O corpo trágico: estudo do corpo em conflito no cinema de Chang Cheh

July 26, 2017 | Autor: Juliana Maués | Categoria: Film Studies, Chinese Art, Hong Kong Cinema, Body studies, Martial Arts Cinema
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O corpo trágico: estudo do corpo em conflito no cinema de Chang Cheh1 Tragic body: study of the body in conflict in the films of Chang Cheh Juliana Maués2 (mestranda – Unicamp)

Resumo: Na ideia de corpo trágico, reside o cerne do cinema de artes marciais do diretor chinês Chang Cheh. Em um gênero marcado pelo físico, sugerimos que Chang elabora a sua problemática ao reunir na imagem do corpo do herói em seu ritual de morte a dialética entre salvação e aniquilamento de um modo que desconhece, em termos expressivos, equiparações no universo do gênero - e talvez só encontre paralelos, em toda a sétima arte, nos anti-heróis trágicos de Abel Ferrara.

Palavras-chave: Corpo, tragicidade, Chang Cheh, Hong Kong, artes marciais

Abstract: The core of Chinese director Chang Cheh martial arts cinema is in the idea of tragic body. We suggest that Chang elaborates his questioning based on the image of the hero’s body in his death ritual, where he establishes a dialectic move between salvation and annihilation. This construction does not have any equivalence in expressive senses all over the martial arts genre universe – and maybe can just find parallels in the tragic anti-heros of Abel Ferrara’s movies.

Keywords: Body, tragicity, Chang Cheh, Hong Kong, martial arts

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Trabalho apresentado no XVI Encontro Socine de Estudos de Cinema e Audiovisual na sessão: Estudos de autoria e estilo. 2 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Multimeios da Universidade Estadual de Campinas, sob orientação do Prof. Dr. Fernão Ramos. Estuda estilo e encenação no cinema de artes marciais do diretor Chang Cheh.

O cinema de artes marciais fundamenta-se no corpo, sustentando uma dialética entre físico, material e imanente, por um lado, e espiritual, imaterial, transcendente, por outro. Os caminhos tomados dentro dessas possibilidades caberão a realizadores individuais e a força da sua expressividade audiovisual, sobrepujando a mídia para torná-la arte, é mérito individual de cada obra. Quando falamos dos três principais nomes responsáveis pela renovação do gênero no contexto do Estúdio Shaw Brothers de final dos anos 1960 até os 1970, temos três claras posturas: King Hu preza pela transcendência, ao mostrar um corpo que vai além de seu universo físico e o supera, com personagens que parecem voar; Lau Kar-leung mantém-se preso à solidez do punho sulista e faz um cinema mais imanente, mais ligado à matéria. Nosso foco é o terceiro nome: Chang Cheh. Iniciando no cinema de artes marciais com o wuxia pian Tiger Boy (1966), após já ter trabalhado em outros gêneros, como o wenyi pian (melodrama), Chang é dono de uma obra prolífica que, oficialmente, contabiliza 94 filmes. Dentre eles, encontraremos grandes obras, em que a força das imagens conduz o espectador expressivamente pela narrativa, e filmes menores, notavelmente produções rotineiras do estúdio ou realizadas durante a última fase da carreira do diretor, quando muito do seu interesse investigativo pelas ferramentas do estilo cinematográfico já havia esmorecido. Partimos de uma análise do plano em dez obras deste diretor - Have sword will travel, The Golden Swallow, Vengeance, The boxer from Shantung, The blood brothers, Heroes two, Disciples of Shaolin, Crippled avengers, Five element ninjas e Ninja in ancient China -, buscando compreender a relação estabelecida com o corpo, especialmente por meio do movimento. Notamos personagens constantemente irrequietos, não apenas nas cenas de luta, mas também nos diálogos, em que o ato de

caminhar desempenha papel importante e cuja caracterização centra-se muitas vezes em posturais corporais. Desenvolvendo-se em nuances, modulações, o corpo varia desde os movimentos espalhafatosos das coreografias de luta até gestos sutis em interpretações que recorrem à Ópera de Pequim (jingju) não apenas no sentido marcial (wu), mas especialmente nas relações entre masculino e feminino. Uma palavra relevante na obra de Chang é o termo chinês qing, que significa desejo, paixão, mas não apenas no seu sentido amoroso, mas no de sentir-se vivo. Zeitlin (2005) afirma que aquilo pelo que os vivos não podem morrer ou que não pode ressuscitar os mortos, não é qing no seu mais supremo. Ele complementa: “como a efígie ou o fantasma, qing se manifesta nas misteriosas fronteiras da vida e da morte” (ZEITLIN, 2005, p.245). É nesse momento de fronteira, de coexistência de dois universos que Chang apresenta sua maestria. Dentre todos os movimentos físicos, o que de mais distintivo esse diretor oferece, e onde se concentra a sua força, é o modo como lida com o corpo às portas da morte. Com desfechos marcados pela morte do herói, a maioria dos filmes conduz o personagem em um ritual que se repetirá em vários deles. Para além de uma morte simples e direta, estes personagens passam por aquilo que Sek Kei (2002) intitula uma danse macabre. Essas sequências de morte não são como quaisquer lutas, cuja única diferença reside no fato de que o protagonista morre no final. Pelo contrário, na maioria dos casos, ele estará morrendo desde o início da sequência, tanto que podemos falar no próprio sentido de uma ritualização. Herdeiras da luta de morte no jingju, essas cenas possuem elementos recorrentes: o herói é ferido, de forma desleal ou acidental, geralmente, no peito ou abdômen (não coincidentemente, centros de dois sistemas corporais fundamentais segundo a medicina tradicional chinesa: os que geram a consciência e a energia vital),

ou em ambos; em algum momento, haverá uma queda, infalivelmente editada em câmera lenta; as posturas sofrerão variação gradual, de eretas a curvadas até o ponto em que o personagem apenas rasteja; as pausas tornar-se-ão cada vez mais frequentes; e, obviamente, apesar de tudo, ele lutará. A graciosidade da coreografia que, segundo o próprio Chang (2002), teria se tornado a mais distinta e única apresentação do cinema local, de modo a influenciar todos os filmes modernos de ação, perde-se nessas sequências. Mas, se a coreografia, muito dura e selvagem, não é graciosa, os corpos continuam sendo, no próprio sentido em que afirma Mourlet (2008, não paginado), que, quando discorre sobre a encenação, fala de um cinema que colocar-nos-á sobre “rostos, corpos radiantes ou feridos mas sempre belos, dessa glória ou desse fracasso que testemunham uma mesma nobreza original, de uma raça eleita que, com embriaguez, reconhecemos nossa”. Isso explicado, podemos partir para um segundo momento: o título desta apresentação fala em tragédia. Mas onde reside o trágico? Filosoficamente, ele está na dialética entre salvação e aniquilamento, pois “não é o aniquilamento que é trágico, mas o fato de a salvação tornar-se aniquilamento” (SZONDI, 2004, p.89); não é no declínio do herói que se cumpre a tragicidade, mas no fato de o homem sucumbir no caminho que tomou justamente para fugir da ruína. De um modo geral, o trágico em Chang constitui-se a partir do instante em que os esforços do espírito para libertar-se do peso físico por meio da disciplina e do treinamento materializam-se na luta, que é também o meio pelo qual o corpo, uma vez ferido, faz-se sentir e revela a impossibilidade de uma libertação, conduzindo a ambos, corpo e espírito, à ruína final. Os meios pelos quais o trágico se faz sentir, expressiva e simbolicamente, são vários. Ele está na fixação pelo ferimento, ostentada durante toda a sequência de

morte. Esse ferimento que é, ao mesmo tempo, o modo pelo qual o artista marcial se livra do “sangue ruim”, do qi congestionado que lhe distrai a consciência; e a causa primeira da morte. A abundância de sangue nos filmes de Chang também é importante pela sua expressividade enquanto vermelho e pela sua simbologia: o vermelho é, ao mesmo tempo, a fonte da vida, a cor do exorcista, que expele as más influências e a cor de transição para um estado outro, muitas vezes identificado com a morte. Outra expressão imagética dessa dualidade está em um elemento que permeia várias cenas de morte: muitas delas culminam na aurora ou no crepúsculo, o momento a meio caminho entre o sol e a lua, a luz e a escuridão, logo, o ponto em que Yin e Yang se encontram suspensos, iguais, em equilíbrio – uma dualidade fundamental se considerarmos o tanto de wenyi pian (“melodrama”) presente nos filmes yang gang3 (másculos) de Chang. Nessas cenas finais, junto com o vermelho, esvai-se a consciência Yang e vemos por algum momento os heróis balançados em sua convicção. Notamos, então, que o qing, o amor anteriormente falado, não é ao irmão, mestre ou amigo a quem o herói deve vingança, mas sim a um código de conduta que se mostra maior que tudo isso: o código do xia4, a ética da cavalaria, a que ele não ousa desrespeitar mesmo que não compreenda. O elemento wenyi, a parte feminina, mesmo submetida ao masculino pelo enredo, ressurge durante a morte. Chang afirma o interesse em explorar o estado de mente de jovens guerreiros que arriscam as vidas

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Chang desenvolve o conceito de yang gang no seu primeiro filme de artes marciais, o filme de espadachim Tiger boy (1964), hoje perdido. Em uma tradução aproximada, o termo significaria “masculinidade convicta” e surge como uma reação ao lugar ocupado pelos personagens masculinos no cinema de Hong Kong até então. Com uma cultura narrativa voltada à figura feminina, os gêneros cinematográficos tradicionais, entre eles o wenyi pian, o huangmei diao e mesmo o wuxia pian, retratavam os homens muitas vezes como intelectuais refinados, mas fracos e covardes na defesa de seus ideais, seja uma causa política ou um amor proibido. 4 O código do xia corresponde a uma série de condutas morais surgidas na narrativa literária e transpostas para o cinema. Ela aparece como convenção do gênero wuxia pian (wu: marcial; xia: cavaleiro), que seriam estórias de espadachins errantes vagando por territórios selvagens, conhecidos tanto na literatura quanto no cinema derivado, como Jiang Hu. No cinema, o wuxia pian se distingue do filme de kung-fu, ambos subgêneros do cinema de artes marciais. Chang, todavia, sustenta a presença do código em todos os seus filmes. Entre os principais preceitos estão lealdade, retidão e justiça, mesmo que na forma mais radical: a vingança.

em troca de glória pessoal e paixão. Contudo, ao invés de um desejo, a necessidade de glória é mais um fardo que esses homens não podem deixar de carregar. Essa ritualização não aponta rumo à glorificação da morte ou, por outro lado, ao masoquismo absoluto. O que transparece não é um desprezo pelo corpo, mas a sua instrumentalização inicial e uma posterior autoconsciência. Na ideia do corpo enquanto instrumento, repousa o sentido do corpo idealizado, que pode transcender suas barreiras rumo a um objetivo proposto, na maioria das vezes a vingança. Nele, estaria a austeridade, o orgulho do yang gang. Quando a consciência se torna puramente física, provocada por ferimentos cada vez mais profundos, surge o pensamento dramático do wenyi, do melodrama, e o corpo se vê preso a suas amarras, incapaz de fugir ao seu próprio peso carnal. Do conflito, entre os dois, nasce o trágico. É nesse duelo entre um corpo instrumental, meio para atingir um fim, e um corpo consciente, que reconhece o fim em si mesmo; entre os sentimentos de wenyi5 (romantismo) e de yang gang (austeridade), que se estabelece o cinema de Chang. Mais do que no efeito catártico que John Woo reivindica a esses filmes, é nesse corpo conflitante que está a sua tragédia. Trata-se aqui da apreensão direta dos corpos em conflito (SGANZERLA 2001), mas não uns com os outros senão consigo mesmos. Se na cultura chinesa, o corpo enfermo ou anormal é percebido como marcado por algum poder ou espírito externo, invisível; para Chang, isso nada mais é do que o próprio corpo dotando-se de consciência, incorporando a si próprio. Esse estado alterado, todavia, só é possível nesse momento de fronteira que precede a morte, quando já se sabe que não há alternativa: é um corpo que existe em dois mundos. Algumas palavras de Leo Armenius, primeira tragédia alemã, são úteis neste momento em que procuramos pensar em imagens: “Subimos como fumaça que 5

Wenyi pian é o nome dado a um gênero do cinema chinês que se popularizou em Hong Kong, que nutre semelhanças com o melodrama ocidental. Geralmente, a narrativa é pautada em romances proibidos e narrada da perspectiva feminina.

desaparece no ar/, subimos para a queda, e quem chega às alturas/ encontra aquilo que pode derrubá-los” (apud SZONDI, 2004, p.111). Os versos evocam um movimento particular, presente em todas as cenas de morte filmadas por Chang nos filmes analisados: um movimento híbrido de queda e salto realizado pelo herói em determinado momento da luta. É nele que encontramos nossa imagem-síntese, nele se estabelece todo o sentido de um corpo trágico. Visto sempre com um enquadramento mais aberto que o restante da luta e presente na maioria delas, ele é o momento em que o herói mais tem o seu espaço respeitado, tanto pelos demais em cena que, em outros momentos, tomam-lhe o primeiro plano e ocultam-no com os próprios corpos, quanto pela câmera. Ele é o centro óbvio de tudo. Salta, do alto de uma escada, de uma mesa, ou mesmo no chão, mostrando todo o vigor do corpo treinado para a luta; mas é alvejado e o corpo, em sua autoconsciência, mostra que o adestramento não é perfeito e o obriga a cair. Dividido entre os dois universos, vida e morte, intelecto e carne, vigor e fragilidade, ele oscila entre o salto e a queda, até que a última vence. Nesse mesmo salto, em que estaria o triunfo último da mente, do espírito, sobre o físico, reside a sua perdição. Rodopios, braços distendidos e slow motion compõem o plano. Nesse movimento híbrido de salto e queda, estabelecemos a imagem síntese do corpo trágico.

Referências BORDWELL, D. Planet Hong Kong: popular cinema and the art of entertainment. Massachusetts: Harvard University Press, 2003. BORDWELL, D. Figuras traçadas na luz: a encenação no cinema. Campinas: Papirus, 2008. BORDWELL D. & THOMPSON, K. Film art: an introduction. New York: McGraw Hill Humanities Social, 1997. CHANG, C. Chang Cheh, a memoir. Hong Kong: Hong Kong Film Archive, 2002.

HO, S. One jolts, the other orchestrates: two transitional Shaw Brothers figures. In: The Shaw screen: a preliminary study. Hong Kong: Hong Kong Film Archive, 2003. MOURLET, M. Sobre uma arte ignorada. Fonte: . Acesso em: 20 de março de 2011. RILEY, J. Chinese theatre and the actor in performance. Cambridge: Cambridge University Press, 1997. SEK, K. A preface by Sek Kei. In: Chang Cheh, a memoir. Hong Kong: Hong Kong Film Archive, 2002. pp. 11-19. SGANZERLA, R. Por um cinema sem limites. Rio de Janeiro: Azougue editorial, 2001. SZONDI, P. Ensaio sobre o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. TEO, S. Hong Kong Cinema: the extra dimensions. London: British Film Institute Publishing, 2007.

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