntimo via acionamento dos provedores de aplicações. Os nossos resultados, todavia, revelam que, em que pese não estarmos tratando de uma ausência de possibilidades jurídicas, existem importantes entraves e obstáculos na aplicação desse direito; esses entraves localizam-se ora em previsões legais, ora em questões relativas à estruturação do sistema de Justiça, relacionadas também a desigualdades sociais e econômicas do país. São problemas, assim,

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que ficam claros na análise da aplicação do direito - um momento a que nem sempre se dá a devida e necessária atenção. A descoberta mais surpreendente nesse sentido diz respeito aos casos envolvendo crianças e adolescentes: o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), legislação que se propõe ser especialmente protetiva, por levar em consideração o estágio especial de desenvolvimento de crianças e adolescentes, acabou levando a menos condenações por casos de NCII. Os motivos foram dois: em primeiro lugar, a consciência do autor de que a vítima era menor de idade - como mostramos, em caso de ter podido haver dúvida, o dolo (ou intenção de incorrer em crime) pode ser afastado, ensejando absolvição. Além disso, vimos que a definição de conteúdo pornográfico como “qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais” pode permitir que casos envolvendo nudez sem a exibição de genitais não sejam enquadrados na legislação. Como o ECA, inclusive buscando ser mais protetivo, não prevê a categoria do consentimento, nem se chega a levar em consideração a disseminação das imagens não ter sido consentida. Temos a percepção geral de que o crime em questão, pornografia

infantil, levanta um imaginário, o do pedófilo, que os juízes facilmente afastam dos casos, deixando-os sem abrigo legal. Um outro aspecto importante, ainda no âmbito penal, diz respeito à aplicação da Lei Maria da Penha. Assim como o ECA, essa lei foca em um grupo vunerável no que se refere à violência - no caso, as mulheres. O que percebemos é que a Lei Maria da Penha não tem sido mobilizada pelos/as advogados/as ou pelo Ministério Público, o que surpreende, uma vez que em grande parte dos casos que analisamos era identificável algum tipo de relação entre as partes. Quando entramos em campo, não achamos que essa seria uma grande questão: parecia-nos que o tema de que tratávamos seria claramente um caso de violência psicológica ou mesmo moral prevista na Lei Maria da Penha, quando a relação entre as partes pudesse ser verificada. Foi surpreendente, assim, que não se tenha verificado a mesma posição por parte dos atores e atrizes do sistema de Justiça - não estamos falando de casos em que magistrados negaram a aplicação da lei, e sim de ela nem aparecer dentre os pedidos da parte acusadora. Em um evento sobre NCII que realizamos no dia 26 de maio de 2016, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, percebemos também que integrantes da plateia, parcialmente composta de advogados e advogadas atuantes ou interessadas nesse campo, mostraram-se surpresos com a possibilidade, trazida pela advogada Gisele Truzzi, da aplicação da Lei Maria da Penha a esses casos. Isso tudo levounos à revisão da nossa posição inicial, que era no sentido de que propostas legislativas para inserir previsões específicas na Lei Maria da Penha seriam desnecessárias ou, no limite, demasiado inocentes. Se é a não previsão específica ou se são outras as razões que fazem com que a Lei Maria

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da Penha não seja invocada nos casos de NCII é algo que o nosso método não nos permitiu acessar. Abre-se aqui um campo para estudos e pesquisas sobre tipificação dos casos de violência contra a mulher, para que se questione se o não enquadramento na Lei é uma tendência que se verifica no sistema de Justiça como um todo, ou se a violação de intimidade não é percebida como violência pelos operadores do direito, ou ainda se há outras razões ainda não transparentes para nós. Um dos motivos que torna essa não aplicação da Lei ainda mais curiosa é que, associando-se a Lei Maria da Penha a qualquer crime do Código Penal, este deixa de ser, se fosse, um crime de menor potencial ofensivo (como é o caso dos crimes de injúria e difamação), o que possivelmente seria do interesse do acusador. Como vimos, pudemos analisar somente dois casos em que a NCII foi enquadrada nos tipos do capítulo Dos Crimes Contra a Honra do Código Penal, ou seja, de efetiva disseminação de imagens de adultas. Isso parece estar ligado a dois fatores. O primeiro é exatamente se tratarem de crimes de menor potencial ofensivo, o que, como explicamos, significa que na maior parte dos casos haverá solução definitiva no Juizado Especial Criminal (os casos não chegam ao Tribunal de Justiça, órgão cujas decisões analisamos). O segundo pode ter a ver com a natureza da ação. Crimes contra a honra são processados por ação penal privada, o que significa que a vítima necessariamente precisa constituir um/a advogado/a, e que nos leva a questões (i) de custos, de problemas estruturais da Defensoria Pública para atender a casos desse tipo, e assim de acesso à Justiça, (ii) de prazos, dado que existe um prazo decadencial de 6 meses para que a vítima ofereça a queixa-crime, no caso da ação penal privada, a partir do momento em que teve informação da autoria do crime. São questões eminentemente de direito processual. Embora tenhamos podido apontar esses pontos, e formular hipóteses com relativa segurança, parece-nos que seriam muito bem vindos estudos de caráter jurídico-sociológico que focassem nos Juizados Especiais Criminais, para entender como estão se desenrolando os processos ali, ou ainda que investigassem mais a fundo a forma como a justiça gratuita lida (ou não) com as hipóteses de NCII ou, mais especificamente, com os casos de ação penal privada - ou seja, quando a vítima tem de agir como acusadora. No que se refere aos casos processados na esfera civil, chamou-nos atenção que fossem a maior parte dos casos de nosso corpus. Isso pode indicar o interesse primordial das vítimas pela paralisação da disseminação ou bloqueio dos conteúdos, ou ainda que, uma vez as imagens param de circular, as vítimas querem, muitas vezes, “enterrar” o assunto, como discutimos. Mas pode ser que as dificuldades de processamento sejam também responsáveis por essa proporção. Outras conclusões gerais sobre a aplicação da legislação aos casos de NCII é que, ao contrário do que imaginamos de início, não aparecem muitas dificuldades probatórias - inclusive, nos parece, por conta de as agressões acontecerem em grande parte entre

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pessoas que se conhecem. Ou seja, existem uma série de meios de prova que não somente a identificação de atos anônimos. Observamos, também, que em geral ocorre a responsabilização dos perpetradores, seja na esfera penal, seja na civil. Nos casos envolvendo provedores, a maior parte dos recursos vem do inconformismo de provedores de aplicação com as decisões de primeira instância; existe, também uma tendência de manutenção das sentenças, na maior parte favoráveis às vítimas, e relacionadas a identificação dos autores as postagens, fornecimento de dados cadastrais de conta de e-mail, desindexação dos mecanismos de busca, ou pagamento de indenizações por danos morais ou honorários periciais. Argumentos das empresas baseados em impossibilidades técnicas, ilegitimidade passiva ou censura raramente foram acatados pelos desembargadores, que os interpretavam de forma geral como indisposição em cumprir ordens judiciais. De início, acreditávamos que encontraríamos controvérsias sobre a necessidade de apresentação da URL do conteúdo alegado infringente, visto que o Marco Civil da Internet, no art. 21, parágrafo único, afirma que a pessoa cuja intimidade foi violada deve fornecer ao provedor elementos que “permitam a identificação específica do material apontado como violador da intimidade do participante e a verificação da legitimidade para apresentação do pedido” (grifo nosso). Ou seja, a lei não aponta que a URL deve ser necessariamente o único ou o melhor meio para a identificação específica do material em questão. Vimos, entretanto, que parece existir uma uniformização do entendimento de que identificação específica do material infringente é a indicação da URL. Parece-nos, também, que um entendimento uniformizado pode fazer com que poucos desses casos cheguem ao Judiciário, como discutimos em detalhes na Parte 3. Nossa análise das decisões envolvendo provedores indica que ainda é cedo para avaliar o impacto do Marco Civil da Internet sobre a questão da responsabilidade de provedores nos casos de NCII, mas vários elementos que trouxemos ao longo do livro parecem indicar que a lei já tenha produzido efeitos na linha dos desejados, ou seja, maior disposição ou rapidez na remoção dos conteúdos (o que significa menos judicialização de casos). Em conexão com isso, discutimos também que as políticas (privadas) das plataformas têm um impacto muito significativo no desenrolar dos casos de NCII. A disposição de oferecer mecanismos de fácil notificação e rápida remoção pode ser determinante do ponto de vista de minimização de danos - e pode ser especialmente importante para indivíduos desfavorecidos do ponto de vista do acesso à Justiça. Tendo em vista a dificuldade de realização de entrevistas com as empresas sobre o tema, escrevemos com base na análise dos termos de uso. Isso e as próprias controvérsias acerca dos critérios de retirada retirada ou manutenção de conteúdos na rede apontam, também, para a importância crescente de transparência das empresas de Internet quanto à atuação, em especial em relação a alguns temas sensíveis.

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Após testar o diagnóstico sobre o tal vácuo normativo, analisamos as propostas que têm sido levantadas de soluções. Vimos que, no âmbito Legislativo, foram propostos, nos últimos três anos, dez Projetos de Lei (PLs) sobre NCII, ora buscando aprimorar a Lei Maria da Penha, ora visando alterar o Código Penal. O Poder Legislativo parece estar permeável à discussão do tema - a começar pelo primeiro PL proposto, que foi fruto da demanda de uma vítima de “revenge porn”. Via Comissão Mista de Combate à Violência contra Mulher, tanto Senado Federal quanto Câmara dos Deputados promoveram audiências públicas sobre o tema ao longo de 2015, e de fato incorporararam sugestões de atores e atrizes extra-parlamentares - o que se evidenciou no texto substitutivo ao PL 5555/2013 (ao qual foram apensados os demais projetos). Chama atenção que três dos projetos que visam alterar o Código Penal tenham proposto o deslocamento do tratamento da NCII do capítulo dos Crimes Contra a Honra para o capítulo de Crimes contra a Liberdade Sexual. Essa alteração tem um objetivo muito mais que topológico: visa que o âmbito de proteção da norma incida sobre, ou ainda que o bem jurídico protegido seja a integridade e não a honra da vítima, com intenções declaradas de rompimento com uma abordagem moralista ou conservadora em relação ao problema. No Substitutivo ao PL 5555/2013, há também previsão de inclusão na Lei Maria da Penha de um inciso sobre violação da intimidade no Artigo 7º, que define formas de violência doméstica e familiar contra a mulher. Embora a conduta já pudesse ser compreendida como violência moral ou psicológica, como indicamos, sua especificação pode vir a impulsionar a mobilização e a aplicação da Lei Maria da Penha nos casos, o que pode ser positivo. Chama atenção o foco dos legisladores na criminalização da conduta. Observamos, nos projetos de lei, a escolha da via penal da forma mais tradicional: aquela que estabelece uma relação automática entre crime e pena de prisão, deixando de explorar, portanto, outras vias de responsabilização dos agressores. Identificamos inclusive uma preocupação, por parte de alguns tomadores de decisão, com o estabelecimento de um quantum que impossibilite a aplicação da Lei dos Juizados Especiais (Lei 9099/95)1. Nosso contato com o campo indica que a via penal é uma demanda relevante, com grande potencial simbólico de comunicação de reprovação da violência contra a mulher na esfera pública2. Ao mesmo tempo, parece-nos ser uma solução demandada majoritariamente por vítimas que em alguma medida são dotadas de recursos materiais (condições financeiras mínimas para acessar o sistema de Justiça) e imateriais (acesso a meios de comunicação, e,

O que como vimos poderia comunicar - segundo alguns/mas atores/atrizes - uma minimização dos efeitos do problema ao tratá-lo como conduta de menor potencial ofensivo. 1

2

Essa visão evidencia-se nas falas presentes nas audiências públicas.

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em algum nível, controle sobre a narrativa dos fatos que as vitimaram)3. A aproximação com os casos do Top 10 evidenciou para nós que a agência das vítimas e viabilidade de determinados instrumentos jurídicos podem variar de acordo com marcadores de classe, raça, geração, para além da questão de gênero e sexualidade: a visão das ativistas que trabalham diretamente com mulheres, adolescentes, residentes em regiões

periféricas4, majoritariamente negras, foi de forte resistência à utilização da via penal como alternativa ou solução. Esse lugar de fala, que vem de um espaço de alta vulnerabilidade, de fato comprovou o que teóricas negras (Lorde, 1984; hooks; 1984; Hill Collins, 1986) vêm denominando um ponto

de vista diferenciado ou especial para diferentes questões sociais que grupos subalternizados, em especial mulheres negras, possuem. Suas experiências de vida desafiam diretamente a estrutura social - marcada pelo classismo, sexismo e racismo -, lançando luz para alguns problemas invisíveis a quem possui algum tipo de privilégio. A desconfiança em relação às instituições estatais e o diagnóstico de que o sistema de Justiça é altamente seletivo faz com que nossas entrevistadas, mulheres negras habitando ou trabalhando diretamente com a população em bairros periféricos de São Paulo, não vislumbrem nesse espaço a solução para os problemas de exposição de intimidade de mulheres. Como vimos, elas apontam a via educacional como solução primordial para o enfrentamento do problema. Entretanto, como também discutimos, a saída pela educação está sujeita à descontinuidade quando desenhada enquanto política de governo, o que se evidencia por meio do estudo do Programa Humaniza Redes, e enfrenta desafios em se tornar uma política de Estado - haja vista a não aprovação de dispositivo específico acerca educação para igualdade de gênero no Plano Nacional de Educação (PNE) e a forte resistência à inclusão nos Planos de Educação subnacionais, graças ao forte lobby de grupos conservadores5. Fazemos essa afirmação com base no posicionamento de algumas das vítimas em reportagens e matérias veiculadas pela mídia uma vez que não as entrevistamos para o trabalho, bem como por meio da percepção de alguns de nossos entrevistados/as.

3

Embora não tenhamos realizado estudo de caso fora da cidade de São Paulo, cremos que, por razões que têm relação com acesso à Justiça, mas também com a possibilidade de maior estigmatização, tal resistência provavelmente está presente entre vítimas residentes em zonas rurais pelo Brasil, o que torna a variável território relevante ao se pensar sobre NCII.

4

No capítulo quatro mencionamos a iniciativa de organizações ligadas à defesa dos Direitos Humanos no sentido questionar/solicitar investigação sobre as ações de alguns destes grupos. Vale a pena também acompanhar o ativismo destas organizações no sentido de impulsionar a aprovação de dispositivo específico sobre educação para igualdade nas relações de gênero nos municípios e Estados. Para tanto, conferir as iniciativas “De olho nos Planos” (http://www.deolhonosplanos. org.br/) promovida por Ação Educativa, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, União dos Conselhos Municipais de Educação (UNCME), União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Associação Nacional de Política e Administração Educacional (ANPAE), Fórum

5

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De fato, durante o período de realização da pesquisa, acabamos por entrar em contato com esse discurso conservador por parte tanto de grupos organizados politicamente em diferentes escalas, quanto de perspectivas individuais expostas na Internet, em relação com os graves casos de violação da intimidade e privacidade de pessoas pertencentes a grupos subalternizados6. Essas posturas têm evidenciado não somente o conservadorismo, mas o caráter violento de nossas relações sociais, fortemente hierarquizada, na qual, nos termos de Judith Butler (1993) algumas vidas ou corpos são inteligíveis, enquanto outros são impensáveis, abjetos, e, portanto, passíveis de violação, sem que os indíviduos se sintam de alguma forma eticamente vinculados às vítimas. Diante desse quadro, e considerados os principais resultados da pesquisa, compreendemos que a vulnerabilidade histórica de determinados grupos não permite que eles abram mão do direito e de suas instituições. Patricia Williams (1987), ao tratar do papel do direito especificamente em relação aos negros e às negras, afirma que Para os historicamente impotentes a concessão de direitos é símbolo de todos os aspectos de sua humanidade que têm sido negados: os direitos implicam um respeito que os localiza em uma categoria referencial de ‘eu’ e ‘outros’, que eleva seu status de corpo humano ao de ser social. Faz-se necessário, no entanto, que estejamos atentos aos paradoxos da gramática do direito, nos termos da téorica Wendy Brown (2002). Ao olharmos para a aplicação da legislaçã,o vimos que a dinâmica interna, principalmente do direito penal, oferece respostas limitadas ao problema da NCII. Temos questões processuais relevantes que podem ter impactos nos efeitos da ação, que vão desde o enquadramento dos casos pelos operadores do direito, passando pela questão do prazo decadencial, até o acesso à Justiça - que pode ser retringido/ limitado pela necessidade de constituição de um/a advogado/a, ou obstaculizado, se a vítima não dispuser de orientações precisas de orgãos públicos. Observamos também que a interpretação obrigatoriamente restritiva que a gramática jurídica impõe permitiu com que algumas vítimas ficassem descobertas ou desprotegidas (vide aplicação do ECA). Por fim, temos que lógica de funcionamento do direito penal necessariamente opera por meio da individualização do conflito, na cristalização das categorias “vítima” e “agressor”,

Nacional dos Conselhos Estaduais de Educação (FNCE), com apoio do Instituto C&A e do UNICEF e “Gênero e Educação” (http://generoeeducacao.org.br/) promovida por Ação Educativa, Geledés Instituto da Mulher Negra, ECOS – Comunicação em Sexualidade e CLADEM – Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher. As reações à exposição de Veronica Bolina, travesti que, acusada de um crime, foi presa e, na Delegacia de Policia, sofreu agressões que foram registradas e expostas pelos próprios agentes públicos no Facebook, e a veiculação de vídeo no qual 33 homens estupraram uma adolescente de 16 anos no Twitter são emblemáticas nesse sentido. Tratamos de tais casos, com maior detalhe em Valente, Bulgarelli e Neris (2015), disponível em: http://revistageni.org/05/e-se-as-fotos-da-veronica-naotivessem-vazado-na-internet/ e na Revista E do SESC a ser publicada em Julho de 2016.

6

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enquanto, no caso em questão, estamos diante de um problema estrutural. No Judiciário, a NCII dificilmente será tratada neste campo, estrutural, inclusive tendo-se em vista a dinâmica do sexismo nas relações sociais no Brasil. Ao refletir sobre as ambiguidades do direito no debate feminista, o brasileiro Rodriguez (2015b) afirma que, “se ficar apenas com o direito penal parece ser insuficiente, abrir mão

dele, entretanto, pode ter efeitos conservadores”, uma vez que a introdução da temática da violência doméstica no campo jurídico contribuiu para a ampliação de sua tematização na esfera pública. Para lidar com suas ambiguidades, ao discorrer especificamente sobre a demanda e aplicação da Lei Maria da Penha, o autor sugere a desvinculação da ideia da “criminalização”

e “juridificação” no debate público, abrindo um espaço maior para demandas dirigidas à efetivação da lei diferentes de sua dimensão criminal” (2015b:321). Nesse sentido, parece indicar que a conquista do dispositivo legal não encerra a luta por direitos, e deve ser acompanhada da luta pelos sentidos de sua aplicação, bem como sobre funcionamento e

estrutura das instituições. Esta parece ser uma alternativa relevante para o tema que vimos trabalhando: os movimentos sociais, e, em especial, ativistas feministas tiveram um papel fundamental na elaboração de diagnósticos e saídas extra-jurídicas para o problema da NCII, o que demonstra que teriam relevantes contribuições a oferecer caso canalizassem também sua atuação ao Estado, influenciando direta ou indiretamente na sua dinâmica de funcionamento. Por fim, estamos convencidas de que uma importante tarefa à frente é a promoção de maior diálogo e interlocução entre os campos acadêmicos e ativistas da comunidade da Internet / de defesa dos direitos digitais, do campo de gênero e sexualidades, e a comunidade jurídica. A apropriação da linguagem técnica do primeiro campo por feministas e ativistas de Direitos Humanos qualifica sua atuação; o conhecimento sobre as dinâmicas das relações de gênero e sobre as especificidades das questões ligadas à sexualidade oferecem a ativistas ligados à temática da governança da Internet, privacidade e segurança na rede, liberdade de expressão e outras áreas uma visão nuançada das questões do campo; o diálogo entre as áreas com o campo do direito contribuiria para a propostas de soluções mais diversificadas. Com este trabalho, realizamos tentativa nesse sentido e esperamos empreendê-la junto a novos atores e atrizes por meio de novas pesquisas e ações.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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PROJETOS DE LEI MENCIONADOS

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BRASIL. Projeto de Lei nº 6713/2013. Disponível em:http://www.camara.gov.br/ proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1176514&filename=PL+6713/2013. ______________.Projeto de Lei nº 6630/2013. Disponível em:http://www.camara.gov. br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1166720&filename=PL+6630/2013. ______________.Projeto de Lei nº 5822/2013. Disponível em:http://www.camara.gov. br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1102810&filename=PL+5822/2013. ______________.Projeto de Lei nº 5555/2013. Disponível em:http://www.camara.gov. br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1087309&filename=PL+5555/2013. ______________.Projeto de Lei nº 7377/2014. Disponível em:http://www.camara.gov.br/ proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=BD755638FF16351D3001AAF70E3096B2. proposicoesWeb1?codteor=1245011&filename=PL+7377/2014. ______________.Projeto de Lei nº 6831/2013. Disponível em:http://www.camara.gov. br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=602238. ______________.Projeto de Lei nº 170/2015. Disponível em:http://www.camara.gov.br/ proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1297675&filename=PL+170/2015. ______________.Projeto de Lei nº 3158/2015. Disponível em:http://www.camara.gov. br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1806100. ______________.Projeto de Lei nº 4527/2016. Disponível em:http://www.camara.gov. br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2078031.

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ANEXOS

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ANEXO I - RELAÇÃO DE ENTREVISTADOS/AS

ENTREVISTADO/A Gisele Truzzi Renato Opice Blum Alice Bianchini

ÓRGÃO/INSTITUIÇÃO Truzzi Advogados Opice Blum, Bruno, Abrusio e Vainzof Advogados Advogada/Pesquisadora Direito Penal/ Coeditora no Portal Atualidades do Direito

Leopoldo Louveira

Toron Advogados

Juliana Cunha

SaferNet Brasil

Luciano Palhano

IBRAT - Instituto Brasileiro de Transmasculinidades

Elânia Francisca

Coletivo Mulheres na luta

Marilda Santos

Sementeiras de Direitos

Irina Bacci

Secretaria de Direitos Presidência da República

Ana Paula Lewin

Silvia Chakian

Thais Nader

Fabíola Sucasas

Humanos

da

Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (NUDEM) Grupo Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (GEVID-Centro), do Ministério Público do Estado de São Paulo. Defensoria Pública do Estado de São Paulo (Vara da Região Leste 2 de Violência Doméstica e Familiar) Grupo Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (GEVID-Leste), do Ministério Público do Estado de São Paulo.

Magali Vaz

Delegacia de Defesa da Mulher

Antigone Davis

Facebook

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ANEXO II - FORMULÁRIO DE CONSENTIMENTO DE ENTREVISTA O/a senhor(a) foi convidado para contribuir com a pesquisa “Gênero e Internet no Brasil: Identidade, Proteção e Mobilização”, desenvolvida pelo InternetLab, coordenada por Mariana Giorgetti Valente, e da qual participam, também, Lucas Bulgarelli e Natália Neris. Caso o/a senhor(a) concorde em contribuir com essa pesquisa, será convidado(a) a conceder uma entrevista sobre o tema e sobre sua experiência a respeito do tema. Mediante sua autorização, a entrevista será gravada e posteriormente transcrita, e seu teor será utilizado para fins exclusivamente acadêmicos. Uma cópia da transcrição ser-lhe-á enviada e, caso o/a senhor(a) queira, poderá fazer correções, comentários suplementares ou supressões de informações. Caso o/a senhor(a) não concorde em ter seu nome citado no trabalho, a confidencialidade de todos os arquivos relacionados à pesquisa será rigorosamente mantida, e as informações obtidas por meio da entrevista não serão em hipótese alguma relacionadas à sua identidade ou à sua organização. Uma cópia preenchida e assinada deste formulário de consentimento ficará em seu poder. Eu, ____________________________________ (doravante “participante”), estou de acordo em participar da pesquisa supramencionada. Confidencialidade Sim, dou ao InternetLab autorização para usar meu nome ao citar o material proveniente da entrevista. Não, prefiro que meu nome não seja mencionado, e que seja feito o necessário para que minha entrevista não seja ligada à minha pessoa / organização.

Assinatura do participante

Data

Assinatura da coordenadora da pesquisa

Data

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ANEXO III - ROTEIRO DE ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADO Bloco I: Apresentações Apresentação/Explicação sobre projeto e objetivos da entrevista Qual seu cargo? Formação? Bloco II: Atuação do órgão/empresa/escritório/entrevistado Como você descreveria a atuação do órgão/empresa/escritório em que trabalha? E sua atuação dentro dele? Bloco III: Divulgação de imagens íntimas Casos de violação de privacidade/intimidade (vazamento de dados) têm chegado órgão/ empresa/escritório em que trabalha? Em maior frequência que períodos anteriores? Como vocês denominam/classificam tais casos? (Aplica-se a Lei Maria da Penha?) Quem costumam ser as vítimas? Você tem conhecimento também casos de ameaça de divulgação de imagens íntimas? Bloco IV: Processo / provas Quais são as dificuldades que você apontaria no processo deste tipo de dano/crime? Existem dificuldades específicas relativas às provas? Como avalia a atuação de órgãos responsáveis pela produção de provas (Delegacias especializadas ou não em violência contra a mulher) nestes casos? Bloco V: Dificuldades no processar violação de intimidade Nas nossas pesquisas de jurisprudência, verificamos que há muitos casos de extorsão, ameaça, e muitos também de divulgação de imagens de criança e adolescente. Mas não há muitos casos de violação efetiva da intimidade de adultos. Você teria alguma opinião sobre a razão disso? (Ação penal privada: é uma questão? Dificultador?) Bloco VI: Violação de intimidade de crianças x de adultos Em relação a pornografia infantil: o que é pornografia infantil? Quais você diria que são as formas como isso se desenvolve? Pornografia infantil é uma categoria diferente de violação de intimidade a partir de envio consensual de imagem (e divulgação não consensual)? Bloco VII: Questões a respeito de provedores Quais as ações são tomadas relação a provedores? Você julga que os provedores dão respostas adequadas a esses problemas? Você julga que a legislação a respeito da responsabilidade de provedores é adequada a esses casos?

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Existem diferenças no que diz respeito a diferentes plataformas para violação? (Facebook? WhatsApp? Sites menos utilizados / mais desconhecidos? Questões de jurisdição? Questões de dificuldade de trackeamento?) (WhatsApp: é possível bloquear compartilhamento?) Bloco VIII: Geral Existe alguma proposta de alteração legislativa sobre enfrentamento de violência de gênero na Internet que você considere boa? Sugeriria alguma outra alteração, que não está em pauta ainda? Acredita que alteração na Lei Maria da Penha seria efetiva nestes casos? Sobre a divulgação de imagens íntimas: o que você acha do Marco Civil? (Houve mudanças?) Bloco IX: Final O que você acha do conceito de revenge porn? Você teve conhecimento do TOP 10? (explicar). Que órgãos públicos deveriam ser acionados num caso como este? Como acredita que deveriam ser tratados tais casos do ponto de vista jurídico?

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ANEXO IV - CARTA-MODELO PARA SOLICITAÇÃO DE REMOÇÃO DE NCII, ELABORADA PELA SAFERNET Anexamos, aqui, uma reprodução adaptada do modelo de carta elaborado pela ONG SaferNet, para solicitação de remoção de conteúdos de NCII, com o objetivo de facilitar o acesso a ela. O original pode ser acessado em http://new.safernet.org.br/sites/default/ files/carta_solicitação_remoção.doc Cidade, (DATA) Ao Senhor(a) Diretor(a) da (Nome da Empresa prestador de serviço responsável por hospedar o conteúdo ilegal e/ou ofensivo) Prezado Senhor, (Nome do interessado), (Nacionalidade), (Profissão), (Estado Civil), portador da Carteira de Identidade nº (xxx), inscrito no CPF sob o nº (xxx), residente e domiciliado à Rua (xxx), nº (xxx), Bairro (xxx), Cidade (xxx), Cep. (xxx), no Estado de (xxx), com fundamento no Marco Civil da Internet, Lei Nº 12.965 de 23 de Abril de 2014, que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil, vem notificar o que se segue para, ao final, pleitear as providências cabíveis e expressamente indicadas: DOS FATOS Aqui, narrar em detalhes o fato, indicando todos os links (URLs) em que o conteúdo de nudez aparece no respectivo serviço/plataforma. DO DIREITO Como se depreende dos fatos supra narrados, o requerente tem sido vítima da “violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de imagens contendo cenas de nudez e sexo de caráter privado”, estando de acordo com o que prevê o artigo Nº 21 do Marco Civil da Internet: “O provedor de aplicações de Internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.” Com esta notificação, Vossa Senhoria passa a tomar conhecimento formal destes fatos criminosos perpetrados através do (colocar o nome do serviço), sob sua responsabilidade,

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e qualquer omissão e/ou negligência na tomada de providências imediatas ensejará a adoção das medidas cabíveis para apuração das responsabilidades cíveis e/ou criminais. DO PEDIDO Considerados os fatos narrados, sem prejuízo de outras medidas extrajudiciais e judiciais cabíveis, em conjunto com o que dispõe o direito invocado, pretende o Requerente ver reconhecidas e adotadas pela (indicar aqui o nome da empresa prestadora do serviço) as seguintes providências: 1) Retirada imediata do conteúdo ilegal e/ou ofensivo do (serviço onde o material está hospedado, incluindo todos o(s) link(s) pertinentes), sob pena de ajuizamento da competente ação de responsabilidade. 2) Preservação de todas as provas e evidências da materialidade do(s) crime(s) e todos os indícios de autoria, incluindo os logs e dados cadastrais e de acesso do(s) suspeito(s), necessários para subsidiar a instrução do inquérito policial criminal e a competente ação judicial. (Narrar aqui as demais providências pretendidas, caso seja necessário ao seu objetivo) São os termos em que pede imediata providência. (Local, data e ano). (Nome e assinatura)

O modelo acima tem valor apenas educativo e de conscientização. Ele é apenas uma referência útil para o livre e autônomo exercício da cidadania, e busca facilitar e esclarecer ao cidadão comum a forma adequada de pleitear seus direitos na via administrativa e extrajudicial junto ao(s) prestador(es) de serviço de conteúdo. Para utilizá-lo certifique-se que preencheu corretamente os espaços em azul e inseriu os dados pertinentes, alterou os dados de exemplo e os substituiu pelas informações adequadas ao caso concreto (Observação no original).

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ANEXO V - ENDEREÇOS DOS PRINCIPAIS PRESTADORES NO BRASIL Facebook

Terra

Facebook Serviços Online do Brasil Ltda.

Terra Networks Brasil S.A.

Rua Leopoldo Couto de Magalhães Júnior, 700, 5º andar CEP 04542-000 São Paulo – SP, Brasil https://www.facebook.com/ help/428478523862899/

Av. Nações Unidas, 12.901, Torre Norte, 12º andar CEP: 04578-000 São Paulo – SP, Brasil http://www.terra.com.br/avisolegal/

Twitter

Google

Twitter Brasil Rede de Informação Ltda.

Google Brasil Internet Ltda.

Av. Brigadeiro Faria Lima, 4221 CEP: 04544-150 São Paulo – SP, Brasil https://support.twitter.com/forms/dmca

Av. Brigadeiro Faria Lima, 3477 Pátio Victor Manzoni, 18o andar CEP: 04538-133 São Paulo - SP, Brasil https://support.google.com/blogger/ troubleshooter/6366430

UOL Universo Online S.A

IG

Av. Brigadeiro Faria Lima, 1384 CEP: 01452-002 São Paulo – SP, Brasil https://denuncia.uol.com.br/

Internet Group do Brasil S.A Rua Amauri, 299 CEP: 01448-000 São Paulo – SP, Brasil

Yahoo! Yahoo! do Brasil Internet Ltda.

Microsoft Microsoft Informática Ltda. Av. Nações Unidas, 12.901, Torre Norte, 31º andar CEP: 04578-000 São Paulo – SP, Brasil https://support.microsoft.com/en-us/ getsupport?oaspworkflow=start_ 1.0.0.0&wfname= capsub&productkey= RevengePorn&ccsid= 635947891291375862

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Av. Brigadeiro Faria Lima, 3600 CEP: 04538-132 São Paulo – SP, Brasil https://policies.yahoo.com/us/en/ yahoo/ip/index.htm/

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ANEXO VI–ALGUNS LINKS PARA SOLICITAÇÕES DE REMOÇÃO DE NCII Salve os screenshots antes de notificar os provedores. Facebook

Terra

https://www.facebook.com/help/ contact/14405906240892

Endereço de e-mail: [email protected] Instruções: http://www.terra.com.br/avisolegal/

Google Remover dos produtos Google (Google+, Blogger, Grupos do Google, etc) https://support.google.com/blogger/ troubleshooter/6366430

Tumblr https://www.tumblr.com/abuse/privacy

Twitter

Remover dos resultados de pesquisa do Google (desindexar): https://support.google.com/websearch/ troubleshooter/3111061#ts =2889054%2C2889099

https://support.twitter.com/forms/ private_information Informações gerais sobre denúncias de violações: https://support.twitter.com/ articles/434228#

Instagram

UOL

https://www.facebook. com/help/instagram/ contact/584460464982589#_=_

https://denuncia.uol.com.br/

Yahoo! https://policies.yahoo.com/us/en/ yahoo/ip/index.htm/

Microsoft (Em inglês) https://support.microsoft.com/en-us/ getsupport?oaspworkflow =start_1.0.0.0&wfname= capsub&productkey= RevengePorn&ccsid= 635947891291375862

YouTube https://support.google.com/youtube/ answer/2802027?hl=pt

PornHub http://www.pornhub.com/support

Reddit Endereço de e-mail: [email protected] Infos: https://www.reddit.com/r/ announcements/comments/2x0g9v/ from_1_to_9000_communities_now_ taking_steps_to/

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