O CORSET NA MODA OCIDENTAL: UM ESTUDO SOCIOSSEMIÓTICO SOBRE A CONSTRIÇÃO DO TORSO FEMININO DO SÉCULO XVIII AO XXI

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP

Marília Hernandes Jardim

O CORSET NA MODA OCIDENTAL: UM ESTUDO SOCIOSSEMIÓTICO SOBRE A CONSTRIÇÃO DO TORSO FEMININO DO SÉCULO XVIII AO XXI

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

SÃO PAULO 2014

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP

Marília Hernandes Jardim

O CORSET NA MODA OCIDENTAL: UM ESTUDO SOCIOSSEMIÓTICO SOBRE A CONSTRIÇÃO DO TORSO FEMININO DO SÉCULO XVIII AO XXI

Dissertação apresentada à banca examinadora como exigência parcial na obtenção do título de Mestre em Comunicação e Semiótica (Área de concentração: Signo e Significação nas Mídias. Linha de Pesquisa: Análise das Mídias) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob orientação da Professora Doutora Ana Claudia Mei Alves de Oliveira.

SÃO PAULO 2014

Banca Examinadora

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Agradecimentos

À Professora Ana Claudia Mei Alves de Oliveira, pela excepcional orientação e dedicação a esta pesquisa. A Karin Thrall, pela parceria no trabalho sobre a Cidade de São Paulo, no qual tanto aprendi. Ao meu pai, Antonio Gomes Jardim Jr., por todo o apoio. A todos xs colegas do PEPGCOS (sobretudo na disciplina Semiótica Discursiva) e CPS, pela troca. Ao CAPES e à PUC São Paulo, pelo fomento à pesquisa.

RESUMO

Esta pesquisa investiga a constrição do torso feminino praticada pelo uso do corset, que apresenta um papel fundamental na conformação do corpo feminino e uma marcada função na transformação da lógica social, uma vez que as configurações de corpo por ele realizadas alteram significativamente a interação entre os corpos constritos e os demais sujeitos formadores deste entorno social. É possível postular que o corset pode ser abordado como um sujeito da interação, cujo papel aparece como parte da formação das lógicas sociais, e não como um reflexo destes contextos. A partir daí, o problema abordado é a identificação da relação entre a conformação da silhueta e uma consequente determinação da interação social, advinda dos modos de apreensão que emergem da plástica conferida ao corpo pelo traje. Longe de constituir uma problemática pertinente ao estudo da moda de época, o uso de lingeries constritoras apresenta-se como um temário extremamente atual, sobretudo no Ocidente, onde grandes esforços são empregados pela indústria na produção de objetos constritivos, difundidos entre mulheres de todas as etnias e classes sociais. Para entender os sentidos que emergem desta complexa e arriscada interação entre corset e corpo, se faz necessária a busca das origens deste fenômeno na moda ocidental do século XVIII, quando consolidou-se o uso do corset como roupa interior. A partir deste uso, buscamos identificar momentos emblemáticos desta prática, bem como as rupturas em sua continuidade, com o objetivo de localizar nestas fraturas os papéis específicos assumidos, nas interações, pelo corset e pelo corpo, para categorizar, a partir deles, os trânsitos entre continuidade e descontinuidade do uso do corset. Para tal, este estudo recorre a um extenso corpus de pesquisa, formado por imagens de corsets, crinolinas e trajes colhidas de acervos de museus, bem como fotografias de lingeries comercializadas em lojas virtuais, além de imagens que auxiliam na recontrução das tendências de corpo estudadas, como publicidades e reproduções de pinturas. À luz da sociossemiótica de Landowski, da teoria semiótica de Greimas e da semiótica visual de Floch e Oliveira, conduzimos uma investigação destes usos e configurações vestimentares, que nos possibilitou isolar as relações de complementaridade entre os papéis dos atores corset e corpo na narrativa vestimentar, que embasam a dominância do primeiro como destinador do corpo, além das demais relações entre estes dois papéis, reveladoras de um maior protagonismo do corpo, importante formador das passagens da moda e do entorno social que a engloba. Palavras-chave: corset, corpo feminino, modelagem, sociossemiótica, semiótica visual.

ABSTRACT

This study investigates the feminine torso constriction obtained through the corset use, which presents a fundamental role on the feminine body conformation, and a pronounced function of transforming the social logic. Also, the silhouette configurations by him realized significantly alter the interaction between constricted bodies and other subjects. It is possible to postulate thus that the corset is an interactive subject, whose role is part of the social logic shaping, and not its reflex. From this point, the studied problem is the identification of the relation between the conformation of the silhouette and a consequent social interaction determination, arisen from the apprehension modes that surface from the body plastic endowed by the garment. Far from constituting a historical fashion problem, the use of constrictive lingerie present as a hodiernal topic, especially on the West, where significant efforts are devoted on the development of shaping objects, consumed by women from all ethnicities and social backgrounds. In order to understand the meanings that emerge from this complex and risky interaction between corset and body, it is necessary to seek the phenomenon origins on 18thcentury western fashion, when the corset use as an undergarment began. From this use, we purpose the identification of emblematic moments of such practice, as well as the ruptures on its continuity, designing to recognize, in those fractures, the specific roles assumed by corset and body, to categorize the transits between corset use continuity and discontinuity. For such, the study call on an extensive research corpus, formed by corset, crinoline and gown images collected from museum collections, as well as virtual stores lingerie photographs and images that can help on reconstructing the studied body tendencies, as advertising and painting reproductions. In the light of Landowski's socio-semiotic, Greimas's semiotic theory and Floch's and Oliveira's visual semiotics, we investigated the uses and apparel configurations, isolating the relations of complementarity between the roles played by the actors corset and body, which underlies the dominance of the first as body's addresser, as well as other relations between those two roles, which reveal a body leadership, important former of fashion and social surroundings passages. Keywords: corset, feminine body, shaping, socio-semiotics, visual semiotics

SUMÁRIO

LISTA DE FIGURAS.............................................................................................................................8 INTRODUÇÃO.....................................................................................................................................11 I. A CONSTRUÇÃO DO CORSET COMO SUJEITO...................................................................19 I.1. A anatomia do corset enquanto torso sobre o torso....................................................................24 I.2. O fazer do corset.........................................................................................................................32 I.3. As interações entre corset e corpo...............................................................................................36 II. O PAPEL TEMÁTICO DO CORSET...........................................................................................40 II.1. O traje à francesa.......................................................................................................................43 II.1.1. A roupa de baixo do século XVIII.....................................................................................48 II.2. A moda de 1880.........................................................................................................................55 II.2.1. A roupa de baixo de 1880..................................................................................................60 II.3. O início do século XX................................................................................................................70 II.3.1. Straight Front ou S-bend: O Corset Saudável....................................................................73 II.3.2. Underbust...........................................................................................................................77 II.4. Amarração..................................................................................................................................80 III. O CORSET COMO DESTINADOR DO CORPO.....................................................................85 III.1. La Perla Shape Couture Underwire Bodysuit...........................................................................90 III.2. Agent Provocateur Corset.........................................................................................................96 III.3. TC Fine Intimates Slip............................................................................................................103 III.4. Dr. Rey Slim Shapewear Bermuda Slim Every Day..............................................................107 III.5. Amarração...............................................................................................................................111 IV. CONTATO ENTRE CORSET E CORPO.................................................................................118 IV.1. The Little X Girdle..................................................................................................................121 IV.2. Youthlines Q Form by Mary Quant bodysuit..........................................................................129 IV.3. Stays (1795)............................................................................................................................134 IV.4. Corset (1820)..........................................................................................................................141 IV.5. Amarração...............................................................................................................................145 V. CO-INCIDÊNCIAS ENTRE CORSET E CORPO...................................................................150 V.1. The Freedom Trash Can...........................................................................................................155 V.2. A moda e o estilo de Chanel.....................................................................................................162 V.3. Extreme Tight Lacing...............................................................................................................167 V.4. O punk dos anos 1970 e Madonna...........................................................................................177 V.5. Amarração................................................................................................................................184 VI. AMARRAÇÃO: DO PONTO DE VISTA DO CORPO...........................................................188 VI.1. As programações do corpo....................................................................................................193 VI.2. O corpo manipulado/manipulador..........................................................................................197 VI.3. Os corpos sensíveis................................................................................................................200 VI.4. O corpo como destinador (mítico) do corset..........................................................................203 CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................................207 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..............................................................................................212 GLOSSÁRIO.......................................................................................................................................219

LISTA DE FIGURAS

Figura 1. The Glove-Fitting Corset, 1868.................................................................................24 Figura 2. Dois desenhos da anatomia feminina, atribuídos a Adriaan van Spiegel, extraídos do livro “De humani corporis fabrica libri decem”, 1600-1631....................................................29 Figura 3. Comparação anatômica entre o corpo feminino com ou sem o uso do corset...........31 Figura 4. Quadrado dos Regimes de Interação e de Sentido proposto por Landowski em “Les Interactions Risquées”..............................................................................................................38 Figura 5. Sackback gown, vestido de 1775...............................................................................43 Figura 6. Detalhe do bordado do vestido de 1775....................................................................46 Figura 7. Roupa de baixo do século XVIII, formada por stays e hoopskirt..............................48 Figura 8. Detalhe da crinolina, 1778.........................................................................................50 Figura 9. Stays, 1780.................................................................................................................51 Figura 10. Vestido de 1885.......................................................................................................55 Figura 11. Roupa de baixo de 1880..........................................................................................60 Figura 12. ‘The New Phantom’ bustle frame, 1884..................................................................62 Figura 13. Panorama do desenvolvimento das crinolinas ao longo do século XIX..................64 Figura 14. Brown’s ‘Dermathistic’ Corset, 1883......................................................................65 Figura 15. Panorama do desenvolvimento dos corsets do final do século XVIII ao início do século XX..................................................................................................................................67 Figura 16. Spoon busk..............................................................................................................67 Figura 17. House of Rouff Tea Gown, 1900.............................................................................70 Figura 18. Corset Straight Front ou S-bend, 1900....................................................................73 Figura 19. Anúncio do corset Foster Hose Supporter, 1902.....................................................75 Figura 20. Silk Ribbon Corset, 1906........................................................................................77 Figura 21. Quadrado dos usos tradicionais do corset...............................................................83 Figura 22. La Perla Shape Couture (Underwire Bodysuit), 2011.............................................90 8

Figura 23. La Perla Shape Couture, detalhe da costura central e abertura higiênica................92 Figura 24. La Perla Shape Couture Underwire Bodysuit.........................................................93 Figura 25. Agent Provocateur Corset, 1990..............................................................................96 Figura 26. Desenho técnico: Agent Provocateur Corset...........................................................97 Figura 27. Comparativo: Corset, 1890 e Agent Provocateur Corset.........................................98 Figura 28. Performance de Pink, Lil’ Kim, Mya e Christina Aguilera no 2000 MTV Movie Awards.....................................................................................................................................100 Figura 29. TC Fine Intimates Slip, 2013.................................................................................103 Figura 30. Dr. Rey Slim Shapewear Bermuda Slim Evey Day, 2008.....................................107 Figura 31. Diagrama dos cortes bovinos.................................................................................109 Figura 32. Detalhe da costura da Bermuda Slim Everyday....................................................109 Figura 33. Quadrado dos corsets elásticos..............................................................................115 Figura 34. The ‘Little X’ Girdle, 1960....................................................................................121 Figura 35. Comparativo: Wrap-around girdel (1930) e The ‘Little X’ Girdle........................122 Figura 36. Anúncio: “Peter Pan Little X”, 1957.....................................................................124 Figura 37. Anúncio: Corset-Gaine, 1906................................................................................125 Figura 38. Youthlines Q Form by Mary Quant bodysuit, 1965..............................................129 Figura 39. Desenho técnico: Youthlines Q Form by Mary Quant bodysuit............................129 Figura 40. Stays, 1795............................................................................................................135 Figura 41. Vestido, 1800.........................................................................................................138 Figura 42. Corset, 1820...........................................................................................................141 Figura 43. Georges Rouget, “As srtas. Mollien”, 1811..........................................................142 Figura 44. Detalhe: Corset, 1820............................................................................................144 Figura 45. Quadrado dos corsets reformulados......................................................................148 Figura 46. Freedom Trash Can, 1968. Foto do protesto durante o concurso Miss America 1969.........................................................................................................................................155 Figura 47. Gabrielle Chanel....................................................................................................162 9

Figura 48. Fakir Musafar.........................................................................................................167 Figura 49. Mr. Pearl (Mark Pullin).........................................................................................168 Figura 50. Dita Von Teese (Heather Renée Sweet).................................................................169 Figura 51. Cathie Jung............................................................................................................170 Figura 52. Cherie Currie (The Runaways), 1977....................................................................177 Figura 53. Madonna em corset desenhado por Jean-Paul Gaultier, 1990...............................178 Figura 54. The CHerie Currie Curset Tee...............................................................................179 Figura 55. Madonna em “The Confessions Tour”, 2006, e “MDNA Tour”, 2012..................184 Figura 56. Quadrado dos usos excepcionais do corset, regidos pelo regime do acidente......186 Figura 57. Elipse das lógicas dos regimes de interação e de sentido......................................188 Figura 58. Elipse do corpus reorganizado a partir das quatro lógicas do sentido...................190 Figura 59. Quadrado das conformidades entre o uso do corset e o sentido produzido no corpo.......................................................................................................................................191 Figura 60. Elipse das passagens entre quatro categorias de uso do corset identificadas a partir da análise do corpus................................................................................................................192 Figura 61. Elipse dos usos do corset nos quais predominam uma programação do corpo.....194 Figura 62. Elipse dos usos do corset nos quais predomina o regime de manipulação............198 Figura 63. Elipse dos usos do corset nos quais predomina o regime de ajustamento.............201 Figura 64. Elipse dos usos do corset nos quais predomina o regime do acidente..................204

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Introdução

“Cego é o homem que não percebe que a forma do corset explica os padrões da sociedade.1” (La vie parisienne, 1868)

A epígrafe escolhida para iniciar este trabalho inicia também o capítulo “Control and Constrict” do livro “Underwear Fashion in Detail”, dedicado a contar a história da constrição na moda ocidental (LYNN, 2010). Contudo, há uma diferença sutil, porém fundamental, entre os escritos de Eleri Lynn e a presente pesquisa: ao utilizar-se da diacronia como suporte para sua exposição, Lynn admite, apesar desta epígrafe, que é o momento histórico-social que molda os padrões do trajar identificados na moda ocidental. Neste trabalho, no entanto, partiremos da hipótese oposta, de que não é o social o formador da moda, mas a própria manifestação da moda é o social. Acreditamos, portanto, que o momento histórico aparecerá a partir do corpo, modelado e vestido, como sua concretização manifesta. Estes modos do vestir são formadores das interações entre os sujeitos em um contexto social, e começam muito antes da roupa exterior, aquela que se dá a ver ao outro. Sua manifestação inicia-se em um arranjo muito mais complexo, aquele da roupa de baixo, que desde meados do século XVII é modeladora da silhueta feminina e, por meio da formação deste eidos e topologia de uma silhueta que modela um parecer do corpo, é formadora do papel feminino e de sua presença no social. É sobretudo desta complexa relação que esta pesquisa busca dar conta. Nosso objeto de estudo, no entanto, não é a compressão da cintura, realizada por meio de quaisquer objetos, como cintos, faixas ou ataduras, mas uma forma específica da constrição do torso, que começa aproximadamente no século XVII, com o uso dos stays, ou corps à baleine. Trata-se da primeira peça vestimentar elaborada exclusivamente para a função de constrição desta região do corpo – ao contrário, por exemplo, dos cintos utilizados na antiguidade, que possuíam antes desta outras funções no traje masculino ou feminino, como a fixação das vestes na região da cintura, ou mesmo seu embelezamento. Entendemos que existe uma separação fundamental, no que toca a intencionalidade da modelagem do 1 “Blind is the man who cannot see that the form of the corset explains the pattern of social custom.” (apud. LYNN, 2010, trad. nossa)

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corpo, que distingue o uso de um cinto ou faixa de tecido para reduzir a cintura, e o uso de um objeto construído especialmente para esta função, cuja ação sobre o corpo além de reduzir a cintura é capaz de modelá-la, transformando-a em sua forma. Por este motivo, nosso panorama da constrição da cintura por meio do uso específico do corset inicia-se no século XVIII. O traje de então aparece como consolidação de uma tendência iniciada em meados do século XVII, momento histórico em que os stays deixam de ser corpetes para tornarem-se roupas de baixo (HART & NORTH, 1998). Nosso objeto, portanto, encontra-se delimitado à prática da constrição do torso realizada por meio da lingerie, e não de objetos exteriores ao traje. O início deste estudo na moda do século XVIII pode igualmente ser justificado a partir de um viés histórico, que nos sugere que, a partir deste século, consolidou-se a tendência de moda da maneira que a conhecemos atualmente, como alternâncias entre diferentes discursos vestimentares. No final desse século, encontramos a primeira ruptura, após um período de quase dois séculos de vigência de uma mesma configuração de traje, manifestada pela queda da crinolina (hoop skirt) e dos stays tradicionais, iniciando a moda “neoclássica”. A partir deste ponto, a moda ocidental mudou em ritmo cada vez mais acelerado, ao longo do século XIX e XX, até as frenéticas passagens apreendidas em nossa década. Ao lado destas mudanças, existe uma transformação fundamental, que é aquela da silhueta. O corset, em diferentes formas e materialidades, aparece como um dos grandes protagonistas desta mudança, adaptando-se ao corpo e aos tempos, mas também os tempos e os corpos, além do próprio traje, parecem sujeitos à ação deste poderoso actante da indumentária feminina, a lingerie constritiva. Em La Mode en 1830, Greimas (2000) escreve que o vestido tornou-se eternamente limitado à forma do corset, o que nos revela uma importante pista acerca do papel do corset de destinador do corpo e da silhueta. É possível ler, portanto, que a manifestação do corpo constrito, no traje, é resultado de uma relação entre dois sujeitos, no qual um pratica o ato que transforma outro sujeito: o corset, e aquele que sofre a ação: o corpo. Mais do que uma catalogação e descrição de trajes e lingeries de diversos períodos, este trabalho intenciona focalizar a complexa relação contida nesta interação, que se dá entre dois sujeitos, o corset e o corpo, a partir de diferentes regimes de sentido e de risco. Tal estudo demanda, primeiramente, um exame do corpo e do corset enquanto sujeitos separados, ambos dotados de arranjos plásticos, de figuratividades. Em seguida, propomos uma reflexão acerca 12

do corset enquanto sujeito do fazer, realizador de uma performance, cujo principal objetivo é a transformação do sujeito corpo em uma nova configuração de silhueta, para que, a partir dela, o próprio corpo possa realizar sua performance no social. Este estudo também delimitase ao uso do corset pelo corpo da mulher, apesar de reconhecermos que o uso do corset na moda ocidental não é um fenômeno exclusivamente feminino, e mencionaremos, ao longo do trabalho, alguns casos em que também o masculino incorpora o uso desta peça de vestuário. Mas de que maneira se dá a ação deste sujeito modelador sobre o outro sujeito, que é modelado? Sabemos instintivamente que o corset possui um fazer constritivo sobre o corpo, ou seja, a lingerie modeladora proporciona uma resistência sobre determinada área do corpo, reduzindo-a, o que proporciona uma transformação da configuração desta área que afeta igualmente as demais áreas ao redor dela, resultando em uma nova manifestação visual. Em termos semióticos, devemos elaborar este fazer como a atribuição de um novo arranjo plástico ao corpo, que ocorre a partir da modificação constritiva e contensora de seu arranjo plástico original. O corpo nu é dotado de formantes plásticos (FLOCH, 1985; OLIVEIRA, 2004), eidéticos, cromáticos, matéricos, distribuídos em sua superfície a partir de uma topologia. A ação do corset consiste no recobrir este conjunto de formantes, denominado “corpo”, com o seu próprio conjunto de formantes – uma vez que também o corset é dotado de forma, cor, matéria e topologia próprias – promovendo, a partir desta relação entre dois arranjos plásticos, a criação de uma nova configuração: a silhueta (re)modelada. O corset, portanto, além de formar o corpo, recobre-o com uma outra matéria, que possui uma topologia que atua sobre a topologia original do corpo, exagerando-a. Este exagero da diminuição ou do aumento pode ser lido como um investimento de valores: concentrar sua ação sobre uma certa região do corpo é, em outras palavras, atribuir uma maior importância visual, no traje, a esta região. Este privilégio de lugares em detrimento de outros foi abordado por Manar Hammad no conceito de topohierarquia (2005), pertencente ao escopo da semiótica do espaço. Trata-se da valorização tímica de espaços dentro de um espaço maior, derivada de um sistema de valores sociais ou culturais. Entendemos que este conceito pode ser reoperado na análise do corpo, quando optamos por tratá-lo como objeto topológico: o maior investimento de valores na região do torso – peito, seios, tórax, cintura e quadril – confere a esta região uma topohierarquia dentro do desenho do corpo, atribuindo a ela um maior destaque visual e uma consequente importância no traje. 13

Este destaque da cintura, ainda que derivado de um dado sistema cultural ou social de valores, não pertence a uma lógica do acaso: da mesma maneira que, no espaço, locais topohierarquizados encontram-se investidos de diferentes papéis actanciais, também o destaque de um lugar do corpo vem diretamente ligado à manifestação de um papel feminino, da isotopia de comportamentos apreendidos deste sujeito (GREIMAS & COURTÉS, 2012) em sua interação social, ou seu papel temático. Na análise dos objetos, portanto, nos perguntaremos o que esta transformação do corpo, obtida a partir do destaque ou da obliteração de suas partes, faz ver do feminino. Em outras palavras: quais são os conteúdos apreendidos de cada uma destas expressões da forma da mulher? Um traje feminino, portanto, é uma manifestação arranjada em diversas camadas de sentido, obtidas a partir de sua plástica, formada por figuras da expressão que podem ser homologadas a figuras do conteúdo (FLOCH, 1985), permitindo-nos a apreensão destes corpos como sistemas semi-simbólicos (FLOCH, 1985; LANDOWSKI, 2012). Esta leitura nos permite elaborar, ao mesmo tempo, quais são os valores profundos, fundamentais, inscritos nestas manifestações: tipologias dos modos do feminino que contêm em si, lado a lado às manifestações vestimentares, pistas para a reconstrução dos contextos sociais nos quais inscrevem-se estas mulheres, competencializadas com corpos constritos. Ao longo de sua trajetória, do século XVII-XVIII ao XXI, o corset não se manteve o mesmo. Seu complexo arranjo eidético, matérico e topológico sofreu substanciais transformações ao longo dos cinco séculos que buscaremos analisar neste trabalho, não apenas com as mudanças da forma da silhueta – que passam de figuras extremamente geométricas, de linhas duras e marcadas, a corpos mais arredondados e, finalmente, a corpos quase atléticos nos dias atuais – mas também na adesão a novos materiais, primeiramente mais macios e estésicos e, finalmente, ao emprego da matéria elástica a partir de meados do século XX. Estas passagens por diferentes silhuetas, produzidas a partir de diferentes formas e matérias, foram apreendidas ao longo da pesquisa como alterações na inter-ação entre corset e corpo, produtoras de sentidos que igualmente transformam-se, em conjunto com a transformação ocorrida no corset. A partir destas considerações iniciais, nos perguntamos: seria possível afirmar que tais passagens do corpo, produzidas pelo uso do corset, podem ser lidas como formadoras do próprio contexto social que as engloba? Diferente do que se tem produzido em termos de pesquisa histórica da moda ocidental (Cf. BRAGA, 2004; BAUDOT, 2002; BOUCHER, 14

2010; HART & NORTH, 1998; JOHNSTON, 2005; KÖHLER, 2005; LYNN, 2010; STEELE, 2001), a tese por trás desta pesquisa apoia-se nesta pergunta. Nosso objetivo, portanto, é aquele de identificar em que medida esta relação de formação do social a partir do corpo pode ser reconhecida, a começar pela apreensão do sentido produzido, no corpo, pelos objetos constritivos, os corsets e seus usos, que compõem nosso corpus. Nossa hipótese, portanto, é justamente que, na passagem por estas silhuetas, que podem ser regidas por diferentes regimes de interação e de sentido, é possível apreender a formação das passagem identificadas no contexto social, con-formadas a partir da constrição do corpo. Em Da Imperfeição, Greimas (2002) questiona se os modos de se vestir, enquanto modos de vida, seguem ou precedem as gerações das outras manifestações culturais. Uma segunda hipótese que desenvolvemos é que, nos casos analisados, será possível identificar que a moda, muitas vezes, precede as revoluções do papel feminino no social, ou em outras palavras, que as rupturas promovidas pelas revoluções no papel feminino podem ser rastreadas em até anos ou décadas anteriores a elas, e identificadas já nos modos do constringir (ou não constringir) o torso feminino. Tal análise demanda uma metodologia considerada por vezes, no meio acadêmico da moda, como heterodoxa. Primeiramente, partimos dos critérios estabelecidos por Greimas em Semantique structuale (1966) para a seleção do corpus. Segundo o autor, o corpus deve atender a três condições: ser representativo, exaustivo e homogêneo (GREIMAS, 1966). Por representatividade, entende-se a relação metonímica, mantida por cada um dos emblemas selecionados, com a totalidade do discurso que buscamos analisar – a prática da constrição da cintura realizada a partir, especificamente, do objeto corset. Os objetos selecionados não foram, assim, sorteados ao acaso, mas apreendidos como representativos – ou metonímicos – de um certo momento histórico. Esta constatação advém da observação de um corpus muito maior de trajes e lingeries constritoras, a partir do qual foi possível identificar traços comuns – ou isotopias – que permitiram a construção de emblemas que, por sua vez, reenviam às demais unidades estudadas anteriormente. Este primeiro critério relaciona-se diretamente ao segundo, da exaustividade. Greimas conclui que a análise deve começar por um modelo “provisório”, analisando primeiramente o segmento do corpus considerado como representativo, para que depois a análise possa ser verificada no restante do corpus (GREIMAS, 1966). 15

A homogeneidade, finalmente, está ligada “[...] ao conjunto de condições não linguísticas, de um parâmetro de situação relativo às variações apreensíveis seja no nível dos locutores, seja no nível do volume da comunicação” (GREIMAS, 1966, trad. nossa, grifo do autor). Nesta pesquisa, tal critério encontra-se relacionado à busca pelo entendimento do parecer do corpo quando transformado pela lingerie constritora. Ainda que sua semântica estrutural tenha sido postulada a partir do estudo das línguas naturais, entendemos que este critério aplica-se igualmente à apreensão e análise das manifestações da moda, que podem ser lidas de maneira semelhante àquelas da língua – e que são, inclusive, retomadas pelo próprio Greimas, em Da Imperfeição, como partes de um mesmo sistema, do qual fazem parte o vestimentar, os modos de falar, de pensar, de amar e de sentir (GREIMAS, 2002). O corpus de análise é composto por imagens de sete corsets tradicionais, duas crinolinas, quatro trajes, além de cinco cintas, shapers ou modeladores. Nos apoiaremos, igualmente, em literaturas específicas acerca da moda – como os livros produzidos pela instituição Victoria & Albert, historiadores da moda e do traje (Cf. BAUDOT, 2002; BOUCHER, 2010; BRAGA, 2004; CHURCH GIBSON, 2012; HART & NORTH, 1998; JOHNSTON, 2005; KÖHLER, 2005) estudiosos do corset (Cf. DOYLE, 1997; KUNZLE, 2003; LYNN, 2010; SALEN, 2008; SELESHANKO, 2012; STEELE, 2001; WAUGH, 1954), e mesmo autoras feministas, que dedicaram-se a estudar a condição da mulher ao longo da história da sociedade ocidental (Cf. BEAUVOIR, 1976; ESTES, 1994), ou em seu próprio momento histórico (DENSMORE, 1998; EPSTEIN, 1998; FIRESTONE, 1965; HANISCH, 1998). Por vezes, o estudo demandará o recurso às reproduções de pinturas e anúncios publicitários dos períodos, bem como de filmes e obras literárias que ilustram as épocas estudadas – tais obras serão devidamente citadas ao longo do trabalho. Após esclarecermos e fundamentarmos a pertinência do corpus selecionado, podemos expor a metodologia adotada, que é baseada nos postulados da Semiótica Visual de Floch (1985). Partiremos da análise dos formantes estabelecidos pelo autor – eidéticos, cromáticos e topológicos – e por Oliveira – formante matérico (OLIVEIRA, 2004) – a partir dos quais trabalharemos com homologações entre o plano da expressão e o plano do conteúdo, constituindo assim a apreensão do sentido destes objetos enquanto sistemas semi-simbólicos (FLOCH, 1985; LANDOWSKI, 2012; OLIVEIRA, 2004). Na prática, o estudo será realizado a partir das imagens fotográficas coletadas de acervos de museus e lojas virtuais de lingeries, a partir das quais analisaremos a plástica dos 16

corsets e crinolinas, quando seu uso for apresentado, com o objetivo de apreender quais são os valores profundos manifestados por esta silhueta. A partir deste primeiro exame, buscaremos identificar quais são os papéis actanciais assumidos pelo corset e pelo corpo, com a finalidade de apreender, a partir destes papéis, quais são os regimes de interação e de sentido presentes na relação estabelecida entre os dois sujeitos, o constritor e o constrito, corset e corpo. Seguindo a hipótese elaborada, acreditamos que nesta relação poderemos identificar não apenas os papéis do feminino, assumidos a partir deste ou daquele objeto constritor, mas também em que medida este papel feminino é determinador de seus arredores sociais, de sua própria interação com os outros sujeitos que compõem seu contexto. A demanda por tantas fontes bibliográficas, mediáticas e mesmo filmográficas reforça a importância do presente estudo de inserir-se em uma lógica do social, em lugar de abreviarse em uma usual catalogação de vestidos de época. A vontade de desmembrar tais manifestações, expondo os valores profundos nelas inscritos, vem principalmente de um argumento muito presente nos livros de moda existentes atualmente: aquele que marca o “abandono” do corset pontualmente, em algum momento dos anos 1920 (BRAGA, 2004; BOUCHER, 2010; LYNN, 2010), como se todos os objetos constritivos que vieram depois dele, todas as cintas, bermudas, bodies e shapers não fossem, ao menos, “primos de segundo grau” do corset tradicional. Um dos objetivos desta pesquisa foi aquele de demonstrar que não apenas os semantismos investidos nos modeladores atuais lembram muito aqueles do século XVIII e XIX, como acarretam manipulações muito mais sofisticadas, no sentido de um fazer-crer no abandono da prática da constrição, mas promovendo uma transformação do corpo muito semelhante, por meio de um objeto um pouco diferente. Por outro lado, nosso mercado atual possui um foco muito definido no problema da modelagem da silhueta, sendo difícil encontrar uma marca de lingerie que não comercialize peças constritoras de ao menos dois a três tipos. Algumas comercializam dezenas – como é o caso de La Perla, da qual analisaremos um modelo ao tratarmos da constrição no século XXI – e outras, ainda, especializaram-se neste tipo de lingerie. A necessidade de buscar as raízes desta obsessão pela constrição, nos objetos que de fato fundaram sua prática, impõe-se, e perguntamos: é possível persistir na afirmação de um abandono definitivo do corset, quando sua presença – até mesmo na forma do corset tradicional – é ainda tão marcada em nossa sociedade? 17

Tal problema nos leva a uma constatação de forte pertinência: longe de ser uma prática interrompida na primeira década do século XX, a constrição do torso feminino é atualíssima – e, com ela, o tema da formação de um papel feminino a partir do parecer de seu corpo, obtido pelo uso de objetos modeladores de sua silhueta. Prova disso é que, pela primeira vez na história temos acesso a todas as formas de constrição já inventadas, e podemos escolher, no nosso dia a dia, que faceta de nossas identidades, qual regime de interação, de sentido, ou mesmo de risco, vestiremos hoje. Em meio às análises dos mais diversos, e por vezes curiosos, objetos de constrição do torso, os quais nomearemos todos com o termo corset, que consideramos como representativo desta prática, este trabalho pretende explicitar que o sentido apreendido dos corpos constritos é importantíssimo, no que tange a interação destes sujeitos em sociedade. Do século XVIII ao XXI, buscamos mostrar como a apreensão de um corpo pode fazer toda a diferença na construção da imagem do feminino, da mulher de ontem ou de hoje, às possibilidades de transformação do feminino do amanhã.

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I. A construção do corset como sujeito

espartilho1 s.m. colête [sic.] com barbas de baleia ou lâminas de aço que se veste sôbre [sic.] a camisa para conchegar e afeiçoar as formas do corpo [...]. Varinha de junco, que faz parte do colête

[sic.] de

mulher. espartilho2 s.m.

planta gramínea (Setaria geniculata P. Beauv),

outrossim capim-rabo-de-raposa, esparto-pequeno, panasco-detabuleiro, bambuzinho.2

espartilho s.m. (1713) 1

VEST

cinta longa e de corte anatômico, que

vai dos quadris até abaixo dos seios, feita de tecido resistente e provida de barbatanas de baleia ou lâminas de aço para que não enrugue e com ilhoses de cima a baixo, por onde se passam longos cadarços, puxados para apertar ao máximo o abdome e a cintura, modelando o tronco; colete 2

ANGIOS

m.q. capim-rabo-de-raposa

(Setaria geniculata) ETIM esparto + ilho. 3

corset n. m. I Gaine baleinée serrant la taille et le ventre des femmes. 2 Appareil orthopédique pour le tronc.4

corset n. a tightly fitting garment worn under the outer garments to shape the body, or to support it in case of injury.5

Proveniente da língua inglesa, com a pronúncia (‘kɔːsɪt), e da língua francesa, (kɔʀsɛ) em forma escrita idêntica, a palavra corset originou as definições de outras línguas europeias 2 Caudas Aulete Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguêsa. 3 Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 4 “Cinta com barbatanas de baleia que constringe o talhe e o ventre das mulheres. 2 Aparelho ortopédico para o tronco.” Le Robert de poche 2009, Édition Mise à jour, trad. nossa. 5 “vestimenta de ajuste apertado vestida por baixo da vestimenta exterior para esculpir o corpo, ou prover suporte em caso de lesão.” Oxford Advanced Learner’s Dictionary, trad. nossa.

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ocidentais – corsé, no espanhol, corsetto, no italiano, korsett, no alemão – e apenas na língua portuguesa a definição adotada foi espartilho. Como exposto nas definições de dois conceituados dicionários, o Caudas Aulete e o Houaiss, apesar de o vocábulo conter uma descrição dos espartilhos tal e qual os corsets são definidos, existe uma ambiguidade no significado da palavra: trata-se de uma definição metonímica, que significa primariamente o tipo de “barbatana”, as varinhas de junco, esparto ou bambuzinho, mais popularmente utilizadas no mundo ibérico do que no restante da Europa. Esta definição aproxima-se, por sua vez, de uma outra definição igualmente descartada como representativa, aquela de “stays” – nomeação atribuída aos corsets do século XVIII, cujo significado é aquele de “estruturas” ou “suportes”, no plural, indicando que o nome da peça manifesta sua construção por meio da repetição deste material. “Espartilho”, tal e qual “Stays”, é portanto o nome do uso da matéria – o corte do esparto, ou capim-rabo-de-raposa (setaria geniculata), em tiras finas, que serviam à mesma finalidade das barbatanas de baleia – que passa a dar nome às peças que têm o espartilho como um dos componentes. Diferentemente, nos dicionários Oxford e Le Robert, encontramos uma definição não ambígua, que contém apenas o objeto corset, que buscamos aqui abordar, como significante: uma espécie de “cinto” que “cinge” o tronco e a cintura das mulheres, confeccionado com barbatanas de baleia – “baleinée” – o material tradicional empregado até meados do século XIX (LYNN, 2010), que deve ser vestido por dentro da roupa, cujo ajuste deve ser apertado – “tightly fitting” – e que tem a função de moldar o corpo, provendo-lhe suporte. Ambas as definições também englobam um outro significado para corset, que é aquele de ordem ortopédica: o uso de um aparelho rígido ao redor do torso, com a função de proteger e sustentar o corpo ferido, lesado. Este uso atravessa todo o desenvolvimento do corset, desde o século XVII – alguns deles, inclusive, construídos em puro metal (LYNN, 2010) – até a atualidade, quando algumas cintas rígidas dividem suas funções entre usos estéticos e cirúrgicos, utilizadas para comprimir o corpo no pós-operatório, principalmente naquele da lipoaspiração, ou no pós-parto. Reconhecemos que tais usos constituem um aspecto importante do papel do corset; a abordagem destas funções, contudo, não compõe o objetivo de nosso trabalho. Continuando, na união das duas raízes da palavra, as definições francesa e inglesa, encontramos uma definição completa do termo que buscamos aqui analisar: em ambas as 20

definições, encontramos a descrição do que o corset é, e do que ele faz, ou sua função. Em conjunto, estes dois significados formam o que será abordado por Eric Landowski como nom d’usage, “o nome do uso”, que geralmente coincide com o nome do objeto (LANDOWSKI, 2009). Para o autor, o nome pelo qual chamamos uma coisa, muito mais do que simplesmente defini-la, possui o poder de evocar consigo o conjunto de funções e de usos atribuídos a tal objeto (LANDOWSKI, 2009). Nosso objetivo, no entanto, não é aquele de aprofundarmo-nos na análise dos diversos aspectos da palavra, mas justificar o uso, ao longo deste trabalho, do vocábulo anglo-francês, corset, no lugar do termo disponível no português, espartilho: para os fins desta análise, a ambiguidade entre os significados “peça de roupa” e “matéria utilizada em sua confecção” não nos permite a exploração da totalidade do corpus – que abrange desde os stays do século XVIII até as sofisticadas cintas e shapers do século XXI – o que nos leva a optar pelo uso da palavra corset, que abarca de forma clara os emblemas dos corsets e de seus usos, dos quais procuramos dar conta. Esclarecidas estas primeiras considerações, nos permitiremos adotar, daqui em diante, a grafia “corset” sem o uso do itálico, que definimos como:

corset s.m. peça de roupa de baixo construída em material constritivo reforçado, que pode ser plano ou elástico, com ou sem estruturas rígidas, que recobre o torso total ou parcialmente, cuja função é a modelagem da cintura, tórax, glúteos, quadris e até mesmo das pernas e braços durante seu uso, ao longo do qual o desenho da silhueta é transformado.

Não basta, no entanto, totalizar a análise nas definições lexicais, uma vez que, segundo Landowski, o sentido de um objeto emerge de seu uso (LANDOWSKI, 2009). Desta forma, é impossível – e porque não dizer, inútil – estudar apenas o aspecto do corset enquanto objetocoisa, sem tocar no emprego desta peça em uma determinada função. Na abordagem do uso de uma peça de roupa, a atualização de um sentido ocorre no vestir, ou no recobrir o corpo. Para Ana Claudia de Oliveira, “[...] o sentido de uma roupa só se completa ao vestir um corpo, quando, o que determinamos por um sintagma composto, o corpo vestido assume a sua plena competência para atuar.” (OLIVEIRA, 2008, grifo da autora). O nom d’usage “corset”, portanto, não possui sentido na peça guardada em uma caixa, pendurada em um cabide ou estendida em uma superfície. Talvez por esta razão, instituições que se dedicam à coleção e exposição de objetos que se prestam às funções de um corset 21

procuram expô-los e fotografá-los, sempre que permitido pelas condições de conservação da peça, recobrindo manequins especialmente desenvolvidos para aparentar o corpo que almejava-se construir por meio de seu uso. A partir desta recuperação de uma silhueta, é possível expor a peça de roupa atuando, realizando sua performance de recobrir e transformar o corpo. É impossível recriar os mesmos efeitos de sentido contidos em um traje de uma época sem a recriação dos volumes que outrora os habitaram, e da mesma maneira, seria impossível analisar os valores inscritos em um traje que não fosse ocupado por um “corpo”, ainda que trate-se de um corpo (re)construído em matérias artificiais, como o plástico, o tecido e a espuma. Por esta razão, grande parte das imagens analisadas ao longo deste trabalho foram colhidas do acervo fotográfico da instituição Victoria & Albert, que atesta um compromisso exemplar na reconstituição dos corpos emblemáticos de cada período (Cf. HART & NORTH, 2009; JOHNSTON, 2005; LYNN, 2010; VICTORIA & ALBERT COLLECTION, s.d.), permitindo-nos um vislumbre do que seria a presença de um sujeito contida na silhueta de cada um dos usos que analisaremos. Em outros casos, dos corsets mais atuais, foi possível coletar imagens dos websites dos fabricantes ou de lojas virtuais, permitindo expor o corset recobrindo um corpo de uma modelo, em lugar do manequim. A importância do corpo vestido, destacada por Oliveira (2008), reenvia por sua vez a uma outra significativa questão acerca do uso de um objeto como o traje. Conhecer seu nom d’usage, ou algumas das possibilidades de utilização deste objeto, não basta para entender como realizar este uso. O emprego correto de um objeto – sobretudo aquele do âmbito vestimentar, tal e qual o corset e, como veremos adiante, também a crinolina ou próprio vestido – está intimamente ligado, segundo Landowski, às regras da norma cultural, ou aos programas dos quais emerge esta norma (LANDOWSKI, 2009). Como qualquer outro objeto, o corset deve ser usado de acordo com um conjunto de normas sociais e culturais que delimitam, por sua vez, o formato “correto”, ou esperado, de uma silhueta em uma determinada época. Assim, o rigor deste uso está inrinsecamente ligado ao “quanto” uma cintura deve (ou pode) ser constrita. Trata-se de uma linha tênue, que circunscreve o formato e o tamanho da cintura considerado “atraente” – ou, para utilizar as categorias tímicas, eufórico (GREIMAS & COURTÉS, 2012) – para outros sujeitos, geralmente do sexo oposto. A cintura pouco constrita, por um lado, não é capaz de detacar os quadris produzindo uma silhueta correspondente àquela considerada ideal, e pode ser 22

interpretada pelos demais sujeitos como negligência com a própria toilette. A constrição excessiva, por outro lado, relaciona-se ao cultivo extremado da aparência, considerada pelos vitorianos como “anti-higiênico” (KUNZLE, 2004), ou mesmo repulsivo, perturbante, e associado ao fetichismo da usuária (KUNZLE, 2004; STEELE, 2001). Tais normas não se encontram estáticas, e são próprias de períodos específicos. Como veremos adiante, da mesma maneira que as alterações no formato do corset podem ser identificadas ao longo do panorama de seu desenvolvimento na moda ocidental, também o tamanho ideal de cintura (e de mulher) transforma-se ao longo da história. Estas modificações na transformação esperada do corpo adquirem, por vezes, o valor de ruptura com um certo padrão, que manifesta a passagem a um outro padrão de corpo. Quando assimilado, este novo padrão cristaliza-se em um novo ideal que será, em seguida, novamente rompido, e assim sucessivamente. Ainda que transforme-se o corpo, o corset permanece essencialmente o mesmo no que toca sua função, de sujeito modificador da silhueta. As variações, portanto, ocorrem nos formantes plásticos (FLOCH, 1985; OLIVEIRA, 2004) de corsets de períodos específicos: as cores e matérias escolhidas, bem como a forma – mais arredondada, ou mais retangular – conferida à silhueta. Existe, no entanto, uma espécie de arranjo genérico, que pode ser apreendido na grande maioria dos corsets, uma anatomia que se repete de maneira mais ou menos recorrente ao longo do corpus escolhido, da qual buscaremos uma breve reflexão a seguir.

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I.1. A anatomia do corset enquanto torso sobre o torso

Figura 1. “The Glove-Fitting Corset”, fabricado por Thomson and Co., 1868. Desenho de um corset típico de meados do século XIX, utilizado como publicidade do produto. Ao pesquisar a palavra “corset” em ferramentas de websearch, há uma forte recorrência deste tipo de ilustração, ao mesmo tempo em que, de fato, o corset do século XIX é o mais conhecido pelo público leigo, de maneira que a imagem acima, certamente, manifesta a forma do corset que habita o imaginário da maioria das pessoas. Imagem: Vintage Ephemera.

Em diferentes momentos de sua presença na moda ocidental, o corset manifesta arranjos plásticos diversos, no que toca a técnica de modelagem empregada – o número de recortes, painéis, a ausência ou presença de modelagem para o busto, a extensão da peça sobre o torso – a origem de materiais específicos – tecidos e estruturas naturais ou sintéticos – e as cores 24

que marcaram cada época. Nestas variações, no entanto, é possível identificar a permanência de uma isotopia do arranjo das matérias para a formação de um corset. Primeiramente, sempre há a presença de uma matéria tecida, que pode ser elástica, mas tradicionalmente é plana6 e firme. Este tecido é normalmente sobreposto em duas ou mais camadas, e repetido ao longo do corset, em tiras ou painéis de reforço na vertical, horizontal ou oblíqua, principalmente ao redor da cintura, como pode ser visto na figura 1. Da mesma maneira, os corsets geralmente possuem algum tipo de estrutura rígida, que pode ser feita de matéria natural ou sintética. Por fim, estes elementos devem ser unidos por meio da costura, realizada em fios resistentes, geralmente de fibras naturais, e amarrados, convencionalmente pelas costas, com fios que apresentem maleabilidade e força, combinados em cordas estreitas, porém firmes, duráveis. Estes elementos seriam constituintes da “anatomia” da lingerie constritora: o arranjo das matérias para a formação de um corset sugere uma combinação de elementos que se assemelham à própria constituição do torso humano, parte do corpo à qual destina-se a ação desta peça de roupa. Como o torso, o corset possui uma pele – cuja resistência também equivale àquela dos músculos e da carne – que são as múltiplas camadas de tecido; uma ossatura7 , sua estrutura rígida, que pode ser metálica, de barbatanas ou vegetal; e finalmente, tecidos conectivos, as linhas e as amarrações que, como os tendões do corpo, servem à função de manter a coesão e o alinhamento de todos os elementos. Começando pela “pele” do corset, os tecidos comumente utilizados são o linho, no século XVIII, e o coutil ou uma espécie de sarja, no século XIX. O traço comum entre estas matérias é a presença de uma trama resistente, obtida por meio do entrelaçamento, no tear, de fibras de origem vegetal. O resultado do tecido pode ser uma trama em “V”, como é o caso do coutil, ou em tela, como o linho (ou ainda em malha, como é o caso dos tecidos elásticos), dotada simultaneamente de resistência, firmeza, e maleabilidade. À distância, porém, o entrelaçamento dos fios não é perceptível ao olhar, de maneira semelhante ao entrelaçamento das fibras que formam o tecido epitelial da pele humana. Ambos – matéria tecida e pele humana – apresentam um aspecto liso, uniforme, mas revelam, ao aproximar o olhar, a complexa trama que os forma. De maneira semelhante, tecido e pele 6 Distingue-se aqui a característica de “tecido plano”, ou seja, confeccionado com trama e urdume, que garantem que o tecido não se estique a não ser quando cortado em viés (pela diagonal), daqueles tecidos definidos em português como “tecido em malha”, formados por laçadas, que proporcionam o efeito de esticamento. 7 De fato, a palavra em inglês que designa “barbatana” (de baleia) é “bone” (ou “whalebone”), que também significa osso – por isso a corriqueira confusão de que os corsets antigos eram confeccionados com “ossos de baleia”, quando na verdade as barbatanas são derivadas da cartilagem do mesmo animal.

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não são composições completamente fechadas, mas ambos possuem espaços abertos em seu desenho, pequenos orifícios – o espaço entre os fios do tecido ou, na pele, os poros – por onde passam o ar e o suor. Assim como nossa pele é composta de diversas camadas, para uma modelagem eficiente, também o corset deve ser construído em no mínimo duas camadas sobrepostas de tecido. Esta repetição da mesma matéria confere resistência, mas sem que seja perdida a maleabilidade, e uma elasticidade mínima – não na vertical ou na horizontal, direções firmes, mas na diagonal, onde são construídas as curvas, do corpo e do corset. Mesmo nos casos em que o corset apresenta uma pele elástica, não se trata de uma elasticidade total, frouxa, mas de uma elasticidade parcial, que ainda oferece firmeza vertical e horizontal. Este traço plástico de firmeza aliada à elasticidade parcial, obtida pelo entrelaçamento de fibras, pode ser identificado também nos músculoso do corpo. A combinação destas duas propriedades da matéria tecida, de invólucro (pele) e de força e resistência (músculos) produz a competência modeladora, investida na matéria a partir da qual o corset é confeccionado. Seguindo para a estrutura, a relação entre essa e os ossos é mais evidente: ambos assumem formas estruturais, duras, mas que surgem em um momento posterior ao aparecimento da pele. Na geração do ser humano no útero, o primeiro elemento que aparece é mais próximo da pele (ainda que não se trate de uma pele definitiva), enquanto que os ossos, a estrutura do corpo, são formados em seguida. No processo de confecção do corset, a estrutura é o último elemento a ser aplicado, quando a “pele”, a matéria tecida, encontra-se já cortada, unida, costurada. No método de confecção tradicional, antes da colocação das barbatanas, que em princípio eram, tal como os ossos, de origem animal, o corset não passa de uma espécie de blusa, que não possui por si só o poder de modelar o torso. Após a aplicação da estrutura nos locais previstos, o corset torna-se competencializado para constringir o corpo, conferindo a ele uma nova forma. Igualmente, sem nossa estrutura óssea, não seríamos capazes de apresentarmo-nos enquanto corpo, mas esta estrutura só aparece em nós quando nossos demais tecidos encontram-se já organizados o suficiente para receber esta matéria rígida, acomodando-a nos locais onde é necessária. Finalmente, o conjunto corset não pode ser realizado sem a utilização das matérias conectivas, a linha e a amarração, que unem a matéria pele e a matéria ossos em um único arranjo. A linha perpassa todas as camadas de tecido, criando traçados verticais ou oblíquos no desenho interior e exterior do corset, que as mantém unidas por meio de um fio que as 26

atravessa. A mesma linha pode ser utilizada em uma espécie de bordado, chamado “flossing”, que reforça o tecido no início e no final das barbatanas, áreas de maior fragilidade do corset. Como os tendões do corpo, a linha utilizada na confecção dos corsets – geralmente produzida a partir da seda, matéria também de origem animal – deve ser fina, mas resistente o suficiente para manter as camadas de tecido unidas, ainda que constantemente exposta à pressão dos tecidos do corpo que, quando constritos, respondem com igual força, o que pode ocasionar a ruptura da peça. A linha também deve resistir ao atrito com os tecidos da roupa exterior e interior, sem romper-se: a quebra da costura, assim como o rompimento de um tendão do corpo, comprometeria a totalidade do conjunto, inutilizando-o. A mesma função é identificada na amarração: os cadarços trançados nas costas, onde um espaço de cerca de dez centímetros é geralmente deixado, em um zigue zague de linhas diagonais que cruzam-se em vários “X”, e que possuem a dupla função de ajustar a intensidade da constrição – e por meio dela, o diâmetro da silhueta – e de fechar a peça, mantendo o conjunto atado ao redor do torso. Para a realização de tal performance, é fundamental que as cordas utilizadas sejam de boa qualidade, oferecendo resistência suficiente para sustentar um estado constrito do corpo, ao longo de muitas horas, sem romperse. O rompimento de uma costura em algum ponto do corset pode ser relacionada a uma espécie de “ferida” na peça de roupa, cuja progressão gradual pode ocasionar um dano permanente à lingerie, à roupa exterior, e até mesmo machucar o corpo da usuária, caso alguma das barbatanas escape pelo tecido. A quebra da corda de amarração, por sua vez, seria produtora de uma abertura repentina e total do corset, delegando toda a pressão por ele exercida ao vestido, que não é competencializado para conter o corpo desta maneira, e poderia, igualmente, romper-se. Por este motivo, um grande esforço no desenvolvimento de cordas de boa qualidade foi dedicado a esta importante parte do corset, geralmente confeccionada, assim como o tecido, pelo entrelaçamento de fios de algodão, diminuindo o risco de uma ruptura completa e abrupta da amarração. Como mencionamos no início, ao longo de diferentes épocas, outros elementos foram adicionados a esta tríade de componentes essenciais, como aparece na própria figura escolhida como representativa do corset (figura 1): tratam-se de laços, fitas, rendas, e até mesmo camadas de tecidos exteriores, geralmente nobres e coloridos, como a seda ou o cetim (LYNN, 2010; SELESHANKO, 2012; WAUGH, 1954). Tais elementos, no entanto, não 27

aparecem como formadores da anatomia do corset, mas como acessórios, ou mesmo roupas que revestem a pele rústica e pouco estética do corset, conferindo a ele um maior valor decorativo. Este aperfeiçoamento estético é inclusive associado ao investimento de um valor , no corset, de objeto de desejo, ou mesmo de fetiche, como é o caso do eterno corset de cetim (STEELE, 2001). Tais artifícios, no entanto, não produzem uma expressiva alteração na ação material do corset sobre o corpo, e sua presença ou ausência não influi no resultado prático do conjunto. Este primeiro exame daria conta do formante matérico (OLIVEIRA, 2004) da semiótica plástica, referente às propriedades materiais dos objetos analisados: sua textura, densidade, firmeza ou maleabilidade. A matéria, no entanto, precisa de um formante eidético, capaz de conferir a ela uma forma. No caso do corset trata-se, antes de mais nada, da forma de um corpo, sobre o qual a lingerie modeladora atua: mais precisamente uma parte do corpo humano, feminino, o tronco. Com algumas variações, a ação do corset pode se estender dos ombros – localizados na linha do pescoço – aos quadris e, por vezes, às pernas. Englobados pelas fronteiras de atuação do modelador, encontram-se a coluna toráxica, lombar e o sacro, as costelas, a bacia; o tórax, o abdome e o quadril; os seios, a barriga, os glúteos e o sexo (além dos demais órgãos vitais, localizados na caixa toráxica e no ventre).

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Figura 2. Desenhos da anatomia feminina atribuídos a Adriaan van Spiegel, extraídos do livro “De humani corporis fabrica libri decem” (1600-1631). À esquerda, uma das raras pranchas que retratam a anatomia feminina fora do período de gestação, mas ainda assim, dando ênfase ao aparelho reprodutor (diferente da anatomia do torso masculino, cujas ilustrações normalmente retratam os demais órgãos vitais). À direita, imagem recorrente nas anatomias do século XVI e XVII, a gestação é retratada de maneira poética, com as camadas de pele do ventre abrindo-se como uma flor em torno do feto. O recurso a esta metáfora é isotópico, não apenas nos trabalhos de van Spiegel, e é o primeiro indicativo da mentalidade produtora de um papel feminino voltado quase que exclusivamente para a procriação: os estudos anatômicos, em sua grande maioria, não dissociam a fêmea da espécie humana do estado de gestação. Imagem: nlm.nih.gov

A escolha das figuras acima, produzidas no contexto dos estudos anatômicos da Renascença, tem como fundamento a exposição de um corpo anterior ao uso do primeiro objeto que será abordado adiante, os stays do século XVII-XVIII. Igualmente, estas ilustrações não manifestam os corpos hiper-tonificados presentes nos atlas atuais de anatomia, nos quais um grande destaque é dado ao caráter muscular do corpo. As duas figuras atribuídas a van Spiegel, portanto, nos servem como um contraponto, seja à figura constrita pelo uso do corset, seja aos corpos extremamente magros, atualmente idealizados. 29

Na figura da esquerda, cujo desenho retrata uma anatomia feminina fora do período de gestação, é possível perceber o desenho arredondado do corpo feminino, que estreita-se levemente, de maneira quase imperceptível, na altura da cintura. Os seios retratados são pequenos e separados, os quadris discretamente mais largos que a cintura. Há ainda uma proporção entre o ponto mais largo dos ombros e o ponto mais largo dos quadris, produzindo uma silhueta quase que retangular, com um leve afunilamento na cintura. Observando o ventre retratado na figura feminina, é possível perceber que este afunilamento exterior coincide, no interior, com a localização do diafragma, e um espaço teoricamente “vazio” ao redor dele. Palpando a própria cintura nesta região, é possível perceber que este espaço “livre” do corpo não possui estrutura óssea: trata-se de um pequeno vão entre o último par de costelas e o início da crista ilíaca. Na figura gestante, à direita, é possível perceber que há um realce, no desenho, deste desnível que chamamos de “cintura”. Este destaque, por sua vez, é produtor de um efeito de aumento e arredondamento dos quadris, que parecem mais curvilíneos. Em termos de silhueta lateral, a ação esperada do corset aproxima-se mais do corpo retratado no estado de gestação, do que em seu estado normal. Retomando a figura 1, o desenho do Glove-Fitting Corset, percebemos imediatamente que a forma do corset promove um realce do leve desnível na área da cintura, naturalmente presente no desenho do torso feminino, acentuando-o. O leve afunilamento natural da cintura aparece exagerado pelo desenho do corset, conferindo ao torso um desenho de ampulheta (ou de “8”, elíptico), a partir do qual o peito e o quadril são aumentados. Trata-se tanto de um efeito visual – ao reduzir a cintura, por comparação, os quadris e o peito parecem aumentados – quanto de um efeito material, uma vez que é possível que o uso prolongado do corset, ao longo dos anos, provoque um deslocamento dos órgãos, dos músculos, da gordura e até mesmo dos ossos, como ilustra a imagem abaixo.

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Figura 3. À esquerda, posição dos ossos e órgãos no tronco feminino livre. À direita, com a cintura afinada, os órgãos são supostamente rearranjados, pressionados para baixo, aumentando o volume do baixo ventre. Tais ilustrações, no entanto, devem ser observadas com cautela, uma vez que muitas delas foram produzidas de maneira tendenciosa, por médicos e demais profissionais da saúde que possuíam uma posição explicitamente contrária ao uso do corset. Imagem: Stem Ingenious.

Nesta simulação dos efeitos da constrição da cintura sobre os órgãos, é possível notar de maneira mais clara a ação do corset sobre a anatomia feminina “natural”: o exagero da cintura aparece como produtor da impressão de um peito mais alto, ombros mais baixos, além do quadril curvilíneo e volumoso. A forma do corset, portanto, não imita o corpo feminino, mas mantém uma relação com sua topologia natural. No torso original, existe uma alternância entre volumes convexos – seios e quadris – e volumes côncavos – o sutil afinamento na altura da cintura. Ao recobrir o corpo, o corset aproveita-se desta organização espacial, produzindo um aumento do efeito visual desta topologia. Observando novamente a figura 3, é possível perceber, contudo, que o exagero do volume côncavo, ou a constrição, é maior do que aquele do volume convexo, o que pode ser lido como uma maior preocupação com a modelagem da cintura. Localizada no 31

centro anatômico do torso, a cintura recebe, por meio desta constrição, um maior investimento de valor, uma vez que a ação do corset é mais marcada neste ponto preciso do corpo. O arranjo matérico analisado – muito semelhante àquele do arranjo matérico do próprio torso – em uma forma curva, que recobre o torso feminino exagerando sua topologia, principalmente pelo realce da cintura, é formador da manifestação plástica do corset, ou seu plano da expressão. Quando lidos enquanto conjunto, estes formantes manifestam alguns conteúdos, como o caráter corporal do corset, organizado de maneira semelhante ao torso – com estrutura óssea, pele, músculos e ligamentos – e que ao mesmo tempo transforma o desenho deste torso, conferindo a ele formas mais arredondadas e aumentadas. Como evidenciado pela figura 3, há uma clara oposição entre o corpo “original”, não modelado pelo uso do corset, e o corpo transformado, recompetencializado com uma cintura mais fina, que produz o efeito visual principal de aumento do quadril. A relação de conformidade entre as duas imagens, no entanto, é evidente: não se trata de uma modelagem que transforma o corpo em uma figura oposta a ele – como seria, por exemplo, a constrição dos seios e do quadril e a aplicação de um volume construído na região da cintura – mas de um re-desenho do corpo original, que exagera algumas de suas características já manifestadas, ainda que de maneira sutil. Os sentidos mais profundos contidos neste re-desenho da silhueta serão melhor explorados nos capítulos a seguir. Por enquanto, continuaremos a análise nos aprofundando na ação identificada nesta transformação do corpo por meio de um objeto externo a ele, mas que, como nos revela o exame realizado até então, possui propriedades e características semelhantes àquelas do torso feminino.

I.2. O fazer do corset

As particularidades do arranjo descrito até então são os pilares que garantem a eficácia de um ato de modelagem: sem a presença simultânea dos elementos matéricos examinados, que por sua vez devem ser combinados e arranjados de maneira correta – o que envolve a ação de outro sujeito competente, o corsetier ou a corsetière – um corset não pode receber este nom d’usage, uma vez que uma falha em quaisquer partes do processo de confecção prejudicaria a performance desta peça, que é aquela de distribuir a matéria e a forma do tronco a partir da constrição da cintura, para dar a ver uma silhueta em que o realce do estreitamento da cintura intensifica o desnível entre ela, os seios e os quadris. 32

A partir deste primeiro exame, portanto, é possível identificar que o corset possui um fazer, uma ação, que provoca uma transformação do estado do corpo. Semioticamente, um termo que faz, ou seja, que pratica uma ação, pode ser definido como actante ou como sujeito. Para Greimas e Courtés (2012), o sujeito é aquele que é “[...] suscetível não apenas de possuir qualidades, mas igualmente de efetuar atos”. Os dois semioticistas ainda afirmam que o sujeito é um actante, que igualmente “[...] pode ser concebido como aquele que realiza ou que sofre o ato [...]” (GREIMAS & COURTÉS, 2012). Se considerarmos o ato de constrição como o uso pressuposto de um corset, é possível dizer que tal uso carrega em si a ação, a performance: o corset age sobre o corpo, e é através desta ação, de seu fazer-fazer a forma e a matéria do corpo, para fazer-ser uma silhueta, que a almejada modificação é realizada. Após estas constatações, se mostra incoerente a atribuição do estatuto semiótico de objeto ao corset na relação com o corpo: o corset é dotado de competências que cabem aos sujeitos, e é modalizado cognitiva e pragmaticamente (GREIMAS, 1983). O corset não apenas realiza uma modificação sobre o corpo que o veste, mas ele conhece este corpo de tal maneira que lhe é permitido saber como modificá-lo, diminuindo certas regiões do corpo para aumentar outras, criando complexos jogos de visibilidade e invisibilidade de suas diferentes partes. Transformar uma silhueta é uma performance que demanda competências similares àquelas do próprio corpo: é preciso envolver o torso com um novo torso, dotado de pele, músculos, ossos e conectivos, para que estas matérias confrontem-se com seus correspondentes, a pele, os músculos e ossos do corpo, permitindo um rearranjo das matérias dentro da configuração almejada. Tal fazer do corset perpassa igualmente a necessidade de contenção do corpo original, uma vez que ao constringir uma área, os tecidos ali presentes tendem a deslocar-se, migrando para outras áreas do corpo, abaixo ou acima do local onde a constrição é aplicada. Quanto maior a força empregada na constrição, maior o deslocamento de gordura, pele e músculos. Algumas modelagens, como aquela do século XIX, presentificada pela ilustração do Thomson’s Glove-Fitting (figura 1), até mesmo almejam esta transferência: há um espaço vazio previsto na área dos quadris, que deverá ser preenchido com os tecidos provenientes da cintura (Cf. SALEN, 2008; WAUGH, 1954), e tal ação da peça é garantida pela direção da modelagem lateral, em forma de triângulo invertido, descendente, que empurra os tecidos da região abdominal para baixo. O aumento dos quadris, consequência da diminuição da cintura, reforça a ilusão de que a cintura é ainda menor. Para 33

Valerie Steele, esta impressão de cintura menor que o quadril era justamente o efeito mais importante, mais almejado pelas mulheres do que uma diminuição real, em centímetros ou polegadas, da circunferência da cintura (Cf. STEELE, 2001). Os deslocamentos de tecidos do corpo dos quais falamos até então relacionam-se diretamente a um problema do formante topológico (FLOCH, 1985), aquele referente à distribuição dos demais formantes plásticos – formas, cores e matérias – em uma superfície. O fazer do corset concentra-se no aumentar e diminuir lugares do corpo, conferindo destaque a certas regiões e velando outras, com o objetivo de produzir, a partir da constrição e do aumento, uma silhueta almejada. Ao sobrepor-se à silhueta original do corpo nu, atribuindo a ela um novo desenho, a ação do corset sobre esta silhueta pode ser lida como um reinvestimento de valores, que alteram o sentido de cada uma destas partes do torso e, por comparação, também do restante do corpo. Pode-se interpretar, portanto, que a transformação da silhueta pela diminuição e pelo aumento é produtora de novas hierarquias do corpo feminino, ou ao menos do realce de hierarquias já existentes. Em sua obra, Manar Hammad desenvolve o conceito de topohierarquia, ou a “[...] organização hierárquica do espaço [...] em que as localizações das coisas servem para marcar suas relações hierárquicas mútuas.” (HAMMAD, 2005). Trata-se de uma valorização de um lugar, em um dado espaço, que é considerado como superior em relação a outro ponto. Esta hierarquização, geralmente extraída de um conjunto de valores sociais ou culturais previamente dados (HAMMAD, 2005), é delimitadora da lógica de ocupação destes espaços, regendo, pela prescrição, o que deve (ou não deve) ser posicionado em cada um destes espaços – no caso analisado, os espaços do corpo. Ao mesmo tempo, a topohierarquia do corpo está intimamente ligada à questão do ponto de vista, ou seja, com o posicionamento do outro, o enunciatário, no momento da apreensão visual do traje. Desta maneira, o conjunto de sentidos presentes no formante topológico do corset abriga em si tanto os valores investidos nos diferentes lugares do corpo – identificados por meio da localização da constrição e do aumento, que podem ser homologadas aos valores profundos aos quais cada um destes sujeitos busca estar conjunto – e ao mesmo tempo, o direcionamento do olhar do sujeito exterior ao traje, aquele que apreende o parecer do sujeito que porta o corset que prescreve, mais do que um querer ser visto, a maneira como este corpo quer ser visto. 34

Trata-se, portanto, de uma construção semiótica da valorização de um dado lugar, de acordo com uma dada tradição, que pode ser apreendida desde a manifestação da silhueta formada pelo traje. Os valores inscritos nestes pareceres do corpo, por sua vez, encontram-se ligados aos níveis profundos do sentido, que abrigam em si as diferentes formas de interação entre os sujeitos em um dado contexto social, que podem ser lidas como formadoras deste próprio contexto. Um traço comum que unirá todos os corsets analisados neste corpus é, sem dúvida, uma topohierarquização da cintura feminina e seus “arredores” – por vezes o quadril, por vezes os seios – que, como nos mostra a história, aparece pela primeira vez nas culturas ocidentais europeias, desde a antiguidade, quando algum tipo de constrição já era aplicada nesta parte do torso (Cf. BOUCHER, 2010; KUNZLE, 2004; STEELE, 2001). Contudo, no que toca esta tendência de moda específica, do uso do corset para a constrição da cintura – e não da constrição praticada a partir de algum outro objeto, como cintos, ataduras, ou corpetes menos estruturados – é possível afirmar que França e Inglaterra foram as duas grandes referências para o restante da Europa (BOUCHER, 2010) e, a posteriori, também para a América, Oceania, e até mesmo para o Oriente. Não por acaso, estes dois países foram justamente os primeiros a definir a palavra corset como nome deste objeto, investido de um papel de sujeito, bem como sua disseminação pelos outros países da Europa Ocidental, com os nomes corsetto, corsé, korsett, que carregam em si a raíz etimológica da qual são derivadas. Segundo Greimas, cada palavra traz em si uma mitologia (GREIMAS, 1970). É impossível, portanto, ignorar que a adesão ao uso da palavra corset, ou uma outra dela derivada, seja plena de sentido e carregue consigo todo um sistema de valores nela investido. Da mesma maneira, a adesão a uma tendência de moda tão específica é capaz de presentificar a adesão ao mesmo sistema de valores, contido seja na palavra, seja no objeto material corset. Estas duas adesões ligam-se, por sua vez, à adesão dos próprios idiomas, o francês e o inglês, cujo uso em outros países, até mesmo na Europa Oriental, era associado à distinção social, da qual a ocidentalização dos modos encontrava-se igualmente investida. Assim, é possível perceber que o adotar “comportamentos ocidentais” – e no caso do século XIX, isto significava principalmente “modos franceses” ou “modos ingleses” – não perpassa um único aspecto do social, mas um conjunto de valores, composto (ao menos) pela língua, pela interação social e pelo traje. Estes três aspectos, por sua vez, encontram-se 35

presentificados pela palavra corset, que traz em sua manifestação verbal escrita a união destes dois sistemas de valores, ingleses e franceses, que constituem um emblema que mantém uma relação metonímica com a totalidade “Ocidente” – que, por sua vez, é investida de outros valores da ordem do simbólico, como o desenvolvimento cultural, o “berço da civilização”, a força de suas ciências, a beleza de sua arquitetura, ou mesmo a conquista, colonização e soberania sobre outras nações, europeias ou não. Estes mesmos valores, por sua vez, serão reencontrados no próprio Ocidente pósRevolução Francesa, quando a volta do uso do corset (e da crinolina) será reconhecido como retomada dos valores da nobreza do século XVIII (STEELE, 2001), e voltará à moda como um objeto que marca a distinção social da burguesia ascendente. Com a recuperação destes itens da moda e o retorno ao seu uso, produzindo versões mais exageradas do corset e da crinolina, há uma recuperação das tradições da nobreza às quais os burgueses buscam identificar-se, marcando, por meio delas, sua distinção das demais classes ascendentes, de forma semelhante à nobreza russa, que utilizava as maneiras e línguas ocidentais como forma de separar-se do restante do povo (Cf. TOSLTÓI, 2005, 2011), ou mesmo na China, na Hong Kong britânica ou no Japão do final do século XIX, onde vestir o traje típico destes países era identificado ao atraso oriental, em oposição ao avanço trazido pela ocidentalização – presentificado, entre outros itens, pelo vestido acinturado, pelo corset e pela crinolina. O uso destes itens de vestuário, além de presentificar o sistema de valores ocidentais, confere à silhueta que os porta uma diversidade de sentidos da ordem da própria interação entre sujeitos. Esta interação, no entanto, apoia-se nos diversos papéis assumidos pelos sujeitos que a compõem, o corset e o corpo. No trânsito dos papéis actanciais, é possível perceber de que maneiras a transformação do papel do corset é necessariamente uma transformação do estatuto do corpo, que com o passar dos anos, assume uma autonomia cada vez maior, passando de um sujeito de estado a um sujeito do querer.

I.3. As interações entre corset e corpo

Até aqui, desenvolvemos um primeiro exame dos dois sujeitos que compõem a interação da qual este trabalho busca dar conta, aquela entre corpo e corset, bem como o reflexo do sentido deste diálogo nas interações destes corpos constritos com os outros sujeitos que compõem seu entorno social. A partir disto, se faz necessário estudar estas interações a partir da análise de 36

objetos específicos, emblemas de tendências da moda ocidental de diferentes períodos, para explorar não apenas como se dá a interação do corset com o corpo, mas quais os sentidos produzidos por diferentes silhuetas, frutos destas complexas relações. Em “Les interactions risquées”, Landowski explora um modelo constituído a partir de quatro regimes de interação, fundados em diferentes papéis actanciais e produtores de diferentes regimes de sentido: as interações por programação, manipulação, ajustamento e acidente (LANDOWSKI, 2005). Ao iniciar um primeiro estudo de nosso corpus – formado por quatro vestidos, sete corsets tradicionais, duas crinolinas, cinco modeladores, e quatro tendências de corpo consideradas como revolucionárias – percebemos que que os objetos selecionados poderiam ser reagrupados, a partir dos modos de interação inscritos em sua materialidade. A divisão do corpus, portanto, não foi realizada de maneira cronológica, ou diacrônica, mas levando em consideração o papel actancial assumido pelo corset na interação. Este papel assumido pelas lingeries mostrou-se intrinsecamente relacionado ao seu formante matérico, uma vez que, tratando-se de uma peça de roupa que recobre o corpo, a observação dos sentidos tatéis produzidos no corpo, bem como a timia apreendida nestas relações, é de extrema importância. Observamos, desta maneira, que conforme o arranjo matérico dos corsets afasta-se da anatomia que examinamos no item I.1., o corset distancia-se do papel temático presentificado por seu nom d’usage, produzindo sentidos cada vez mais inovadores, e por isso, investidos de um maior risco interacional. Assim, seguindo os postulados de Landowski, organizamos o corpus de acordo com o arranjo matérico dos objetos selecionados, agrupando-os de acordo com os papéis actanciais que pareceram, à primeira vista, predominantes. Começando pelos corsets mais tradicionais, geralmente acompanhados do uso da crinolina, os identificamos como mais próximos ao papel temático analisado no item I.1., produtores de interações programadas. Seguindo a ordem proposta pelo autor, passamos à interação por manipulação, na qual localizamos os modeladores mais atuais, que apresentam uma transformação em sua nomeação, deixando de apresentar-se como “corsets”, para tornarem-se conhecidos como “cinta” (girdle), “modelador” (shaper), entre outros. Ao regime do ajustamento, marcado pela competência sensível dos sujeitos, associamos algumas estéticas de transição entre uma tendência de moda e outra, em cujos corsets é marcado o investimento de valores de maior liberdade do corpo, de uma maior interação sensível entre corset e corpo. Finalmente, à não materialidade do corset, 37

ou seja, sua ausência no guarda-roupas feminino, associamos a interação pelo regime do acidente. Da mesma maneira, entendemos que as voltas do corset à moda, com sentidos transformados e distintos daqueles apreendidos no uso aproximado do papel temático, também são investidas de uma lógica do acaso, igualmente identificada ao regime do acidente.

Figura 4. Quadrado proposto por Eric Landowski em “Les Interactions Risquées”, no qual são manifestadas as passagens entre acidente (accident), manipulação (manipulation), programação (programmation) e ajustamento (ajustement), bem como os diferentes papéis actanciais, regimes de sentido e regimes de risco relacionados a cada modo de interação. Imagem: Les Interactions Risquées.

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Partindo da análise do nível discursivo de diferentes corsets ou de suas manifestações, que apresentaremos nos capítulos que se seguem, almejamos um aprofundamento destes papéis actanciais, narrativos, investidos em cada uma das categorias de corsets que desenvolveremos nas análises. Igualmente, nosso objetivo é aquele de homologar as diferentes categorias aos diferentes regimes de sentido e de risco, a partir dos quais, acreditamos, será possível também apreender os papéis assumidos, na interação, pelo sujeito corpo.

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II. O papel temático do corset

Segundo o Dicionário de Semiótica, o papel temático é uma manifestação isotópica (GREIMAS & COURTÉS, 2012), ou seja, uma recorrência de ações de um mesmo sujeito ao longo de seu percurso narrativo. A mesma definição será abordada por Landowski a partir da ideia de “algorítimo de comportamento”, ou a “[...] totalidade de comportamentos que se pode esperar por parte dos atores (humanos ou não)[...]” (LANDOWSKI, 2005, trad. nossa). Quando buscamos definir a “anatomia do corset” no item I.1., definíamos, em realidade, qual é este papel temático do corset, presente desde seu nom d’usage: o corset constringe, modela, cinge, dá suporte ao corpo e à silhueta, e esta isotopia de funções a ele atribuídas constitui o comportamento que dele esperamos nas narrativas do corpo. Para Landowski (2005), o domínio do papel temático encontra-se no regime da programação que o autor, por sua vez, remete ao procedimento de operação da semiótica standard: entende-se “[...] por operação a transformação lógico-semântica da ação do homem sobre as coisas [...]” (GREIMAS & COURTÉS, 2012). Tal ação se dá de forma programada, e no caso do corset, ela segue uma isotopia de ações esperadas de seu agir sobre o corpo. Para que estas ações possam se repetir, é necessário que o fazer do corsetier, o uso das matérias, o arranjo da modelagem e, evidentemente, o seu uso vestindo o corpo, sigam programas igualmente isotópicos e pré-estabelecidos. Esta isotopia de um fazer localiza-se em um recorte temporal preciso, que vai de meados do século XVII ao início do século XX: era de ouro do uso do corset, ao longo da qual, salvas algumas rupturas, este fazer programado manteve-se de forma mais ou menos homogênea, com algumas alterações do formante eidético observado em cada época, bem como das tendências mais decorativas destas peças, mencionadas anteriormente. Trata-se de um fazer tradicional por parte do corsetier, que é perpetuado pelo uso, tornando-se um fazer tradicional e isotópico da própria mulher que utiliza o corset. Este conjunto de fazeres tradicionais é produtor de uma interação programada entre os diversos atores do traje: o corset, a crinolina – seu sujeito aduvjante, ou aquele que auxilia sua performance (GREIMAS & COURTÉS, 2012) – o corpo, e o próprio traje, todos aparecem investidos de papéis temáticos na narrativa do social. A crinolina tradicional, assim como o corset, possui propriedades semelhantes àquelas do corpo que ela busca modificar, não pela constrição, mas pela construção, pelo aumento. 40

Assim como o corset, a crinolina tradicional (o panier do século XVII e XVIII) possui uma pele, ligames e ossos, que propiciam a construção de um novo quadril sobre o quadril, compondo um prolongamento desta região do corpo. Esta performance de aumento é adjuvante da performance de redução da cintura, própria do sujeito corset, a partir da qual este conjunto realiza a performance de transformação de uma silhueta, idealizada para um certo formato de vestido. A performance do vestido, por sua vez, depende da performance destes dois sujeitos, uma vez que sem a silhueta por eles construída, o conjunto “traje” é privado do formante eidético por e para ele pretendido. A união destas três performances – do corset, da crinolina e do vestido – é a condição primeira para a realização de uma segunda performance, aquela do corpo, construído, vestido e ornamentado, que faz-ser o sujeito que o porta, a mulher. O conjunto corpo, corset, crinolina e vestido é formador de um novo papel temático, desta vez do sujeito feminino, a partir do qual se desenrolará a interação no contexto social, no encontro com outros papéis temáticos, dos demais atores da sociedade na qual este corpo e este traje encontram-se inscritos. Este uso do corset – em conjunto com a crinolina e com o vestido – pode ser lido como um uso programado, uma vez que vai de encontro ao seu uso pressuposto, localizando esta forma de interação em uma posição de menor risco. Além de produzir hierarquias extremamente marcadas no corpo, esta forma do uso da lingerie constritora está ligada às hierarquias da interação, próprias do papel temático. Investidos desta forma de papel actancial, os sujeitos limitam-se à ação dentro dos comportamentos esperados, que garantem a segurança das interações em um dado contexto. Por outro lado, estas formas mais tradicionais do corset são geralmente produtoras da constrição e da modificação corporal mais marcada, mais perceptível, como o próprio corset é evidente no desenho da silhueta. O corset não se dissimula por baixo da roupa: dependendo da densidade do tecido utilizado no vestido, é possível entrever o desenho das barbatanas, ou ao menos o aspecto duro conferido à silhueta. Ao sentar e ao caminhar, os objetos formadores da silhueta colocam-se em presença, apresentando-se como uma espécie de exoesqueleto feminino, que muito difere dos modeladores atuais, cujo uso é da ordem da ludibriação, da ilusão que não mostra o segredo por trás do truque. Este aparentar-se por baixo do traje é outra marca do papel temático feminino: no contexto do uso tradicional do corset, faz parte do comportamento esperado do ator feminino a utilização de todos estes objetos, o que elimina a necessidade de ocultá-los. Esta 41

necessidade começará a aparecer com o gradual desaparecimento do corset tradicional da moda, marcando a diluição de seu papel temático em outros papéis actanciais, produtores de diferentes interações, seja com o corpo, seja no social.

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II.1. O traje à francesa

Figura 5. Sackback gown, 1775. Vestido de corte típico de meados do século XVIII, confeccionado em seda e decorado com relevos do próprio tecido e franjas. Fonte: Victoria & Albert Collection, V&A T.2-1947.

Começar uma trajetória da moda ocidental a partir do século XVIII pode parecer um recorte reduzido, tardio, e que desconsidera outras configurações de corpo anteriores. Tais impressões são verdadeiras quando contrapostas a um objetivo de abordar a História da Moda Ocidental, que não constitui, como exposto na introdução, o foco deste trabalho. Ao contrário, buscamos uma abordagem analítica da tendência da constrição da cintura, marcada pelo uso do corset. Esta tendência, construída a partir do uso deste objeto específico, data de meados do século XVII (HART & NORTH, 1998), cujo traje não difere tanto da tendência que possui o vestido acima como emblema. De um corpus mais numeroso de vestidos deste grande período, do século XVII ao final do século XVIII, optamos por analisar o momento que melhor presentifica a plástica pretendida por esta tendência para o corpo feminino: aquela da década de 1770, muito próxima da própria diluição desta configuração de corpo. Ao mesmo tempo, este momento em que a tecnologia de confecção e de materiais atingiu seu ápice, permite contemplar neste traje 43

uma de suas realizações mais inspiradoras, que revelam o domínio e maestria do modelo por parte dos alfaiates. Começando pela forma, muito conhecida e imediatamente identificada como pertencendo ao século XVIII, percebemos uma oposição entre a diminuição da cintura e o aumento do quadril, proporcionados a partir do uso de dois objetos de transformação da silhueta: o corset e a crinolina. As linhas que formam o traje são retas, duras, e facilmente identificadas a formas geométricas simples: o triângulo no torso, o trapézio na metade inferior do traje, os cilindros das mangas. As mesmas formas geométricas serão reiteradas na traseira do traje que, no entanto, é completamente vazia de adornos – em oposição à frente, que traz uma profusão de decorações. Este primeiro exame do formante eidético permite concluir alguns pontos chave para a reconstrução do sentido deste traje. Primeiramente, nota-se a existência de uma topohierarquia do baixo – onde há um aumento da silhueta – sobre o alto, e da frente – onde concentram-se todos os adornos do traje – sobre as costas. Esta hierarquização da frente, onde, por sua vez, há uma maior concentração de adornos no centro longitudinal, nos permite interpretar que o melhor ângulo para apreender este vestido é na frontalidade direta, a uma certa distância do “objeto”, que permita uma fruição do conjunto completo, mas não tão distante, que ainda permita ao olhar capturar os detalhes dos volumes do bordado. Ao encontrar o olhar do observador, as duas metades do traje assumem diferentes papéis, relacionados aos regimes de visibilidade, postulados por Landowski em A Sociedade Refletida (1992). A frente, repleta de decorações, assume uma posição de ostentação, ou um querer ser visto, enquanto que as costas, sem nenhum adorno, colocam-se em uma posição de modéstia, ou de não querer ser visto. Tais posições, quando transpostas para o sujeito que veste-se, podem ser traduzidas em “querer ser visto” em sua frontalidade, combinado ao “não querer ser visto” a partir das costas. Outra importante oposição, desta vez topológica, se dá entre o alto e o baixo do vestido, sobretudo em sua frontalidade: considerando a linha do quadril como divisão entre estas duas regiões do traje – passagem do domínio da constrição, marcado pelo uso do corset, àquele da construção, a partir da crinolina – é nítido que uma maior importância foi atribuída à metade inferior, onde uma maior profusão de adornos é encontrada. É possível testar o próprio olhar retornando à imagem acima (figura 5), e perceber que o olhar é imediatamente atraído para o centro inferior do vestido e, a partir dele, nosso olhar descreve uma trajetória do 44

baixo para o alto, sempre pelo centro, até atingir a linha do decote, onde o mesmo trabalho que inicia nossa apreensão do traje, na bainha, é encontrado. Combinando as duas oposições topológicas, entre frente e costas, e entre baixo e alto, é possível dividir o vestido em quatro quadrantes – traseiro-superior, traseiro-inferior, frontalsuperior, frontal-inferior – e concluir que o local mais hierarquizado do traje é o quadrante frontal-inferior, onde a maior profusão de adornos é encontrada. Em “segundo lugar”, encontra-se o quadrante frontal-superior, seguido do quadrante traseiro-superior e, na base da hierarquia, o quadrante traseiro-inferior. Neste último ponto, o menos hierarquizado do traje, encontramos uma barreira física à interação com o outro: a capa, que escorre até o chão e delimita um território de algumas dezenas de centímetros, coloca-se como um impedimento material, uma fronteira que não permite a aproximação de outro sujeito a partir deste ponto. Em oposição, no centro do quadrante frontal-inferior, o vestido é ligeiramente suspenso do chão, gerando um vazio que convida ao preenchimento – talvez pelos pés do parceiro, em um passo de dança? – e inicia o caminho da fruição dos detalhes do vestido. Este vazio, por sua vez, está em correspondência direta com o outro vazio, do decote, no quadrante frontal-superior: as duas linhas ligeiramente côncavas delimitam, ao lado das linhas da silhueta e da sobressaia, um espaço central em forma de ampulheta, onde o corpo nu encontra-se inscrito. Para além da sobressaia, encontrase o corpo construído pela crinolina, o corpo “falso”. Os dois vazios, o da bainha e o do decote, servem a guiar o observador pela separação entre o corpo realizado, o corpo nu, e o não-corpo, atualizado pelos objetos que constrigem/constroem a silhueta. Esta delimitação é novamente marcada por relações de hierarquia espacial: ao observar o quadrante frontal do vestido, é possível apreender uma maior concentração de bordados no centro, a partir do qual o trabalho vai tornando-se menor, até transformar-se em tecido liso, nas fronteiras laterais frontais da saia. Esta hierarquia da centralidade é reiterada pelo desenho da capa, no quadrante traseiro, onde as pregas do tecido recobrem a região do vestido ocupada pelo corpo realizado, deixando o corpo construído recoberto apenas por uma camada de tecido liso, sem adornos ou volumes adicionais. Somando a centralidade às oposições já identificadas, o quadrante mais hierarquizado deste vestido seria, portanto, o frontal-inferior-central. Este lugar encontra-se, contudo, metade preenchido pelo trabalho mais chamativo – a metade inferior – e metade vazio, em sua 45

porção superior, delimitado nas laterais pela linha da sobressaia, ao sul pelo trabalho do tecido e, ao norte, pelo bico do corpete. Este “vazio”, inscrito no centro dos dois outros vazios – a linha do decote e a bainha suspensa do vestido – abriga em seu interior a região genital, a linha dos quadris anatômicos. Longe de sinalizar uma inferioridade hierárquica, esta centralidade do sexo da mulher, vazia de adornos, encontra-se em um lugar de visibilidade privilegiada, cercado por todos os lados pelo trabalho nobre do bordado. Ocupante do quadrante mais hierarquizado topologicamente, esta região ainda conta com o auxílio de linhas diagonais – as linhas da sobressaia, no baixo, e as linhas da própria silhueta do torso, no alto – que inscrevem esta região em um grande “X” central, que vai dos ombros aos pés, concentrando o movimento do olhar neste ponto central, onde o bico do corpete encontra as linhas da sobressaia, na diagonal, e a linha do quadril construído, na horizontal. A estas linhas combinam-se as verticais, do fechamento do corpete, no alto, e do centro do bordado, no baixo. Também esta linha vertical que começa no baixo é interrompida no centro, reiterando a necessidade do vazio central.

Figura 6. Detalhe da execução do bordado, utilizando volumes construídos a partir do próprio tecido e franjas, que contornam os relevos realçando-os. Fonte: Victoria & Albert Collection.

Ao mesmo tempo, a forma como o bordado é executado (figura 6), com o próprio tecido criando volumes, produz uma oposição topológica entre côncavo e convexo: os volumes da sobreposição da sobressaia e do trabalho com o tecido e com as franjas criam diferentes níveis 46

que extrapolam o aspecto plano do tecido liso, estendendo a oposição entre pleno e vazio para um nível tridimensional, no qual o centro frontal parece levemente côncavo, ou negativo, em oposição ao bordado que é convexo, positivo em relação ao tecido plano das laterais. Este efeito de sentido de cavidade é reiterado pelos jogos cromáticos e matéricos de luz e sombra, no qual a matéria monocromática seda é trabalhada ora lisa, ora dobrada, produzindo oposições entre brilho e opacidade, contribuindo para que os volumes criados tornem-se mais exacerbados – e consequentemente, fazendo o centro parecer mais vazio, mais receptivo, como um orifício a ser preenchido. Enquanto traje de corte, notamos que o complexo trabalho manifestado neste vestido contém em si todo o sentido da interação social do baile: promover a relação frontal, face a face, entre indivíduos do sexo oposto, exaltando os atributos da mulher enquanto parceira potencial. No alto, o limite do decote emoldura o colo – que provavelmente receberá jóias para complementar o arranjo – e a cabeça; no baixo, a suspensão do vestido convida à interação por meio da dança; e, finalmente, no centro, região mais importante do vestido, é manifestado o vazio – do sexo, do útero – que precisa ser preenchido pelo parceiro, na união através do casamento e, em seguida, na consequente concepção de herdeiros. Mais do que um simples detalhe de design, é neste vazio central – topohierarquizado no traje, e que pode ser homologado a uma topohierarquia do corpo feminino, na qual o útero é presentificador do papel mais importante da mulher naquela sociedade – que são projetadas todas as expectativas em relação à união entre pares do sexo oposto. O “querer ser visto” expresso neste ponto do traje une-se a um “querer ver” do outro, compondo um regime de visibilidade de “interesse mútuo” (LANDOWSKI, 1992), no qual os pares reconhecem-se na interação visual: assim como a mulher que porta este traje quer ser vista como competencializada para preencher este papel temático de parceira fértil e procriadora, o segundo sujeito da interação, o homem que busca-se atrair, igualmente quer ver a mulher enquanto capaz de preencher este papel manifestado na topologia do traje. É inevitável relembrarmos, neste ponto, a representação da anatomia feminina gestante, elaborada por van Spiegel (figura 2): assim como pode-se dizer que o ponto mais hierarquizado do desenho é o ventre prenhe, que aparece decorado com uma flor formada pelas próprias camadas de músculos e pele dissecadas, o local do traje homologado à gestação aparece decorado com o próprio tecido (seda), em um desenho arredondado que pode igualmente remeter aos ovários ou aos lábios vaginais. O vazio central do vestido presentifica 47

uma ausência, aquela do feto, que manifesta a disponibilidade da parceira (que não está grávida), e sua fertilidade (ou a possibilidade de gravidez). Em termos semióticos, o traje propõe um contrato fiduciário e veridictório (GREIMAS, 1983): a organização topológica reclama um dizer verdadeiro acerca da fertilidade daquela que o porta – um saber-poder gerar – que pode ou não ser aceito pelo outro, o pretendente. Nesta lógica, a operação de sanção (GREIMAS, 1983; GREIMAS & COURTÉS, 2012) do traje poderia ser identificada na adesão (ou não) do pretendente a estes contratos, através da proposta de casamento. Em seguida, existe ainda a necessidade de sancioná-lo novamente, desta vez quanto às competências de fertilidade, igualmente presentes no enunciado do traje, o que ocorrerá na concepção (ou não) do almejado herdeiro.

II.1.1. A roupa de baixo do século XVIII

Figura 7. Conjunto de roupa de baixo do século XVIII, formado por stays e crinolinas chamadas de hoopskirt, na língua inglesa, e panier, na língua francesa. Esta peça específica, de 1778, é confeccionada em linho e estrutura de madeira envergada, mas outros materiais, como a lã e a crina – da qual o nome crinoline (crinolina) é derivado – eram utilizados em sua fabricação. Imagem: Victoria & Albert Collection, V&A:T.120-1969.

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A forma exterior do vestido é dada essencialmente pela forma da roupa de baixo: a ampliação dos quadris na horizontal, bem como o formato constrito e triangular do tronco, são criados pela ação de duas peças de roupa de baixo, o corset e a crinolina. O vestido, portanto, é praticamente disforme: ele aparece como um apanhado de tecidos que cai sobre a lingerie, assumindo as formas do conjunto da roupa de baixo como suas próprias formas. Dada a matéria na qual o vestido é confeccionado, a seda, um tecido ao mesmo tempo pesado e dotado de caimento, bem como a quantidade de camadas de tecido e decorações aplicadas sobre ela, fica evidente a necessária competência de força e resistência presente nesta crinolina, cuja estrutura deve formar e, ao mesmo tempo, sustentar a amplitude dos quadris sob o peso do traje. Pensando neste aspecto mais técnico, se poderia desenvolver a hipótese de que a profusão de adornos na parte central e inferior do vestido – e não em suas laterais e no alto – pode estar relacionada a uma característica necessária, fruto da limitação da roupa de baixo, e não uma escolha de design. Do ponto de vista semiótico, no entanto, a existência desta limitação não anula os sentidos que podem ser lidos nesta configuração de corpo – ou sequer pode esta limitação ser aceita como uma explicação definitiva para o desenho do traje, a qual desqualificaria a pertinência dos valores apreendidos no vestido – uma vez que, independente da razão pela qual o desenho do traje é este e não outro, o sentido encontra-se manifestado e pode ser lido, apreendido. Nas palavras de Greimas, “que a isotopia complexa do discurso seja provocada pela intenção consciente do locutor, ou que ela se encontre instalada involuntariamente, [isto] não muda nada na própria estrutura de sua manifestação.” (GREIMAS, 1966) 8

8 “Que l’isotopie complexe du discours soit provoquée par l’intention consciente du locuteur, ou qu’elle s’y trouve installée à son insu, ne change rien à la structure même de sa manifestation.” (GREIMAS, 1966, trad. nossa)

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Figura 8. Detalhe da estrutura e reforço lateral da crinolina de 1778. Imagem: Victoria & Albert Collection. V&A:T.120-1969

No vestido, a composição das camadas de tecido e do caminho traçado pelos bordados cria uma direção mais delicada da apreensão dos valores manifestados, que podem ser fruídos de maneira quase poética, revelando-se de maneira gradual. No conjunto da roupa de baixo, esta trajetória aparece mais didaticamente, simplificada pela ausência das decorações. O olhar é imediatamente capturado pela “prótese” do quadril, que cria um volume desproporcional nas laterais, construído por um objeto que possui duas fileiras de estruturas, uma de menor amplitude, no alto, descrevendo um “V” aberto ao redor da cintura, e uma segunda, mais larga e contínua, logo abaixo. A partir deste segundo arco, o tecido rígido e armado continua por 50

alguns centímetros, mantendo uma linha reta vertical, que desenha um trapézio que recobre o corpo até o início das coxas.

Figura 9. Stays, 1780, confeccionados em linho enrijecido com cola, aplicação de fitas de seda e tiras de camurça, costurado à mão com linha de linho e estruturado com barbatanas de baleia, medindo 62 cm na cintura, quando completamente fechado. O primeiro nome dos corsets, “stays” ou “corps à baleine”, referem-se mais diretamente ao caráter estrutural da peça. Na língua francesa, a tradução literal seria “corpo ou tronco de barbatanas”, enquanto que, no inglês, a palavra “stay”, um sinônimo de “barbatana” ou “estrutura”, aparece empregada no plural, sinalizando que esta peça é um conjunto de estais ou barbatanas. Imagem: Victoria & Albert Collection. V&A:T.172-1914.

Por fora da crinolina, encaixa-se o corset, que imediatamente nos manifesta o formato de triângulo conferido ao torso, que é reiterado diversas vezes nas costuras e nas fitas de reforço. Seja no desenho destas fitas, no bico central do corset, ou no próprio desenho do corpo, há uma isotopia da figura triangular, que pode ser lida como uma seta que aponta para baixo: para o imenso quadril construído, ou para o que encontra-se ali, logo após o bico do corset: o púbis, o sexo. Esta seta é reverberada pelo “V” da primeira estrutura da crinolina, criando uma unidade enunciativa do conjunto que busca conferir visibilidade a este ponto do corpo feminino. 51

Em uma leitura de cunho mais simbólico, é possível interpretar este aumento excessivo do quadril como uma exaltação mais literal da fertilidade. Em diversas culturas ditas ancestrais, como abordado pela psicóloga e autora Clarissa Pinkola Estes, o quadril é relacionado à verdadeira força do feminino selvagem, que é aquela do parto (ESTES, 1994). Há uma combinação deste sentido simbólico, da ampliação do quadril – e, logo, desta competência da maternidade – com um outro, de natureza semi-simbólica, do sentido apreendido em ato, que é dado pelo direcionamento do olhar, por meio das formas e linhas, para o útero e para o sexo. A maternidade e a fertilidade, neste traje, aparecem presentificadas principalmente pelo quadril e pelo sexo, uma vez que tanto no vestido quanto na roupa de baixo, os seios aparecem como ausência, no corte reto do corset e do corpete do vestido. Trata-se de um traje de corte, no entanto, e sabe-se que a amamentação dos próprios filhos não era bem vista no ambiente da nobreza europeia até o final do século XVIII, o que sugere, em partes, a dissociação do seio ao ato da maternidade. O papel da mãe manifestado neste traje, portanto, resume-se àquele da concepção, da geração e do nascimento. Após o exame do vestido e da roupa de baixo, é possível interpretar que estas peças não existem senão enquanto conjunto: a ação de uma complementa a ação da outra, realçando-a, e na ausência de uma destas peças, o arranjo de corpo pretendido não pode ser realizado. A divisão da roupa de baixo em duas peças, por sua vez, sinaliza uma divisão do corpo: no plano baixo, onde concentra-se a ação da crinolina, há a direção de dentro para fora, ou de aumento; no alto, local onde age o corset, a direção é contrária, de fora para dentro, de pressão ou constrição. A linha que separa estes dois lugares da ação dos modeladores da silhueta é justamente aquela da cintura anatômica, local de maior tensão do traje. A área ocupada pelo vestido pode ser dividida em três, na vertical, na qual um terço (superior) é ocupado pelo tronco constrito, o segundo terço é ocupado metade pela crinolina e metade pela camisole, e finalmente a terceira parte é ocupada apenas pelas pernas, sem nenhuma lingerie. Neste desenho, novamente, o centro geométrico do traje (no caso da roupa de baixo) é hierarquizado pelo aumento conferido aos quadris. Esta linha de aumento, por sua vez, encontra-se imediatamente abaixo da cintura anatômica, realçada pelo corset. Neste ponto, em oposição ao desenho arredondado e contínuo do decote superior, o corset é construído em “picotes”, chamados de tabs, termo que 52

significa “ponta” ou “lingueta”. Esta quebra das linhas do corset está em correspondência com o franzido da crinolina, por meio do qual é feito o ajuste da mesma na altura da cintura. Na união destas duas linhas descontínuas, fraturadas, as duas peças encontram-se, combinam-se. O desenho em zigue zague, que faz pensar em “dentes”, talvez, manifesta um sentido de plugue, de encaixe, que combina-se ao desenho correspondente do franzido da crinolina, permitindo que as duas peças, de direções e ações opostas, tornem-se um único combinado completo, como duas peças de um complexo quebra-cabeças. O uso correto deste conjunto demanda que o corset seja vestido por fora da crinolina: as tabs ou linguetas servem justamente à função de abrir o desenho constrito do corset, conferindo a amplitude necessária para a linha alargada que se formará logo abaixo delas. Ao mesmo tempo, a matéria mais enrijecida do corset provoca uma pressão sobre a crinolina, impedindo que a mesma mova-se em direção ao alto por conta do movimento das pernas. Esta imobilidade conferida pelas tabs garante que a crinolina não perca seu posicionamento correto, que comprometeria a forma do vestido, repuxando-o, caso a crinolina subisse em direção ao tórax, ou perdendo a altura correta do quadril, caso ela se abrisse e caísse da cintura. Se na forma e na topologia as peças apresentam-se em direções opostas, centrífugacentrípeta, aumentada-constrita, a materialidade e a anatomia das peças justifica sua união: ambas construídas em linho, enrijecidas com estruturas que correspondem-se às próprias estruturas do corpo, alternanto matérias maleáveis (tecidos) e rígidas (ossatura) na construção de um corpo sobre o corpo, que constrói sobre a silhueta um novo formato, dotado de diminuições e prolongamentos que formarão a base para o arranjo de corpo esperado pelo vestido, que completará perfeitamente o conjunto de competencializadores da mulher para a realização de sua performance na sociedade. O forte entrelaçamento entre os papéis desempenhados por todas as peças, na relação com o corpo, nos leva diretamente à definição de papel temático exposta no início deste capítulo. Não apenas os comportamentos apresentados por todos os atores – inclusive o corpo – podem ser lidos como isotópicos, como a interação entre estes diversos sujeitos se dá de acordo com um programa esperado, previsível. A partir da ação programada do traje, do corset e da crinolina, cria-se uma configuração programada de silhueta, do formato e da topologia esperados de um corpo feminino (com quadris aumentados, cintura constrita, além de um vestido que manifesta-se 53

enquanto instrução calculada de uma interação com este corpo). A partir da apreensão destas isotopias de comportamentos e interações programadas, é possível extrair que a relação prevista entre este corpo e os demais sujeitos remete ao investimento de um papel temático, igualmente previsível – e portanto, da ordem do regime da segurança – no sujeito feminino. O conjunto do traje assegura, assim, que a interação feminina em sociedade atenha-se ao programa para ela previsto. Em outras palavras, o conjunto corset-crinolina-vestido manifesta uma sintaxe da falta, presentificada principalmente pelo vazio central, localizado em uma posição privilegiada de visibilidade dentro do traje. Esta falta – o útero virgem, desabitado – relaciona-se a um feminino que busca o cumprimento de seu papel temático – o preenchimento de seu útero. Desta maneira, o traje aparece como realçador de uma silhueta, que é a expressão do conteúdo “desejo de procriar” – o que pode ser realizado legitimamente, no contexto social deste traje, apenas por meio do casamento. Semioticamente, o que o vazio presentifica, portanto, é a necessidade de conjunção com o valor carregado pelo outro, o sujeito do sexo oposto. Por meio desta junção, é possível realizar os valores de fertilidade, do poder gerar. Se o traje manifesta estas competências e modalidades sobretudo deônticas (GREIMAS, 1983), da ordem do dever, que ligam-se ao papel temático feminino – apreendido desde os desenhos anatômicos de van Spiegel (figura 2) – é possível postular que existe uma relação de complementaridade entre o papel temático do corpo feminino, formado pelos papéis do vestido e da roupa de baixo, e o papel temático da mulher. O papel do vestido e da roupa de baixo em conjunto, portanto, pode igualmente ser lido enquanto um papel temático, na medida em que a ação esperada deste traje completo é aquela de “formar uma silhueta eufórica para o sexo oposto”. Em uma lógica da corte, é esperado do ator traje que ele aja da maneira descrita até então: fazendo ver (ou não ver) determinadas regiões do corpo para, por meio disso, fazer fazer (ou não fazer) os outros sujeitos. Trata-se de um papel do traje que concentra-se em criar uma silhueta atraente para o sexo oposto – e este valor eufórico da atração, por sua vez, encontra-se intimamente ligado, no plano do conteúdo, ao valor “fertilidade” – e encorajar a interação com este corpo vestido.

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II.2. A moda de 1880

Figura 10. Vestido de 1885, confeccionado em algodão azul impresso em tons de vermelho e terracota, construído em três peças: corpete, anágua e saia. Um dos destaques deste modelo é certamente o volume traseiro da saia, que proporciona a impressão de ausência da crinolina (sobretudo na lateral, rente ao corpo), mas é sustentado por uma peça denominada “bustle” ou “bustle frame”, cujo significado relaciona-se, no inglês, ao mover-se apressadamente, de maneira dinâmica. No francês, a peça era denominada “tournure”, que também significa um acento ou expressão conferido ao modo de falar. Em ambas as línguas, portanto, a nomeação escolhida para a peça transita entre características conferidas ao corpo durante seu uso, seja uma mobilidade maior, quando comparada às crinolinas mais amplas, seja um “acento” apenas na traseira do vestido, e não um destaque completo da linha do quadril e do glúteo. A peça é conhecida na língua portuguesa como “anquinha”, em referência ao local do corpo que ela recobre e destaca. Imagem: Victoria & Albert Collection. V&A:T. 7&A-1926.

A partir de 1850, a crinolina ampla voltou à moda, mas desta vez em uma versão redonda, em forma de sino ou gaiola, e em desenho cada vez mais amplo e exagerado. Valerie Steele identifica esta volta da cinolina a uma vontade da burguesia ascendente de marcar sua 55

distinção das demais classes sociais, por meio da assimilação de valores típicos da nobreza do século XVIII (STEELE, 2001) – a mesma que fora destituída do poder por meio de uma revolução burguesa. Esta moda recuperada dos salões de baile dos 1750, no entanto, não condizia com a vida na cidade, a realidade de grande parte dos burgueses europeus de meados do século XIX. Aos poucos, a tradicional crinolina de gaiola (cage crinoline) começa a diminuir, tornando-se primeiro uma versão mais estreita, até chegar ao desenho do vestido acima, última moda ocidental a incluir a crinolina como item do vestuário feminino. Em oposição ao traje à francesa, este vestido é dotado de uma horizontalidade muito menor quando apreendido em sua frontalidade: o desenho dos quadris é reto, rente ao corpo, e o vestido abre-se ligeiramente na base, por conta das fileiras de babados. No quadrante frontal, o alto adquire uma quase invisibilidade, que difere da progressiva decoração da saia, que começa com um drapeado redondo, que é reverberado em cinco fileiras iguais de babados que unem-se ao babado da anágua, criando uma ilusão de continuidade entre as duas peças. Ao observar o vestido em seus demais ângulos, no entanto, é perceptível que a real astúcia do traje encontra-se não em sua frontalidade, mas nas costas e, de maneira semelhante ao traje do século XVIII, no quadrante central. No alto, o corpete é liso e sem nenhuma decoração até a altura da cintura, onde o duro desenho de sua cauda, em quatro setas quase que horizontais, recobre o igualmente rígido drapeado da saia. Na visão traseira direta, no entanto, não é possível fruir a totalidade deste detalhe: para apreender corretamente o elaborado desenho do corpete, o observador deve posicionar-se em ângulo indireto, como no centro da figura 10, posição que permite visualizar o volume criado pela crinolina, que serve para sustentar o drapeado e conferir visibilidade às setas que o recobrem. Em relação ao traje à francesa, este vestido delimita um espaço pessoal muito menor: a ausência da capa com cauda, bem como o não aumento lateral do quadril, inscrevem a usuária deste vestido em uma área constrita, quando comparada àquela produzida pelo traje do século XVIII. Da mesma maneira, a bainha suspensa indica não apenas a ausência de limites físicos para a interação pelas costas, como a possibilidade de que este vestido não seja idealizado para uma interação indoor, como o é, nitidamente, o traje à francesa. Se a cauda que escorre pelo chão nos fala de um ambiente limpo, seja ele o interior do salão, sejam os bucólicos jardins dos palácios e propriedades rurais, um vestido com bainha suspensa revela um não 56

querer tocar o chão – o que torna inevitável a relação com os pisos imundos das cidades industriais do final do século XIX. Unindo estes dois traços plásticos – o estreitamento horizontal e a suspensão do chão – encontramos manifestados conteúdos que reenviam à possibilidade de um corpo que não encontra-se confinado, no interior das residências ou salões de baile, mas de um corpo mais dinâmico. A bainha que não toca o chão, por sua vez, contém em si o desejo de distanciamento do ambiente pelo qual este corpo transita, que pode ser aquele da cidade. Trata-se, assim, de um feminino mais arrojado, ativo, que ganha o espaço público e por ele transita, com um traje que atende às demandas práticas solicitadas por estes lugares. Seguindo esta lógica, os demais elementos do traje ganham sentido, pouco a pouco. A ausência de decote e as mangas compridas, por exemplo, são traços marcados que remetem a uma não-ostentação do corpo, muito diferente do decote cavado e pronunciado do traje à francesa, complementado pelas mangas acima dos cotovelos. No vestido do século XVIII, não apenas uma maior quantidade de pele encontrava-se à mostra, como estas partes nuas do corpo – colo, pescoço e braços – certamente clamavam por jóias, como pulseiras e colares, como complemento do look. Em um vestido completamente fechado como este, no entanto, existe um espaço muito limitado para o uso de acessórios, provavelmente apenas brincos e anéis – e estes últimos, ainda, possivelmente recobertos por luvas. Em oposição à ostentação do século XVIII – do corpo, dos atributos sexuais, das jóias – encontramos neste vestido um regime de visibilidade definido por Landowski como “pudor”, ou querer não ser visto (LANDOWSKI, 1992). Não apenas o corpo se cobre, deixando menos pele à mostra e, consequentemente, menos espaço para o uso de jóias, como a própria forma do corpo torna-se mais estreita, reduzindo o destaque dos quadris – e, como vimos, da competência da fertilidade que eles manifestam. Ao mesmo tempo, as linhas do formante eidético, delimitadoras de um menor espaço pessoal, revelam a possibilidade de uma interação em maior proximidade. Tal manifestação, contudo, é produtora de uma contradição, no que toca os regimes de visibilidade apreendidos neste traje. Por um lado, a mesma topohierarquia do baixo sobre o alto, apreendida no traje à francesa, encontra-se presente neste vestido. No entanto, na proximidade permitida por seu desenho, tudo o que o observador pode apreender é o corpete completamente liso, de linhas duras e até mesmo masculinas, militares. O corpo permite a proximidade, mas não dá a ver ao enunciatário, o outro sujeito, o que ele espera ver – a competência da fertilidade. Ao delimitar 57

uma distância na qual o baixo não pode ser visto, o corpo vestido neste traje coloca o outro sujeito em posição de voyeurismo, ou da contradição entre querer ver e querer não ser visto (LANDOWSKI, 1992). Este regime de visibilidade certamente opõe-se ao interesse mútuo (LANDOWSKI, 1992), identificado na apreensão correta do traje à francesa, na qual o corpo vestido quer ser visto da maneira como o enunciatário quer vê-lo, produzindo a complementaridade nas relações de visibilidade. No traje de 1880, duas leituras são possíveis. Do ponto de vista da competência da fertilidade, o sujeito quer não ser visto na proximidade – o delicadíssimo destaque do baixo ventre, conferido pelo drapeado arredondado, é melhor apreendido à distância. Quando posicionado na proximidade espacial permitida pelo traje, o corpo quer não ser visto como sexo oposto, e dá a ver a silhueta masculina/militar do corpete reto, liso e fechado. Em ambos os casos, para que seja permitido ao enunciatário fruir as características por ele procurada – a feminilidade, a competência da fertilidade – se faz necessário tomar novamente a distância. O destaque para a fertilidade, no entanto, não manifesta-se como prioridade nas relações de visibilidade criadas pelas linhas deste vestido. Não apenas pelo aumento, mas também pela profusão de decorações, o ponto que coloca-se como o mais importante do traje é, sem dúvida, o quadrante central traseiro, onde localiza-se a crinolina, a decoração em forma de setas do corpete, e a cintura constrita. Em oposição à frente praticamente reta, a curvatura da lombar encontra-se em destaque pelo prolongamento dos glúteos, promovidos pela crinolina e pelo desenho do corpete, que a ultrapassa. O próprio drapeado traseiro da saia assume o formato de duas setas ascendentes, que carregam o olhar do baixo ao alto até este local privilegiado. Neste ponto, no entanto, as setas encontram-se quase na horizontal, e seu aspecto duro, rígido, confere a elas o efeito de sentido de facas ou lanças, lâminas afiadas que guardam o único ponto do traje onde um espaço pessoal que ultrapassa o corpo nu é delimitado. O ponto mais hierarquizado do traje, portanto, é justamente aquele onde não se pode tocar o corpo, seja pela distância por ele delimitada, seja pelas “armas” que o protegem. A combinação dos traços do notável formante eidético deste traje pode ser lida como uma maior independência feminina, que em lugar de entregar-se como um prêmio ao parceiro pretendido, oculta suas competências relacionadas ao papel temático, ao mesmo tempo em que desvia a atenção do enunciatário deste ponto, concentrando seu olhar em outra direção. 58

Este traço é reiterado pelo próprio formante matérico do vestido, confeccionado em algodão. Ao contrário do caimento quase que passivo e inerte da seda, que limita-se a recobrir a crinolina, o algodão possui a capacidade de sustentar uma forma independente da modelagem oferecida pela crinolina. A capacidade do vestido de sustentar parcialmente os próprios volumes confere a ele, igualmente, uma maior autonomia, ou uma relativa emancipação da roupa de baixo. No papel manifestado pelo traje à francesa, encontrava-se presentificado o caráter dependente da mulher – reiteração da dependência do vestido, em relação à roupa de baixo – que necessita da junção com o outro para a realização de seu papel. No vestido dotado de maior autonomia, o próprio feminino diminui a manifestação da falta, apresentando-se enquanto corpo fechado, armado e protegido. Para David Kunzle, uma relação direta entre esta moda e a diminuição substancial da família europeia do período pode ser traçada (2004). De fato, o final do século XIX é marcado por um emprego melhor disseminado da contracepção, que passa a ser aceita principalmente por conta das crises econômicas em diversas classes sociais – relevante obstáculo para o cumprimento do papel temático. Este traje marca, portanto, uma queda da valorização da fertilidade feminina, que perpassa sobretudo uma relação de visibilidade do centro frontal do corpo, local da concepção e da gestação, para uma valorização do centro traseiro, topologicamente oposto. A oposição topológica entre os dois trajes será ainda reiterada pelo cromatismo deste vestido específico, cuja cor azul do algodão é praticamente imperceptível sob a profusão do padrão vermelho, rosa e terracota. Trata-se de uma tenologia do período – a impressão – sobrepondo-se à outra, do período anterior – a descoberta dos corantes artificiais, principalmente o azul (BOUCHER, 2010) – quase apagando-a completamente. Da mesma maneira, a cor escolhida abriga uma oposição da ordem do simbólico, aquela entre azul e vermelho, que são correspondentes aos conteúdos opostos, bem vs. mal. No sentido apreendido em ato, no entanto, o vermelho reenvia a outros valores extremamente marcados do século XIX, como a guerra e o desenvolvimento da indústria. Uma das principais matérias a contribuir com o avanço industrial é o aço, cuja manifestação natural possui uma tonalidade semelhante àquelas utilizadas na paleta do desenho impresso no tecido. Ao mesmo tempo, é inegável a associação ao sangue, que, por sua vez, reenvia aos conteúdos de morte associados à interrupção das gestações – seja pela 59

contracepção, pelo aborto, infanticídio ou abandono de crianças, muito comuns no período – marca de uma disforia investida na procriação. Tais valores certamente opõem-se ao bucolismo azul do século XVIII que, apesar de igualmente marcado por guerras, é retratado em sua arte em cores mais suaves, claras – o século das luzes, em oposição ao sturm und drang do século XIX.

II.2.1. A roupa de baixo de 1880

Figura 11. Brown’s ‘Dermathistic’ Corset, 1883: corset confeccionado em cetim, couro, barbatanas de baleia e spoon busk em aço. ‘The New Phantom’ bustle frame, 1884, crinolina confeccionada em aço e fitas de algodão. Imagem: Victoria & Albert Collection. V&AT.84&A-1980 e T.131C-1919.

Para formar o corpo pressuposto pelo vestido acima analisado, se fazia necessário o uso de duas peças modeladoras: o corset e a crinolina. Em comparação ao conjunto do século XVIII, 60

contudo, trata-se de uma roupa de baixo menos limitante dos movimentos, bem como de uma já mencionada redução do espaço pessoal delimitado pela roupa: no lugar dos volumes exagerados, criados especialmente para o traje à francesa, este conjunto constringe a cintura e confere apenas um “acento” – ou tournure, como nos lembra a nomeação francesa deste tipo de crinolina – do volume dos glúteos e, por meio deste, da curva da cintura lombar. Ao contrário da roupa de baixo necessária para formar o traje à francesa, na qual uma imediata visualização do conjunto completo se faz possível, neste traje não fica tão evidente qual será o desenho final da roupa. Isso nos lembra que, neste período, também o vestido é dotado de uma certa autonomia em sua própria formação: a crinolina aparece como um adjuvante, que confere sustentação em um ponto (no centro traseiro, na altura dos glúteos), a partir do qual o vestido constrói-se a si mesmo. Se no traje à francesa o vestido aparece como algo que recobre o conjunto corset-crinolina e depende totalmente da performance destes dois actantes, neste traje ao menos o papel da crinolina aparece como enfraquecido. A ênfase na parte inferior do corpo, no entanto, continua presente, ainda que com traços suavizados, quando comparados àqueles conferidos ao corpo pela lingerie do século XVIII. Neste traje, porém, em lugar dos marcados sólidos – trapézio, triângulo – encontramos uma forma mais orgânica, arredondada, que lembra um “8”, ou uma voluta. Este desenho é conferido ao corpo primeiramente pelo corset, que torna-se mais arredondado tanto na lateral quanto na frente e nas costas, conferindo ao ventre um volume no baixo abdome, e reforçado pelo volume da crinolina, apenas nas costas. Na roupa de baixo, portanto, é reiterado o ponto de vista do enunciatário estabelecido pelo vestido: o melhor ângulo para apreender o desenho desta roupa de baixo não é aquele da frontalidade, e tampouco a visão traseira direta, mas o ângulo indireto, levemente oblíquo. Neste ângulo, no qual o manequim da imagem acima (figura 11) encontra-se posicionado, é possível perceber que o posicionamento da crinolina sugere a continuidade de seu movimento, um prolongamento de suas linhas, que será dado pela “cascata” de drapeados do vestido. Igualmente, o desenho arredondado do baixo ventre, marcado inclusive pelo bico da frente do corset, será retomado no discreto drapeado frontal e na fileira de babados da saia, que aparecerão como reverberações desta curva conferida ao abdome. No vestido, é marcada uma cisão entre a frente e as costas, sobretudo em sua porção inferior, no conjunto saia e anágua. Esta cisão é certamente fruto da organização da roupa de baixo, na qual a frente é modelada apenas pelo uso do corset e, nas costas, há a adição de um 61

volume pontual, apenas sobre o glúteo – justamente, a parte de maior destaque do vestido. Tal cisão tem como fruto um desequilíbrio do traje, que opõe-se à simetria quase bidimensional do traje à francesa. Este desequilíbrio é produtor de diversos sentidos, um deles, talvez o principal, a necessidade de deslocamento do enunciatário para a apreensão do corpo que se apresenta construído desta maneira. Esta necessidade de deslocamento, por sua vez, é produtora do recorrente sentido de mobilidade, que muito difere da possibilidade de uma apreensão estática, presente nas linhas do traje à francesa.

Figura 12. ‘The New Phantom’ bustle frame, 1884. Crinolina confeccionada em arames de aço e fitas de algodão perfuradas. O nome comercial da peça, “O Novo Fantasma” em tradução livre, confere um sentido interessante que remete tanto à ausência de tecido recobrindo a estrutura, reforçanto o caráter de esqueleto descarnado, quando a sutil ação da peça na traseira do vestido, como uma “aparição” que possui ação visível, mas não se mostra aos olhos daquele que admira o traje formado por ela. Fonte: Victoria & Albert Collection. V&A T. 131C-1919

Estes dois aspectos do traje ajudam a construir os valores apreendidos no vestido: a dinamicidade do deslocamento no ambiente da cidade (em oposição à estaticidade da 62

interação indoor, dos salões de baile do século XVIII), que pode ser lida como uma maior independência da figura feminina em sociedade. Esta autonomia aparece mais claramente pela própria diminuição do volume do traje, que permite um deslocamento mais livre, mais leve. A independência expressa na possibilidade de mobilidade é, por sua vez, combinada ao sentido de “arma” conferido ao próprio vestido, sobretudo pelo detalhe traseiro, em forma de setas rígidas que apontam violentamente para o outro, para o olhar do enunciatário, quando dirigido a este local. Neste ponto do traje, as orientações espaciais do vestido e da crinolina separam-se, colocando-se em oposição. No exterior, há a nítida direção para fora, enquanto que o movimento sugerido pela crinolina, a continuidade de suas linhas de voluta, apontam para dentro, de volta para o sujeito que a utiliza. Se uma contrariedade é manifestada, pelo vestido, nas relações de visibilidade criadas no corpo, esta mesma contrariedade é reiterada na relação entre roupa de baixo e vestido, desta vez nas direções, centrífuga e centrípeta, assumidas pelos dois conjuntos. Em um primeiro olhar, esta crinolina se revela como uma peça incompleta, inacabada, na qual falta o tecido recobrindo a estrutura metálica aparente. Nomeada por seu fabricante como “fantasma”, “aparição” ou ainda “espectro” – todos possíveis traduções do vocábulo phantom – esta peça certamente continua a isotopia de “morte” presente neste ponto do vestido. A morte, dada pela cor vermelha e pelas flechas presentes nos bicos do corpete, aparece no interior como o resultado da morte, ou seja, o “espírito”, ou a “alma penada”. Ao contrário da crinolina do traje à francesa, revestida em toda a sua extensão por um tecido que ocultava sua estrutura, nesta peça não apenas não existe um revestimento, como o único tecido utilizado – a fita de algodão – aparece perfurado, ferido pela força da própria matéria metálica. Esta penetração aparece tanto nos arames, que perpassam a fita de algodão em “ferimentos” de entrada e de saída, como nos rebites, igualmente de aço, que unem a matéria tecida atravessando-a. No lugar do corpo “vivo” da crinolina do século XVIII, dotado de pele, ossatura e ligamentos, esta crinolina possui ossos ainda fortes e aparentes, mas sua pele e sua carne encontram-se já deterioradas, um elemento quase ausente. Última crinolina a ser criada e utilizada no contexto da moda ocidental, o paralelo entre esta peça e o desaparecimento deste acessório é inevitável: sua última “aparição” na moda é investida de valores de decomposição, do desaparecimento gradual após a morte. Em uma linha do tempo da existência das crinolinas, esta decomposição, ou descontrução, é 63

visível de forma gradual através dos modelos do século XIX, nos quais cada vez mais estrutura passou a ser exposta, começando pela exposição da forma da estrutura, mas com arames ainda revestidos, até a exposição total do aço, e, finalmente, neste modelo, o desaparecimento quase que completo da matéria tecida. Esta ausência, por sua vez, está intimamente ligada à diminuição da crinolina: primeiramente, na direção horizontal, com a diminuição da circunferência e, sem seguida, a diminuição na direção vertical.

Figura 13. Panorama do desenvolvimento das crinolinas ao longo do século XIX, que se completa com o bustle, última versão desta peça antes de seu desaparecimento da moda ocidental. À esquerda, o modelo de 1860 (V&A:T.16-1979), confeccionado em estrutura vegetal, apresenta um desenho completamente recoberto pelo tecido. No centro, modelo de 1867 (V&A:Circ.87-1951), confeccionado em crina, algodão e aço, apresenta a estrutura parcialmente exposta. Finalmente, à direita, no modelo de 1868 (V&A:T.195-1984) há uma total ausência do formante “pele” da crinolina, confeccionada apenas em arames de aço e fitas de linho, que assumem a função de estrutura vertical. Fotografias: Victoria & Albert Collection.

A circunferência da ampla “gaiola” de meados do século XIX encontra-se, no entanto, presentificada, ainda que de maneira sugestiva. Construída em 1/4 de esfera, formado por seis arames em semicírculo e unidos por um sétimo arame horizontal – o eixo em torno do qual esta parte poderia girar, formando por meio do movimento a totalidade – seu posicionamento sugere os outros 3/4: metade deles formados pelo próprio ventre, construído em desenho arredondado pelo corset, e o outro 1/4, nas costas, enquanto prolongamento deste hiper-glúteo almejado. Em uma outra possível leitura, ao invés de esfera ao redor do baixo ventre, um prolongamento desta crinolina pode ser desenhado em forma de voluta, uma espiral crescente, 64

que constrói em torno do sujeito uma espécie de concha – localizada, como no caracol, nas costas – englobando o corpo em uma linha imaginária traçada a partir do próprio glúteo.

Figura 14. Brown’s ‘Dermathistic’ Corset, 1883, confeccionado em cetim, couro, bico de renda de máquina, barbatanas de baleia e spoon busk em aço, medindo 56 centímetros na cintura quando completamente fechado. Anunciado pelo fabricante como um corset próprio para a prática de esportes, a linha de corsets ‘Dermathistic’ possuía como principal diferencial a cobertura do busk e das barbatanas com couro (LYNN, 2010). Esta particularidade ajudava a proteger o corset de eventuais rupturas, ocasionadas pelo movimento exigido na atividade física, impedindo que as barbatanas rasgassem o tecido do corset e, consequentemente, aquele do traje exterior. Imagem: Victoria & Albert Collection. V&AT.84&A-1980

O grande diferencial que marca a passagem do século XVIII para o XIX é, sem dúvida, a introdução da abertura frontal nos corsets. Tal abertura é permitida por uma tecnologia denominada “front busk”, patenteada em 1829 pelo corsetier Jean-Julien Josselin (LYNN, 2010). Trata-se de um aviamento que consiste em um par de chapas de aço, nas quais são rebitados pinos, no lado esquerdo, e ganchos, no lado direito que, quando encaixados, mantêm a peça seguramente fechada. O split busk aparece como facilitador do vestir e despir o corset, uma vez que permite que esta atividade seja realizada sem o auxílio de outra pessoa, ao contrário do que ocorre nos 65

antigos stays, amarrados somente pelas costas, demandando que a realização de tal tarefa fosse auxiliada por outra pessoa. Pode-se afirmar, portanto, que o uso do split busk traz consigo uma espécie de democratização do corset, que combina perfeitamente com a preocupação mercantil, marcada no século XIX. No sentido da anatomia do corset, contudo, o split busk aparece como transgressão do desenho pressuposto do corset. Isto ocorre quando a matéria metálica, marcadamente estrutural, aparece extrapolando o lugar da ossatura, no interior do corset, e se faz ver no exterior, nos ganchos e pinos. É importante ressaltar que, além de promover o abrir e fechar do corset pela frente, o split busk também possui a função de estruturar e reforçar a frente do corset, modelando o abdome e o baixo ventre. Da mesma maneira, no âmbito da confecção, a inserção do busk no corset adquire um caráter de ferida: para a sua colocação, do lado dos ganchos, é preciso deixar aberturas na costura por onde eles possam ser inseridos, enquanto que, do lado dos pinos, é preciso perfurar todas as camadas do corset com um vazador, e então empurrar os pinos de maneira que atravessem completamente estes orifícios. Para impedir que o aviamento se mova e avarie o tecido, a inserção é finalizada com a costura aparente, rente à chapa de aço (visível na figura 14) e, como no caso deste corset, reforçada com uma camada extra de tecido. Da mesma maneira que o arranjo da crinolina, também o conjunto plástico do corset reitera a isotopia do ferimento, do corte, da perfuração. A estrutura propositalmente aparente, semelhante àquela da crinolina, aparece como uma ferida em seu arranjo, em sua anatomia, que expõe seu interior no exterior. O conjunto machucado formado por estas duas peças justifica, no exterior, a necessidade de “defesa” do corpo, manifestada pelo desenho do vestido. Ainda que menos ferido do que a crinolina, o corset também preparava-se para seu segundo desaparecimento da moda, considerado por alguns autores como definitivo, em meados dos anos 1910.

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Figura 15. Panorama do desenvolvimento do corset, dos stays de 1780 (V&A:T.172-1914) às alternativas consideradas mais saudáveis, como o corset confeccionado em tela de algodão, de 1890 (V&A:T.234-1968) ou o ribbon corset, de 1900 (V&A:T.18-1958), composto apenas por fitas de seda acetinada. Da mesma maneira que nos mostra o panorama da crinolina, também o corset apresenta uma diminuição gradual de sua pele, que tornase cada vez mais aberta. Fotografias: Victoria & Albert Collection e “Underwear Fashion in Detail”.

Figura 16. Spoon busk contemporâneo, confeccionado em chapas, ganchos e pinos de aço inoxidável e, ao lado, barbatana flat metálica. Destaque para a curvatura da porção inferior do busk, responsável pelo desnível e realce do baixo abdominal. Imagem: Wikimedia Commons.

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O nome spoon busk, ou busk colher, refere-se à forma da chapa, em voga no século XIX, que lembra uma colher tanto em sua frontalidade – mais estreito no alto, e abrindo-se em forma de gota no baixo ventre – quando no ângulo oblíquo/indireto – a curvatura longitudinal da chapa recobre o baixo ventre, como se estivesse, de fato, colocando-o em uma colher. Além de reiterar o ponto de vista indireto, já exaustivamente mencionado neste item, na visão frontal direta, o spoon busk aparece como metonímia do traço plástico conferido ao corpo: mais estreito no alto, mais aberto e arredondado a partir de abaixo da cinutra. Na visão indireta do corset, é possível igualmente apreender que o desenho do busk contribui para formar a frente mais lisa, manifestada na parte superior do vestido. A pressão exercida pelo corset na cintura – em 360o, e não apenas lateralmente, como observado nos stays – cria um desnível ao longo de toda a linha da cintura, enfatizando tanto a curva da lombar – que por sua vez será realçada pela crinolina – quanto aquela do baixo ventre. Estes dois pontos serão, por sua vez, realçados no vestido: a traseira, com mais força, pelas setas do corpete e pelo evidente drapeado, e na frente, pelos babados da saia e da anágua. A ação do corset, portanto, encontra-se igualmente inscrita em um uso pressuposto de formar um corpo para um vestido. Neste caso, o desenho de corpo demandado é aquele de uma ênfase na parte inferior, no baixo ventre e principalmente na lombar, garantida pela constrição de toda a circunferência da cintura, e igualmente pela modelagem mais longa, que confere um desenho arredondado ao quadril. No alto, o corset de corte midbust, ou até o meio do busto, interrompe sua modelagem na altura dos mamilos. Sobre este decote, os seios “caem”, preenchendo o espaço do corset, sem constringí-los para que fiquem retos. A impressão de frente “plana” é garantida, por sua vez, pelo desnível da bacia, visível na figura 11: esta forma de modelagem, conhecida como “vitoriana”, empurra a cintura para trás, promovendo uma báscula da bacia, que projeta-se levemente para a frente, criando a impressão de que toda a parte superior encontra-se projetada para trás. Desta maneira, seria possível interpretar que a necessidade do volume traseiro, pelo uso da crinolina, aparece como um ponto de equilíbrio: com a bacia projetada para a frente, um volume “negativo” é criado nas costas, e precisa ser preenchido por outro objeto, no caso a crinolina. Retornando assim ao conjunto completo, notamos que a crinolina aparece como preenchimento de uma ausência do corpo, criada pela modelagem do corset. O corset colocase, assim, como “regente” do conjunto, e a necessidade da crinolina é criada por sua própria ação. 68

No que toca a forma conferida ao corpo feminino, no entanto, é possível ler a báscula da bacia para a frente, complementada pelo volume protuberante e arredondado nas costas, como a criação de uma silhueta inversa àquela retratada pelo desenho de van Spiegel (figura 2), que delineia a anatomia do corpo feminino gestante. Ao invés de realçar as características admiradas e consideradas eufóricas, justamente por sua ligação ao corpo prenhe, esta roupa de baixo inverte o desenho do corpo feminino em gestação, negando o investimento destes valores em seu arranjo plástico. O conjunto corset, crinolina e vestido é unido por diversas isotopias, dentre as quais a mais forte é aquela da morte: a sugestão do ferimento por perfuração perpassa todos os componentes deste traje, seja nas setas do corpete, nos arames da crinolina que perpassam as fitas de algodão ou nas fendas e nos vazados requeridos para a aplicação do busk. Da mesma forma, a cor vermelha perpassa todas as peças, seja no uso das matérias tecidas, seja no uso do aço, cuja cor, na natureza, é avermelhada. Por outro lado, na própria nomeação da crinolina, encontra-se o caráter sobrenatural da ação deste tipo de roupa de baixo – a sustentação de volumes não realistas por meio de estruturas “invisíveis”, guardadas no interior da roupa. A mesma nomeação, ao mesmo tempo, traz em seu significado o processo gradual de morte, atravessado pelas crinolinas desde seu auge, em meados do século XIX, que é igualmente o processo gradual de morte do corset tradicional, que intensifica-se a partir da invenção do split busk, que provoca uma cisão do corset em dois, a partir da qual sua estrutura passa a ser aparente, como uma espécie de fratura exposta. Após esta intervenção, o corset se transformou com tamanha intensidade e rapidez, que a vigência das tendências de silhueta dentro da moda tornou-se cada vez mais curta: uma ferida inicial no arranjo uno e impenetrável dos stays, em voga por mais de dois séculos, que permitiu uma aceleração do desenvolvimento do mercado da constrição do corpo na velocidade de décadas, a partir de meados do século XIX. Esta ferida é reiterada no sentido completo do traje, enquanto uma primeira ferida no papel temático feminino centrado na procriação e na fertilidade. Em lugar de realçar as características plásticas que homologam-se a tais valores, no plano do conteúdo, a roupa de baixo e o vestido invertem as hierarquias tradicionais do corpo, conferindo à silhueta novas relações de visibilidade, indicando uma transformação da expressão e do conteúdo do feminino, que passa a ser revestido de novos valores, da ordem da independência e da emancipação. 69

II.3. O início século XX

Figura 17. House of Rouff Tea Gown, 1900. Vestido construído em peça única, confeccionado em adamascado bordado com vidro, linha metálica e contas, com renda e tule bordados. O nome tea gown, em tradução livre, significa “vestido para o chá”, originalmente idealizado, na década de 1890, para o convívio íntimo. A partir do início do século XX, contudo, este mesmo modelo foi tornando-se mais sofisticado, como é o caso desta unidade específica, e tornou-se uma tendência de moda também voltada para ocasiões mais formais do que um encontro para o chá. Imagem: Victoria&Albert Collection. V&A:T.87-1991.

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A configuração de corpo do início do século XX começa a delinear-se em torno de dois importantes valores: o conforto e a saúde. É neste cenário que este vestido nomeado tea gown, vestido para o chá, aparece: primeiramente, no final do século XIX, como uma vestimenta doméstica, própria para encontros apenas com os mais íntimos e, em seguida, desenvolvendose em versões cada vez mais elaboradas, apropriadas não apenas para a sociabilidade no lar, mas para aparições em eventos mais formais. Este traje, portanto, surge como uma saída confortável, que distancia-se do visual hiperproduzido e construído do final do século XIX, mas é rapidamente assimilado como tendência de moda. O vestido escolhido como emblema desta década (figura 17), presentifica de forma exemplar a união destas duas fases deste traje: suas linhas, bem como o aspecto de lingerie, conferido pelos babados e pela transparência, homologam-se ao valor do conforto, ao passo que a nobreza dos tecidos, aliada ao esmero do bordado em pedrarias, bem presentifica seu uso enquanto traje de festa, destinado a ser visto em sociedade, e não apenas no aconchego dos amigos mais íntimos, familiares. À primeira vista, o arranjo plástico retoma a frontalidade central do traje à francesa: a profusão de bordados executados em materiais nobres (contas de vidro e fios metálicos), aliados ao emolduramento deste painel central pela renda bordada e adornada com babados, podem ser lidos como uma topohierarquização deste quadrante do traje. Igualmente, ele retoma a capa com cauda, que delimita um afastamento dos sujeitos que aproximam-se pelas costas. Ao mesmo tempo, no entanto, este tea gown não apresenta os mesmos vazios por onde os outros sujeitos são convidados a penetrar, a inter-agir: o decote é alto, e a mesma moldura de babados, que confere visibilidade ao painel bordado, refecha o pescoço e a cabeça, prolongando-se e saltando do desenho do vestido como um relevo armado, que proteje a parte superior do colo. A bainha tampouco é suspensa, como o era no traje à francesa, interditando a entrada de outro corpo a partir deste espaço. No entanto, estes limites, a cauda e a gola, são transparentes, ao contrário das sólidas e opacas fronteiras da capa do traje à francesa, ou da gola e das mangas do vestido de 1880. Existe um limite, uma interdição, mas que não é formada por linhas duras e rígidas, e sim por um cromatismo e materialidade que manifestam-se por meio da gradação. O mesmo ocorre nas mangas: a matéria rendada aparece primeiramente num franzido, fechado e volumoso, 71

mas que abre-se, a partir dos cotovelos, em pontas que escorrem, criando um efeito de sentido de continuidade com os braços. Tal traje, portanto, coloca-se como uma espécie de termo neutro (GREIMAS & COURTÉS, 2012), nem traje à francesa, nem vestido de 1880. Apesar de reiterar traços plásticos de ambos, estes aparecem com sentidos reescritos, que não reenviam mais aos regimes de visibilidade do querer ser visto ou querer não ser visto, muito marcados nos vestidos de 1775 e 1880. A partir da profusão de babados no alto, em torno do pescoço, que dilui-se em direção ao baixo, é possível apreender que uma maior importância é conferida à parte superior: diferente dos vestidos de 1775 e 1880, a visibilidade mais privilegiada é aquela conferida ao alto do torso, ao peito, e não mais ao baixo. Seguindo a faixa bordada, que atravessa o corpo do alto do colo ao chão, não há nenhum desenho que construa um vazio na região sexual. Pelo contrário: as linhas da renda bordada, recortada em bicos, formam triângulos que levam o olhar para o alto, apontando para as mangas e para os babados. Ao mesmo tempo, a aplicação da faixa bordada, em lugar de conferir ao quadrante frontal central o efeito de vazio ou cavidade, atribui a este ponto uma topologia convexa, positiva, que se ostenta, se sobressai em relação ao tecido leve que o emoldura. A falta manifestada de maneira evidente no traje à francesa e negada (e portanto enunciada, ainda que negativamente) no traje de 1880, torna-se um elemento ausente: a mulher que traja este vestido não está em busca de algo que preencha um vazio, mas sim quer ser vista no alto, do busto para cima. O foco da topohierarquia é deslocado do baixo, outrora construído pelas crinolinas, para o alto, enfatizado pela tendência de corpo construída pelos corsets de frente reta, que conferem ao tronco um desenho que pende para a frente, abrindo o peito e o abdome, que tornam-se mais pronunciados. A interação proposta neste traje, portanto, distancia-se daquelas expressas pela sintaxe da falta, para manifestar um feminino que já encontra-se conjunto aos seus objetos de valor. Ou, ao menos, os objetos de valor manifestados nos outros trajes – a necessidade do encontro com aquele que preencherá um vazio, por meio do casamento e da concepção – não encontram-se presentes nesta configuração, revelando que a sociabilidade proposta por este vestido não é da ordem da busca por um parceiro, mas de outras formas de interação social. Este deslocamento da atenção para o alto também é emblemática do deslocamento da atenção da procriação num contexto social maior. Se no século XVIII o único papel da mulher 72

na sociedade era aquele de procriar, no início do século XX as mulheres encontram-se em um momento de maior emancipação, inclusive financeira. O acesso à educação é maior, e as mulheres pouco a pouco ganham um espaço no mercado de trabalho, em profissões outrora reservadas aos homens, como o direito e a medicina. Nas classes menos abastadas, as mulheres igualmente trabalham em diversos setores, como nas fábricas, sobretudo na indústria têxtil. Algumas, da mesma maneira, concentram-se na política, e abarcam a primeira onda feminista do século XX, que foi responsável pela luta pela igualdade de direitos civis (BEAUVOIR, 1976), como o direito ao voto.

II.3.1. Straight Front ou S-bend: O Corset Saudável

Figura 18. Corset, 1900. Confeccionado em seda, barbatanas de baleia e split busk de aço, com cintura medindo 62 centímetros, quando completamente fechado. Este corset apresenta uma modelagem típica do início do século XX, conhecida como Straight Front ou S-bend, devido, respectivamente, à modelagem reta conferida ao abdome (diferente do desenho arredondado atribuído ao ventre pelo spook busk) e à curva em forma de “S” proporcionada à coluna, como consequência do achatamento da parte frontal do torso. A invenção deste modelo é creditada à corsetière francesa Ignès Gaches-Sarraute, que possuía formação em medicina e, por este motivo, foi concebido como uma alternativa “saudável” ao corset do século XIX: acreditava-se, então, que a frente reta não comprimia os órgãos (e assim evitando seu suposto deslocamento no interior do ventre, como retratado pela figura 3), ao mesmo tempo em que facilitava a respiração. Atualmente, no entanto, é considerado igualmente prejudicial não aos órgãos, mas à postura e à coluna, cuja lordose da lombar torna-se excessivamente pronunciada pelo uso deste modelo. Imagem: Victoria & Albert Collection. V&A:T.67-1938.

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A silhueta do início do século XX, de frente reta, peito projetado e sem destaque para os quadris, demandou uma grande revolução na indústria de corsets. Os produtos da década de 1900 apareciam, desta maneira, como oposições violentas à silhueta em voga, mais arredondada, em um confronto que estabelecia-se, quase sempre, como um embate entre passado e futuro. Como vimos na análise do vestido, este progresso rumo à “silhueta do futuro” é marcado pelo deslocamento da topohierarquia do baixo – lugar da reprodução, da fertilidade – para o alto – domínio até então pertencente à esfera masculina. Esta mudança na atribuição de valor ao corpo eliminou do vestuário feminino a já decadente crinolina, transformando o corset em protagonista da formação de uma silhueta adequada ao vestido em voga. Dado este contexto, não é à toa que esperava-se muito mais do que uma performance de modelagem deste corset do início de 1900: além de seu papel já estabelecido de formador de uma silhueta, o corset deveria promover uma constrição que não prejudicasse a saúde, que não danificasse os tecidos do corpo, que não constringisse os movimentos. Parece um paradoxo que os corsets deste período sejam, justamente, os mais longos da história: ainda que com promessas de saúde e bem estar, o corpo nunca esteve tão constrito, em peças que englobavam do alto dos seios ao início das coxas. Igualmente, a postura conferida ao corpo pelo S-bend é uma das mais antinaturais: o tronco extremamente projetado para a frente, com o abdome totalmente reto, compensa sua ação conferindo uma curvatura extrema à região lombar, produtora de hiperlordose que, certamente, provocava dores na coluna e no quadril após o uso prolongado. Ao peito aberto e projeto, contudo, é atribuída uma maior facilidade na respiração, e o abdome plano e esticado não produz a compressão e até mesmo deslocamento dos órgãos, tal como era acusado seu ancestral vitoriano, o corset do século XIX. Contradições à parte, nos primeiros anos do século XX o modelo foi um grande sucesso e moda absoluta. As publicidades destes corsets são exageradas, mas sua complexa modelagem é capaz de cumprir a prometida (e almejada) silhueta, com o tronco projetado para a frente e de peito aberto, com quadris estreitos garantidos pelos reforços nas laterais inferiores.

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Figura 19. Publicidade: Foster Hose Supporter, 1902. O anúncio do fabricante Foster presentifica a mencionada contraposição entre o passado, nos dizeres “Without the Foster” (sem o Foster), e o futuruo, “With the Foster” (com o Foster). A modificação da silhueta aparece de forma exagerada na ilustração, criando uma correspondência entre a mulher da direita, que usa o Foster e encontra-se em relação de proximidade com ele, sua gestualidade e a posição de seu corpo preenchendo os espaços vazios da silhueta da ilustração central. A mulher da esquerda, por sua vez, dotada da silhueta do século XIX, não encontra-se competencializada por este poderoso corset, e o desenho de seu corpo a coloca em posição de afastamento. A escolha dos lados, esquerda e direita, relaciona-se ainda à direção de leitura, colocando a silhueta de frente reta e tronco pronunciado para a frente em uma posição do futuro, olhando e estendendo a mão, indicando o Foster, ou acenando para a outra mulher, como que convidando-a a aderir à nova moda. Imagem: Bound & Determined.

Para produzir o efeito de sentido de destaque da parte superior do torso, o desenho deste corset nos revela a necessidade de um maior trabalho na parte inferior. Quando o quadril era modelado com o auxílio da crinolina, a ação do corset limitava-se à mesma parte superior do corpo, enquanto que os quadris permaneciam praticamente livres, apenas recobertos pelos objetos de aumento. O vestido mais rente à silhueta, no entanto, demanda um maior controle desta região, que passa a ser totalmente recoberta e reforçada.

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O não destaque da região sexual, apreendido no vestido, passa a aparecer na roupa de baixo como um controle ou “confinamento” da região sexual: para dar a ver uma silhueta que não confere destaque aos quadris, as mulheres passam a constringí-los e modelá-los (a partir do “S” da coluna). A precisão demandada por esta configuração de corpo aparece enunciada nas linhas da modelagem: ao invés dos tradicionais recortes verticais ou levemente oblíquos, este modelo de corset é cortado em complexos moldes, cujas costuras manifestam uma divisão mais anatômica do corpo. Há um “V” modelando e delimitando o espaço do peito, que corresponde-se com o “V” invertido na lateral, formador da modelagem do quadril. Ainda um outro “V” pode ser notado, na região da cintura frontal, que marca a divisão do corpo que ocorre neste ponto, a partir do qual o tronco projeta-se para a frente. Na lateral, costuras e pares de barbatana reforçam a modelagem do peito, forçando-o a mover-se para a frente, contribuindo para o realce pretendido. Abaixo, tiras de tecido e costuras reforçam a direção do quadril para dentro e para baixo, evitando o desenho arredondado da silhueta anterior. Também a topohierarquia da frente sobre as costas é retomada no desenho do corset, cujas linhas prolongam-se mais na frente e direcionam-se para fora, ao passo que, nas costas, sua área é diminuida e de desenho côncavo, convergente. Aliada à curvatura em “S” da coluna e à expansão do peito, esta modelagem proporciona a impressão de que a frente do corpo é maior, dilatada, e de que as costas são menores, contraídas. Na visão lateral, no entanto, é possível perceber que as duas “metades” do corpo são iguais, e que a dilatação e a contração são frutos de um efeito visual. A roupa de baixo, portanto, manifesta um sentido ainda virtualizado, que será atualizado no traje completo, onde os babados, as pedrarias e as mangas completarão os volumes necessários para que a frente e o alto permaneçam em maior destaque e ocupem um espaço maior do que os quadris e as pernas. Existe uma complexificação do fazer transformador do corset, que demanda uma fidelidade ao conjunto matérico analisado no item I.1.: o S-bend é construído em seda, reforçado com barbatanas de baleia, manifestando a recorrência do uso da matéria de origem animal, semelhante à matéria do corpo. Ao mesmo tempo, ele incorpora a inovação introduzida no século anterior, o uso da matéria metálica do split busk, que garante a abertura e fechamento frontal do corset. Apesar da requerida força e resistência da matéria de origem animal, exaltada nesta modelagem um tanto prolixa e anti-natural, é importante destacar o fundamental papel da costura na confecção deste corset. Ao invés de atuar, como nos modelos mais antigos, apenas na vertical e na oblíqua, e sempre em co-presença com a força estrutural 76

das barbatanas, no arranjo plástico desta modelagem muitas peças de molde são unidas à distância das barbatanas – como é o caso dos moldes em “V”, na altura dos seios e quadris – o que requer uma maior resistência da costura, que é obrigada a atuar, em alguns pontos, sem seu adjuvante estrutural. Ainda que realizado a partir das matérias tradicionais, este corset apresenta um leve distanciamento do papel temático, indicado por acordos diferenciados entre os papéis de estrutura e conexão. O domínio do corsetier sobre estas matérias é marcado, na medida em que seu (re)arranjo em novas configurações demonstra uma ousadia daquele que trabalha estes materiais. Esta audácia é reiterada na própria forma do corset, e igualmente na forma que ele confere ao corpo, ambas desafiando tanto o desenho original do corpo, quanto o desenho social e culturalmente estabelecido pelo uso do corset no século XVIII e XIX.

II.3.2. Underbust

Figura 20. Silk Ribbon Corset, 1906. Underbust típico do início do século XX, confeccionado apenas em fitas de seda (aspecto do qual deriva o nome ribbon, que pode significar “fita”), barbatanas e split busk, com cintura medindo aproximadamente 60 centímetros (24”), quando completamente fechado. Com a primeira aparição em

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meados do século XIX, o underbust – cuja nomeação significa “abaixo do busto” – entra na cena dos corsets primeiramente como uma alternativa mais confortável, para uso doméstico ou esportivo. A partir do início do século XX, os underbusts ganham frente reta e tornam-se corsets próprios para qualquer uso. A principal vantagem deste modelo é a liberdade do peito, dos seios e do quadril, permitindo não apenas uma maior mobilidade, mas um maior conforto. Imagem: Corsets and Crinolines.

Na década de 1900, o padrão até então vigente, de uma lingerie específica para um vestido específico, encontrava-se relativamente dissolvido. Isto ocorreu devido, principalmente, ao desenvolvimento do mercado de corsets e ao volume de novos modelos criados em um ritmo até então inédito. Atingir a mesma configuração de corpo, a silhueta mais reta e estreita demandada pelos vestidos mais rentes ao corpo, poderia ser tarefa para vários objetos diferentes, capazes de criar um mesmo efeito de sentido exterior, mas investidos de valores e competências muito diversos entre si, no interior do traje. Neste sentido, o uso do underbust aparece investido de valores que colocam-se em oposição àqueles manifestados pelo uso do S-bend, que conferia ao corpo uma silhueta marcada, de tronco pronunciado, por meio de uma precisa setorização do corpo que é quase anatômica. Sua complexidade encontra seu termo oposto neste corset simples, de dimensões reduzidas, confeccionado apenas com as matérias mais necessárias. Em seu cromatismo, este corset nos remete aos stays do século XVIII, confeccionados com a matéria em sua cor natural, crua. Em ambos os casos, o tom bege rosado reenvia à cor da própria pele caucasiana. No matérico, porém, as delicadas e macias fitas de seda deste underbust colocam-se como negação do rústico linho enrijecido com cola. Tratam-se de duas peles contraditórias: uma, rígida, firme e rústica, que proporciona a constrição do corpo pela força; outra, delicada, maleável e macia, que utiliza-se apenas da estrutura arranjada de forma eficiente, para criar uma modelagem eficaz, mas de maneira menos rude. Na forma, o underbust mantém a frente reta em voga, marcada principalmente pelo uso do split busk plano e pelo prolongamento dos bicos, de logo abaixo dos seios ao baixo ventre. Esta simples configuração é suficiente para criar a almejada curvatura da lombar, aplainando o ventre e projetando – de maneira menos pronunciada que o S-bend, evidentemente – o peito para a frente. Suas linhas mais curtas, no entanto, além de deixar o peito totalmente livre – e permitindo que sejam finalmente apreendidos enquanto seios – não comprime os quadris, os glúteos e permite uma mobilidade mais livre das pernas.

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Da mesma maneira, a matéria extremamente estésica escolhida como tecido de base deste corset, é a primeira que poderia ser aplicada diretamente sobre a pele, sem a necessidade do uso da camisole, que tinha como principal função proteger o corpo do algodão ou linho rústicos empregados como tecido de base. Este uso contudo permanece, sobretudo por razões culturais, e as mulheres continuaram a utilizar roupas de baixo entre o torso e o corset, mesmo quando estes tornaram-se mais macios. Se não o fizessem, no entanto, esta peça com certeza criaria um efeito de continuidade com a própria pele, fundindo-se ao corpo – sentido semelhante àquele almejado pelos modeladores contemporâneos, que serão abordados mais adiante neste trabalho. No lugar de separar o corpo para modelá-lo, como ocorre no corte do S-bend, os underbusts de fitas buscam unir-se ao corpo, deixando-o livre onde é possível, e concentrando sua ação apenas nos pontos necessários, visando construir uma silhueta com o mínimo esforço e desconforto. Dos quatro corsets analisados no recorte apresentado neste capítulo, este é, sem dúvida, o mais estésico: a matéria seda, de origem animal, proporciona o toque mais suave à pele. Dotada de resistência, ela permite a modelagem com um uso minimizado de estruturas, ao mesmo tempo em que confere uma transformação do corpo menos marcada, menos impositiva, respeitando a vontade dos tecidos do corpo. Apesar de formar uma configuração semelhante de corpo para o mesmo vestido, o underbust coloca-se em relação de oposição ao S-bend, no que toca a interação com o corpo que cada um destes corsets promove. Por mais libertadores que os valores manifestados pelo vestido possam ser, a sujeição do corpo a um padrão, apreendida do uso do S-bend, produz sentidos semelhantes à própria roupa de baixo do século XVIII. Trata-se de uma sujeição diferente, para fins que não encontram-se conformados ao papel temático feminino, mas que fortalecem o papel temático do próprio corset. No uso do underbust, contudo, há um sentido mais próximo àquele do vestido: ainda que ocorra a modelagem da silhueta, que não deixa de pressupor a conformação a um ideal esperado das mulheres, esta ocorre com uma maior liberdade do corpo, que pode ser lida como uma emancipação de alguns aspectos de seu desenho original – seios, quadris e glúteos nem aumentados, nem constritos, apenas presentes.

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II.4. Amarração

Optamos por iniciar nossa análise deste recorte a partir do exame dos vestidos, por entender que este é o ponto do traje no qual todas as performances são entrelaçadas. A performance do corset e da crinolina (quando presente) na formação de um parecer do corpo constituem a base da performance do vestido que, por sua vez, aparece como adjuvante da performance do corpo, a partir da qual o sujeito feminino constrói a totalidade de seu parecer vestimentar. Tal nos auxilia a postular a pertinência deste recorte enquanto formador de uma categoria regida pelo papel temático do corset. Se os objetos formadores da silhueta aparecem com um claro propósito de formar um corpo para um vestido específico, cuja performance, por sua vez, depende da formação correta deste corpo a partir destas lingeries, então sua ação encontra-se inscrita em uma isotopia que relaciona-se ao uso pressuposto: o do corset, aquele de modelar o tronco pela constrição, o da crinolina, o de construir um prolongamento do quadril ou dos glúteos. Da mesma maneira, vimos ao longo das descrições que as formas e a topologia dos três vestidos, enquanto articuladores do cromatismo e da matéria que os compõem, manifestam, mais que um simples parecer do corpo, um conjunto de normas, espécies de instruções da interação dos outros sujeitos, aqueles que compõem o entorno social do indivíduo, tais como a ordem de apreensão visual do traje, o espaço pessoal delimitado pela espacialidade da roupa, e a topohierarquia do corpo construída pelo vestido, por meio da valorização, através da visualidade atribuída, de áreas específicas do traje. No plano do conteúdo, estas valorizações exaltam valores de diferentes ordens que, por vezes, ressaltam o caráter isotópico do comportamento feminino esperado e, por outras, os negam. Iniciando nosso percurso pelo século XVIII, constatamos que não apenas o arranjo manifestado no traje à francesa homologa-se aos valores de “maternidade”, “fertilidade” e “procriação” como, em suas linhas, é precisada uma forma de aproximação que permite a proximidade frontal, e até mesmo a penetração do outro no espaço pessoal. No vestido de 1880, pelo contrário, ainda que seja possível apreender um traço plástico que reenvia a um “vazio” na frontalidade, notamos que o vestido não encoraja a aproximação por quaisquer direções, constituindo, apesar do espaço pessoal reduzido que ele delimita, uma interação pelo distanciamento. No quadrante mais hierarquizado, localizado nas costas, ao invés dos valores 80

de “vida” – procriação, concepção – encontramos os valores da “morte” – as lâminas, que parecem afiadas e apontadas para o outro, interditando sua aproximação. Delineia-se uma oposição de base entre estes dois vestidos, que marca uma passagem da conformidade entre o papel temático do corset e o papel temático feminino, à contrariedade entre estes dois papéis. Por um lado, o corset permanece em seu uso pressuposto, tal e qual a crinolina, que é aquele de construir um corpo para um vestido específico. A performance do vestido, no entanto, deixa de manifestar os valores da busca por um parceiro para a procriação para enunciar, ao contrário, um querer não ser visto enquanto parceira potencial, enquanto procriadora. Existe, da mesma maneira, um significativo fechamento do corpo, em comparação ao vestido de 1775, que é contraditório ao tamanho do espaço delimitado por um corpo e outro. No traje à francesa, há um espaço pessoal imenso, delimitado horizontalmente, nas laterais e nas costas, que opõe-se ao corpo que coloca-se como aberto e vazio, clamando pelo preenchimento destes espaços pelo outro. No traje de 1880, o reduzido espaço pessoal delimitado, que permitiria uma aproximação mais efetiva, revela um corpo encerrado em si mesmo, que permite ver apenas a cabeça, os pés e as mãos, e que em lugar das estratégicas aberturas, traz em si instrumentos de defesa, de proteção. Estes valores, por sua vez, são reiterados na análise do conjunto da roupa de baixo que compõe a silhueta demandada pelo desenho do vestido. No século XVIII, a combinação de elementos de origem vegetal e animal na confecção dos stays e da crinolina respeitam o arranjo que discutimos no capítulo I, que é muito próximo àquele do corpo, com a estrutura rígida abrigada no interior dos tecidos pele e músculos, presentificados pela matéria tecida do corset. O conjunto, quando vestido, assume uma configuração que manifesta-se enquanto um outro corpo sobre o corpo, que o constringe e aumenta nos pontos necessários. No conjunto da roupa de baixo de 1880, no entanto, a própria anatomia do corset e da crinolina aparece transformada, reescrita. A crinolina, com sua estrutura exposta, no lugar de conferir rigidez a uma pele reforçando-a, perfura-a, atravessa-a. A utilização do split busk igualmente expõe, no corset, a estrutura metálica que deveria estar confinada em seu interior, além de cingí-lo também em sua frontalidade. Ao invés de ser aberto e fechado pelos ligames da amarração, é a própria estrutura que passa a abrir-se e fechar-se, para marcar o momento de início e término de sua ação sobre o corpo – o vestir e despir. No terceiro vestido, há uma união de duas tendências de moda do mesmo período, que é formadora de um termo neutro, composto pela combinação dos dois termos subcontrários, 81

presentificados pelos dois corsets analisados. A separação entre estas duas tendências – o tea gown idealizado para o conforto doméstico, e aquele destinado às aparições públicas – é dada pela opção da roupa de baixo que construirá o corpo. No corset S-bend, há fortes valores que reenviam ao contrato de manipulação, mais pertinente ao segundo uso do vestido, ao passo que no underbust a primeira característica idealizada para o tea gown é reforçada. Em ambos os casos, o vestido coloca-se como contraditório da oposição de base, uma vez que combina a delimitação de um espaço pessoal ao deslocamento sua topohierarquia para o alto, chamando a atenção do enunciatário, aquele que apreende o traje, para o quadrante frontal superior. Ao mesmo tempo, não há nenhum resquício da valorização da região do útero e do sexo como ponto de visibilidade privilegiada, mas a profusão de adornos no quadrante centro-frontal aparece como prolongamento da região de visibilidade mais marcada, que é aquela do busto. Tal constatação, aliada ao desaparecimento da crinolina e à possibilidade de que o mesmo corpo seja construído por lingeries diferentes, permite reconstruir o sentido de um enfraquecimento do papel temático do corset, e da negação daquele da crinolina. O mesmo ocorre com a mulher. Em 1880, ainda que de forma contraditória, o papel temático feminino encontra-se presente no vestido. A ausência de hierarquização do baixo ventre, no entanto, enuncia a oposição a este papel. Neste vestido, uma emancipação feminina mais marcada aparece, o que elimina do traje todos os traços que possam remeter aos valores de procriação. Se em 1880 a mulher precisa armar-se contra este papel, manifestando a contrariedade a ele, no vestido de 1900 este algorítimo de comportamento feminino encontra-se já ausente, para permitir a construção de um novo papel que relaciona-se mais àquele dos homens. Em lugar de literalmente armar-se, a mulher simplesmente descontrói seu quadril e suas ancas, para construir o peito e os ombros, por meio das mangas franzidas, da gola, e da ampla e projetada frente dos corsets S-bend. O compromisso do feminino com o papel temático do vestido, por sua vez, separa as duas tendências nele unidas. O uso do S-bend, que confere ao corpo não apenas uma transformação mais radical de seu desenho, é mais aproximado do papel temático do corset, e consequentemente do vestido, da moda, do que o uso do underbust, reconhecido até a atualidade como uma forma menos constritiva do corset. Neste segundo caso, a autonomia do formato original do corpo é muito maior: do torso completamente modelado, marca do S82

bend, o corpo que traja um underbust passa a ser constrito apenas na cintura, deixando livres os quadris e os seios.

Figura 21. Quadrado dos usos tradicionais do corset.

Em um mesmo contexto da moda, em que os corsets e outras lingeries formadoras do corpo aparecem investidas de papéis temáticos, é possível apreender que o feminino, ao contrário, desenvolve-se em formas de interação outras. Os trajes – que a partir do século XIX passam a ser desenhados cada vez mais por mulheres, diluindo a hegemonia masculina na profissão de alfaiate e corsetier – deixam de manifestar aquilo o que os homens, sexo oposto e parceiros em potencial, desejam ver, para manifestar valores da ordem da própria vontade de emancipação em seu contexto social. Neste sentido, a sujeição do corpo manifestada no termo subcontrário, pelo uso do corset S-bend, é uma sujeição que não relaciona-se ao querer fazerse ver como esposa em potencial, mas com a adesão a um parecer do corpo que é dado por outros destinadores – os profissionais do traje, as tendências apreendidas nas revistas de moda. Nestas passagens, o próprio conceito de moda é fortalecido, uma vez que deixa de expressar uma única faceta do sujeito, aquela relacionada à procriação, para permitir uma expressão mais livre de si e dos próprios anseios. Por outro lado, o distanciamento do papel temático é produtor de outras interações que, segundo Landowski (2005), abrigam em si um risco aumentado da relação entre os 83

sujeitos. Em outras palavras, deixar de expressar seus atributos enquanto parceira potencial coloca em risco a própria possibilidade do enquadrar-se neste papel feminino. Ao expressar um maior sentido de emancipação por meio da roupa, a mulher constrói para si um parecer que cria relações de não complementaridade entre sua manifestação plástica e o comportamento dela esperado em seu entorno social. Tal contradição confere um risco de não pertencimento ao próprio contexto, mas que, por outro lado, é o cerne da própria revolução: apenas pela oposição e negação das estruturas estabelecidas é que uma mudança substancial pode ser produzida. Uma vez que o traje contém em si o código de conduta e interação social, não apenas é de se esperar que tal transformação manifeste-se na roupa, como é possível apreender que, a partir de meados do século XIX – data marcada por Valerie Steele como o início de um movimento de emancipação financeira das mulheres (STEELE, 2001) – as transformações da moda sejam cada vez mais velozes e progressivamente radicais. A eliminação da crinolina aparece, assim, como um primeiro gatilho da transformação do vestuário feminino que é, por sua vez, articulador de fortes transformações do papel da mulher na sociedade.

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III. O corset como destinador do corpo

Como explicitado no capítulo I, optamos por manter neste trabalho o vocábulo “corset” para referirmo-nos também a outros objetos, que não são mais chamados popularmente de corsets, apesar de compartilharem o mesmo uso pressuposto e uma anatomia semelhante. A partir dos anos 1920, os tecidos elásticos descobertos e patenteados por volta de 1820 (Cf. LYNN, 2010) passaram a ser empregados na construção de lingeries chamadas de girdle (cinta), mas que ainda possuíam estruturas rígidas em seus arranjos, promovendo uma ação semelhante àquela do corset tradicional. Apesar de fabricadas exaustivamente nos anos 1930-50, este tipo de lingerie não atingiu o máximo de sua eficiência antes dos anos 1990, quando houve um grande investimento do mercado nesta direção. Em que diferem as duas nomeações, “corset” e “girdle”? No dicionário Oxford, encontramos a seguinte definição: “[...] a garment worn by women to improve the figure. A girdle fits closely round the body under other clothes, and extends from the waist to the thigh.”9 A definição não difere muito daquela do corset, analisada no início deste trabalho: a cinta deve produzir uma constrição em torno do corpo que proporciona a transformação da silhueta em uma versão “aperfeiçoada”, “melhorada”, marcada pelo uso do verbo improve. O que a definição deixa de lado, no entanto, são as particularidades matéricas – o uso de barbatanas de baleia, lâminas metálicas ou espartilhos – confirmadas pela definição de “cinta” do dicionário Houaiss da língua portuguesa: “[...] faixa para apertar a cintura [...] roupa íntima, ger. de tecido elástico, que cinge estreitamente quadris, ventre e cintura, para adelgaçar ou modelar as formas [...]”. A menção dos tecidos elásticos, nesta definição, confirma que a passagem de um vocábulo a outro enuncia os avanços tecnológicos matéricos em torno desta peça. A cinta, no entanto, não deixa de ser um corset: ela coloca-se igualmente como um sujeito dotado de um fazer que transforma o corpo pela constrição, com o intuito de conformá-lo a um ideal de corpo almejado. Esta constatação é mais evidente no que toca a nomeação mais contemporânea da cinta, shaper, que é o nome dado à ferramenta que modela e afia o metal ou a madeira, e é adotada na língua portuguesa também como modelador. Nesta nomeação, a exaltação da peça de roupa enquanto sujeito competente atinge seu máximo: o 9 “[...] uma peça de roupa vestida pelas mulheres para melhorar a figura. Uma cinta ajusta-se estreitamente em torno do corpo por baixo das roupas, e estende-se da cintura à coxa.” (trad. nossa).

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corset torna-se uma ferramenta capaz de esculpir o corpo, modelando-o no formato almejado. O caráter objetal, “ferramenta”, entra em contradição com a ação esperada desta peça de roupa, que é aquela do “escultor”, que não possui apenas um fazer mecânico, mas possui gênio, é um artista. Esta nomeação manifesta-se, no século XXI, em diferentes configurações, todas elas elásticas, com ou sem estruturas rígidas: bermudas, bodies, macaquinhos, calças, vestidos, saias. Ao contrário do corset tradicional, cuja performance é direcionada à transformação principalmente da parte superior do torso, os atos de modelagem dos shapers estendem-se às demais regiões do corpo: quadris, culotes, glúteos e até mesmo às pernas. O papel temático de formar o corpo para o vestido não pode mais ser identificado, e dá lugar a um formar o corpo de acordo com a vontade do sujeito, ou com a sua necessidade de constrição. Por um lado, quando investido de um papel temático, o corset é formador de corpos iguais, algorítimos de silhuetas formadoras de uma tendência de moda cristalizada. Estes corsets elásticos, por outro lado, são modalizados de acordo com o sujeito corpo que buscam manipular: para cada dever ser do corpo, existe um saber fazer do modelador. Se a interação por programação era fundada em uma regularidade simbólica do papel temático, na qual os comportamentos de cada sujeito – seja o corset, seja a mulher – mantêmse dentro do previsível, na interação por manipulação um importante aspecto é introduzido na interação: a motivação (LANDOWSKI, 2005). Fundado em um fazer-querer, este regime realça a inevitabilidade da mudança do nome da peça: a palavra “corset” (ou stays, ou espartilho) vem investida de diversos valores associados ao papel temático, que vão da constrição excessiva (e até mesmo violenta), da transformação radical aos mitos de “prisão feminina” e “objeto de tortura”. A mudança do nome para girdle ou shaper é capaz de manifestar a mesma ação de modelagem do corpo, no entanto livre dos valores disfóricos contidos na mitologia da palavra “corset”. Como vimos, porém, o caráter quase objetal do corpo – que torna-se material de trabalho de um escultor exterior a ele – é muito melhor presentificado pela palavra “shaper”, modelador, do que pela palavra “corset”. Este estatuto, no entanto, é almejado, e faz parte do contrato fiduciário (GREIMAS, 1983) firmado entre corset e corpo: o sujeito corpo deseja a transformação que apenas o corset é capaz de promover, e em nome deste objeto de valor – a silhueta ideal – o corpo aceita seu papel de sujeito de estado, aquele que sofrerá o ato, a transformação imposta pelo outro sujeito, o corset. 86

No contexto em que se deu um segundo “abandono do corset”, que foi o abandono do soutien e da cinta nos anos 1960, é natural que diversas mulheres resistam à adesão ao corset tradicional, a não ser em situações de fetiche, ou da fantasia, da brincadeira erótica. A adesão ao modelador, no entanto, é um fenômeno admitido até mesmo por celebridades no red carpet, eternizando a pergunta “Are you wearing Spanx10 ?” nas entrevistas para tablóides e programas de televisão especializados em fofocas. O sucesso mercadológico destas peças pode ser atribuído, em grande parte, a esta errônea separação entre “corset” e “modelador”, fruto de um contrato veridictório (GREIMAS, 1983) por parte dos fabricantes, acerca da inovação destas peças. Apesar de servirem ao mesmo propósito, ou ao mesmo uso pressuposto, estes novos corsets elásticos apresentam-se como outra coisa. Sua ação sobre o corpo, no entanto, é a mesma, e a promessa de um maior conforto na ação de modelagem é, por vezes, duvidosa: a substituição da matéria natural vegetal – o linho, a seda, ou o algodão – pela matéria artificial, sintética – o elastano, o poliéster – produz um maior aquecimento (mas que é vendido como facilitador da queima de gorduras indesejáveis!), provocando sudorese e a diminuição da respiração da pele, que pode provocar alteração da cor e da textura da mesma após o uso prolongado. A maleabilidade do elástico, da mesma maneira, perde em eficiência, quando comparada à firmeza dos tecidos planos presentes no corset tradicional. No que os modeladores ganham, porém, é na possibilidade de dissimulação. O uso do corset é impossível de ser disfarçado sob o traje: não apenas a forma conferida ao corpo é única, inconfundível, como sua própria materialidade se faz notar, a não ser quando sobreposta por diversas camadas de roupa – o que ocultaria, no entanto, igualmente sua ação. Já os tecnológicos modeladores atuais não apenas são capazes de fazerem-se invisíveis, como são idealizados com este propósito. Seja na cor, seja na ausência de costuras e de estruturas rígidas, os shapers quando aplicados sobre o corpo tornam-se, de fato, uma segunda pele que, no exterior, confunde-se com a pele natural do corpo. Sob o vestido, estes competentes escultores ocultam-se, dando a ver um corpo “naturalmente modelado”, sem o auxílio de nenhum adjuvante. Como no conto da Cinderella, contudo, à meia noite o “feitiço” é quebrado, lembrando-nos que o acordo da silhueta “naturalmente perfeita” só é válido durante a ação do poderoso destinador por trás dela.

10 “Você está vestindo Spanx?”, em referência ao maior fabricante norte-americano de lingeries modeladoras.

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Um grande salto neste tipo de lingerie é, portanto, a presença da elasticidade aliada à ausência da estrutura rígida, permitindo uma modelagem mais discreta, invisível sob a roupa. Tal característica, no entanto, não elimina a “memória” do corset tradicional: ainda que a rigidez das barbatanas seja, por vezes, um elemento ausente, os shapers normalmente possuem recortes e costuras reforçadas semelhantes àqueles dos moldes tradicionais dos corsets, capazes de promover um direcionamento dos tecidos. Estas características desenvolvem de forma mais elaborada o caráter muscular do corset, atribuindo uma importância ao desenho do corpo em um padrão mais atlético, mais anatômico do que aquele do corset tradicional. Há uma complexificação da silhueta formada, que acompanha a complexificação da própria relação entre o corpo e o corset. Para que esta ação mais aprimorada sobre a silhueta possa ocorrer, é necessário que também os acordos e contratos selados entre corpo e corset manifestem-se em camadas mais profundas do sentido. Esta forma de ação, portanto, coloca em jogo não mais a segurança dos papéis temáticos já estabelecidos, mas um imbricado jogo de quereres de diversos sujeitos. Estas modalizações, por sua vez, abrem caminho para o desenrolar dos diferentes mecanismos de manipulação – sobretudo a sedução e a tentação (LANDOWSKI, 2005) – que levam ao estabelecimento do contrato de manipulação. A necessidade de que um contrato seja firmado, para que as performances de ambos os sujeitos possam ocorrer, permite a apreensão do risco envolvido nesta forma de interação: para que a performance do corset sobre o corpo possa ser realizada, é necessária a adesão do sujeito mulher a esta forma da constrição. Ao mesmo tempo, esta adesão depende da fidúcia na competência deste corset, por parte da mulher, como transformador da silhueta rechaçada naquela almejada, ideal. Firmado este contrato, o corset permanece enquanto actante “pele” que recobre a pele nua, tal e qual o corset tradicional, recompetencializando-a com um novo eidos. Mais do que um agir sobre o corpo, o regime de manipulação abriga uma inter-ação de fato: para que ambos os sujeitos sigam seus programas narrativos, é necessária a ação mútua de um sobre o outro. Esta bilateralidade da interação não ocorre apenas no contrato de compra de um modelador (e não outro), mas igualmente no vestir a peça: o corset só é capaz de transformar o corpo enquanto vestido sobre ele. A qualidade e a duração de sua performance dependem, portanto, do segundo sujeito da interação, a mulher, que pode decidir não mais usar o modelador, ou pode, ainda, vesti-lo de maneira incorreta. Estas decisões dependem, portanto, da capacidade do corset de persuadir a usuária quanto à necessidade de seu uso. A 88

mediação desta complexa interação ocorre por meio de um objeto de valor (GREIMAS, 1983; GREIMAS & COURTÉS, 2012), que é a silhueta ideal. Desta maneira, é o estado de privação do valor almejado, ou a disjunção da silhueta ideal, que motiva constantemente o sujeito mulher à adesão ao corset, que coloca-se na interação como portador deste valor almejado. É apenas por meio do corset que o estado de conjunção com esta silhueta pode ocorrer, realizando, no corpo, a performance “transformação da silhueta” e permitindo a conjunção do sujeito mulher ao seu objeto de valor.

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III.1. La Perla Shape Couture Underwire Bodysuit

Figura 22. La Perla Shape Couture (Underwire Bodysuit), 2011. Modelador confeccionado em Lycra® e tule elástico, com bojo sem costura e aros metálicos, comercializado em diversos tamanhos, do XS 11 ao XL. Uma das muitas peças da linha de modeladores da marca, conhecida por suas lingeries de luxo, que inclui também corselets, saias, bermudas e calcinhas modeladoras. Em seu website, o fabricante promete um “efeito modelador fascinante”, realçado pela aplicação da transparência e do refinado trabalho de costura. A peça conta ainda com abertura higiênica, que abre e fecha com colchetes, permitindo o uso diretamente sobre a pele, sem a necessidade do uso de outras lingeries. Imagem: Victoria & Albert Collection. V&A:T58-2012.

11 Tamanho estabelecido no sistema norte americano, “extra small”, equivalente ao “PP” nacinal, cuja medida da cintura natural é 60 centímetros.

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Apesar da distância cronológica e histórica entre este “macaquinho”, como a peça é popularmente conhecida no Brasil, e os conjuntos de roupa de baixo do século XVIII e XIX, há uma forte aproximação entre elas quando consideramos o fazer deste shaper, em relação à performance da dupla stays-hoopskirt (figura 7). Em ambos os casos, a área recoberta pela lingerie modeladora é a mesma – do alto dos seios ao início das coxas – e, apesar de construído em uma peça única, este bodysuit reenvia ao uso de três: o soutien, a cinta e a calcinha/bermuda. O domínio destas três peças de roupa, comuns à gaveta de roupas íntimas femininas desde os anos 1940, é bem marcado pelas linhas e cortes da modelagem, e pela alternância dos dois materiais, a Lycra® e o tule: no alto, o soutien aparece inclusive destacado, como se fosse uma peça separada e sobreposta; no centro, com predominância da matéria transparente, o “X” marca o local da cinta; e finalmente, embaixo, a calcinha/bermuda recobre a lateral do quadril e o púbis, lembrando a linha de um biquíni tipo “asa delta”, misturado ao short modelador. A união destas três peças, como ocorria no conjunto corset e crinolina do século XVIII, é marcada por linhas descontínuas que se unem, encaixando-se: sobretudo embaixo, este detalhe é percebido pela costura em zigue zague, e pelo próprio zigue-zague formado pelo recorte da “calcinha”, formando um encaixe perfeito entre a Lycra® e o tule. No alto, no entanto, a quebra das linhas mais arredondadas é menos pronunciada e não produz uma união perfeita, marcada pelo um espaço vazio, em formato oval, entre a cinta e o soutien. O efeito de vazio, quando apreendido em relação ao efeito de sobreposição do soutien, confere destaque à região. O volume dos seios é valorizado por esta lingerie, primeiramente por meio da modelagem, mas também por destacá-los do restante do conjunto, devido ao desnível criado entre esta parte e o restante do modelador. Este destaque do soutien, bem como o vazio que sinaliza a transição não perfeita entre duas partes do modelador, é produtor de uma separação de dois propósitos da mesma peça: no alto, encontra-se o domínio da modelagem por aumento, enquanto que do soutien para baixo, concentra-se a região da modelagem por constrição. Há uma inversão do destaque conferido pelo aumento, em comparação ao recorte do corpus de corsets analisados no capítulo anterior: enquanto que no século XVIII e XIX o aumento do corpo concentrava-se no plano baixo, na região dos quadris e glúteos, esta cinta manifesta a valorização dos seios pelo aumento, opostos aos quadris constritos. 91

O centro mais privilegiado da visibilidade, no entanto, continua sendo a região da cintura, para onde as linhas do decote, do “X” central e da calcinha, carregam nosso olhar. O “X”, confeccionado na Lycra® mais firme, é rodeado pelo entrecruzamento de linhas que originam-se em diversos pontos do traje, e ao mesmo tempo aparece cercado pelo chamativo efeito de transparência. Sua porção superior, com linhas que iniciam-se no soutien, forma um bico em direção ao umbigo, que aparece como reiteração da própria linha do decote, conferindo ao conjunto superior um formato de “V”. Na porção inferior o mesmo pode ser observado, mas a correspondência é com o triângulo que recobre o púbis. Ainda uma terceira linha contribui para o destaque desta região, a costura vertical central que possui um efeito vazado, mostrando um pouco de pele, como é possível apreender mais claramente na peça confeccionada na cor preta.

Figura 23. La Perla Shape Couture na cor preta (uma das quatro opções de cores do modelo, que incluem dois tons de pele rosados e um de pele negra), detalhe do efeito vazado da costura central, costuras em zigue zague aparentes e abertura higiênica. Imagem: www.laperla.com

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O lugar mais hierarquizado deste corset, portanto, é a área em torno do “X” central, na qual concentra-se a maior profusão de detalhes, acabamentos e materiais, que arranjam-se em torno do “X”, conferindo visibilidade a ele. Neste lugar, misturam-se as duas matérias, a Lycra® que é mais rígida, e o tule que é macio e maleável. Homologando esta oposição matérica, entre rigidez e maciez, a uma possível oposição entre constrição e liberdade, o arranjo apreendido neste ponto do traje nos revela que o local que demanda uma modelagem constritiva não é a cintura “lateral”, como ocorria no século XVIII e início do XIX, mas sua região frontal, ou o abdome. As três linhas constritivas e reforçadas que cruzam-se no centro do torso – a linha vertical e as duas linhas que foram o “X” – conferem ao corpo uma divisão anatômica, que busca a criação de um efeito de 6 pack ou tanquinho, gírias comuns que referem-se ao abdome magro e de músculos tonificados, aparentes.

Figura 24. Shape Couture Underwire Bodysuit em um dos tons para a pele caucasiana, visão da frente e das costas, como anunciado na loja virtual da marca até 2013. Quando utilizado no tom de pele correto, que pode ser escolhido entre os muitos disponibilizados pela marca, o modelador adquire um efeito de quase invisibilidade sob a roupa, sobretudo nos locais construídos na matéria transparente. Imagem: www.laperla.com

A busca por tal efeito relaciona-se diretamente à ausência de um reforço lateral, ou qualquer outra característica da modelagem que vise a criação de uma redução e arredondamento da cintura, e à constrição do quadril e do culote, que encontram-se igualmente englobados pela matéria mais constritiva. O desenho almejado por este corpo é aquele de uma silhueta reta, 93

magra e musculosa, combinada ao aumento apenas dos seios, única característica propriamente feminina exaltada por este corset. Nas costas, uma outra valorização do corpo nos é revelada: a valorização do glúteo. Em lugar do “X”, formador da almejada “barriga definida”, há apenas um “V” que divide o corpo em dois, prolongando-se até a lateral das costas – e comprimindo a gordura que costuma acumular-se nesta região e que geralmente é visível em vestidos mais justos – e pressionando a região da lombar, conferindo visibilidade ao glúteo, que é totalmente englobado pela matéria mais constritiva. Um aspecto interessante da modelagem das costas é a costura reforçada logo abaixo do glúteo, que possui a função de empurrá-lo para cima, conferindo às costas um destaque deste ponto, igualmente pelo aumento. O “V”, desenhado na tira reforçada, faz a ligação das duas regiões destacadas pelo aumento, o seio e o glúteo, ambos englobados pela matéria mais firme. O que está acima desta linha (nas costas) e abaixo dela (na frente), deve ser constrito e diminuído, justamente para que estas duas regiões aumentadas pareçam maiores. As linhas da modelagem deste corset, portanto, dividem o corpo e mapeiam as regiões constritas e livres, aumentadas e diminuídas: os seios e os glúteos, englobados pela matéria firme, devem ser aumentados; a barriga, as coxas e as laterais das costas, englobadas pela mesma matéria, devem ser constritas, e o centro das costas, a cintura, a região acima e abaixo do umbigo, devem ser apenas contidas pela matéria mais maleável, o tule. Nesta configuração, chama a atenção que o púbis e o sexo, regiões que não demandam modelagem alguma, encontrem-se englobados pela matéria mais firme e constritiva. À excessão do aumento dos seios – e a própria maneira como o soutien desconecta-se do conjunto da modelagem, sobrepondo-se a ele – as características enaltecidas por este modelador são propriamente masculinas: a silhueta reta na lateral, sem quadris, mas com músculos abdominais e glúteos pronunciados. Constrói-se no corpo modelado por este corset uma isotopia de negação do feminino, que ocorre pela construção muscular que não é própriamente feminina, e pela constrição de características que o são, como as linhas arredondadas que formam a cintura, o baixo ventre e os quadris. Recobrir o púbis e o sexo com a mesma matéria que nega todas as formas fermininas é, portanto, uma forma mais literal de enunciar esta negação do feminino. Sobre o sexo é aplicado um “lacre”, que adquire um sentido de bloqueio, de interdição. As condições para o cumprimento de um papel temático feminino, facilitados e enaltecidos pelo traje à francesa 94

(figura 5), encontram-se ausentes. O ventre fecundo é transformado em abdome tonificado, e os quadris, outro símbolo da fertilidade, são negados e reduzidos. Finalmente, o local de manifestação da possibilidade de concepção e nascimento é refechado por uma dupla camada do tecido firme, o mesmo que “confina” todas as outras características do corpo relacionadas a esta função feminina. A transferência dos centros de atenção, do quadril para o abdome tonificado e para os seios aumentados, marca um deslocamento do papel feminino, que passa a negar a função única, ou ao menos principal, da procriação. O corpo feminino do século XXI é competencializado com um outro parecer, dotado de carcaterísticas mais masculinas, como a força muscular, e que deixa de manifestar a necessidade da conjunção com o outro, único meio de realizar o papel esperado das mulheres pela e na sociedade. A abertura destes limites é controlada não mais pela necessidade social – constituir uma família e procriar – ou do outro, o homem – produzir um herdeiro – mas pelas próprias necessidades, que regem o abrir e fechar dos colchetes localizados entre as pernas. Quando apreendido em relação ao corpo formado pelo traje à francesa, é possível afirmar que este corpo não quer ser visto a partir do destaque de suas características sexuais – os quadris e a visibilidade do baixo ventre. Ao contrário, no exterior do traje, o ponto mais destacado, provavelmente, será o seio, localizado no alto, levando o olhar do enunciatário para esta região. Ou ainda, este modelador produzirá um sentido de força muscular, característica propriamente masculina – sobretudo quando considerado o abismo entre este corpo, formado pelo Shape Couture, e o corpo feminino, redondo e abundante, dos desenhos de van Spiegel (figura 2). A mulher que opta por este tipo de modelador, portanto, aceita aderir a uma transformação completa de sua silhueta, que altera o sentido original de seu corpo. Ao abrir mão de suas características femininas, ela emancipa-se das obrigações sociais da maternidade para perseguir outro papel, que atualmente perpassa sobretudo as questões da carreira, para as quais a opção por ter filhos é geralmente colocada como um impedimento. O que este corset manifesta, portanto, é a redução e interdição dos lugares do corpo relacionados a este papel temático, que tem por consequência o redesenho do corpo feminino que afasta-o de seu desenho e sentido original. Por outro lado, não é mais possível, na década de 2010, discutir tal opção pela carreira e pela não-maternidade como uma ruptura, um “ato revolucionário”. Muito pelo contrário, 95

uma vez que a figura da “mulher intependente”, “poderosa”, financeira e profissionalmente emancipada, que equipara-se em tudo aos homens, aparece quase que como um novo papel temático feminino, no sentido de uma isotopia de comportamentos atualmente esperada da mulher: que ela priorize outros aspectos “emancipatórios” de sua vida, em detrimento do “sonho” da maternidade, da formação de uma família.

III.2. Agent Provocateur Corset

Figura 25. Agent Provocateur Corset, final de 1990, confeccionado a partir de base e forro de algodão, tecido exterior em cetim e viscose, decorado com rendas e laços, barbatanas espirais, split busk e ilhoses metálicos, ligas removíveis, com cintura medindo 65 cm (quando completamente fechado nas costas). As medidas da cintura desta peça confirmam que sua função não é aquela de constringir o torso, como nos sugere seu desenho lateral, mais reto do que os corsets tradicionais expostos até então (figuras 1, 9, 14, 18, 19 e 20). Trata-se, antes, de uma réplica de valor decorativo. Imagem: Victoria & Albert Collection. V&A:T.12-2002

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Figura 26. Desenho técnico do Agent Provocateur Corset, no qual é possível apreender detalhes que não foram disponibilizados nas fotografias do acervo do museu, como a modelagem e a amarração das costas. Imagem: Underwear Fashion in Detail.

Para o olhar de um não especialista, este corset poderia facilmente ter saído do quarto de vestir de uma distinta dama do século XIX. Trata-se, de fato, de um corset construído com os materiais corretos, e em cromatismo que faz referência direta à moda de cores fortes, com detalhes contrastantes, das lingeries da época. No entanto, é possível apreender imediatamente que, apesar da aparende rigidez e estrutura, falta algo a este modelo: a cintura pronunciada. O objetivo do uso deste corset, portanto, não pode ser comparado àquele das peças analisadas no capítulo anterior, uma vez que, apesar de conter todos os elementos matéricos necessários para uma formação constritiva da silhueta, o arranjo destas matérias não segue a modelagem, ou a forma, capaz de realizar um fazer transformador do corpo. Existe, portanto, apesar de uma complementaridade entre o formante matérico, topológico, e mesmo cromático, uma importante contradição entre o formante eidético dos dois corsets. 97

Figura 27. À esqueda, modelo de 1890 (V&A:T.738-1974) confeccionado nas mesmas cores e materiais semelhantes, mas com a medida da cintura 15 centímetros menor (50 cm, quando completamente fechado). O desenho arredondado da cintura e do baixo ventre, típicos do final do século XIX, igualmente contrastam com a frente reta e a cintura não marcada do modelo de 1990. Fotografias: Victoria & Albert Collection.

A tendência da confecção e comercialização de “corsets” não constritivos, mas que em tudo parecem-se com as peças do século XIX, foi extremamente difundida no final dos anos 1990 e início dos 2000, quando o corset foi exaustivamente enaltecido na moda, principalmente por meio de figurinos de filmes de grande circulação. Este caminho da moda, por sua vez, dividiu-se em dois. Um é aquele do gótico, que manifesta-se em filmes futuristas/ apocalípticos, como Matrix (1999) e Underworld (2003), nos quais as heroínas Trinity (Carrie Anne Moss) e Selene (Kate Beckinsale) aparecem vestindo corsets de couro ou vinil em cenas de ação. O outro caminho aparece nos filmes de moda de época ou cabaret, como Titanic (1997) e Moulin Rouge! (2001) – por sua vez seguido pelo tardio Burlesque (2010) – que arriscaram reconstruções de períodos históricos, como o final do século XIX e o início do XX, trazendo elaborados corsets para o guarda-roupas das personagens vividas por Kate Winslet e Nicole Kidman.

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De Mouling Rouge!, nos interessa mais que o filme em si, o video clipe da trilha do filme, “Lady Marmalade”, estrelado pelas cinco cantoras que participaram da versão atualizada do clássico do grupo Labelle, dos anos 1970. O clipe no qual Cristina Aguilera, Pink, Lil’ Kim e Mya aparecem como as atrações de um contemporâneo Moulin Rouge, conta com diversos figurinos (ao menos dois para cada cantora), compostos de corsets, soutiens, ligas e meias 7/8. O clipe conta atualmente com 98 milhões de views no youtube12, e brinca com a mistura de gêneros musicais e das etnias “correspondentes” a cada um deles: o rock (e a mulher branca, Pink), o pop (Christina Aguilera, latina), o r&b (Mya, afro descendente) e o rap (a mulher negra, Lil’ Kim). Em conjunto com a alternância de etnias – que presentificam a mistura entre o caucasiano, o ibérico, o latino e o africano, promovida pelas colonizações do passado e as imigrações do presente – e estilos musicais – os quatro estilos mais assíduos na música do final dos 1990 e início dos 2000 – há uma progressão na manifestação da sexualidade “pertinente” a cada uma destas etnias. Começando por uma insinuação mais delicada de Pink, que desenvolve-se em uma exuberância da latina Aguilera, somos transportados ao corpo sensual e sibilante da afrodescente, Mya, que, finalmente, termina na sexualidade escancarada, combinada ao esbanjar do dinheiro e à ostentação de jóias, da rapper negra Lil’ Kim. O grande tema deste clipe é o fetiche: aquele da lingerie de época, evidentemente, mas também o da mistura das raças, tratada como tabu, sobretudo nos Estados Unidos, até meados do século XX. A quebra desta interdição em intermináveis orgias, que misturam latinos, brancos e negros, aparece de maneira recorrente na literatura erótica do início do século XX (Cf. MILLER, 1985; NIN, 1978). Presentificada na imagem acima, a mistura entre a Europa e a África é produtora das diversas miscigenações que são, por sua vez, as formadoras do “Novo Mundo”. A nomeação dada à protagonista da letra da música, Creole Lady Marmalade, nos remete a este universo exótico. Transposta, nesta versão da música, para o Moulin Rouge, na canção original Lady Marmalade é encontrada em Old New Orleans, outro ícone da miscigenação nos Estados Unidos. Adjetivada como mocca chocolata, imaginamos uma mulher que não é nem negra, nem branca, mas mestiça, creole, cuja definição especifica, além

12 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=RQa7SvVCdZk

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da cor da pele proveniente do encontro das duas raças, a mistura linguística criada entre a língua materna e a do colonizador. Além da pele escura, incomum ao homem branco europeu, Lady Marmalade certamente possuía um sotaque tão exótico quanto sua cor e suas formas.

Figura 28. Performance das cantoras no 2000 MTV Movie Awards, com os mesmos figurinos utilizados no video clipe. Da esquerda para a direita: Pink, Lil’ Kim, Mya e Aguilera. Imagem: www.buzzworthy.mtv.com

Os corsets utilizados no figurino do clipe, no entanto, são falsos corsets, assim como o é o próprio corset da marca Agent Provocateur. Tratam-se, em todos os casos, de peças construídas com materiais semelhantes àqueles dos empregados no final do século XIX, mas que não promovem um fazer transformador do corpo. Estas peças apenas recobrem a silhueta, ajustando-se a ela, mas sem modificá-la, sem conferir um novo desenho. Seu arranjo cromático e matérico, no entanto, reenvia ao que Valerie Steele definiu como “o fetiche do corset de cetim” (STEELE, 2001), ou uma valorização erótica da roupa de baixo, inédita até o século XIX. Vários fetiches são presentificados por esta peça, produzida pelo fabricante Agent Provocateur, que é também conhecido pelas criações de lingeries luxuosas, tal e qual a marca 100

La Perla. A mistura das cores rosa e preto, que reenviam aos corsets do século XIX, a renda preta, a cinta liga (que pressupõe as meias 7/8 de seda, em desuso cotidiano após a invenção da pudica meia calça) e, por último mas não com menor importância, a amarração e ajuste pelas costas. Na era das lingeries constritivas beges e invisíveis, vestir um corset cor de rosa e preto, amarrado pelas costas, decorado com laços, fitas, ligas e meias de seda é, certamente, um ato capaz de transportar a mulher contemporânea para um toucador do século XIX, cobrindo-se com a sensualidade desta mulher “de outros tempos” – e cuja roupa de baixo, como vimos anteriormente, conferia ao corpo uma topologia que privilegiava, justamente, este enaltecimento de suas características mais femininas. As lingeries, no entanto, localizam-se em um domínio do que não deve ser visto, algo que se deve ocultar. Até meados do século XIX, tal não era mostrado sequer ao parceiro, ao marido, e uma dama se mostraria em roupas de baixo somente àquelas que participavam do ato de vestir e despir. Com o embelezamento dos corsets, o homem começa a participar deste ato (STEELE, 2001), e pela primeira vez um valor erótico é atribuído a estas peças. A forma de amarrar o corset, inclusive, poderia torna-se uma espécie de “assinatura” do homem que despiu e vestiu a mulher – como é retratado nas charges de humor do século XIX, em muitas das quais o marido surpreende-se com um corset amarrado de maneira diversa, indicando que sua mulher esteve com outro. Querer ver um corset, portanto, constitui um ato de voyeurismo, ou a combinação entre um querer ver e um querer não ser visto (LANDOWSKI, 1992), regime de visibilidade marcado pela contrariedade entre o querer dos dois sujeitos. Esta mesma contrariedade foi apreendida no traje de 1880 (figura 10) mas aparece, neste corset, investida de outros valores. O querer ver lingeries torna-se, aqui, um fetiche, na medida em que tal ato constitui uma transgressão do decoro que, por sua vez, possui altíssimo valor erótico. O que dizer, no entanto, do querer ver uma lingerie que quer ser vista? No século XXI, o corset tradicional não apresenta-se como uma alternativa viável de modelagem do corpo: seu volume seria facilmente percebido por baixo das roupas justas e de tecidos leves utilizadas atualmente, assim como, no caso desta peça em particular, suas cores se fariam ver. O propósito deste corset, no entanto, não é aquele de modelar o corpo, como nos revela sua forma e suas medidas. Restam duas alternativas que expliquem seu uso, e ambas distanciamse da ação esperada do corset tradicional. 101

A primeira é aquela da conquista: uma lingerie vestida especialmente para um encontro, muito provavelmente minutos antes da interação sexual. Ao invés de permitir ao parceiro “descobrir” esta lingerie, a mulher aparece já vestindo-a. O despí-la, promovendo a descoberta do próprio corpo nu, é o que adquire o valor de jogo erótico: o “libertar” o corpo do corset – que é vestido enquanto metáfora, uma vez que não promove uma constrição real – permitindo a interação sexual, a partir deste desnudamento. Esta peça, no entanto, possui ligas removíveis, que podem ser posicionadas ou não abaixo dos laços de cetim na frente, e na lateral. Isto indica, por um lado, que este “corset” pode ser usado com ou sem meias. Por outro, ele permite um uso desta mesma peça de uma outra maneira, como um corpete, uma parte de cima qualquer que pode ser utilizada com uma calça ou saia, como parte de um traje exterior, como era moda na mesma época em que este modelo foi lançado. Foi desta maneira, aliás, que o corset nos foi apresentado como parte das personagens Trinity e Selene: um corset vestido por fora da roupa, por cima de um conjunto chamado catsuit, que consiste em blusa de gola alta e calça comprida combinadas em uma peça única. O uso misto permitido, portanto, distancia este corset de Agent Provocateur, emblema de uma tendência dos anos 1990-2000, de todos os possíveis e previsíveis usos esperados de um corset: tanto seu papel de modelador da silhueta, quanto sua característica de roupa de baixo são aspectos ausentes desta réplica contemporânea do corset tradicional.

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III.3. TC Fine Intimates Slip

Figura 29. TC Fine Intimates Slip – Strapless Bra, 2013. Vestido modelador sem costuras, confeccionado em tecido misto de nylon, elastano, algodão e poliéster, com soutien de bojo sem costura e aros metálicos, alças removíveis, comercializado em diversos tamanhos, do 34 ao 40 (tamanhos europeus). Acabamento superior e inferior com a tecnologia Wonderful Edge (“bainha maravilhosa”), que consiste em uma tira de silicone aplicada nas pontas da peça que aderem à pele, impedindo o deslocamento da lingerie durante os movimentos. Disponível nas cores preto e pele, e em três intensidades de compressão, Just Enough® Control (“Controle Apenas o Suficiente”), Firm Control (“Controle Firme”) e Even More® Control (“Ainda Mais Controle”). Imagem: Bloomingdale’s.

Até o momento, é possível identificar uma oposição de base entre um corset que se diz “não corset” (Shape Couture), o modelador do fabricante La Perla, mas que é constritivo e possui um elaborado fazer transformador sobre o corpo; e uma segunda peça, um não-corset que se diz corset, confeccionado com os materiais corretos do corset tradicional, mas cujo arranjo de modelagem não é capaz de promover uma ação de modelagem da silhueta (Agent Provocateur). Na nomeação deste terceiro item do corpus, não há a menção de suas propriedades (a não ser do diferencial de alças removíveis, “strapless bra”) ou da ação que devemos dele esperar: TC Fine Intimates é o nome da marca, e “slip” significa anágua ou

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combinação, mas também pode ser um verbo, que pode ser traduzido como “escorregar”, “deslizar”. Ambos os aspectos do vocábulo escolhido como nomeação da peça aparecem presentificados neste corset: ele é mais uma combinação (ou anágua) do que uma cinta, uma vez que, dada a ausência de costuras que modelem o corpo, sua função pode ser lida, à primeira vista, como aquela de cobrir o corpo (preparando-o para receber uma transparência, por exemplo). Por outro lado, o tecido misto no qual este modelador é confeccionado possui uma textura “escorregadia”, que serve tanto para facilitar o vestir a peça, quando o vestir sobre ela, permitindo que a roupa “deslize” sobre o modelador, não apenas ao vesti-la mas ao longo de seu uso, promovendo um movimento natural da roupa sobre o corpo que remete, por sua vez, ao corpo nu por baixo do vestido, sem a presença de uma peça de constrição e modelagem. Em um primeiro cenário, portanto, há a dificuldade em reconhecer nesta peça seu pertencimento ao “time” dos modeladores, uma vez que sua construção tubular, em uma única matéria, sem recortes e costuras, não parece capaz de promover um rearranjo do corpo – como o “macaquinho” de La Perla, por exemplo, manifesta em seu complicado arranjo de modelagem. Mas as intensidades de compressão anunciadas (“apenas o suficiente”, “firme” e “ainda mais”) conseguidas por meio do gradativo enrijecimento da matéria utilizada, aliadas à presença do soutien de bojo, nos sugerem que, ainda que de uma forma menos “anatômica” do que o macaquinho de La Perla, este corset é capaz de promover a compressão, de acordo com a necessidade, que pode ser escolhida pela usuária, no ato de compra. Entre os atributos desta peça apresentados no website Classic Shapewear, um dos muitos que a comercializam, são mencionados “modelagem e suavização da barriga, abdome, quadris e coxas”, “perfeito para aquelas ocasiões especiais”, “macio, aparência sem costura”, além de uma extensiva descrição do bojo, cuja tecnologia patenteada promete um “visual natural”. Finalmente, esta peça permite andar confortavelmente, ao mesmo tempo em que promove um afinamento, modelagem e suavização do corpo. Há um enorme salto entre a promessa de “efeito modelador fascinante”, como assegura o Shape Couture, e uma “suavização da figura”, anunciada por este slip. Apenas a gradação máxima, Even More®, é anunciada como “transformadora” da silhueta, apesar de sua constituição ser idêntica às outras duas gradações – sem costura, com alguns painéis “ocultos”. Portanto, ainda que seja adquirido na gradação máxima de compressão, esta peça 104

não é capaz de promover um deslocamento e reacomodação dos tecidos do corpo, como intenciona o Shape Couture (ou o próprio corset tradicional). A constrição promovida por este modelador gera uma diminuição da silhueta, mas sem altera-la significativamente, no toque seu desenho, sua forma. Ao invés de produzir uma impressão de silhueta atlética, com abdome esculpido e glúteos levantados, este modelador provavelmente trabalhará suavizando dois sinais que incomodam muitas mulheres: a textura da celulite e as possíveis dobras, na barriga e nas costas, provenientes do acúmulo de gordura, provendo uma silhueta mais lisa (“suavizada”) para o uso de um vestido justo. Ao invés de recriar o todo da silhueta, este modelor trabalha dissimulando detalhes. O local de maior transformação, como ocorre no Shape Couture, é o busto. Trata-se, contudo, de um soutien muito menos tecnológico do que aquele utilizado pela marca italiana, construído em uma peça única e com aros invisíveis. Este fato talvez explique a diferença de preço entre as duas peças: o modelador de TC Intimates é vendido por em média $70, ao passo que o preço deste Shape Couture é $354. De qualquer maneira, a presença de um bojo e de aros manifesta a vontade de promover uma transformação mais elaborada no busto do que aquela quer será conferida ao restante do corpo: tanto o aro quanto o bojo são instrumentos de aumento e de sustentação, que colaboram para a construção de um seio mais arredondado, desenvolvido e levantado. Este maior cuidado com o busto certamente opõe-se à constrição “uniforme”, não setorizada, promovida no restante da silhueta. Nas demais partes do torso e das coxas, a compressão do corpo ocorre de forma não elaborada, e portanto, não hierarquizada: tudo o que encontra-se englobado pela combinação será comprimido de maneira igual, de acordo com uma das três intensidades escolhidas. Não há, assim, um direcionamento, para cima, para baixo ou para os lados, como na modelagem do Shape Couture, mas uma direção única, de fora para dentro, que recobre toda a carne do torso e das coxas, tornando-a uniforme. É possível afirmar que esta maneira de constrição da silhueta é mais honesta do que aquela promovida pelo Shape Couture: não há nem a construção de atributos que não estejam já presentes no corpo original da usuária, bem como não se pode apreender a negação das características femininas deste corpo. Quando recoberto pelo modelador, o que se apresenta ao olhar do outro não é uma recriação, obtida a partir do uso do corset, mas uma versão “melhorada” do corpo original, “afinada” ou “suavizada”. 105

Há igualmente um forte efeito de liberdade contido neste corset. Manifestado talvez pela ausência de linhas constritivas ou reforçadas, o desenho liso certamente reenvia ao próprio corpo, de silhueta lisa e macia, contraditória àquela seca e tonificada, produzida pelo Shape Couture. Esta liberdade, contudo, encontra-se presentificada sobretudo pela ausência de constrição da região genital: no formato “saia”, não há nenhum tecido que recobre de maneira constritiva o púbis e o sexo, que encontram-se livres e abertos. Aliada à formação de um corpo mais arredondado, e até mesmo mais feminino, quando comparado à silhueta muscular do Shape Couture, esta ausência de obstáculos entre as pernas é criadora de um desenho de corpo sensual, dotado de curvas, e ao mesmo tempo estésico, macio, não enrijecido ou tonificado. As linhas sugeridas por este corset, aliadas ao seu arranjo matérico, convidam à interação sensual/sexual de maneira menos explícita do que o corset de Agent Provocateur. No lugar do erótico puro e escancarado da “lingerie fetiche”, este modelador atua como um realçador das curvas do corpo original, tornando-o mais atraente sem, no entanto, transformálo, reconstruí-lo. Na possibilidade da interação, este modelador deixa o caminho aberto, sem a necessidade do rompimento do “lacre sexual”: a sexualidade feminina não encontra-se constrita por esta lingerie. Da mesma maneira, ao contrário do corset de Agent Provocateur – e diferente da própria visibilidade e ênfase na sexualidade promovida pelo traje do século XVIII – a sensualidade feminina encontra-se presente, mas sem ser amplificada, exagerada ou ostensiva. Sua sexualidade, tal e qual os atributos que a ela relacionam-se, não querem ser vistos a partir de sua ostentação ou do voyeurismo do outro, mas almejam apenas um realce, uma sugestão do que está no interior – seja da roupa, seja do modelador.

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III.4. Dr. Rey Slim Shapewear Bermuda Slim Every Day

Figura 30. Dr. Rey Slim Shapewear Bermuda Slim Every Day, 2008. Idealizada pelo famoso Dr. 90210, o cirurgião plástico Dr. Rey, em conjunto com o designer Bruno Schiavi, a peça é confeccionada em tecido composto de 88% de poliamida e 12% de elastano, reforçada e costurada com fios de silicone, com modelagem que promete barriga reta, coxas e glúteos modelados, culotes reduzidos, “pneuzinhos” e aspecto da celulite amenizados, e tudo isso invisível sob a roupa, promovendo uma modelagem confortável ao longo de todo o dia. Disponível nas cores preto e nude, do tamanho P ao GG. Imagem: Polishop.

Esta grande revolução, fruto da associação entre o famoso cirurgião plástico Dr. Robert Rey, estrela do reality show de cirurgia plástica “Dr. 90210”, e o designer Bruno Schiavi, chegou às nossas televisões em 2008. Trata-se de um modelador criado a partir da tecnologia empregada na cirurgia plástica, permitindo uma completa transformação instantânea da silhueta, sem a necessidade da intervenção cirúrgica. Inicialmente, é interessantíssima a nomeação do produto, na qual a palavra “Slim” é repetida duas vezes, no nome da linha (Slim Shapewear) e da peça (Bermuda Slim Every Day). A palavra, da língua inglesa, significa “esbelto, esguio, elegante, delgado”, valor reafirmado no nome da peça. Shapewear, por sua vez, refere-se ao tipo de lingerie modeladora ao qual esta bermuda pertence, e “Every Day” significa “Todo Dia”. Uma proposição de nome em português para esta peça (e que certamente faria muito sucesso no mercado), seria “bermuda modeladora magra todo dia”, que é, basicamente, o conteúdo expresso pelas imagens dos vídeo publicitários desta peça. Anunciada no mercado brasileiro a partir do canal Polishop, atuante desde os anos 1990 e conhecido pela publicidade sensacionalista de produtos mirabolantes, esta cinta ficou 107

marcada pelas milagrosas transformações “em tempo real”, mostradas em seu programa publicitário 13 : afinar as coxas, quadris e colute, deixar o bumbum “like a brazilian bottom lift” (o almejado “bumbum das brasileiras”), achatar a barriga, disfarçar a gordura das costas, afinar a cintura, reduzindo até três manequins instantaneamente. Assim como as lingeries ditas sem costura, esta bermuda também é vendida sob o argumento do conforto que, em realidade, é um duplo conforto: o da lingerie em si, e o de esquivar-se de um pós-operatório (bem como de todos os cuidados necessários durante e depois da recuperação) da cirurgia plástica completa que este modelador pretende proporcionar, mas sem a realização da cirurgia. Antes de qualquer análise prévia, já é possível perceber que este produto é o mais apelativo de todos, no sentido publicitário do termo. Ao observar atentamente a bermuda, o primeiro aspecto a capturar nosso olhar é certamente a profusão de costuras direcionadoras que formam a peça, bem como as áreas de reforço aparentes, nos glúteos, costas, barriga e quadril. Há uma monoisotopia matérica, que diferencia as áreas de muita constrição daquelas de maior constrição ainda, pela repetição da mesma matéria em camadas dubladas – construção semelhante àquela do corset tradicional. Esta diferenciação é percebida visualmente pela ligeira alteração na tonalidade, do mais transparente ao mais opaco, marca da repetição de camadas de tecido. Além do destaque conferido às regiões que demandam maior constrição, dado pela cor mais opaca e pela repetição da matéria, é possível perceber que as linhas de modelagem desta cinta homologam-se às linhas anatômicas do próprio corpo, como se mapeassem o tórax, cintura, quadris e coxas de acordo com o desenho da distribuição dos músculos do corpo. Quando vestida, a bermuda confere ao corpo um desenho semelhante àquele do diagrama dos cortes da vaca, no qual é possível localizar onde, no corpo do animal, encontra-se cada uma das carnes. Idealizada por um cirurgião plástico, esta cinta é exatamente o que parece: um diagrama dos cortes da mulher, segundo a visão de um homem que corta a carne das mulheres (tal e qual o açougueiro corta a carne dos animais) e as reorganiza, de acordo com o arranjo considerado ideal.

13 Video original em inglês disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=3tcjXXzSVCU , e versão para o mercado brasileiro: https://www.youtube.com/watch?v=ww9Rwpj0jZc

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Figura 31. Diagrama dos cortes bovinos que serve a guiar açougueiros e demais interessados na localização dos cortes da carne bovina em sua anatomia. Imagem: Yakina Grass-Fed Angus.

Figura 32. Dr. Rey Slim Shapewear Bermuda Slim Everyday, detalhe da modelagem lateral e da costura em zigue zague, realizada com fios de silicone. Imagem: Polishop.

Mais do que a modelagem da roupa – como as costuras verticais e diagonais de uma saia, ou as pences de uma camisa – esta bermuda confere ao corpo o desenho das linhas de modelagem do próprio corpo, da carne, dos músculos e da gordura. Este “diagrama dos cortes femininos”, por sua vez, reenvia a uma outra imagem, amplamente veiculada nos famosos realities de cirurgia plástica: as linhas pontilhadas desenhadas à caneta, no corpo ou no rosto 109

daquelas que serão operadas, e que servem de guia para que o cirurgião saiba onde cortar e recosturar a pele. O pontilhado da caneta é reiterado nas costuras em zigue zague que fazem o acabamento, não em linha industrial de poliéster ou algodão, mas em fios de silicone, o mesmo material utilizado nas suturas, ou as costuras do corpo na cirurgia. Todo o arranjo plástico desta cinta parece remeter ao universo da cirurgia e da modificação corporal definitiva, e às diversas fases de seu processo. Iniciando no corpo original, rechaçado por sua “proprietária” como gordo, disforme, flácido, o modelador, em um primeiro momento, aparece enquanto promessa da transformação, no vídeo do anúncio publicitário, reforçando a sintaxe da falta, do desejo de conjunção com um objeto de valor do qual encontra-se privado que é, neste caso, a “silhueta perfeita”. Após a aquisição, quando vestido, este corset mapeia o corpo, destacando os lugares onde ele deveria ser cortado, para que sua reorganização definitiva fosse promovida. Ao mesmo tempo, por meio de sua ação, o efeito desta cirurgia “fictícia” aparece já atualizado no corpo da usuária. Desta maneira, suas linhas modeladas são expressão simultânea de dois conteúdos: as linhas pontilhadas do antes da cirurgia, e as suturas siliconadas do pós operatório. Ao contrário da cirurgia, porém, o efeito deste modelador não é permanente, e é inclusive destacado, na descrição do produto no website Polishop, que a redução de medidas é promovida somente durante o uso. Se o corpo almejado enquanto ideal aparece, nos modos da existência semiótica (GREIMAS & COURTÉS, 2012), enquanto um valor virtualizado, a reoperação definitiva do corpo, por meio da cirurgia plástica, seria a única maneira de uma realização deste corpo. Neste sentido, o uso deste modelador aparece enquanto um termo complexo que une o virtual (o corpo almejado) e o real (corpo reoperado) em um único termo, mas apenas enquanto esta bermuda encontra-se vestida. Ao despí-la, o feitiço é quebrado e a usuária retorna ao seu corpo rechaçado, à disjunção com seu objeto de valor. Esta conjunção “temporária”, portanto, pode ser lida como uma disjunção, uma vez que a real conjunção com o valor almejado seria possibilitada unicamente pela intervenção cirúrgica, capaz de conferir uma conjunção completa e “eterna” com esta silhueta almejada. É nesta delicada contradição que concentra-se o maior “trunfo” desta bermuda: anunciada como confortável, leve e macia, e competencializada com uma abertura higiênica, esta cinta pode ser vestida ao longo do dia todo. Uma das frases de efeito repetidas no vídeo: “é tão confortável que você não vai perceber que está usando!”. Ou seja: em um caso extremo, seu 110

uso poderia ser prolongado ao longo de todo o dia, sem a necessidade de remoção da cinta para ir ao toilette, ou até mesmo para fazer sexo, caso assim deseje a usuária. Enquanto manifestação do corset como actante pele, esta bermuda leva esta possibilidade ao extremo. Quanto mais prolongado for seu uso, maior o distanciamento da usuária de seu corpo rechaçado – que quer não ser visto –, adiando o momento da disjunção com o corpo ideal – aquele que, pelo contrário, busca-se ostentar –, conferido pelo corset que coloca-se claramente como o destinador, portador de todas as competências que faltam à mulher. O sujeito “usuária” aparece como constantemente manipulado, por meio do mecanismo de tentação (LANDOWSKI, 2005), no qual o sujeito aparece como destituído de competências que são, por sua vez, investidas no “objeto” (no caso, o outro sujeito, a bermuda), que é exaltado euforicamente. Em outras palavras, a possibilidade de realização da performance feminina (transformação da silhueta rechaçada em silhueta ideal) é toda investida em um saber poder fazer do corset. O que o vídeo publicitário insistentemente enuncia, ao longo das treze imagens de “antes e depois” mostradas em um minuto e quarenta e nove segundos, é uma fórmula simples, mas de apelo indescutível: “compre-me, vista-me e você também poderá perder três manequins e remodelar seu corpo completa e instantaneamente”. Diferente dos outros objetos analisados até aqui, o corpo construído por este corset apresenta uma espécie de topohierarquia total: o local mais importante do corpo é todo o corpo, que deseja ser visto em 360˚ – fato este confirmado pela isotópica “voltinha”, performada pelas usuárias nas imagens de “antes e depois” apresentadas nos vídeos – como totalmente reconstruído, recompetencializado. As oposições entre relações de visibilidade são transpostas para o corpo “original”, que deseja-se ocultar, e o corpo construído pelo modelador que, ao contrário, deseja-se ostentar, ou, ainda, mostrá-lo a partir de um regime de “não querer não ser visto” (LANDOWSKI, 1992), marca de uma satisfação com o corpo ou, ao menos, da ausência de constrangimento pelas próprias formas.

III.5. Amarração

Como desenvolvemos na introdução deste capítulo, neste recorte do corpus o papel temático do corset de formar um corpo exclusivamente para uma configuração de traje perde-se, 111

conforme a moda torna-se mais múltipla. O desejo de construção do corpo deixa de ter o papel de servir ao vestido, e passa a servir mais diretamente à própria subjetividade, aos próprios desejos e anseios acerca do que o corpo deve ser. Isto não significa, no entanto, uma diminuição da intensidade das transformações conferidas a ele, mas sim novas possiblidades desta transformação. Os quatro exemplos que examinamos ao longo deste capítulo revelam que, em lugar do “corset único para todas as ocasiões”, o século XXI nos ofere opções que vão do corset tradicional (ou de um falso corset tradicional, mas que reenvia às peças confeccionadas no século XIX) aos complexos modeladores, extremamente tecnológicos, que promovem uma transformação completa, muito mais eficiente (e marcada) do que aquela promovida pelas peças de linho e barbatana de baleia. Mais do que reenviar a vestidos, que por sua vez pressupõem a construção do corpo segundo um padrão que deve ser exato, os corsets analisados neste capítulo reenviam a papéis femininos diversos, ou ainda a diversos momentos de um mesmo papel – a mulher múltipla do século XXI. Começando pelo modelador de La Perla (figura 22), a forte constrição sexual, que força a construção de um parecer dotado de competências propriamente masculinas, aparece enquanto expressão de um marcado conteúdo de emancipação feminina, desvinculada dos papéis de maternidade e procriação que, outrora, manifestavam o todo de sua interação em sociedade. Esta aparente revolução, no entanto, aparece como uma “nova programação” do feminino ocidental, ou um novo papel temático: tomado enquanto algorítimo de comportamento, como postula Landowski (2005), o papel temático inscreve-se em um dever ser feminino. No século XXI, esta isotopia comportamental perpassa justamente os valores apreendidos neste corset de La Perla: a força muscular, o desenho magro e definido da silhueta, os seios aumentados, parecer este construído não com o propósito único de atrair o “macho” para a “cópula”, mas enquanto “suporte” de exibição das próprias conquistas, adquiridas por meio da própria emancipação financeira. Neste sentido, um modelador da marca La Perla já constitui um destes objetos ostentatórios, uma vez que trata-se de uma marca de lingeries de luxo, e a própria aquisição de um de seus modelos é capaz de conferir um status de distinção à sua proprietária/usuária. Em oposição a ele, o corset-não-corset de Agent Provocateur (figuras 25 e 26) inverte este papel recatado (ao menos no sentido sexual do termo), trazendo um erotismo explícito, 112

até mesmo fetichista, da lingerie que não serve como modelador, mas é capaz de criar em torno de si um universo de fantasia que reenvia ao erotismo de uma outra época. Dentro deste recorte, esta é a única lingerie do recorte que não possui um uso prático de modelagem da silhueta, mas é meramente estética, decorativa. Até mesmo classificá-la enquanto lingerie é difícil, uma vez que seu uso como corpete, por fora da roupa, é permitido e socialmente aceito. Em ambos os casos, lingerie erótica ou sofisticada parte de cima, este “corset” possui como finalidade única a expressão de um fetiche da constrição, que não encontra-se de fato realizado, é apenas sugerido, seja pelo cromatismo, pelas matérias utilizadas, ou pelas amarrações. Enquanto oposição de base, este eixo pode ser combinado na formação de um papel feminino tradicional do século XXI: a mesma mulher que de dia dedica-se à sua carreira, transformando-se praticamente em um homem, de linhas retas e musculosas, à noite, nos momentos a sós com seu parceiro (fixo ou esporádico, pouco importa), busca agradá-lo com lingeries elaboradoas, promovendo o jogo erótico por meio do uso destes preciosos objetosfetiche. As duas práticas são fortemente encorajadas pela mídia: trabalhe duro, ganhe dinheiro, mas não deixe de “agradar seu homem”. A criação de lingeries cada vez mais decorativas, cosméticas, que enunciam em seu cromatismo e materialidade uma atração sexual que beira a pornografia, aparece como uma “tábua de salvação” da masculinização do ambiente de trabalho, onde toda e qualquer sexualidade deve ser reprimida, constrita. Esta contenção constante do sexo acaba por produzir um termo oposto proporcional, da libertação extremada de todas as amarras. Uma negação mais suave, no entanto, pode ser apreendida do modelador-combinação, do fabricante TC Fine Intimates (figura 29). Sua compressão mais moderada e menos impositiva, produtora de um desenho mais natural e que não nega o feminino – e, inclusive, pressupõe o uso de um vestido ou de uma saia, uma vez que seu desenho não ajusta-se ao uso da calça comprida – confere uma sensualidade mais suave, mas que implica no termo mais “selvagem”, propriamente erótico, presentificado pelo uso do “corset” de Agent Provocateur. Seu desenho não decorativo, no sempre preto ou bege, não classifica-a enquanto “lingerie sexy”, mas o corpo que se faz ver a partir de seu uso o é, no sentido próprio do termo, originado no inglês, que é aquele de provocar o desejo sexual. Neste caso, esta característica é fruto das curvas do corpo que são respeitadas pelo modelador, que não impõe um outro desenho, mas aperfeiçoa as linhas já existentes. 113

Este corpo mais natural, dotado de curvas e volumes mais femininos, é considerado sensual justamente enquanto oposição do corpo comercial, ou über stylish, que geralmente é dotado de linhas mais retas e magras, beirando a androginia. A distinção é da autora britânica Pamela Church Gibson, para a qual este corpo mais sensual ou “glamouroso” constitui uma ameaça para o padrão de beleza almejado pela moda das passarelas (CHURCH GIBSON, 2012). Isso se dá, sobretudo, porque é mais fácil para a mulher atual identificar-se com este padrão de mais curvas e volumes, do que com a magreza impossível das modelos. Este eixo subcontrário, portanto, definirá a presença das tendências de corpo atual. O último modelador analisado, aquele idealizado por Dr. Rey (figura 30), aparece desta maneira enquanto termo oposto ao corset de TC Fine Intimates, uma vez que a bermuda destina-se às entusiastas do padrão comercial, extremamente magro e modelado, reconstruído e reorganizado, se necessário, cirurgicamente. Enquanto negação do “corset” de Agent Provocateur, esta bermuda manifesta a conjunção com um outro fetiche, aquele do glamour do mundo das cirurgias, para aquelas que não possuem recursos financeiros (ou coragem) para dele participar. Ambos constituem falsas conjunções com seus fetiches, uma vez que a peça de Agent Provocateur insinua a constrição da cintura, mas sem promovê-la, tanto quanto o modelador de Dr. Rey sinaliza a cirurgia, sem no entanto realizá-la. Em busca da construção de uma categoria do Corset Elástico, regida pela interação por manipulação, as peças escolhidas para compor este recorte possuíam como traço comum a presença da necessidade de adesão ao acordo de manipulação, no qual o corset aparece como sujeito destinador e a mulher como destinatária. A manipulação, como vimos, começa já nas nomeações das peças: “Shape Couture”, que abriga o valor de escultura e modelagem do corpo em união à “alta costura”; a simples nomeação “corset”, para uma peça que não é um corset “real”; “Slip”, combinação, que abriga a ideia de uma lingerie não constritiva, confortável e estésica, utilizada apenas para cobrir o corpo; e, finalmente, “Dr. Rey Slim Shapewear Bermuda Slim Every Day”, praticamente uma declaração, mais que um título, que reitera o valor da magreza, aliado à modelagem e uso diário. À excessão da peça chamada de “corset” (mas que, ironicamente, não é um corset completo), todas as peças procuram disfarçar sua relação com o corset tradicional, ao mesmo tempo em que propõem transformações mais radicais, que englobam áreas maiores do corpo, e produzem sentidos mais complexos do que o seguro papel temático feminino de procriadora, dependente do marido. 114

Para criar sentidos que vão da poderosa “mulher carreira” à “gata selvagem”, “de espartilho e cinta liga”, os corsets do século XXI precisam manipular suas destinatárias para fazê-las fazer – neste caso, um fazer comprar. É apenas a partir deste contrato inicial que o corset poderá realizar sua performance, a partir da vontade do sujeito mulher. Em “Les interactions risquées”, Landowski destaca quatro possíveis mecanismos de manipulação: sedução, tentação, provocação e intimidação (LANDOWSKI, 2005). Estes quatro dividem-se, por sua vez, na valorização do objeto (tentação e intimidação) ou do sujeito (sedução e provocação), que pode ser positiva, eufórica (tentação e sedução) ou negativa, disfórica (intimidação e provocação). Salvo em raríssimos casos, as ações publicitárias concentram-se na promoção da euforia, que costuma ser mais eficiente na persuasão de um futuro cliente – quem, em dias tão incertos quanto os atuais, aprecia ser ameaçado, intimidado? Nos casos analisados aqui, percebemos que as duas dêixis formadas pelos corsets analisados também abrigam os dois mecanismos de manipulação: a tentação, ou exaltação eufórica do objeto, na dêixis positiva (formada por La Perla e Dr. Rey), e a sedução, ou exaltação eufórica do sujeito, na dêixis negativa (Agent Provocateur e TC Fine Intimates).

Figura 33. Quadrado dos corsets elásticos, regidos pelo regime de manipulação.

Estas tendências de construção do corpo, no entanto, não aparecem como formadoras de posições sólidas ou estáticas, que podem ser homolagas cada qual a uma única mulher correspondente. A simultaneidade de todas estas tendências pode presentificar, ao contrário, 115

diferentes momentos (ou humores) de uma mesma mulher. Nada impede que uma mulher possua em seu guarda-roupas todos estes modeladores ao mesmo tempo (ou versões destes emblemas, confeccionadas por outros fabricantes), e que seu uso seja regido pela necessidade de momentos específicos. Um modelador como o Shape Couture pode aparecer como uma excelente opção para o dia a dia, para a construção do corpo para as roupas de trabalho, mas nada impede que ao utilizar um vestido de festa justo no corpo, por exemplo, a mesma mulher prefira o invisível Slip de TC Fine Intimates, ou mesmo a radical bermuda de Dr. Rey. Finalmente, a mesma mulher pode ainda utilizar lingeries mais eróticas, fetichistas, como o “corset” de Agent Provocateur, para o momento da conquista, ou da sedução, no sentido ordinário do termo. Neste sentido, emergem os valores de “sujeição” e “emancipação”, igualmente presentes nas duas dêixis do quadrado. Por um lado, a modelagem mais radical promovida pelo modelador de La Perla e pela bermuda de Dr. Rey, retomam a sujeição “cega” do corpo ao corset, que é igualmente uma sujeição às isotopias da moda. Ambos os corsets presentes nesta dêixis promovem exaltações do corpo magro, perfeito anatomicamente, com tecidos alocados nos lugares corretos. Para alcançar tal efeito, o modelador é capaz de retirar o tecido de um lugar e empurrá-lo para o outro, reacomodando a carne onde ela é necessária, e removendo-a de onde ela constitui um excesso. Trata-se, nos dois casos, de um sacrifício do corpo em nome da moda, transformando-o no que ele deve ser, meramente para a apreciação do outro. É um corpo que quer ser visto como magro, musculoso, modelado, delineado, esculpido, perfeitamente reconfigurado dentro dos padrões das revistas e das celebridades, pronto para adequar-se aos objetos de ostentação da própria emancipação financeira (e não necessariamente para o outro do sexo oposto, o possível parceiro, mas para quaisquer outros, formadores de um entorno social no qual o destaque e admiração são almejados). Na dêixis oposta, estes valores possuem uma importância diminuida, uma vez que não apenas a ação do corset é limitada, menos evidente do que aquela apreendida dos modeladores de La Perla e Dr. Rey, mas o desenho de corpo “prometido” é muito mais flexível, e portanto menos subordinado aos padrões em circulação. A emancipação, tal como a sujeição, é dupla: emancipação dos padrões inalcançáveis de magreza e definição muscular, e emancipação do corpo da necessidade de modelagem. Esta segunda marca a passagem do corset de “escultor” a “realçador”, e finalmente para “adorno” ou “enfeite” do corpo, que não promove uma transformação de sua forma. 116

Esta emancipação vem necessariamente investida de valores de sensualidade e sexualidade, que só podem emergir em um corpo mais livre, dotado de mobilidade, e que traz o sexo descoberto, despido de “obstáculos”. Esta abertura é igualmente produtora de um sentido de recuperação do feminino, que encontra-se enfraquecido na dêixis positiva, na qual a criação de um corpo andrógino, mais próximo do corpo dos homens, é enaltecida. A masculinização, no entanto, constitui um valor programado na sociedade atual, na qual feminismo é constantemente confundido com “tomar o lugar dos homens”. Este corpo masculinizado, proporcionado pelos dois modeladores construídos como bermudas, constituem uma configuração mais programada, da ordem da prudência (LANDOWSKI, 2005), enquanto que a maior libertação sexual, seja pela sensualidade insinuante do vestido constritor, seja no erotismo escancarado do “corset” de Agent Provocateur, aparecem como produtoras de interações mais arriscadas no cenário contemporâneo, pertencentes às interações por ajustamento e acidente. Estes valores, no entanto, não encontram-se estáticos e cristalizados. No contexto em que nos encontramos, é permitido às mulheres transitar entre estes diversos papéis – e até, talvez, outros não contemplados por este estudo, por não encontrarem-se vinculados ao uso de lingeries modeladoras. Tal apenas confirma a força do contrato de manipulação que une os quatro itens deste recorte do corpus, e propicia, ao mesmo tempo, o surgimento de muitas outras lingeries para este propósito, cada uma avançando um passo além da anterior, na promessa de criação de uma silhueta almejada – seja ela dura, tonificada, masculina, ou redonda, volumosa, sensual.

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IV. Contato entre corset e corpo

Até então, os objetos analisados pertenceream ou pertencem a blocos temporais identificados à vigência de uma moda, ou seja, com uma continuidade (ou não-descontinuidade) de uma tendência da constrição. Existem, porém, diversas lingeries constritoras consideradas como “de transição”, ou seja, que encontram-se localizadas em datas nas quais a passagem de uma tendência de corpo à outra pode ser apreendida. Se por um lado estes objetos presentificam rupturas, por outro, encontram-se mais em uma posição de não-continuidade do que da descontinuidade propriamente dita, afinal, não há uma descontinuidade da prática da constrição, e sim uma significativa alteração na maneira que ela é praticada. Sem dúvidas, contudo, estes objetos propõem a quebra dos papéis temáticos estabelecidos em todos os níveis da interação: no corset, no corpo que o traja e até mesmo no fazer do corsetier. Nestas transições, presentificam-se esboços das transformações do corpo que poderão ou não tornar-se uma próxima tendência, ou quem sabe, um próximo programa da silhueta; é também neste momento que descobertas em todos os âmbitos são realizadas: novos materiais, novos arranjos, e até mesmo melhorias na modelagem e nos métodos de confecção. Quando este tipo de ajuste entre o objeto e a sua confecção ocorre, esboça-se uma forma de corseteria que está muito mais para a prática do que para o uso, no sentido que Landowski (2009) dá aos termos: tecidos, barbatanas, moldes, e até mesmo as ferramentas deixam de ser usados pelo corsetier e passam a ser praticados. Nos termos de Landowski (2009), ocorre um dépassement, ou uma espécie de superação do uso pressuposto (ou programado) por meio de um novo uso, no qual sujeito e “objeto” praticado encontram-se em união. Esta união, por sua vez, será reiterada também na inter-ação entre o objeto constritor, o corset, e o próprio corpo, produzindo, em todos os sujeitos envolvidos, competências estésicas. O grande tema deste recorte do corpus é certamente o ajuste: se nos corsets elásticos, identificados com o regime de manipulação, existe ainda um forte fazer-querer, neste grupo de corsets reformulados, de transição, existe um ouvir-se mutuamente dos sujeitos corpo, corset e corsetier. Na criação de algo novo, a “obra” em processo possui uma forte voz no processo criativo, e deixa de ser, perante seu “mestre” ou aquele que a realiza, um mero objeto. É o que observa-se nestes corsets de transição, derivados de modelos anteriores que 118

eram mais constritivos, e portanto mais atrelados aos papéis temáticos – do corpo, da moda, do corset – que presentificam. Os objetos desenvolvidos a partir deles são versões aprimoradas, no sentido de que buscam uma melhor acomodação dos tecidos do corpo, no lugar da imposição de um formato, por meio de uma relação de ajustamento: na interação entre corpo e objetos de transição, é possível apreender uma maior igualdade entre estes dois sujeitos. Nela, ambos os sujeitos colocam-se em contato (e não contrato) sem a mediação de um objeto de valor: o sentido deste regime encontra-se justamente na própria interação. Para a abordagem desta forma de inter-agir, selecionamos os primeiros stays que possuem taças para o suporte dos seios, no final do século XVIII, o primeiro corset romântico, cuja modelagem igualmente prevê um espaço não-constritivo para os seios, a primeira cinta elástica em todas as direções, e um body, primeiro corset contemporâneo a deixar as pernas livres, ambos os últimos dos anos 1960. Todos os papéis temáticos são aqui abalados: do corset ao corpo, há um dépassement de todas as estruturas que permitem o uso pressuposto do corset, e até mesmo este uso é superado. O foco da constrição muda, da cintura anatômica para a cintura alta (no século XVIII e XIX), para o abdome ou para os quadris (nos anos 1960); os tecidos são utilizados de maneiras diferentes, a presença de estruturas rígidas é diminuída ou suprimida. O papel temático do próprio corsetier é diluído, obrigando-o a remanejar seu saber, suas ferramentas e os materiais disponíveis, criando objetos inovadores, por vezes rudimentares, de um ponto de vista estético. É na performance, no contato com o sujeito, que encontra-se investido o maior valor desta maneira de fazer corsets. O que pode haver em comum entre dois modeladores dos anos 1960 e dois corsets da virada do século XIX? Além de todos os quatro tocarem na mesma questão da prática dos materiais então disponíveis, que culmina em uma prática também da silhueta, há sem dúvida uma passagem de um regime de junção a um regime de união (LANDOWSKI, 2005): se em um corpus de corsets elásticos, com forte apelo publicitário, há uma fortíssima mediação da interação por objetos de valor (no caso atributos do corpo, da silhueta, que são conferidos à destinatária através do corset-destinador), nestes corsets reformulados a interação se dá diretamente entre os sujeitos, marcando a transição do contrato para o contato. Em todos os casos – e deve-se considerar, nesta afirmação, as tecnologias disponíveis em cada época, e não uma comparação delas às tecnologias atuais – há uma busca por matérias mais agradáveis ao corpo, mais maleáveis e macias, mais estésicas, ou que fazem sentir, bem como as formas 119

almejadas ajustam-se melhor ao corpo nu do que as formas impositivas, apreendidas nos usos tradicionais e nos corsets elásticos. O regime de ajustamento se dá em todos os níveis da interação: entre corsetier e corset, entre corset e corpo. Evidentemente, o risco de tal modo de interação é aumentado, justamente pela imprevisibilidade de tal relação. Quando dois (ou mais) sujeitos são colocados em interação sem a mediação de objetos de valor, ou sem hierarquias entre eles, há a insegurança, no lugar do risco limitado da manipulação ou da regularidade simbólica e causal da programação (LANDOWSKI, 2005). Ao invés da competência modal, o regime é fundado na competência estésica, ou seja, no fazer-sentir, em lugar do fazer-querer. Talvez estes aspectos expliquem a pontualidade do uso de tais corsets, cujas tendências não perduraram, mas foram logo substituídas por novas tendências mais constritivas, mais próximas da programação – e portanto, mais seguras – tais como o retorno do corset em meados do século XIX, ou ainda pela busca da abolição do uso de qualquer constrição, como ocorreu nas revoluções feministas de 1968.

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IV.1. The Little X Girdle

Figura 34. The ‘Little X’ Girdle, aproximadamente 1960. Fabricada pela empresa britânica Silhouette, a Little X, “Pequeno X”, é a primeira cinta elástica em todas as direções – diferente dos primeiros tecidos elásticos, desenvolvidos no início do século XIX, que consistiam na fiação mista de latex com um outro fio sem elasticidade, promovendo que o tecido esticasse apenas em uma direção, geralmente horizontal. Confeccionada em nylon e Lycra®, a modelagem da cinta (no “X” que dá nome a ela) permite que ela seja vestida e despida sem a necessidade de fechos ou amarrações de qualquer tipo. A Little X era fabricada em diversas cores vibrantes – como o azul, o rosa choque, o branco – e trabalhada com fios de lurex dourado. Tamanho da cintura: 52 cm. Imagem: Victoria & Albert Collection. V&A:T.291-1993

Lançada em 1955, esta cinta foi uma das lingeries modeladoras mais bem sucedidas dos anos 1950-60 (LYNN, 2010), e pode ser comprada até a atualidade (apenas nas cores preto e branco) em sites como e-bay, ou lojas especializadas em lingerie de estilo “vintage”. Com sua tecnologia elástica em todas as direções, ela é capaz de proporcionar uma constrição da altura do umbigo – onde o desenho marcado da cintura é formado, por meio do elástico reforçado – até abaixo das nádegas – onde o mesmo acabamento a mantém firme e bem posicionada. Trata-se, ainda, de uma configuração de corpo valorizada nos anos 1930-50, e que hoje em dia é associado às pinups, um corpo arredondado, de seios, quadris e glúteos 121

pronunciados, em oposição à cintura fina, que muito lembra o corpo formado pelos corsets tradicionais, analisados no capítulo II. O que separa a Little X deste período, portanto, não é a forma conferida ao corpo, mas a maneira como o corset age sobre ele.

Figura 35. Wrap-around girdle, aproximadamente 1930 (V&A:T.168-1996). Cinta confeccionada em algodão, malha elástica de rayon e acetinado sintético, com barbatanas flat de aço, fechada com colchetes (na lateral) e ligas não-removíveis. Medida da cintura: 68 cm. À direita, a “Little X”. É perceptível como não há uma alteração no desenho de silhueta – marcado na cintura e arredondado no quadril – entre as duas. No entanto, a Little X possui um efeito mais leve, transparente e macio, enquanto que a peça dos anos 1930 é mais espessa, reforçada e de trama mais fechada. Imagem: Victoria & Albert Collection.

As cintas utilizadas até meados dos anos 1950, como revela a descrição da cinta acima, são constituídas de forma muito parecida com o corset tradicional, com tecidos firmes e fechados, e bastante estruturadas com metal, o que certamente produzia um efeito pesado sobre o corpo, desconfortável no andar e no sentar e, principalmente, abafado sobre a pele, uma vez que sua constituição é quase 100% sintética. A “Little X”, diferentemente, apesar de também confeccionada em matérias sintéticas, possui uma trama aberta, vazada, por onde os locais nos quais o corpo deve ser livre 122

(“redondo”) respira: nas laterais do quadril e na traseira, a cinta é confeccionada em uma única camada desta malha de nylon e Lycra®. Apenas em um ponto, o losango central, englobante do abdome, a cinta é reforçada pela repetição do tecido, proporcionando uma maior contenção. Este “reforço”, no entanto, não destitui a cinta de seu efeito “transparente”, “arejado”. A visibilidade conferida ao corpo por esta cinta retoma, em partes, aquela apreendida do Shape Couture (figura 22), e, consequentemente, aquela do traje à fracesa (figura 5): o cruzamento de linhas em “X” promove o deslocamento do olhar do observador para centros de visibilidade privilegiada, indicando topohierarquias do corpo quando vestido com estas lingeries. Neste corset, em um espaço reduzido (apenas metade do torso), há a criação de três centros de cruzamento destas linhas: o centro do abdome, inscrito no “grande X” formado pela sobreposição do tecido na frente da cinta, e dois “pequenos X”, que marcam o umbigo, no alto, e o púbis, na porção inferior. Estes três centros são, por sua vez, ligados por um eixo central, a fita brilhante que mantém a sobreposição do tecido unida. As linhas desta cinta, portanto, formam um desenho que atribui ao corpo uma visibilidade frontal e central, concentrada no eixo umbigo (cintura), abdome (útero) e púbis (sexo), conferindo destaque a estes três pontos. A ênfase nestes três pontos não é exclusividade desta configuração de corpo, e tampouco da “Little X”: como vimos nos capítulos anteriores, a modelagem do corpo feminino geralmente perpassa a hierarquização destes locais, que são aqueles que homologam-se com mais força aos valores de um papel feminino tradicional em sociedade. Este destaque aparece até mesmo quando o objetivo do traje reside em contestar este papel, como era o caso do Shape Couture: para manifestar uma negação dos temas da maternidade e da fertilidade, é preciso igualmente chamar a atenção do observador para estes pontos para, a partir deles, construir o questionamento e a oposição almejada. O tema do conforto e da mobilidade, associado às cores chamativas e brilhantes – ou mesmo juvenis – da “Little X”, aparecem justamente como manifestação da possibilidade de conciliar estes valores antigos, da fertilidade e da procriação, com valores atuais, emancipatórios, muito difundidos na juventude da época. Seu arranjo une a formação de um corpo muito tradicional, dos anos 1930-40-50 (que é semelhante, por sua vez, àquele do século XIX), a um estado do corpo mais atual, que demandava uma quebra com a estaticidade 123

de barbatanas metálicas e emborrachados rígidos das décadas anteriores. Esta busca feminina não poderia ser melhor enunciada do que o foi no próprio anúncio da “Little X”:

Figura 36. “Peter Pan Little X”, anúncio veiculado em 1957, na revista Seventeen. Segundo Eleri Lynn, “O anúncio era baseado na figura de uma menina, seu corpo em silhueta contrastando com a cinta em destaque, saltando em uma forma de ‘X’. Ele mostrava a cinta extremamente esticada, para mostrar suas qualidades elásticas e a flexibilidade da qual ela era capaz. A campanha aparecia em cinemas e revistas e era um grande sucesso. As vendas aumentaram muito, e a demanda foi tanta que a licença para a produção da ‘Little X’ foi concedida a 32 países.”14 (LYNN, 2010) Imagem: Ebay.

14 “The advertisement was based upon a picture of a young girl, her body in silhouette apart from the highlighted girdle, jumping in an ‘X’ shape. It showed the girdle streched to it’s extreme, to show its elastic qualities and the flexibility it could afford. The campain ran in cinemas and magazines and was a great success. Turnover was hugely increased, and demand was such that the licence to produce the ‘Little X’ was granted to 32 countries.”, tradução nossa.

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Figura 37. Anúncio da corsetière Mme Guillot de 1906, “Chez la Reine du Corset”, do Corset-Gaine, confeccionado em tricot flexível e sem busk frontal, anunciado como próprio para a prática esportiva. Imagem: Bound & Determined.

O posicionamento da “modelo” da ilustração é frontal, direto, e ela parece estar executando um salto de dança ou ginástica – seus pés estão esticados e os cabelos esvoaçando, o que manifesta que não se trata de uma postura estática, nas pontas, mas de um movimento em curso. A modelo também está vestida com um collant de ginástica preto, que recobre todo o seu corpo, e o corset, a “Little X” na cor branca, é utilizado por fora da roupa, que por sua vez serve de fundo que contrasta com a cinta, destacando-a. Alguns pontos do anúncio despertam curiosidade. Primeiramente, a associação da prática esportiva com o uso de um corset não é lugar comum da publicidade de lingeries, apesar de não serem uma novidade dos anos 1960: os anúncios de roupa íntima normalmente exaltam a pose – geralmente erótica, sensual – a estaticidade, que advém da construção de um 125

corpo que deve ser admirado em repouso, na permanência de uma impressão da silhueta. Esta tendência combina especialmente com os sentidos contidos na palavra “shaper” que, como examinado no capítulo III, reenvia aos papéis de “escultor e escultura”. O corpo “esculpido” por um modelador, portanto, pertence ao âmbito da admiração inerte, paralisada, a mesma da obra de arte. Neste anúncio, no entanto, o corpo é modelado em mobilidade, de maneira dinâmica, que reenvia inclusive a outros anúncios, do final do século XIX e início do XX, quando a moda dos “corsets saudáveis” unia a exaltação da silhueta modelada à necessidade da prática esportiva, como exemplifica o anúncio acima, da década de 1900 (figura 37). Apesar de um anúncio reenviar ao outro, estes dois momentos da publicidade de corsets muito se distanciam. O primeiro aspecto de divergência é aquele do uso pressuposto do corset, presente no anúncio de 1906, mas ausente naquele de 1957. No anúncio de “Corset Gaine” (figura 37), a modelo da ilustração aparece vestindo o corset sobre uma camisole acompanhada de uma espécie de anágua e meias de seda. Pode não ser comum que alguém vá às aulas de ballet vestida desta maneira, mas o corset encontra-se utilizado conforme sua função, de roupa de baixo, e a ausência do vestido aparece como um recurso publicitário para mostrar a peça anunciada. No anúncio da “Little X” (figura 36), no entanto, a modelo não está praticando seu salto em trajes íntimos, mas veste um collant de ginástica e, por cima dele, a cinta é vestida como um acessório ou um traje exterior, por fora da roupa, aparente. Não se trata de uma tendência de moda dos anos 1960: a cinta em questão continua sendo uma roupa de baixo, uma lingerie. A opção de mostrá-la por fora, desta maneira, reveste o anúncio com ares de metáfora, que opõe-se ao cambré literal do anúncio de “Corset Gaine”. Se na ilustração de 1906 a enunciação encontra-se no tempo presente – com “Corset Gaine” você pode curvar-se desta maneira – o look inventado e fora do uso pressuposto da cinta, presente no anúncio de “Little X”, nos diz que com esta cinta, elástica em todas as direções, você até mesmo poderia, se desejasse, saltar desta maneira. É um exemplo radical, portanto, da propriedade elástica da cinta, que é igualmente a melhor maneira de colocá-la em destaque. Vestida diretamente sobre a pele, na ilustração em preto e branco, o formato inovador da “Little X” seria facilmente confundido com as outras cintas já existentes no mercado. Com o auxílio do destaque do fundo preto do collant, no entanto, o “X” torna-se mais evidente, bem como a leve transparência da peça. E como não 126

notar que os braços e pernas, estirados no alegre salto, prolongam as linhas em “X” da cinta, transformando o próprio corpo que o veste em um “X”? Não apenas esta cinta é capaz de permitir este salto, mas seu efeito é capaz de contagiar todo o corpo, estendendo-se até as extremidades de seus membros. Há uma reiteração do tema da explosão, presentificado pelo salto retratado no anúncio, mas que igualmente relaciona-se ao cromático, de cores vibrantes e brilhantes, e do estiramento, tanto do corpo quanto das fibras elásticas que compõem o tecido. É uma explosão, contudo, que tem como centro – seja da cinta, seja do anúncio – o ventre feminino. A explosão, manifestada no anúncio pelo prolongamento do “X” da cinta para um “X” do corpo, pode ser lida como uma superação do sentido outrora investido neste centro do corpo feminino: o corpo formado pela “Little X” é o mesmo lugar do papel feminino do corpo dos anos 1930 (e do século XIX), mas que expande-se para o que está ao seu redor. Em uma leitura do contexto social, o início dos anos 1960 é marcado pela “revolução sexual” (DENSMORE, 1998; EPSTEIN, 1998), o que nos permitira ler esta explosão como a erupção da própria região do corpo – o umbigo, o baixo ventre, o púbis – da qual se passou a falar de maneira mais livre, encorajando o ato sexual em lugar de reprimí-lo. A liberdade manifestada pela cinta – que não bloqueia o sexo e é transparente, de trama aberta –pode ser homologada não apenas à liberdade dos movimentos, mas à própria libertação sexual feminina, certamente um dos principais assuntos da época. A conformação do corpo – e mesmo sua sujeição a um “corpo da moda” – existe, mas é uma constrição que não se coloca como excessivamente impositiva. Ela é elástica, flexível, e, sobretudo, aberta. Pela abertura – da cinta que não recobre o sexo, ou da própria trama vazada do tecido – há uma troca entre dois sujeitos, a cinta, portadora de uma competência de modelagem do corpo, e o próprio corpo, portador de outras tantas. O resultado do encontro entre estes dois sujeitos é o salto explosivo retratado no anúncio: um feminino cujo todo é maior do que o sentido contido na parte constrita de seu torso. Juntos, estes dois sujeitos, corpo e corset, constroem uma nova “versão” do feminino tradicional, mais ajustada, permisiva. Seu sucesso foi tamanho, que a “Little X” tornou-se o primeiro modelador comercializado em trinta e dois países (LYNN, 2010). Sem dúvida, um fenômeno de massa, ao qual diversas mulheres, sobretudo as mais jovens, aderiram. Por um lado, esta disseminação de uma cinta investida de valores mais estésicos (e menos impositivos e 127

conformadores) aparece como um avanço, cujo sentido pode apontar para um abrandamento do uso de lingeries constritoras que, por sua vez, presentifica um avanço no sentido da emancipação feminina. Por outro, ainda que investida de valores mais ajustados, e que consideram o corpo feminino um sujeito igual na interação com o modelador, trata-se mesmo assim de uma cinta, um corset capaz de conformar o corpo a um ideal já ultrapassado, e que exalta um arranjo plástico ou configuração de silhueta que reenia ao papel temático feminino mais tradicional, a mulher redonda, com curvas no quadril e na cintura, cuja manifestação, como vimos, encontra-se completamente homologada ao papel social da procriação – ainda que ele apareça, na “Little X”, como uma procriadora mais dinâmica, ativa.

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IV.2. Youthlines Q Form by Mary Quant bodysuit

Figura 38. Youthlines Q Form by Mary Quant bodysuit, 1965. ‘Body’ confeccionado em jersey com Lycra®, abertura higiênica em colchetes e aros metálicos no busto, com cintura medindo 54 cm. À direita, outra peça da mesma linha, a calcinha modeladora de cintura alta, confeccionada no mesmo material. Imagem: Victoria & Albert Collection. V&A:T.443-1988.

Figura 39. Youthlines Q Form by Mary Quant bodysuit, desenho técnico no qual é possível apreender detalhes das costas e do acabamento inferior do body, ambas não disponibilizadas pelo acervo do museu. Imagem: Underwear Fashion in Detail.

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Apesar das inovações matéricas trazidas pelo fabricante da “Little X”, sua “invenção”, em realidade, não passa de um aprimoramento da cinta, em voga desde os anos 1930. O mesmo não poderia ser dito deste modelo de lingerie modeladora, o “bodysuit” – em tradução literal do inglês, um “conjunto para o corpo”. Após o dito “abandono do corset”, nos anos 1920, a lingerie feminina foi tornando-se progressivamente menor e fragmentada, até a configuração que nos é comum até hoje: calcinha, soutien ou camisete e, quando necessário, um modelador diretamente sobre a pele (no caso dos anos 1930-60, a cinta). Este modelo, precursor de lingeries como o Shape Couture, é uma das primeiras peças a re-unir todas as necessidades da roupa de baixo feminina em uma: o bodysuit é calcinha, soutien e modelador em peça única, que pode ser vestida diretamente sobre a pele, eliminando a necessidade do uso de mais peças simultaneamente. Tal e qual a Little X, um dos grandes diferenciais deste corset, em relação às cintas dos anos 1930-50, é a mobilidade. Neste caso, no entanto, não é apenas a diferença na matéria que contribui para uma nova configuração da liberdade de movimentos, mas o próprio desenho do body que recria o conjunto de regras da postura e da dinâmica feminina. Como a Little X, este corset é confeccionado em um tecido que contém Lycra® em sua composição, proporcionando uma elasticidade em todas as direções. Mas ao contrário dela, sua constituição em peça única, aliada ao desenho fechado entre as pernas, como um maiô (ou collant de ginástica), permite uma mobilidade total das pernas. Traçando um paralelo hipotético, caso Mary Quant decidisse criar uma publicidade que exaltasse o movimento permitido por este body, ao invés do salto em “X” escolhido para a publicidade da “Little X” – que manifesta uma abertura das pernas em apenas 90˚ – a modelo do anúncio provavelmente apareceria performando um split ou spacatto, com abertura das pernas em 180˚. Mesmo deixando de lado as competências necessárias apenas aos esportes mais extremos, esta diferença ainda é da maior importância no âmbito da moda, do traje, e do contexto social que abriga estes dois modeladores. Começando pela moda, que é provavelmente uma das maiores motivações na escolha de um modelador ou outro, quando falamos da década de 1960, pensamos imediatamente na minissaia, que foi a grande marca desta geração. A minissaia, por sua vez, opõe-se ao vestido rodado e inflado com anáguas, conhecidas em inglês como petticoat, em voga na década de 130

1940-50. Neste contexto, portanto, há um desenvolvimento da importância das pernas nos trajes, que vai do mostrar apenas as canelas – de maneira que a constrição das coxas nas cintas não aparecia como um “problema” – ao mostrar as pernas inteiras – o que tornou o desenho tradicional da cinta um impedimento ao uso de uma das tendências de moda mais expressivas desta época. As duas formas de constrição, portanto, seja a Little X, seja este bodysuit, aparecem ligadas a duas tendências da moda do período, uma mais tradicional (ou mais “comportada”), a outra mais revolucionária, rebelde. As duas, igualmente, são voltadas para o público jovem. No caso da Little X, este apelo é presentificado pelas cores chamativas e brilhantes, mas neste modelador, ele aparece já na nomeação da linha, “Youthlines”, ou “linhas da juventude”. Tratam-se de duas “juventudes” distintas, mas coexistentes em uma mesma época. Como analisado, a Little X é uma versão mais ajustada do corpo da década de 1930-50, mas opta por manter o mesmo desenho, além de perpetuar, pela presença das ligas, o uso das meias de seda. Ela enuncia, portanto, que a nudez das pernas não é uma maneira correta de apresentar-se, e igualmente delimita o comprimento de saia “permitido”, uma vez que uma saia muito curta proporcionaria a visão da cinta e das ligas. No bodysuit, no entanto, qualquer comprimento de roupa abaixo da linha da calcinha é permitdo, bem como o uso de calças e bermudas, três configurações de traje que exaltam uma mobilidade feminina que em nada difere daquela que, outrora, aparecia como exclusividade masculina. Este body ataca, portanto, também a diferenciação entre os gêneros. Se as cintas “condenam” as mulheres ao uso de saias, uma vez que seu desenho não permite o uso de outra peça de roupa que separe as pernas, o bodysuit liberta as mulheres para vestirem as roupas que desejarem, e performarem nelas os movimentos e ações que bem entenderem. Em termos de modelagem do corpo, este corset também aparece mais como uma peça de cobrir o corpo do que de transformá-lo, mas alguns aspectos plásticos manifestam que, ainda que pouco, esta lingerie é capaz de modelar o corpo. Primeiramente, há uma perceptível gradação cromática, que vai da transparência total, nos seios, ao quase opaco, na faixa central que vai de entre os seios ao fundilho. Este degradê é obtido por meio da repetição do material, conforme a necessidade de contenção/constrição de cada área. Nos seios, ela é inexistente, por isso há apenas uma camada do material, que é liso e não possui nenhuma modelagem, à exceção da pence no centro de cada taça, que visa acomodar o desenho natural dos seios, suportados por aros metálicos reforçados. A segunda 131

gradação é a camada única de um tecido um pouco mais fechado, mas ainda transparente, que forma as laterais (e a traseira) do body, onde uma constrição “média” é necessária. Finalmente, na faixa central, que contorna o abdome central e abre-se, alargando-se no baixo ventre, há a dublagem do material mais fechado, e o contorno com as costuras de refoço na cor preta, em zigue zague. O contorno em preto será reiterado no elástico de acabamento (visível na figura 38, à direita), que dá a volta ao redor das pernas, e também no logo aplicado entre os seios, no qual as pétalas da flor são contornadas com um bordado espesso, igualmente na cor preta. Este detalhe aparece acompanhando as áreas de maior constrição, contornando-as, e é um elemento ausente no alto, no qual as linhas das costas e do soutien são contornadas em branco, sem nenhum detalhe de destaque. Há, de maneira semelhante, uma gradação de espessura da linha preta: a costura, mais fina, seguida do elástico que dá a volta nas pernas, e finalmente o bordado do logo, que é levemente mais espesso que a parte aparente do elástico, quando a peça encontra-se vestida. Considerando este mecanismo de destaque como atribuição de valor a cada uma destas áreas, a ordem hierárquica de importância de cada um destes elementos seria, em primeiro lugar, a marca “Mary Quant”, em segundo as pernas e, em terceiro, a faixa centro frontal contornada pelo zigue e zague. A começar pela marca, apesar das controvérsias, a minissaia é uma “invenção” geralmente atribuída à própria Mary Quant. No contexto de um modelador cujo grande diferencial é permitir o uso desta importante peça de roupa, é natural que a própria marca coloque-se, no centro do peito, como sujeito que competencializa o corpo para seu uso. O fabricante aparece como parceiro, destacando que a liberdade das pernas, importante para o sujeito usuária (e por isso destacada no desenho do modelador), é um diferencial da marca Mary Quant, e por isso também ela é importante, merecendo destaque no desenho do body. A marca, no entanto, não possui uma tipografia ou um verbal manifestado, e a flor pode ser lida igualmente como uma decoração, um detalhe de embelezamento deste corset, sugerindo que não se trata de uma escolha fortemente investida de apelo publicitário – como o é, por exemplo, a presença verbal de “Calvin Klein”, em cores contrastantes, nos elásticos das calcinhas e cuecas – mas de uma presença mais sutil do fabricante em seu produto. É possível ler tais manifestações, no plano do conteúdo, como uma isotopia da parceria entre Mary Quant e sua usuária, para a construção de um corpo emancipado dos 132

modelos opressores do corpo feminino. O bodysuit é um tipo de corset construído em tecidos delicados, macios, estésicos, que não proporciona uma constrição além do necessário, cobrindo o corpo o mínimo o possível, ao mesmo tempo em que, pela liberdade das pernas, permite à usuária uma mobilidade muito maior das pernas. Esta mobilidade, por sua vez, é também um duplo “fazer ver” as pernas, que aparecem como ponto mais importante do corpo. Por um lado, a ausência de ligas permite que as pernas estejam nuas, sem meias, e que sejam exibidas em uma minissaia, sem o risco de mostrar um modelador longo demais, como a Little X. Por outro, o bodysuit permite o uso de calças compridas que, apesar de não mostrarem a pele das pernas, mostram seu formato, diferente dos vestidos rodados que dissimulam as linhas das coxas. Diversamente, é possível afirmar que este é o único caso analisado neste trabalho em que a topohierarquia do corpo encontra-se no exterior do corset, em uma região não englobada por ele. Ainda que exista uma modelagem do corpo – que, tradicionalmente, concentra-se em sustentar os seios, achatar o abdome e a cintura – esta perde em importância, quando comparada à mobilidade e visibilidade conferida às pernas, deslocando o olhar do enunciatário para baixo, mas não para o ventre, para a região sexual, e sim para as próprias pernas nuas. Não menos importante, a plástica deste bodysuit também manifesta, como apreendido no Shape Couture, um traço de constrição sexual, uma vez que o corset recobre o genital com o material mais rígido, além de selá-lo com uma fileira de colchetes que abrem e fecham a abertura higiênica. Este fechamento do sexo aparece, neste corset, como a condição para a conjunção com a mobilidade das pernas, e é investido, da mesma maneira que o Shape Couture, de um valor de negação do papel feminino. Esta negação, porém, não aparece ao lado da sujeição do corpo a um padrão, que não passa de um novo papel programado de feminino, mas homologa-se a uma luta por emancipação. A mobilidade das pernas combinada ao fechamento do genital aparece investida de um valor de igualdade ao outro sexo, o masculino, como uma reivindicação de dois importantes direitos: aquele de mover-se livrevemente, e aquele de não procriar. Os dois modelos identificados na década de 1960, portanto, constroem uma oposição de base entre duas tendências de moda do mesmo período, que homolam-se a dois modelos do feminino igualmente vigente. O primeiro deles, presentificado pelo uso da Little X, preserva uma topohierarquia do ventre como lugar do papel feminino, centro de seu corpo e de sua 133

existência no social. No segundo, no entanto, este centro é deslocado para as pernas, que deixam de ser constritas e cobertas, formando uma outra maneira do feminino, competencializado com uma dinâmica semelhante àquela dos homens. Esta parceria, na qual Mary Quant e o corpo descobrem juntos esta silhueta mais livre, é produtora de um forte sentido de libertação feminina, manifestada por uma topohierarquia do baixo sobre o alto. Esta valorização, no entanto, opõe-se à hierarquização por meio do destaque desproporcional dos quadris e do aparelho reprodutor, mas aparece por meio da atribuição de valor às pernas, protagonistas da moda de 1960. A modelagem do tronco em um certo formado, portanto, não é o principal alvo deste corset, ainda que alguma constrição seja exercida em pontos estratégicos. O objetivo principal não é da ordem da constrição, mas da liberdade: a liberdade das pernas, que foi pouco a pouco construída naquele contexto, como uma das facetas da liberdade feminina.

IV.3. Stays (1795)

Até então, nas duas peças analisadas, não é possível identificar uma interação entre corpo e corset que localize-se em um ajustamento “puro”. Ainda que exista uma constrição mais ajustada, apoiada em um arranjo matérico mais estésico, as configurações de corpo produzidas pelos dois corsets analisados acima não assumem um caráter subcontrário, localizando-se ambos em posições consolidadas como oposição de base. O primeiro termo, presentificado pela Little X, acaba por reenviar a uma programação anterior do corpo feminino, ao passo que o bodysuit de Mary Quant abre caminhos que apontam para a separação dos programas narrativos do corpo e do corset, sugerindo um caminho para o acidente. O que observa-se, portanto, é que nos dois corsets analisados até aqui não existe uma complementaridade entre o papel do corset e aquele assumido pelo corpo, quando vestido com uma das peças analisadas acima. Ainda que o corset apareça investido de competências estésicas, o corpo formado acaba por reenviar a outras possibilidades dos papéis femininos.

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Figura 40. Stays, 1795. Peça confeccionada em algodão, costurada à mão com linha de seda, reforços em fita de seda e barbatana de baleia, forrada com linho. Medida da cintura (acima das costelas, como era a moda do período): 57 cm, com a peça completamente fechada. Esta peça é considerada um modelo de transição, uma vez que é possível identificar os traços dos stays de 1780 (figura 9), que foram adaptados pelo corsetier. Eleri Lynn atribui esta necessidade de adaptação ao reaproveitamento de materiais pré-cortados, utilizados na confecção dos stays até o final do século XVIII (LYNN, 2001), obrigando os corsetiers ao improviso, produzindo um novo modelo que servisse à nova moda dos vestidos, mais rentes ao corpo, de cintura alta e sem crinolina, mas com os materiais disponíveis já adquiridos, evitando assim prejuízos. Imagem: Victoria & Albert Collection. V&A:T. 237-1983.

Na peça acima contudo, o par de stays de 1795, observamos a confluência da competência estésica de dois sujeitos principais da interação, o corpo e o corset, que reverberam o “fazer sentir” neles investido nos demais sujeitos da interação, como o corsetier, o vestido que recobrirá o corpo formado, e consequentemente, os demais sujeitos circundantes, formadores do contexto social deste corpo trajado. Após analisarmos as lingeries do século XXI e dos anos 1960, retornamos ao final do século XVIII, quando esta peça rudimentar presentificou a primeira grande ruptura com o corset tradicional. Trata-se da passagem de uma moda que perdurou por quase dois séculos, presentificada pelo traje à francesa, para a moda neoclássica, que durou apenas algumas décadas, do final do século XVIII ao início do XIX. Longe de constituir um fenômeno isolado da moda vestimentar, o período neoclássico investiu valores semelhantes também na arquitetura, na literatura (ECO, 2004), na pintura e nas demais maneiras de viver e interagir,

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todas elas relacionadas a um saudosismo da antiguidade clássica, exaltando um modo de vida mais selvagem, próximo da natureza. O primeiro “sintoma” desta moda é certamente a queda das perucas, das crinolinas, dos tecidos pesados e até mesmo do corset, cujo uso foi combatido e desencorajado (LYNN, 2010). Uma das marcas mais pronunciadas do neoclássico é a exaltação de tudo aquilo o que é “natural”, inclusive o próprio corpo: no lugar dos quadris exageradamente construídos, em oposição ao busto constrito nos rígidos stays do período anterior, a silhueta do neoclássico é mais reta, exibida em tecidos leves, esvoaçantes e transparentes, com decotes que exibem o desenho original dos seios. Este corpo, no entanto, era igualmente inatingível para a maioria das mulheres, como ressalta Eleri Lynn, ao dizer que longe de constituir um padrão natural de beleza, a moda do final do século XVIII era apropriada apenas para mulheres naturalmente magras (LYNN, 2010). Neste contexto, o abandono de qualquer lingerie constritiva não aparece como alternativa, uma vez que uma grande parte das mulheres do século XVIII não era dotada da silhueta almejada por esta tendência da moda. Apesar de aparecer como negação da moda anterior, do corpo formado para o traje à francesa por meio de corsets e crinolinas, muitos traços plásticos em comum com os stays anteriores (figura 9) podem ser apreendidos do desenho deste corset. A direção oblíqua das barbatanas, as alças e os picotes laterais, chamados de tabs, e até mesmo os acabamentos utilizados – os ilhoses e as costuras feitos à mão, os reforços em fitas de seda – reenviam imediatamente à moda do traje à francesa. Para Eleri Lynn, esta semelhança deriva do uso de materiais pré-cortados e pré-moldados na fabricação dos stays anteriores, que obrigaram os corsetiers a adaptarem-se à nova moda, pelo reaproveitamento da matéria prima já disponível (LYNN, 2010), o que explicaria igualmente o aspecto rudimentar, improvisado desta peça. Nos termos da sociossemiótica de Landowski, este improviso pode ser lido como um ajustamento (LANDOWSKI, 2005), primeiramente, entre o corsetier e o corset. A partir de um material pronto, destinado a tornar-se um par de stays como aquele analisado no capítulo II – caso sua programação fosse seguida – o corsetier vê-se obrigado a adaptá-lo a uma nova demanda de corpo. Neste contexto, todo o seu conhecimento, seus materiais e suas ferramentas tornam-se inúteis, pois seu uso pressuposto (LANDOWSKI, 2009) é capaz de produzir apenas uma peça de roupa cujo fazer encontrava-se já defasado por uma nova tendência de silhueta. 136

Resta ao corsetier, portanto, adentrar o domínio da prática (LANDOWSKI, 2009), em oposição ao uso das matérias e utensílios. Juntos, corset, corsetier, tesouras, linhas, agulhas e tecidos encontram um novo modo de interação, fundado em um regime de sentido inseguro, arriscado, no qual todos os sujeitos são igualmente importantes para a interação, e encontramse em contato, sem a mediação de objetos de valor. A descoberta do formato do corpo presentificado pelo formante eidético deste corset, no qual a curva é introduzida, passa necessariamente por uma descoberta do próprio corpo feminino (figura 2), que não era contemplado no traje à francesa. Familiarizado apenas com o corpo excessivamente constrito e reto daquela roupa de baixo (figura 7), o corsetier nos deixa as pistas de suas dificuldades no próprio trabalho realizado, por exemplo, nas taças: em lugar de um desenho arredondado produzido por uma pence ou por outra modelagem plana, há o desajeitado franzido gradual do tecido, que serve igualmente à função de bojo, de suporte dos seios. O mesmo “improviso” pode ser apreendido da desajeitada e irregular alça aplicada nas costas, na altura da cintura, que servia tanto como apoio para a cauda do vestido, quanto para dissimular a curva da lombar, considerada “indecente” no período (LYNN, 2010). Ao ajustar os stays à nova demanda do corpo, o corsetier necessariamente ajusta-se ao corpo feminino original, até então por ele desconhecido: em lugar de confeccionar uma pesada “armadura”, um exoesqueleto que alteraria completamente o corpo feminino, o corsetier “mutila” os stays – cortando sua frente e introduzindo nela um par de taças – para permitir que o desenho do corpo torne-se visível por baixo da roupa. Semioticamente, é possível ler este fenômeno como a passagem do corpo de objeto a sujeito da interação, perante os olhos do alfaiate/corsetier. Entre corset e corpo, o mesmo ocorre quando o primeiro deixa de oferecer constrição e passa a oferecer suporte. O emblemático desenho do decote do neoclássico, com seios muito baixos, arredondados e separados, só pode ser realizado por meio de uma ação do corpo: não é o corset quem empurra os seios para baixo, mas eles caem sobre as taças. Igualmente, em lugar de impor um desenho reto à coluna, como faziam os stays anteriores, o corset cria um volume, por meio de uma alça de tecido, que empurra o vestido, para que o efeito almejado, na traseira, seja construído. Da mesma maneira que o corsetier busca encontrar uma nova configuração de modelagem em parceria com seus instrumentos de trabalho e materiais, também corpo e corset encontram-se em um regime de união, no qual ambos são protagonistas da produção do sentido almejado. 137

O sentido construído no corpo, por sua vez, possuirá um forte impacto na silhueta que se manifestará no vestido. No exterior, a grande mudança será aquela apreendida no desenho dos seios, local de maior destaque do vestido, que aparece como reiteração da importância conferida a esta região do corpo no trabalho do corsetier.

Figura 41. Vestido, 1800. Confeccionado em múltiplas camadas de musselina bordada com linha de algodão. Imagem: Victoria & Albert Collection. V&A:T.785&A-1913

Retomando as questões levantadas nas analises dos vestidos, no capítulo II, é possível perceber que este traje coloca-se em posição de negação dos dois vestidos formadores da oposição de base apreendida naquele recorte do corpus. Ainda que o tecido escorra pelo chão, projetando-se no espaço, sua composição em múltiplas camadas transparentes e graduais não parece delimitar um espaço pessoal, mas fundir-se ao espaço no qual encontra-se: a sobreposição do tecido, que vai cada vez um pouco além da camada anterior, cria um arranjo 138

cromático de nuances de diferentes intensidades de transparência, produzindo um efeito de sentido de gradação, ou progressão da abertura do limite estabelecido. O efeito apreendido do formante cromático é, por sua vez, uma propriedade matérica do vestido: construído em algodão, os efeitos de opacidade e transparência nada mais são que diferentes fiações da mesma matéria: quanto mais aberta a fiação da musselina, maior o efeito de transparência. Sua repetição, por sua vez, cria a impressão de fechamento e, consequentemente, a opacidade da cor branca. Este efeito de sentido de abertura aparece como reiteração do mesmo efeito apreendido no corset, na substituição da matéria enrijecida “linho” pelo uso do algodão sem a aplicação de cola. A própria diminuição da quantidade de barbatanas de baleia é produtora de uma abertura literal, como se a “fortaleza” de barbatanas identificada no desenho dos stays de 1778 fosse dissolvida, substituída por uma estruturação mais pontual, mais ajustada às necessidades. Seja na frente, seja nas costas, o maior destaque do vestido encontra-se no alto, na profundidade e volume do decote, ou no volume concentrado no meio das costas, de onde pende a cauda do vestido. Mas mais importante do que quaisquer topohierarquias que possam ser apreendidas deste traje, o aspecto mais marcante deste vestido é a proximidade demandada por sua apreensão: seu monocromatismo, por exemplo, dificulta a apreensão do belíssimo trabalho do bordado na mousselina. À distancia, este traje pareceria pouco elaborado, um simples vestido branco. Na proximidade entre sujeitos, contudo, é possível perceber que tratase de uma composição em listras, alternando faixas lisas e bordadas com um motivo floral, em arabescos de galhos e pequenas flores. Esta proximidade, no entanto, não é impositiva, prescritiva, como é a bainha suspensa do traje à francesa. Pelo contrário, a gradação das musselinas convida a uma aproximação lenta, que proporciona uma mescla entre o espaço do enunciador e do enunciatário, promovendo igualmente uma igualdade entre eles, borrando os limites entre um e outro. Esta gradação encontra-se já presente no arranjo do corset, não de maneira poética, como a sobreposição de musselinas, mas pela descontinuidade das linhas que formam os limites entre o corpo e o corset. Seja nas tabs, seja no franzido das taças, o corset não desenha uma linha reta, contínua, entre ele e o corpo, mas sim um apanhado de linhas quebradas, em zigue zague. Sem a existência da crinolina, que quando combinada ao corset torna-se, com ele, uma única peça, é com o corpo que este corset funde-se. 139

A discontinuidade das linhas aparece, da mesma maneira que na roupa de baixo do traje à francesa, como a sinalização da necessidade da colaboração de outro sujeito – no caso dos stays de 1780, a crinolina – para a formação da silhueta. Naquela lingerie (figura 7), a única linha descontínua do corset concentrava-se no seu acabamento inferior (as tabs), e combinava-se à linha descontínua do acabamento superior da crinolina (o fechamento franzido), local onde as duas peças uniam-se. No alto do corset e na bainha da crinolina, no entanto, as linhas eram retas e contínuas, separando o domínio do corpo construído daquele do corpo original. Neste corset, diferentemente, as linhas descontínuas encontram-se tanto no alto quanto no baixo, manifestando que o sujeito “adjuvante” da formação do corpo é o próprio corpo, cujos seios e cintura devem encaixar-se no corset. Esta mesma descontinuidade de linhas será reiterada no desenho em camadas do vestido. No alto, as descontinuidades matérico-cromáticas permanecem convidando o corpo – os braços e o colo – a complementar o arranjo. Na bainha, a gradação de limites convida o outro, o sujeito com quem busca-se inter-agir – e neste caso, não trata-se apenas de sujeitos humanos, mas do próprio sujeito ambiente, preferencialmente o ambiente natural, como pede o período – a complementá-lo, fundindo-se a ele. É possível apreender deste traje uma forte isotopia da união não hierarquizada: entre corsetier e corset, entre corset e corpo, entre conjunto corset-corpo e vestido, e entre o todo do sujeito, formado por todos os atores anteriores, com aquilo que encontra-se exterior a ele, sejam os sujeitos humanos que o circundam ou seu próprio ambiente. Neste sentido, não existe uma hierarquização de lugares do corpo, uma vez que a própria hierarquia – promotora, por sua vez, da separação – deixa de ser um valor. Pode-se interpretar, finalmente, que este arranjo formado por traje e corset é promotor de uma interação mais livre, em lugar daquela extremamente didática promovida pelo traje à francesa. Na ausência de maneiras constritas, marcadas pelo traje, é possível a criação de sentidos mais livres também para o corpo e para o próprio feminino. Na abordagem de um recorte dedicado às tendências de transição, esta certamente é aquela que melhor presentifica a manifestação do início de uma tendência, na qual não é possível apreender seu desfecho, ou sua consolidação em uma próxima configuração de corpo, o que talvez explique a efemeridade desta forma de “constrição” no contexto da moda ocidental.

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IV.4. Corset (1820)

Figura 42. Corset, 1820, confeccionado em linho com camada externa em algodão, decorado com trapunto em linha de seda e barbatanas de baleia. Medida da cintura: 52 cm, com o corset completamente fechado. Considerando o modelo anterior como marca da ruptura com os stays, este modelo presentifica o que pode ser abordado como o desenvolvimento e aperfeiçoamento das tendências que aparecem de forma mais rudimentar nos stays de 1795: o espaço para os seios aparece modelado de maneira mais eficiente, e a silhueta é alongada até a altura dos quadris, eliminando a necessidade a improvisada alça nas costas. Imagem: Victoria & Albert Collection. V&A:T.57-1948

Se os stays de 1795 presentificavam um sentimento legítimo de ruptura com a moda anterior, do traje à francesa, a continuidade da moda neoclássica, até o início do século XIX, desenvolve-se enquanto uma consolidação de um novo ideal de beleza instituído, acompanhada dos aperfeiçoamentos necessários. Este aprimoramento manifesta-se principalmente nas evidentes alterações do desenho do corset, que busca produzir um sentido semelhante à silhueta de 1795. A diferença, no entanto, é apreendida no interior da roupa, tal e qual analisamos na moda do Tea Gown, do início do século XX, no item II.3. 141

A moda levemente “rebelde” do final do século XVIII, associada à oposição ao Antigo Regime e à monarquia vigente, sobretudo na França, tornou-se, no início do século XIX, a nova moda vigente. O que outrora surge como busca por liberdade aparece, nesta moda, como a reescritura deste ideal em atributos que presentificam o desenho de corpo almejado como padrão de beleza: o desenho pronunciado dos seios, os ombros baixos, com aspecto “caído”, a cintura alta marcada, e os quadris estreitos, sobre os quais o vestido deve cair em uma silhueta mais afunilada, rente ao corpo.

Figura 43. Georges Rouget, “As srtas. Mollien”, 1811. O retrato de duas moças do início do século XIX presentifica bem os traços plásticos descritos como valorizados pela moda neoclássica: os seios redondos, baixos e separados, expondo o colo em um decote pronunciado, e o desenho descendente, “derretido” dos ombros, assim como a cintura alta marcada e a silhueta magra, permitindo o uso do vestido leve e rente aos quadris. Imagem: História do Vestuário no Ocidente.

O desenho do corset analisado no item anterior surge de uma união entre corsetier, corset e corpo, da qual emerge um desenho de silhueta mais livre, ajustado. A consolidação da tendência ali produzida, no entanto, cria o desejo de re-produzir esta configuração, não investida do conteúdo de liberdade do corpo – cujo resultado deveria ser a exaltação de 142

quaisquer desenhos de corpo natural – mas enquanto imitação dos traços plásticos, inclusive exagerados, enfatizados, conferidos ao corpo. Esta busca por eficiência da modelagem fica evidente no formante eidético do corset que, apesar de formar uma silhueta muito semelhante àquela do corset anteior, opõe-se aos stays de 1795. As linhas descontínuas, por exemplo, são substituídas por linhas retas no limite superior e inferior do corset, e a silhueta curta, que recobria apenas dos seios à cintura alta, passa a recobrir o torso todo, até a linha dos quadris. A matéria mais suave, o algodão, é mantida, bem como todas as propriedades identificadas no corset anterior (figura 40) permanecem presentes. Trata-se de um tecido de trama mais aberta que o linho, de toque mais macio, que promove uma maior estesia no contato com o corpo. Contudo, ao contrário do uso identificado nos stays de 1795, aquele da matéria lisa ou repetida pelo franzido, neste corset de 1820 ela é reforçada por meio do trapunto, uma espécie de bordado em “ponto atrás”, com linha espessa, que atravessa e une as duas camadas de tecido, endurecendo-as. O uso do trapunto, por sua vez, auxilia na identificação de áreas de maior constrição, uma vez que sua função é aquela de endurecimento da matéria macia e maleável (o algodão) utilizada na confecção deste corset: a maior concentração de bordados encontra-se na lateral da cintura alta, no centro dos seios, e estende-se, na frente, ao longo de todo o comprimento do corset. As áreas englobadas pelo trabalho em trapunto, no entanto, não são as únicas áreas constritivas desta peça, uma vez que até mesmo as alças são reforçadas, cuja função é claramente aquela de forçar os ombros para baixo – o que explicaria a distância reduzida entre a linha das alças e da cava, certamente produtora de um grande incômodo durante o uso. O ponto mais importante do traje, contudo, permanece sendo o seio, que é duplamente destacado no desenho do corset: pela constrição do tórax, local onde localizava-se a “cintura” do período, e pela grande seta formada pelo recorte frontal, onde localizam-se costuras oblíquas que abrigam as barbatanas, as quais atuam reforçando a frente. Este detaque é reiterado pelo desenho do trapunto nas próprias taças, cujo desenho do bordado contorna os seios, apontando para eles e para a linha do decote. Se no corpo formado pelos stays de 1795 há uma desvalorização da hierarquia no desenho do corpo, a consolidação daquela silhueta nesta tendência de moda funda-se na valorização do colo, mais precisamente da linha formada pelos ombros e seios “caídos”, que criam uma marcada relação de visibilidade da porção superior do torso. O olhar é atraído para 143

o alto, para o decote e o peito nu, únicas regiões do vestido que recebiam, neste período, algum adorno. A constrição da cintura alta, portanto, atua para o destaque principalmente dos seios, a partir dos quais o olhar é carregado para os ombros e para o colo. O destaque tradicional dos atributos femininos relacionados à sexualidade não encontra-se manifestado por este corset, mas a formação deste corpo a partir de uma setorização – semelhante àquela apreendida nas linhas da bermuda de Dr. Rey (figura 30) – remete à conformação de um corpo natural a um corpo ideal. Independentemente deste corpo ideal ser enaltecido como muito próximo àquele “natural”.

Figura 44. Corset, 1820. Detalhe do bordado em trapunto na altura das taças, no qual o desenho progressivo em losangos e semicírculos auxilia no endurecimento da região abaixo dos seios, conferindo suporte a eles, ao mesmo tempo em que, quando lido como decorativo, o bordado cria linhas que colocam os seios em posição de visibilidade privilegiada no desenho do corset. Imagem: Victoria & Albert Collection.

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Entre dois corsets relacionados a um mesmo corte de vestido, cria-se uma oposição subcontrária, entre a construção de um efeito de sentido de liberdade e leveza, obtido no entanto pela modelagem constritiva do corpo, e a criação de uma condição mais livre do corpo. A manifestação desta silhueta, no exterior, é muito semelhante: o corpo produzido por ambos os corsets apresentará seios pronunciados, arredondados e “caídos”, com um desenho de colo mais amplo, ombros de desenho descendente, e cintura alta (tórax) destacada. O que separa os dois modelos, contudo, são os meios empregados na obtenção desta silhueta: em um caso, é a voz do próprio corpo, apoiado sobre o corset, que produzirá este desenho exterior; no período seguinte, é outra vez a voz do corset, que constringe e modela, a configurar o corpo em um desenho novamente construído, que não pode mais manifestar um emblema de liberdade, pois abarca, mais uma vez, a dupla sujeição, do corpo ao corset, e da silhueta a um ideal ditado por outrém, pela moda.

IV.5. Amarração

Os quatro corsets analisados neste recorte do corpus – a inovadora cinta “Little X” (figura 34), a primeira elástica em todas as direções; o primeiro bodysuit, desenhado por Mary Quant (figura 38); os stays de 1795, modelo de transição para o período neoclássico (figura 40); e finalmente, o corset de 1820 (figura 42), que traz um aperfeiçoamento dos traços plásticos introduzidos pelos stays de 1795 – apresentam, sobretudo em seu formante matérico, traços de uma interação mais ajustada com o corpo. Seja na utilização de matérias elásticas, mais abertas, seja na substituição do linho reforçado com cola pelo algodão, seguido de uma diminuição do uso das barbatanas de baleia, os quatro corsets analisados aparecem como negação dos corsets pertencentes ao recorte do capítulo II, uma vez que seus arranjos configuram-se como peças mais maleáveis, macias, menos rígidas e, consequentemente, menos impositivas. Desta maneira, considerando o papel do corset como um aspecto isolado, sua competência sensível pode ser apreendida nas quatro relações analisadas. Começando pela Little X, a possibilidade até então inédita de movimentação em todas as direções presentifica uma maior subjetificação do papel do corpo na interação com a cinta. O mesmo pode ser apreendido do bodysuit de Mary Quant, não tanto pela elasticidade da peça – que, após o 145

lançamento da inovadora Little X, já não constituía uma grande novidade no mundo da lingerie – mas principalmente pela liberdade total conferida às pernas, fruto da diminuição do seu comprimento, e aliada ao desenho de maiô ou collant, que une todas as roupas de baixo necessárias em uma única, produzindo, além da mobilidade, uma maior dinâmica e praticidade da lingerie feminina. O mesmo “respeito” ao corpo feminino, apreendido sobretudo no formante matérico dos corsets, é reiterado nos subcontrários, onde o corpo assume ora um papel igual ao do corset, na interação com os stays de 1795, ora um papel hierarquizado, que muito lembra aquele do destinatário, como analisado no capítulo III, no recorte do corpus relativo ao século XXI. Seja nos contrários, seja nos subcontrários, a silhueta formada pelos dois termos em relação de oposição é semelhante, senão idêntica. A linha que separa a sujeição do corpo a um ideal – apreendida no uso da Little X e do corset de 1800 – e sua emancipação – presente no uso do bodysuit e dos stays de 1795 – é muito tênue, e não pode mais ser apreendida no desenho exterior do corpo, manifestado pelo traje completo. Até mesmo as matérias utilizadas são semelhantes: os tecidos com Lycra® nos modeladores dos anos 1960, e a combinação entre algodão e barbatanas de baleia, no eixo do final do século XVIII e início do XIX. O que separa os modeladores nos já explorados eixos e dêixis, portanto, é o sentido conferido ao corpo que veste o modelador, resultado da interação entre estes dois sujeitos. Partindo da oposição de base, formada pelo uso da Little X e do bodysuit de Mary Quant, é possível perceber que um corpo de desenho semelhante pode remeter tanto a um corpo mais tradicionalmente feminino, aquele dos anos 1930-50 – principalmente quando apreendido em conjunto com o uso do soutien, necessário para complementar a modelagem do torso – quanto a uma configuração de corpo de pernas livres, extremamente revolucionária. Ainda que exista uma mudança no estado produzido no corpo – no qual uma maior mobilidade passa a ser aceita, permitida – a silhueta não é recriada, quando tomada em comparação ao padrão de corpo já em circulação desde meados dos anos 1930, o que justificaria o pertencimento destes dois corsets ao eixo dos valores tradicionais. Ainda que ocorra uma não-continuidade do papel temático do corset, a mesma ruptura não é apreendida no desenho de corpo resultante de sua ação. Nos subcontrários, de maneira semelhante, encontramos a união de uma mesma tendência de corpo, mas com sentidos diferentes no interior do traje. Nestes dois corsets – aquele de 1820 e os stays de 1795 – ao contrário dos modeladores da década de 1960, uma 146

expressiva ruptura com os corpos em circulação pode ser apreendida. Por um lado, há uma inversão da hierarquização difundida do corpo, com ênfase no quadril, que cede lugar a uma valorização do busto, ou de uma não hierarquização, via constrição, de parte alguma do torso. Este deslocamento do olhar pode igualmente ser lido como um deslocamento do papel temático feminino, uma vez que a visão do observador, o enunciatário, deixa de ser atraída exclusivamente para os quadris, o baixo ventre e o sexo, e passa a ser convidada a explorar os seios, o colo e o rosto. No conexto de dois séculos ou mais de uma moda de destaque exaustivo dos quadris, esta tendência torna-se, mais que atual, verdadeiramente inovadora, ao produzir um desenho de corpo que inverte a lógica estabelecida de formação da silhueta e, com ela, dos regimes de visibilidade e interação entre os sujeitos de um dado contexto. O mesmo corpo, assim, pode ser produzido a partir da sujeição ou da emancipação, seja na silhueta magra dos anos 1960, seja no corpo de seios abundantes e ombros caídos da virada do século XVIII para o XIX. A diferença concentra-se sobretudo na ação que o próprio corpo espera do corset, ele mesmo demandando ora uma maior liberdade – e portanto, uma maior autonomia – ora uma ação mais rígida, mais próxima da ação tradicionalmente atribuída ao corset. Do lado da emancipação, o papel de formador do corset é diminuído, tornando-se um parceiro do corpo, cujo papel na realização da performance – ou do contato – é igual. Em lugar de trans-formar o corpo, o corset cria o ambiente ideal para que a potencialidade da silhueta se desenvolva plenamente, seja criando a liberdade das pernas, nos anos 1960, seja provendo suporte, ao invés de constrição, aos seios e à coluna, no século XVIII. Na formação do mesmo desenho de corpo a partir da sujeição, é possível perceber que existe um maior protagonismo do corset, que ajusta-se à vontade do corpo, que demanda a sujeição. Trata-se, em lugar do desejo por um estado de corpo mais livre, como aquele promovido pelos stays de 1795 ou pelo bodysuit, do desejo da assimilação de traços plásticos particulares, que demandam, por sua vez, uma ação mais severa do corset, que é convidado a marcar a cintura com firmeza, no caso da Little X, ou a modelar tórax e ombros com maior rigor, no corset de 1820. O resultado desta segunda forma de inter-agir é a imposição de traços plásticos, outrora relacionados a uma situação de liberdade, que são atingidos, em uma relação de contrariedade ou contradição, justamente pela constrição, pela conformação, ou pela sujeição do corpo. 147

Figura 45. Quadrado dos corsets reformulados, regidos pelo regime de ajustamento.

Após a realização das análises que ocuparam os três últimos capítulos, é inevitável perceber que existe uma marcada reiteração de traços plásticos, que ocuparão sempre as mesmas posições nos quadrados desenvolvidos até então. Trata-se, em primeiro lugar, da apreensão das linhas em “X”, sempre presentes no primeiro termo da oposição de base: o entrecruzamento de linhas presente no traje à francesa (figura 5), que repete-se no La Perla Shape Couture (figura 22) e na modelagem da Little X (figura 34). De maneira semelhante, nos corsets que ocupam a posição de implicação ao termo que apresenta o “X” em seu desenho, encontramos três corsets que trabalham os tecidos do corpo a partir de sua divisão ou setorização anatômica – trata-se do corset S-bend (figura 18), da bermuda de Dr. Rey (figura 30) e do corset de 1820 (figura 42). Finalmente, na posição de negação do primeiro termo, identificamos os corsets que promovem uma maior abertura do corpo, a partir de uma minimização de sua ação, produtora de uma maior autonomia de seu desenho natural. Os três casos que apresentam este traço plástico recorrente: o underbust de 1906 (figura 20), o slip de TC Fine Intimates (figura 29) e os stays de 1795 (figura 40). A principal marca do segundo termo da oposição de base, contudo, é aquela da imprevisibilidade, que geralmente indica um caminho de ruptura com o próprio uso da lingerie constritora, ainda que esta fratura encontre-se até então em um modo de existência virtualizado, ou incoativo (GREIMAS & COURTÉS, 2012), ou seja, localizado antes do início da ação. Elaborando melhor, é possível apreender, na roupa de baixo de 1880 (figura 148

11) o indício da queda do corset e da crinolina, ainda que este fato não encontre-se ainda em curso. No caso do corset de Agent Provocateur (figura 25 e 26), diferentemente, a ruptura com a modelagem do corpo encontra-se já realizada, mas o corset ainda encontra-se presente de maneira simbólica, com apenas três de seus quatro formantes plásticos tradicionais manifestados. Finalmente, no caso do bodysuit (figura 38 e 39), a modelagem do corpo ocorre, mas deixa de ser capaz de produzir uma hierarquia do torso, afastando-se completamente do papel temático apreendido do corset tradicional. Estes três casos manifestam três formas de ruptura – com a própria lingerie, com a conformação do corpo, e finalmente, com o papel de deslocar a atenção do enunciatário para a parte constrita do torso. Esta breve síntese das análises possui o objetivo de preparar uma base que axiliará na compreensão dos sentidos estudados no próximo capítulo, no qual o caminho traçado pelos três recortes do corpus expostos até então apresentará a realização das rupturas “gestadas” pelas relações ali identificadas. Em outras palavras, os valores revolucionários que aparecem apenas sugeridos no vestuário, desde o século XIX, tomarão vida no próximo capítulo como a realização destes valores, responsáveis por explícitas rupturas tanto do papel do corset, quando do papel do feminino formado a partir de seu uso, e suas consequentes reverberações no âmbito social. Confirmando a relação de implicação entre os valores manifestados neste recorte, e aqueles que serão apreendidos no recorte seguinte, os mesmos quatro objetos aqui analisados indicam, de certa maneira, o caminho para o acidente que será abordado em quatro momentos históricos da moda e do feminino ocidental: a ruptura completa com quaisquer formas de constrição; uma moda mais ajustada, procurando no corpo nu o suporte ideal para o vestido; a assimilação extrema de um ideal já estabelecido; e finalmente, a assimilação de um traço plástico emancipatório, mas traduzido na volta ao uso do corset.

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V. Co-incidências entre corset e corpo

Um dos desafios da presente pesquisa foi aquele de postular o que seria uma descontinuidade do uso do corset. Por um lado, a lógica remeteria ao não-uso, ou seja, ao corpo livre. Mas seria possível, em um estudo analítico do uso da constrição, considerar a liberdade anterior ao seu uso como o termo oposto à própria constrição? Esta dúvida delineou, portanto, que só se poderia definir um termo de liberdade oposto ao termo constrição, considerando uma liberdade que venha da ruptura com a constrição, ou seja, posterior à sua prática – ou uma oposição de base entre contrição e liberdade seria formulada ao contrário, considerando a liberdade como o primeiro termo do discurso, a partir do qual seriam definidos os demais. Fundamentando, portanto, a ruptura com a constrição como o contrário de constrição, o primeiro momento histórico que vem à mente é aquele das revoluções de 1968, da suposta “queima do soutien”, da destruição de todos os objetos – e aqui empregamos o termo “objeto” inclusive no sentido semiótico – que presentificassem a prisão, tortura e opressão feminina. O movimento de 1968, porém, não é isolado ou sequer “repentino”: esta grande revolução feminista foi gestada desde o século XVIII, quando as primeiras lutas por emancipação feminina surgiram por toda a Europa, ainda que de maneira tímida, com pouca adesão e visibilidade e, principalmente, pouco sucesso na conquista pelos direitos femininos reivindicados (BEAUVOIR, 1976, vol. 1). Assim como estas lutas propriamente feministas permearam o cenário histórico de todo o século XIX e XX, também a busca por um abandono da constrição não é uma novidade dos anos 1960. O final da Belle Époque, nos anos 1910, sofreu alterações turbulentas nas tendências da moda, primeiro pelos designs de Paul Poiret, seguidos pela realização plena de suas proposições através do estilo de Coco Chanel (BAUDOT, 2002), que propunham, ambos, não uma revolução violenta como aquela de 1968, mas simplesmente um enaltecimento do corpo nu como suporte do vestido, uma desconstrução do talhe feminino, em oposição ao corpo construído pelo corset e pela crinolina então em voga. Estes dois emblemas compõem, de um lado, um abandono do corset como descontinuidade, dentro de uma tipologia do uso da constrição. Por outro, porém, é possível analisar certas formas do uso como descontinuidade, uma vez que estes não apenas abalam os papéis temáticos dos quais os atores encontravam-se investidos, como propõem uma descontinuidade da regularidade simbólica dos atores corset e mulher. 150

Existe até a atualidade uma crença de que o uso do corset sempre foi excessivo e radical, e de que todas as mulheres do século XIX possuíam cinturas menores que 50 centímetros quando, efetivamente, a cintura média dos 1850 possuía em torno de 66 centímetros (STEELE, 2001) – uma cintura entre os tamanhos 38 e 40 do padrão de medidas brasileiro atual (Cf. FULCO & ALMEIDA SILVA, 2008). Este fato pode ser confirmado ao retornarmos aos corsets analisados nos capítulos anteriores, percebendo que nenhum deles apresentou uma medida inferior a 50 centímetros, mesmo quando completamente fechados sobre o corpo – o que, como mencionamos no capítulo I, não constituía o uso comum de um corset, que geralmente possuía uma abertura nas costas, sobre a coluna. Isto não significa, no entanto, que a prática do tight lacing 15 não existiu: amplamente documentada em registros históricos, cartas, revistas e inclusive fotografias do século XIX, o extreme tight lacing existe até a atualidade e é praticado até mesmo de maneira competitiva: o record de menor cintura do mundo é detido pela tightlacer americana Cathie Jung, cuja cintura, ao vestir o corset, mede 15 polegadas (38.1 centímetros)16 . Mas é possível afirmar que tal uso extremado encontra-se fora de uma programação do uso da constrição? Os relatos acerca do tight lacing extremo nos dão diversas pistas sobre a descontinuidade da qual esta forma do uso encontra-se investida. Primeiramente, e talvez o mais importante, o extreme tight lacing não foi praticado exclusivamente por mulheres, mas é praticado, inclusive até hoje, igualmente por homens (STEELE, 2001). Este uso, portanto, não está relacionado à adequação a uma silhueta em voga, mas sim à formação de uma silhueta outra, que não pertence ao âmbito da tendência de moda, ou mesmo a quaisquer gêneros. No século XIX, o uso de corsets exageradamente constritivos também foi associado ao fetichismo e a outras doenças psiquiátricas e, sobretudo, a silhueta extremamente constrita pelo corset, seja ela de um homem ou de uma mulher, vem geralmente associada, nos relatos acerca desta prática, ao grotesco, ao bizarro, à feiúra (STEELE, 2001). Se um uso programado do corset vem investido da vontade de enquadrar-se em um ideal de beleza vigente, o desejo de afinar a cintura ao máximo, parecer este tido como feio pelo mainstream de uma época, encontra-se evidentemente à margem da moda, e igualmente da sociedade, uma vez que diversos 15 Em tradução livre, “laço apertado”, termo utilizado universalmente para definir a prática de diminuir a circunferência da cintura além do padrão em voga, seja por homens ou mulheres, provocando uma modificação radical do desenho do corpo. A definição “tight lacing” existe apenas na língua inglesa, o que levou David Kunzle (2004) a precisar esta prática como uma “perversão” exclusivamente inglesa. 16 Cf. Guiness World Records, disponível em: http://www.guinnessworldrecords.com/smallest-waist-livingperson/

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praticantes do tight lacing extremo eram (e ainda o são) tidos como freak shows, nos despertando o interesse não pelo viés da admiração de um belo, mas pela curiosidade. Outra questão que evidencia que tal prática beira o regime do acidente é o alto risco envolvido nela, da qual podem decorrer diversos acidentes, no sentido ordinário do termo: a constrição excessiva da cintura pode provocar deslocamento dos órgãos internos (como retratado pela figura 3), enfraquecimento dos músculos abdominais (e uma consequente dependência física do corset, ou de algum outro objeto ortopédico, para ficar sentado ou em pé), e o afinamento, ou até mesmo o enfraquecimento e o rompimento das costelas – como documentado por Ambroise Paré, em seus estudos de cadáveres femininos (apud. STEELE, 2001). Inclusive, acredita-se que alguns objetos do século XVII ou XVIII, os admirados stays construídos em puro metal, eram supostamente destinados a “tratar” desvios de coluna e enfraquecimento demasiado dos músculos abdominais (LYNN, 2010), indicando que a prática de excessos, apesar de não ser comum, era observada desde então. Landowski (2009) desenvolve, em seu artigo Avoir prise, donner prise, um estudo da figura do virtuoso: aquele que leva o mecanismo de dépassement ao máximo, exaltando o valor estético (e sublinhamos aqui que este valor não é necessariamente eufórico, ou positivo) de sua performance ao extremo. No caso do tightlacer, há um duplo virtuosismo: do corpo e do corset. Ambas as performances são superadas, a do corpo, capaz de aguentar a constrição cada vez maior de sua cintura, seguida de uma deformação igualmente pronunciada de sua silhueta; e a do corset, capaz de produzir estas formas cada vez mais excepcionais, que beiram o inquietante, sem ceder ou romper-se. Da mesma forma, a prática do extreme tight lacing demandava a confecção de objetos especialmente idealizados para este fim, uma vez que os fabricantes do século XIX dificilmente disponibilizavam modelos com medidas fora do padrão (Cf. SELESHANKO, 2012; STEELE, 2001), conferindo também ao corsetier um estatuto de virtuoso. Para que tal maestria na performance seja alcançada, contudo, o autor destaca a necessidade de uma “prática” de uma outra ordem, aquela fundada na regularidade do treino e da disciplina, da repetição. Esta necessidade abriga em si um outro risco, desta vez do esvaziamento de sentido da rotina (LANDOWSKI, 2009), ou de uma dessemantização (GREIMAS & COURTÉS, 2012). Além do risco do corpo, esta prática carrega consigo o 152

risco da perda do sentido, através das repetições necessárias para atingir a admiração almejada. Deste modo do uso extremo varia um outro, que é igualmente destacado do contexto programado. Trata-se do “corset obra de arte”, do corset como figurino: a lingerie modeladora deixa de ser um sujeito do fazer, atuante na rotina, destinador de uma configuração de corpo, para tornar-se um paradigma do guarda-roupas que pode ou não fazer parte de um look, e cujo papel não é mais fundamental na transformação do corpo. Esta forma de uso apareceu no final dos anos 1970, quando cantoras do punk exumaram o corset, morto e enterrado pelas feministas radicais da década anterior, e o investiram de valores de ousadia, sensualidade e rebelião contra padrões estabelecidos. Este uso revolucionário não ficou conhecido graças a estas jovens roqueiras, mas através da rainha do pop, Madonna, que uniu este uso acidental, enquanto oposição ao uso programado, aos corsets desenhado por grandes estilistas e maisons – como Jean Paul Gaultier e Yves Saint Laurent – verdadeiras obras de arte icônicas, mas que não são associadas à constrição tradicional, e sim a uma descontinuidade dos valores de feminino e masculino vigentes. O que une estas quatro formas do acidente ou do assentimento é, certamente, a coincidência. Ao destituir o corset de seu papel de destinador do corpo, os programas narrativos do corpo e do corset, outrora unidos, desentrelaçam-se. Esta separação torna os dois programas paralelos: o corpo passa a construir-se de outras formas – por meio de exercícios ou cirurgias – e o corset torna-se uma peça histórica, pertencente à esfera das coleções e acervos de museus. O acidente reside, portanto, no inesperado choque destes dois sujeitos, a mulher e o corset. Não há mais uma inter-ação entre corpo e corset, mas seu aparecimento (e desaparecimento) passa a ser fundado no acaso. O corpo encontra aqui sua emancipação máxima, tornando-se o destinador da sorte do corset. Probabilidade mítica e matemática (LANDOWSKI, 2005) encontram-se nestas formas do uso: por um lado, suas idas e vindas na moda tornaram-se imprevisíveis, mas são, ao mesmo tempo, regidas por um ciclo do tempo cronológico que pode ser observado ao longo das décadas do século XX. Seja na destruição do corset, seja na destruição do corpo que ele pode promover – mas somente se for “comandado” por seu destinador – o corset encontra-se investido de um papel catastrófico (LANDOWSKI, 2005) e o regime de risco é aquele do risco puro: risco da integridade do corpo, ou o risco da própria extinção do corset. Por um lado, o dépassement máximo do 153

extreme tight lacing abriga o risco da dessemantização, ao mesmo tempo em que os possíveis efeitos desta prática contribuem para a perpetuação de mitos que advogam contra seu uso, produzindo argumentos contrários à sua própria continuidade enquanto parte da indumentária feminina. Por outro, o enfraquecimento de seu papel de transformador coloca-o em um papel de objeto desnecessário, supérfluo, cujo uso ou não uso é regido por uma probabilidade matemática, que depende de um sujeito alheio, cujo programa narrativo não se encontra mais entrelaçado àquele do corset: o sujeito corpo.

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V.1. The Freedom Trash Can

Figura 46. Freedom Trash Can, parte do protesto que ocorreu durante o concurso Miss America 1969, no dia 7 de Setembro de 1968. O protesto foi organizado pelo movimento New York Radical Women (Mulheres Radicais de Nova York), parte do movimento maior pela libertação das mulheres, conhecido como Women’s Liberation. Muitos protestos, de outras células feministas e em outros estados americanos, ocorreram no período, muitas vezes em concomitância com os protestos da esquerda estadunidense contra a Guerra do Vietnã. Este protesto, no entanto, foi o que produziu maior visibilidade mediática – uma parte dele ocorreu no interior do concurso, onde algumas das ativistas levantaram uma faixa que dizia “Women’s Liberation” diante das câmeras que transmitiam o concurso – tornando-se um emblema da luta feminista. O protesto ficou eternamente conhecido como “A queima do soutien”, que na realidade não foi permitida pelo departamento de bombeiros. Igualmente, a “Lata de lixo da liberdade”, na qual intencionava-se queimar os soutiens, continha não apenas as lingeries, mas muitos outros objetos da “opressão feminina”: cintas, maquiagem, meias de seda, sapatos de salto, cílios postiços, produtos para o cabelo, esfregões, vassouras, panelas, e até mesmo revistas playboy. Foto: ABC. Imagem: Media Myth Alert.

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A associação da constrição do corpo com a dominação masculina não é uma novidade do movimento pela libertação das mulheres – ou pela libertação feminina, como destaca Dana Densmore, uma vez que “[...] ‘mulher’ é um papel construído e convencional, criado pelos homens para a conveniência e satisfação deles.” (DENSMORE, 1998)17 Já no século XIX, Mary E. Tillotson argumentava que, caso as mulheres deixassem de usar tais objetos, identificadores e definidores de gênero, cujo objetivo principal era a ênfase de características sexuais, talvez uma outra relação, de âmbito mais mental e espiritual, fosse possível entre homens e mulheres (TILLOTSON, 1873, apud STEELE, 2001). O mesmo problema também foi discutido por Simone de Beauvoir, em Le Deuxième Sexe, no qual a filósofa argumenta que o traje feminino parece ser desproporcionalmente desconfortável e limitante, manifestando que o lugar feminino não é igual, mas inferior, condenado ao sofrimento e à imobilidade (BEAUVOIR, 1976). Como foi possível apreender das análises expostas até então, Mary E. Tillotson não estava errada ao enxergar no corset um instrumento de definição de gênero e de ênfase nas características sexuais: ainda que este caráter da lingerie constritora fosse mais evidente no final do século XIX, no qual a recuperação dos valores da moda do século XVIII era ainda muito forte, nossa análise revela que mesmo no século XXI a ênfase nos atributos femininos, bem como na sexualidade inerente à valorização desta construção do corpo, ainda é muito marcada. Parecia, em 1968 (e ainda parece, nos dias atuais), impossível dissociar esta necessidade da construção do corpo do papel feminino tradicional.

Trinta anos atrás, nenhuma mulher ‘respeitável’ pensaria em sair para o trabalho, para a igreja, para o mercado, ou para a maioria dos lugares publicos sem uma cobertura de seios (aqueles soutiens cortantes e normalmente irritativos, volumosos, e até mesmo aramados), um achatador de bumbum e de barriga (melhor conhecido como cinta), sapatos de salto alto (incapacitantes e prejudiciais à coluna), modeladores de perna (meias de nylon caras e desconfortáveis, suspensas pelas cintas ou cinta-ligas), cabelos corretamente enrolados ou alisados (conseguidos por meio de químicos mal cheirosos e tóxicos e/ou enroladores de cabelo desconfortavelmente utilizados para dormir), e, é claro, uma máscara de pó facial (para cobrir um nariz brilhante), batom, rímel, e às vezes cílios falsos.

17 “[...] ‘woman’ was a constructed and conventional role, created by men for their convenience and satisfaction.” (DENSMORE, 1998, p.81, trad nossa).

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Uma mulher poderia ser despedida por “vestimenta inadequada” – e isso significava que mulheres vestiam saias, nunca calças, não importa qual o trabalho e qual o clima. (HANISCH, 1998)18

No texto publicado em 1998, Carol Hanisch – uma das participantes do protesto do concurso Miss America – descreve o “modelo” de mulher contestado pelo protesto de 1968: a necessidade da construção total de um feminino para ser visto no espaço público, que demandava a modelagem dos seios, da barriga, dos glúteos, das pernas, dos pés, dos cabelos e do rosto. Em sua carta sobre o protesto de 1968, a autora e ativista nos conta que esta imagem da mulher, enaltecida pelo concurso Miss America, originou a ideia de realizar o protesto durante o concurso. Hanisch descreve o concurso como um “ícone Americano”, que dizia para as mulheres: “[...] com o que parecer, o que vestir, como vesti-lo, como andar, como falar, o que dizer (e o que não dizer) para ser considerada atraente. Resumindo: seja bonita (não importa o custo em tempo e dinheiro), sorria (não importa o que você esteja sentindo), e não crie polêmicas.” (HANISCH, 1998)19

Evidentemente, o protesto inscreve-se em uma oposição de base muito clara, na qual o primeiro termo, já estabelecido e considerado como eufórico pela população mundial, é presentificado pelo concurso Miss America, cuja vencedora (que naquele ano foi Judith Ford) é um emblema único, escolhido a cada ano, daquela beleza “tipicamente americana”. Já o protesto coloca-se como termo oposto, que reenvia simultaneamente a dois outros movimentos. Um deles é a luta pela libertação feminina como um todo, uma vez que o New York Radical Women era apenas uma das tantas células do movimento. O outro é a busca por um novo feminino, presentificado pelo abandono de todas as construções tidas como necessárias, prescritivas, da qual o soutien tornou-se o principal emblema. 18 “Thirdy years ago, no “respectable” woman would think of going to work, to church, to the store, or to most other public places without a breast harness (those cutting and often scratchy, padded, and even underwired bras), a butt binder and a tummy flattener (better known as a girdle), hobbles (crippling and spine-damaging high heels), leg shapers (expensive and uncomfortable nylons held up by girdles or gatter belts), correctly curled or straightened hair (achieved with smelly, toxic chemicals and/or hair curlers often slept on with great discomfort), and, of course, a mask of face powder (to cover a shiny nose), lipstick, mascara, and sometimes fake eylashes. One could be fired from one’s job for “inappropriate dress” – and that meant women wore skirts, not pants, no matter what the job or what the weather.” (HANISCH, 1998, p.197, trad. nossa). 19 “[...] what to look like, what to wear, how to wear it, how to walk, how to speak, what to say (and what not to say) to be considered attractive. In short: look beautiful (no matter the coast in time and money), smile (no matter what you’re feeling), and don’t rock the boat.” (HANISCH, 1998, p. 198, trad. nossa).

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Também por este protesto – mas igualmente pelo fato de o movimento, em seu início, ser formado sobretudo por mulheres brancas, de classe média alta e com educação universitária – uma das marcas mais fortes que ficou do movimento de 1968 foi a luta para que as mulheres deixassem de ser tratadas como objetos sexuais, seja nos papéis préestabelecidos na família nuclear, seja pela mídia. Talvez por este motivo, o feminismo não conseguiu consolidar-se enquanto movimento uno, e outras “facções” começaram a emancipar-se do movimento pela libertação feminina, abrigando causas mais específicas: feministas negras, femininstas chicanas, feministas lésbicas, entre outras. Barbata Epstein, por exemplo, relata que nunca sofreu por ser considerada como um “objeto sexual” pelos homens. O problema exposto pela editora era exatamente o oposto: quando uma mulher ganhava, dentro dos partidos, o status de “companheira” (comrade), o mesmo era acompanhado por uma dessexualização (EPSTEIN, 1998). Em outras palavras, uma mulher política deixava de ser mulher aos olhos de seus companheiros, para tornar-se um comrade. Para Epstein, esta separação entre mulheres atraentes, possíveis objetos da atração sexual por parte do sexo oposto, e mulheres políticas, comrades dessexualizadas (ou mesmo assexuais) deveria ser igualmente uma das pautas do feminismo. É frequente, da mesma forma, a associação ao feminismo dos anos 1960 à “revolução sexual”. No entanto, muitas das células do movimento pela libertação das mulheres opunhamse à revolução sexual, sob o argumento de que a mesma estava sendo moldada pelos homens, de maneira que fosse vantajosa apenas para eles. Algumas células, inclusive, pregavam o celibato como ação revolucionária (DENSMORE, 1968): privar os homens do sexo, ou abandonar os maridos/parceiros, seria a única forma de pressão social suficientemente eficaz, no sentido de conscientizar os homens para a situação das mulheres enquanto sexo oprimido. O celibato como tática revolucionária nos interessa especialmente neste trabalho, uma vez que localiza estes movimentos de 1968 enquanto um termo de oposição direta àquele presentificado pelo traje à francesa. Se no século XVIII a principal função visual do traje era aquela de atentar para o potencial sexual/procriador da mulher, a luta pela libertação das mulheres vai justamente pela via oposta, não apenas negando todos os instrumentos definidores do gênero feminino – e, consequentemente, negando um arranjo plástico do corpo que manifesta este potencial procriador, definido pelas revolucionárias como objetificação sexual – mas a própria sexualidade, o próprio meio pelo qual o papel feminino principal pode ser realizado. 158

Este feminino extremamente construído, ao qual Densmore se refere como woman idol (DENSMORE, 1998), é também aquele presentificado pela Miss America. Este ídolo, no entanto, é o resultado de uma longa cadeia de reiterações deste parecer feminino, ou da sujeição do corpo a um papel temático, que passa necessariamente pela construção do corpo dentro do formato esperado – algorítmico, para utilizar o termo de Landowski – do que o parecer da mulher deve ser. Da mesma maneira, ao invés de ditar um novo dever ser para as mulheres – o que inscreveria o feminismo não em uma posição de oposição, mas sim da proposição de um novo papel temático – as ativistas simplesmente limitam-se à busca de um não parecer mulher, no sentido da manifestação tradicional presentificada pela Miss America. Pelo abandono das lingeries constritivas (soutiens, cintas e meias), dos cosméticos (produtos para cabelo, maquiagem), dos saltos altos, e até mesmo cortando os cabelos, o movimento buscava o direito de não ser vista apenas por sua sexualidade, mas como um ser humano, igual tanto em direitos quanto em deveres, independente de seu sexo ou gênero. Este não parecer pode ser inclusive associado à “não moda”, ou à “anti-moda”, como François Baudot descreve a moda de rua do final da década de 1960 (BAUDOT, 2002). Não há, portanto, um parecer definido desta moda revolucionária. Pelo contrário, o abandono dos objetos formadores do corpo reside, justamente, na busca pelo abandono dos ideais que definiam um dever parecer feminino. Em sua origem, o movimento pela libertação das mulheres concentrava-se justamente na libertação de todas as mulheres, por meio de uma negação de um padrão único, promovendo a aceitação de todas as formas, cores, tamanhos, origens e orientações sexuais. Para Densmore, no entanto, era fundamental que o movimento se focasse em mudar as mulheres, e não em conscientizar os homens para que eles mudassem: se a opressão feminina advinha sobretudo de uma posição privilegiada dos homens na sociedade, era evidente que eles não aceitariam simplesmente abrir mão de seus privilégios pelo bem das mulheres (DENSMORE, 1998). Neste sentido, o movimento pela libertação das mulheres aparece duplamente investido de uma quebra do papel temático feminino. Por um lado, existe a (busca pela) quebra com o uso dos instrumentos formadores do corpo “feminino”, que desentrelaça os programas narrativos da mulher daqueles do corset. Esta ruptura, contudo, amplia-se a uma ruptura ainda mais pronunciada, arriscada, que é a separação dos programas narrativos dos homens e das mulheres. 159

Neste contexto, o próprio choque entre ativistas feministas e homens presentes nos locais, passantes ou expectadores dos protestos, adquiria um caráter catastrófico, no qual ambos os sujeitos tornam-se anti-sujeitos dos demais. Hanisch relata, por exemplo, que em Atlantic City, os homens presentes (sobretudo os jovens) puseram-se a gritar para as ativistas, acenando com os punhos cerrados: “Voltem para a Rússia!”, “Vocês são um bando de lésbicas!”, “Qual delas é a sua namorada?”, “Inimigas dos homens!” (HANISCH, 1998). Densmore, por sua vez, expõe as constantes ameaças de violência física, principalmente de estupro, que sofria não apenas em reuniões políticas, mas de homens conhecidos, parte de seu círculo social (DENSMORE, 1998). Em outras palavras: na negação da prática do ato sexual voluntário, enquanto tática de guerrilha, o próprio ato sexual torna-se um acidente, um ato de violência na qual o cumprimento do papel temático é forçado, aparecendo como fruto do choque de dois atores, cujos papéis temáticos não encontram-se mais entrelaçados pelo mesmo programa narrativo. Por esta via, delineia-se a mencionada relação de implicação entre o bodysuit de Mary Quant e a explosão do movimento pela libertação das mulheres. No bodysuit de 1965, aparece sugerida a cobertura (e a constrição) do sexo, cuja consequência é a libertação das pernas – seja para o uso da minissaia, seja para uma maior mobilidade. Esta constrição sexual aliada à liberdade das pernas desenvolve-se, um pouco mais tarde, no celibato enquanto tática revolucionária na luta pelas “calças”, a peça de roupa empregada aqui enquanto metáfora e metonímia dos papéis ocupados exclusivamente pelos homens. De maneira semelhante, a relação mais evidente entre o bodysuit e o protesto de 1968 retoma o vestido de 1880, no qual apareciam manifestados os temas de “morte” do corset e da crinolina, bem como da mulher “armada” contra seu papel temático. Estas três posições traçam um caminho cronológico, do século XIX a 1968, do movimento pela conscientização e libertação feminina do poderoso papel temático, definido pelo traje à francesa. As posições de 1880 e de 1965 presentificam, neste sentido, rupturas gradativas com o papel temático: a primeira, uma ruptura com a visibilidade, manifestada pelo traje, do aparelho reprodutor; a segunda, uma ruptura com o livre acesso a este aparelho reprodutor, cobrindo-o. A terceira posição, ocupada pelo protesto de 1968 – mas que reenvia ao todo da luta pela libertação das mulheres – aparece como a concretização última, ou a realização (GREIMAS & COURTÉS, 2012) do que buscavam os trajes mencionados: libertar-se de quaisquer formação do corpo para, por meio deste não parecer feminino, negar o papel da 160

procriação por meio do celibato. Trata-se, concluindo, de uma emancipação da própria formação do corpo, por meio da qual acreditava-se possível obter uma real emancipação social.

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V.2. A moda e o estilo de Chanel

Figura 47. Gabrielle (Coco) Chanel, vestindo algumas das peças que tornaram-se marcas de seu estilo: o vestido preto, os braceletes, o colar de pérolas, o chapéu, além dos cabelos curtos, moda absoluta dos anos 1920, e sempre identificados ao “estilo Chanel”. Imagem: Jennifer Jewels.

No que toca o “abandono do corset”, que por sua vez vai de par em par com uma revolução feminina (e não necessariamente feminista), sobretudo em torno da vestimenta e da relação das mulheres no trabalho, há muito em comum entre os movimentos de 1968 e as inovações propostas pela jovem Gabrielle Chanel, nos anos 1920. De início, os anseios de Chanel acerca 162

da moda feminina, enquanto oposição ao estilo de corpo extremamente construído da Belle Époque, aproximam-se substancialmente do que buscavam, de maneira mais literal, as ativistas pela libertação das mulheres: a emancipação dos instrumentos de constrição, da necessidade de conformação de uma silhueta a uma certa forma para que esta fosse reconhecida como “feminina”. O que separa ambos os movimentos, no entanto, é que se em 1968 havia uma vontade de negar a identificação a qualquer parecer, na moda de Chanel é mais marcada uma busca por uma nova forma do feminino, em oposição àquela estabelecida. Para Jean-Marie Floch, o total look de Chanel aparece, primeiramente, como um fenômeno de moda, apreendido em sua figuratividade, que pode ser desdobrado em um fenômeno de estilo, quando apreendido em sua plástica (FLOCH, 1995). Assim como Chanel impôs os cabelos curtos como parte de seu estilo, também o movimento pela libertação das mulheres associou o corte dos cabelos aos ideais de liberdade e de conforto. Novamente, o que separa estes dois fenômenos da história feminina – os cabelos cortados de 1920 e aqueles de 1968 – são os valores que cada um deles buca negar. No caso de 1968, trata-se claramente da dominação masculina, ou seja, uma negação da identificação com quaisquer formas do feminino, que presentificavam a identificação ao papel de oprimido. Para Chanel, no entanto, tratava-se da negação de uma forma do feminino, aquela da Belle Époque – na qual reinavam os complexos penteados, realizados a partir de cabelos longos e artificialmente enrolados – na formulação de uma outra forma do parecer da mulher, mais livre, mais confortável, mais prático. Esta negação de um feminino vigente – que ainda utilizava o corset tradicional como formador da silhueta, que a jovem Chanel interpretada por Anna Mouglalis aparece graciosamente cortando com uma tesoura, no filme Coco Chanel & Igor Stravinsky – inicia-se na exaltação da função da vestimenta enquanto função prática: em lugar de promover a separação e diferenciação entre os gêneros, as roupas, para Chanel, deveriam servir, serem práticas e confortáveis, permitindo uma maior dinamicidade da mulher, em lugar de vestir mulheres inúteis, ociosas (FLOCH, 1995). Alguns autores enfatizam que a moda de Chanel foi criada por ela, para ela mesma. Se ela desenhava um vestido para a noite, é porque ela desejava sair; se criava trajes para o esporte, é porque ela mesma praticava esportes (BAUDOT, 2002; FLOCH, 1995). Mesmo o emblemático vestido preto é atribuído ao seu próprio luto, na morte de seu amante inglês, Boy 163

Capel. A própria Chanel afirmava que sua moda era criada com o intuito de derrubar aquilo o que a desagradava. Neste sentido, seu estilo pode ser lido como um estilo para si, para seu próprio corpo magro e andrógino, e voltado para suas próprias necessidades de mobilidade e conforto, que não eram comtempladas pela moda de seu contexto sócio-cultural. Em termos semióticos, Chanel aparece investida de um duplo papel actancial, simultaneamente Destinadora e Destinatária, de si e da própria moda. Este primeiro gesto, da construção de um estilo próprio, foi responsável por uma revolução muito maior, e em outros âmbitos além do vestuário. Filha de camponeses miseráveis, Chanel pode ser considerada uma self made woman dos anos 1920, conquistando riqueza através do próprio trabalho – uma forte marca da emancipação feminina que aparece destacada em seu estilo, na incorporação de elementos do mundo masculino – como o tweed, as calças compridas, os cabelos curtos – em seu estilo. Em tantos outros sentidos, o mundo particular de Chanel confunde-se com o seu contexto social, do primeiro pós-guerra europeu. A pobreza da juventude de Chanel mescla-se à própria pobreza da Europa no primeiro pós-guerra, razão atribuída, por alguns autores (Cf. BAUDOT, 2002; BOUCHER, 2010; LYNN, 2010), à simplificação do traje neste período. A escassez de materiais foi uma grande formadora do estilo de Chanel que recorre, por exemplo, ao uso do jersey como matéria prima dos trajes, tecido este reservado até então à confecção de roupas de baixo masculinas. Da mesma maneira, o encurtamento das saias e dos cabelos, bem como a adesão das mulheres às calças compridas, são geralmente mencionadas como a passagem da figura estatuesca, ideal dos anos 1900 (LYNN, 2010), à mulher mais dinâmica e ativa, que precisou adentrar o mundo do trabalho no pós-guerra. As revoluções vestimentares dos “anos loucos”, que geralmente são atribuídas todas elas a Chanel (BAUDOT, 2002), mesclam-se num complexo emaranhado com outros fatores da sociedade europeia da época que, em seu autêntico espírito revolucionário, buscava combater os costumes da geração de seus pais. Para aqueles jovens, tudo o que era típico da Belle Époque vinha associado aos fatores que levaram à Primeira Guerra (LYNN, 2010). Combater estes valores, por meio da arte, da música e também (senão principalmente) da moda, manifestava o repúdio ao cenário do início do século XX, ainda muito carregado de valores herdados do século XIX – que na moda, manifestavam-se na silhueta fortemente construída pelo uso do corset, nos vestidos longos e exageradamente elaborados, ou nos cabelos longos, enrolados e arranjados em complicados penteados. 164

A desconstrução deste parecer feminino da Belle Époque – construído pelo uso do corset o S-bend (figura 18) – perpassa uma desconstrução do corpo enquanto suporte do vestido. Em vez de constringir o corpo com o objetivo de construir volumes ideais para um certo desenho de vestido, o estilo de Chanel propõe um corpo nu como base da roupa. Ao dispensar o uso do corset – formador, como vimos, de um corpo artificialmente redondo, que serve a enaltecer os atributos femininos relacionados à fertilidade – o traje passa a recobrir um corpo mais reto, retangular, que não traz em si marcas tão definidas, nítidas, da separação entre os gêneros feminino e masculino. Esta não definição repousa no que gosta-se de definir como “androginia”, ou melhor dizendo, uma confusão entre o masculino e o feminino. Esta desconstrução do corpo é certamente herdada de Paul Poiret, cuja silhueta de cintura alta já desencorajava as mulheres a abandonarem o corset (BAUDOT, 2002), delegando ao próprio vestido o papel de (des)construir o corpo. Ainda para Baudot, no entanto, as aspirações de Poiret só foram de fato concretizadas no estilo criado por Mlle. Chanel (BAUDOT, 2002). O limite borrado entre os gêneros, por sua vez, aparece como uma primeira manifestação da busca pela igualdade entre eles. Uma vez que o novo chic demanda uma mulher de cabelos curtos, de silhueta à la garçonne e de calças compridas, e que esta nova configuração do corpo torna-se admirada pelo sexo oposto, fica nítido que os dias do marcado papel temático feminino de procriadora, socialmente inferior, estática e ociosa, a “mulher ídolo”, parecem estar contados. A ruptura com a Belle Époque, portanto, aparece investida de valores de negação (ou contradição) de um papel feminino estabelecido para a criação de uma nova feminilidade, mais livre, mais confortável – ou mais estésica, uma vez que aos materiais utilizados por Chanel, como o jersey, o tricot e o tweed, é atribuído um forte valor de euforia do tátil, do sentir a matéria como agradável. Esta estesia aparece até mesmo na preocupação com a criação de um perfume – outra tendência herdada de Poiret, que foi o primeiro costureiro a lançar sua própria fragrância (BAUDOT, 2002) – que complementa seu total look, o no.5 – nomeado a partir de seu número de matrícula. O total look de Chanel manifesta-se, dessa maneira, como um texto sincrético (GREIMAS & COURTÉS, 2012), no qual todos os sentidos são convidados à fruição do sujeito que apresenta-se para ser apreendido pelo outro: além da evidente apreensão visual requerida pela roupa, as matérias utilizadas por Chanel convocam uma apreciação tátil, e até 165

mesmo olfativa. O look de Chanel, portanto, vai além de uma prescrição visual da silhueta, mas também atribui a ela qualidades matéricas, como uma diferente textura, ou uma fragrância. No sentido de negação do papel temático – e em posição de implicação com a revolução de 1968 – é possível ler o estilo de Chanel como um convite a uma apreensão da mulher que vai além de seu potencial procriativo, mas que adiciona outros elementos de fruição ao conjunto “mulher”. A negação das topohierarquias tradicionais, utilizadas para definir de maneira quase didática a separação entre feminino e masculino, acompanhadas de uma não-materialidade do corset, colaboram para a criação de um feminino diferente daquele cultivado até então pela moda ocidental. Não mais na estaticidade que demanda uma admiração silenciosa, distante, mas de um feminino mais dinâmico, flexível e movediço.

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V.3. Extreme Tight Lacing

Figura 48. Fakir Musafar (1930 – ), artista experimental famoso não apenas pela prática do tight lacing, mas por outras formas de modificação corporal, como o piercing, a suspensão corporal, a escarificação e a tatuagem, bem como pela documentação dos experimentos realizados no próprio corpo. Nesta foto de 1959, titulada “Perfect Gentleman” (“Cavalheiro Perfeito”), Fakir exibe a cintura de 19 polegadas (aprox. 48 cm). Imagem: fakir.org

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Figura 49. Mr. Pearl (Mark Pullin, 1962 – ), corsetier contemporâneo sul-africano. Famoso pela maestria na arte da corseteria, Mr. Pearl já criou corsets para as maisons Christian Lacroix, John Galliano e Vivienne Westwood, e para diversas celebridades, entre elas Victoria Beckham. Praticante do tight lacing ao longo de muitos anos, Mr. Pearl possui atualmente a cintura masculina mais fina do mundo, medindo 46 cm. Imagem: thegroundmag.com

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Figura 50. Dita Von Teese (Heather Renée Sweet, 1972 –), dançarina burlesca, modelo, figurinista, empresária e atriz, é uma das mais famosas tightlacers da atualidade (sua cintura, com corset, mede 42cm). Dita ganhou visibilidade principalmente por seus shows burlescos, cuja marca registrada é o strip tease com um toque vintage. Sua imagem certamente serve de inspiração para muitas mulheres que buscam recuperar este ideal de beleza, não apenas pela prática do tight lacing (ou ao menos pelo uso de corsets), mas também pela maquiagem, pelo estilo dos cabelos, e até mesmo a icônica manicure de meia lua, moda nas décadas de 1920-50. Imagem: Pinterest.

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Figura 51. Cathie Jung (1937 –), atual detentora do record mundial de menor cintura (38.1cm, contra 1,65m de altura). Além do record obtido pela prática do tight lacing, Cathie Jung ficou conhecida pela aparição no filme Cremaster 2, do artista plástico e performer Matthew Barney, no qual utiliza um belíssimo corset transparente no papel de Baby Fay La Foe. Imagem: cathiejung.com

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Um dos grandes obstáculos na abordagem da questão da constrição da cintura é, certamente, a dificuldade em separar o que pode ser nomeado como a constrição “normal” – abordada nas análises desenvolvidas até aqui – e a constrição extrema, erroneamente tida como o padrão praticado pela grande maioria das mulheres. As imagens acima, no entanto, servem como primeiro contato com o que pode ser chamado de “cinturas extremas”, que são sem dúvida exceções e não regras, dentro do uso do corset. Os quatro exemplos expostos acima – Fakir Musafar, Mr. Pearl, Dita Von Teese e Cathie Jung – presentificam emblemas de muitos outros tightlacers, seja da atualidade, seja de décadas ou séculos atrás. Eleri Lynn associa a prática do tight lacing ao surgimento dos corsets de aço, hipoteticamente utilizados para corrigir desvios de coluna oriundos da constrição extrema, por volta do século XVI ou XVII (LYNN, 2010). David Kunzle, por sua vez, localiza o início da prática em meados do século XIV, considerando que o tight lacing já ocorria por meio de outros objetos, que não o corset tradicional (KUNZLE, 2004). Ambos os autores concordam, no entanto, que a prática não constituía o “padrão” de constrição da cintura, e que, independente da data de seu início, o momento em que esta prática obteve mais força entre as mulheres foi a partir de meados do século XIX (Cf. KUNZLE, 2004; STEELE, 2001). Primeiramente é necessário esclarecer a menção, em um trabalho acerca do uso feminino do corset, de dois homens tight lacers (Mr. Pearl e Fakir Musafar). Este é o primeiro ponto acerca do extreme tight lacing que buscamos iluminar neste capítulo: a constrição extrema da cintura não é uma prática “tipicamente feminina”, podendo ser identificada (seja no século XIX, seja na atualidade) tanto em homens quanto em mulheres. Da mesma maneira, esta forma da constrição não encontra-se investida de um desejo de construção de um parecer “tipicamente feminino”, uma vez que os homens que o praticam não possuem a intenção de construir um corpo feminino ou de travestir-se. O foco do tight lacing, ao menos no âmbito corporal, é apenas um: a diminuição da cintura até o limite. Esclarece-se a partir desta constatação o primeiro traço que delineia esta prática enquanto termo oposto da constrição “normal”: se o uso “moderado” do corset, com a finalidade de formar um corpo “correto”, inscreve-se em uma situação de pertencimento (ao seu contexto social, cultural, à moda do período), o uso extremado do corset investe nele, ao contrário, um valor de distinção. Em lugar de parecer igual, o tight lacer busca, em oposição, parcer diferente, extra-ordinário. 171

No contexto Victoriano, abordado extensamente por Kunzle (2004) e Steele (2001), o tight lacing extremo era considerado como bizarro, como anomalia, e constantemente vinculado ao fetichismo e às demais doenças psiquiátricas descobertas no período, como a histeria e a neurastenia. Da mesma maneira, as tightlacers eram acusadas de aborto e infanticídio, em um período marcado pela diminuição das famílias, sobretudo devido à descoberta e difusão dos métodos anticoncepcionais (KUNZLE, 2004). Como nos revelaram as análises do capítulo II, o uso “normal” do corset servia principalmente ao realce de características sexuais femininas, sobretudo os quadris, que tornavam-se consequentemente destacados pela constrição da cintura, mas ainda recebiam o aumento de sua linha pelo uso da crinolina. Este “realce”, por sua vez, ao identificar a mulher enquanto parceira fértil (ou seja: apta para exercer o papel temático feminino), era considerado atraente, correto, ou mesmo belo. Trata-se de um parecer programado, aceito e esperado das mulheres. Ao exagerar de maneira extrema a linha “correta” do corpo, é possível deduzir que o que ocorre, ao menos no corpo feminino, é igualmente um exagero dos atributos sexuais: em comparação à cintura extremamente constrita, quadris e peito parecem ainda maiores, mais pronunciados. Para Kunzle, da mesma maneira, a constrição excessiva altera o estado fisiológico do corpo, transferindo toda a respiração para o peito, o que a torna acelerada; este estado ofegante seria capaz de conferir ao colo uma impressão de seio permanentemente palpitante, que reenviaria à excitação sexual ou mesmo aos espasmos do corpo durante o orgasmo (KUNZLE, 2004). Em comparação às mocinhas corretamente constritas, portanto, as tightlacers seriam dotadas de um parecer diferenciado, no sentido sexual, cuja principal marca é um fazer ver de maneira exacerbada suas características sexuais, bem como uma maior sensibilidade do corpo, eternamente excitado. A partir destes dados, é possível formular a oposição entre atração e repulsa, que separa o corpo correto do corpo extremamente construído. No plano da expressão, o traço que separa estas duas paixões – a euforia da atração e a disforia da repulsa – é a intensidade da constrição da cintura. No plano do conteúdo, esta homologa-se principalmente à oposição entre controle sexual vs. exposição sexual. Ambos os arranjos plásticos remetem à sexualidade, mas o primeiro, o correto, revela uma sexualidade controlada, voltada para a formação da família, enquanto que a silhueta conferida ao corpo extremamente constrito manifesta uma sexualidade cuja única finalidade é o prazer. Esta última afirmação é embasada 172

principalmente pelas acusações de aborto e infanticídio. A constrição extrema da cintura é considerada como prejudicial à fertilidade, ao mesmo tempo em que as tightlacers geralmente geravam poucos filhos – não porque os estivessem assassinando, como pensava-se, mas porque a gravidez prejudicaria o cultivo da “circunferência sagrada”. A atração ou a repulsa, assim, homologam-se ao papel temático (maternidade) e à oposição ou ruptura deste papel. As supostas praticantes do aborto, do infanticídio, da contracepção, e de toda e qualquer outra ação oposta à lógica social estabelecida, eram consideradas como párias, e todas estas práticas, por sua vez, eram associadas ao tight lacing. Para Kunzle, as tightlacers eram uma espécie de bode expiatório da era Vitoriana, assim como as bruxas o eram na Idade Média, e as prostitutas sempre o serão (KUNZLE, 2004). Enquanto uma prática de oposição – à moda, aos costumes, ao papel temático feminino – o extreme tight lacing não encontra-se tão distante dos movimentos feministas de 1968. Ambos manifestam posturas opostas às lógicas vigentes de opressão feminina – seja uma oposição direta à procriação, seja em um âmbito mais geral, englobando outros direitos sociais – e investem suas praticantes de valores disfóricos – sejam as acusações de aborto e infanticídio, sejam os gritos de “lésbicas!” e “inimigas dos homens!”. O que separa as duas revoluções, portanto, é a relação de cada uma com o corset: no extreme tight lacing, a ação revolucionária se dá pelo uso extremo, que ultrapassa o normal; no feminismo, a via escolhida é a negação e destruição do corset. Esta separação homologa-se, assim, à oposição que permeou o todo desta análise, entre a sujeição do corpo – posição ocupada pela prática do tight lacing – e sua emancipação – busca do movimento pela libertação das mulheres. Trata-se, em ambos os casos, de uma sujeição ou emancipação extrema. No primeiro caso, a prática excessiva pode acarretar malefícios à saúde do corpo, bem como uma transformação total da silhueta, em parte irreversível, que abriga em si o risco de que o corpo perca permanentemente sua conexão com seu arranjo plástico original. No caso da emancipação extrema, o risco localiza-se no plano social, na possibilidade da perda do estatuto feminino, bem como de toda e qualquer relação que perpasse a interação social entre homem e mulher. A partir disto, voltaremos a falar dos tightlacers sem a distinção entre homens e mulheres. Pois, assim como um corpo feminino extremamente constrito deixa de reenviar ao corpo feminino, tornando-se um corpo “outro”, o mesmo é verdadeiro no que toca a constrição extrema praticada pelos homens. Não é possível afirmar que Mr. Pearl e Fakir 173

Musafar possuem silhuetas femininas, quando seu parecer mal pode ser identificado como “humano”. Se no tight lacing feminino o papel temático da mulher é atacado (e até mesmo destruído), quando praticado por ambos os sexos é o papel temático do próprio corset que encontra-se em xeque. Em lugar de formar um parecer de corpo feminino, com características próprias de seu papel temático ressaltadas, o corset do tightlacer é utilizado para transformar o corpo de quaisquer sexos e gêneros, conferindo ao corpo um arranjo plástico que transcende o parecer esperado, programado, de ambos os gêneros. Esta “transformação pela transformação” abriga em si uma série de outros riscos, seja do ponto de vista do corpo, seja do próprio corset. Primeiramente, atingir uma redução de cintura ainda que moderada, como aquela cultivada por Dita Von Teese, exige anos de prática e disciplina diária, de uso constante do corset, até mesmo para dormir. Esta prática pode ser acompanhada de excessos de dieta e exercício e, atualmente, até mesmo da parcial remoção cirúrgica das costelas flutuantes, que facilitam a diminuição da cintura em corpos já definitivamente formados (ou seja: que não foram constritos desde antes da puberdade). Em seguida, não existem garantias de que este novo parecer do corpo será aceito em sociedade. Na era Vitoriana, por exemplo, a repulsa pelas tightlacers era produtora de uma maior dificuldade em encontrar um marido que concordasse com a prática, o que, para Kunzle, consistia na dificuldade em encontrar um parceiro para quem o prazer erótico fosse mais importante do que a formação de uma família (KUNZLE, 2004). Ainda no século XIX, além de lidar com a rejeição social, as tightlacers eram constantemente confrontadas com suspeitas de diversas doenças psiquiátricas, o que geralmente contribuía para que a prática do tight lacing permanecesse um segredo (STEELE, 2001). Finalmente, em face a todos os “terrores” associados ao tight lacing, e mais diretamente ao uso do corset – que não era separado entre “moderado”/“normal” e “extremo” – os maiores e mais consistentes argumentos contra seu próprio uso foram produzidos. Esta união no imaginário coletivo, entre corset e tight lacing, foi uma das grandes propulsoras do movimento pela supressão do uso do corset no início do século XX que, por sua vez, culminou na moda de Poiret e Chanel. De todos os “objetos” analisados neste recorte do corpus, o extreme tight lacing certamente abriga em si o maior grau de risco, que engloba a lógica social, o corpo, e o próprio corset. Estes três atores são fortemente ameaçados pela prática do extreme tight lacing: o social, pela perda do papel temático feminino; o corpo, pela destruição do parecer 174

“feminino” (ou mesmo humano); e o corset, que torna-se o “culpado” pelos danos causados pelo tight lacing, ao corpo e à sociedade. Esta transformação extrema, no entanto, só pode ser atingida por uma disciplina e constância que não são típicas do papel catastrófico, do acidente, mas sim da programação. Não se trata, no entanto, de uma programação a partir de papéis temáticos entrelaçados, mas de uma programação como aquela apreendida da figura do virtuoso, abordada por Landowski em Avoir prise, donner prise (2009): o treino e a disciplina extremas, única maneira de atingir uma performance invejável, abrigam em si também o risco da dessemantização desta performance, que pode tornar-se uma mera repetição esvaziada de sentido. Na figura do tightlacer, tal não poderia ser mais verdadeiro. Além do risco real do corpo e de seu parecer, é impossível atingir tal nível de transformação da figura – que pode ser lida como um grau extremo de maestria do próprio corpo – sem voltar o todo da rotina diária a este objetivo. Trata-se de um estado de corpo permanentemente excepcional, nãonatural, em todos os momentos do dia, até mesmo durante o sono. Esta exposição constante a este estado certamente dessemantiza o prazer advindo da aplicação ocasional da constrição extrema – descrita, em alguns relatos, como um extase transcendental, quase místico (KUNZLE, 2004) – tornando-o mera repetição necessária para a realização de uma performance de transformação da silhueta. Apesar disso, é imprescindível destacar o caráter revolucionário desta prática, não apenas enquanto oposição à moda vigente, mas principalmente na libertação sexual que é dela decorrente. O ápice da prática do tight lacing feminino, nas décadas de 1870-90, certamente pode ser relacionado a um dos períodos de maior emancipação sexual feminina do século XIX, quando começou uma expressiva dissociação entre sexo e procriação, e o prazer feminino foi “descoberto” (GIDDENS, 1994) e até mesmo encorajado – o que culminou na lendária prática da masturbação feminina em consultórios psiquiátricos, bem como na invenção do vibrador, ambos reconhecidos como uma possível cura da histeria. As tightlacers da época, ao ostentar a exacerbação sexual de seus corpos, eram grandes desbravadoras deste direito à sexualidade livre, desvinculada da procriação. Os homens tightlacers, por sua vez, presentificam a quebra com a definição de gênero, investida no corset até então. Quanto aos tightlacers atuais, como Dita Von Teese, cabe a eles o papel de oposição aos padrões da moda atual, construindo corpos contraditórios àquele típico do século XXI. 175

“Moda e fetichismo devem sempre ser considerados como potencialmente antagonistas, mesmo ou especialmente quando o fetichismo é um exagero do que é aceitável pela moda [...]” (KUNZLE, 2004)20 . Estas palavras de Kunzle certamente fecham esta reflexão sobre o extreme tight lacing enquanto oposição às tendências aceitas pela moda, e não seu padrão. Quanto maior o exagero (neste caso, da cintura), maior a distância criada entre o corpo construído de maneira extrema e o corpo construído para um padrão. Estes corpos extremamente constritos, paradoxalmente, são livres: emancipados da moda e dos padrões, bem como dos papéis investidos nos programas do parecer. Esta liberdade, no entanto, não é atingida pelo abandono da constrição, mas pelo ultrapassar os limites do correto, da normalidade, rumo ao cultivo excessivo do corpo, do qual advém um novo corpo, que não é nem masculino nem feminino: é apenas tightlacer.

20 “Fashion and fetishism must always be regarded as potentially antagonistic, even or specially when the fetishism is an exaggeration of what is fashionably acceptable [...]” (KUNZLE, 2004, loc 500, trad. nossa)

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V.4. O punk dos anos 1970 e Madonna

Figura 52. Cherie Currie, 1977, vocalista do primeiro grupo de punk rock exclusivamente feminino, The Runaways – do qual também participaram Lita Ford, Sandy West, Jackie Fox e Joan Jett. O grupo não fez muito sucesso nos Estados Unidos, mas foi uma grande sensação principalmente no Japão, onde realizou-se o concerto no qual a Cherie de apenas dezoito anos fez a emblemática aparição, vestindo apenas o corset branco, com calcinha, cinta liga e meia arrastão21 . Mais do que por sua música, o grupo é lembrado pelo abuso de álcool e drogas, bem como pelos escândalos, protagonizados por Cherie e Joan Jett. Imagem: Typewrite Socialite.

21 É possível assistir um trecho de uma das aparições do grupo no Japão, apresentando o maior sucesso da banda, a música “Cherry Bomb”, no link: https://www.youtube.com/watch?v=pMDn6V7ZLhE

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Figura 53. Madonna, em um dos concertos da Blond Ambition Tour, veste o polêmico corset desenhado por Jean-Paul Gaultier, em 1990. O corset, que na realidade é um bodysuit, une em seu design diversos aspectos da lingerie feminina, do corset tradicional à cinta dos anos 1990, que tornaram-se de alguma maneira fetichizados: o soutien cônico dos anos 1930, as ligas, a calcinha cavada, e o cetim rosado. Imagem: The Times.

Após a efervescência do movimento pela Libertação das Mulheres, em 1968, a força das células feministas foi diluindo-se e, com elas, o volume de protestos contra os objetos da opressão feminina foi perdendo a força, até desaparecer (ao menos do destaque das grandes mídias). Ao mesmo tempo a pacífica juventude, que protestava pela revolução sexual e contra

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a guerra (do Vietnã), foi cedendo lugar a uma revolta mais violenta contra o sistema manifestada, na música, pelo punk. As bandas mais emblemáticas do movimento são propriamente masculinas, como Sex Pistols, Ramones ou The Clash, mas a identificação da juventude com este gênero não se limitava aos homens. Muitas garotas não apenas frequentavam concertos e casas noturnas deste gênero musical, como também aprenderam a tocar instrumentos e arriscaram-se em composições. Neste contexto, o produtor Kim Fowley “recrutou” as cinco garotas, formando com elas a primeira banda de rock exclusivamente feminina, chamada The Runaways – As Fugitivas.

Figura 54. The Cherie Currie Corset Tee, camiseta comercializada pela Blackheart Records, no valor de $25. Na descrição do produto, encontramos “[camiseta] delineada com o infame corset vestido por Cherie Currie no The Runaways[...]” (trad. nossa). Imagem: Blackheart Records.

O sucesso do grupo não foi grande, e a visibilidade mediática conquistada pelas adolescentes foi sobretudo devido ao abuso de drogas, aos camarins e quartos de hotéis destruídos, e à exacerbação sexual das roqueiras, não apenas no palco, mas na vida cotidiana. Este cenário, 179

de adesão literal ao “sexo, drogas e rock’n’roll”, foi bem recuperado por Floria Sigismondi, em seu filme sobre o grupo. Uma das cenas que obteve especial atenção foi justamente o concerto no Japão, em 1977, no qual Cherie, interpretada por Dakota Fanning, aparece vestindo a lingerie no palco. Longe de ser entendido como uma volta à opressão feminina, efusivamente combatida em 1968, o gesto foi lido como uma libertação sexual extrema, e foi prontamente copiado por outras cantoras de outros grupos, e mesmo pelas fãs. O sucesso do corset branco com rendas e fitas pretas foi tamanho, que até a atualidade é possível comprar uma réplica dele em sites especializados ou, para as menos ousadas, uma divertida camiseta, com estampa digital do corset (figura 54). O sentido investido na lingerie extremamente feminina – adornada, à moda do século XIX, com rendas, passa-fitas e fitas de cetim – utilizada em um concerto de punk rock é, por vezes, semelhante àquele manifestado pelo corpo excessivamente constrito da tightlacer. Trata-se, antes de mais nada, de uma libertação sexual via exacerbação. A diferença é que, tal como o “corset” comercializado pelo fabricante Agent Provocateur (figuras 25 e 26), este modelo escolhido pela jovem cantora não produz uma modelagem expressiva do corpo. Seu desenho, no entanto, reenvia àquele do corset tradicional, sugerindo-nos a presença de um forte fazer crer na veracidade deste falso corset. A diferença entre esta lingerie e um corset tradicional, talvez, passasse despercebida puramente por uma falta de conhecimento dos espectadores acerca do mesmo, banido definitivamente da grande moda desde 1920. Por outro lado, a força desta aparição de Cherie não é diminuída por não tratar-se de um corset tradicional – que provavelmente a teria impedido de cantar – sobretudo porque conta com a crença de tratar-se de um corset “verdadeiro”. No entanto, ainda que se tratasse de uma aparição de calcinha e soutien, ou de soutien e cinta, é possível afirmar que o gesto seria igualmente interpretado como rebeldia, uma vez que o “choque” provocado está ligado ao uso da lingerie como figurino, e não à procedência ou ao modelo de roupa de baixo escolhido. Das possíveis combinatórias citadas, no entanto, é evidente que o “corset”, escolhido por Cherie, é aquele investido de maior carga simbólica – de opressão feminina, etc. Ou seja, ao escolher realizar sua performance vestindo um corset, no qual a cantora grita, contorce-se e requebra, expondo as pernas afastadas, Cherie transforma o sentido até então investido no corset tradicional, apropriando-se dele como instrumento da própria rebeldia/libertação sexual. 180

The Runaways não foi um grande sucesso – mas revelou, entre outras coisas, o talento de Joan Jett, uma das maiores roqueiras de todos os tempos. O poderoso gesto de Cherie, contudo, não foi em vão, e abriu espaço para que uma outra cantora, cuja carreira já dura vinte vezes mais que aquela do The Runaways, pudesse expressar-se de maneira semelhante em seus concertos e em sua música: a rainha do pop, Madonna. A globalmente celebrada cantora, atualmente com 56 anos de idade, não é conhecida como a rainha do pop à toa. Sua música esteve no topo das paradas desde sua primeira aparição, no início dos anos 1980, com o album Madonna (1983), até a década presente, cujo trabalho mais recente é o album MDNA (2012). Além da voz, das letras emancipatórias e da indescutível habilidade como dançarina, Madonna conta, desde os anos 1990, com uma importante aliança com o mundo da alta costura, seja na criação de seus figurinos, seja nas aparições em desfiles e publicidades de diversas maisons, como Jean Paul Gaultier e Yves Saint Laurent. Pamela Church Gibson destaca que Madonna é um dos ícones da moda mais duradouros de todos os tempos (CHURCH GIBSON, 2012). Queridinha dos estilistas há mais de vinte anos, Madonna já vestiu, no palco e na vida, roupas e acessórios das maisons mais cobiçadas do mundo. Ao longo de seus trinta e um anos de carreira, ela também foi capaz de performar recorrentes aparições na mídia, cada vez mais espantada com a beleza, juventude e com a figura excepcional de Madonna, cujo corpo é cultivado, principalmente, com exercícios derivados da Yoga e do Pilates. Mais do que um ídolo musical, ou da moda, Madonna é uma espécie de ídolo total, reverenciado e invejado simultaneamente por todas as suas qualidades e conquistas. No início de sua carreira, Madonna aparece investida de valores de ruptura, tanto quanto a jovem Cherie. Amado por alguns, odiado por outros – mas nunca produtor de opiniões “neutras”, afóricas – o pop de Madonna sempre chocou, e a cada novo álbum, este valor de inovação aparece de alguma maneira reformulado, re-significado. Nos anos 1980, ela de certa maneira “funda” o gênero pop. Nos 1990, sua música se torna mais próxima do emergente gênero denominado como dance. No início dos 2000, no épico “Confessions On A Dance Floor”, Madonna abraça os beats eletrônicos e faz uma de suas maiores tournés, na qual inclui alguns de seus clássicos, repaginados com o toque eletrônico – como “Like a Virgin”, “Paradise (Not For Me)” e “Ray of Light”. Nos 2010, os albuns “Hard Candy” e 181

“MDNA” aproximam-se mais do r’n’b e da black music, gêneros mais difundidos sobretudo nos Estados Unidos. Pouco importa, no entanto, de qual outro gênero musical seu pop se aproxima: Madonna carrega consigo, via de regra, uma isotopia de ruptura com o socialmente aceito. Neste sentido, de todos os corsets já utilizados por Madonna em suas tournés, aquele desenhado por Jean-Paul Gaultier (figura 53), justamente o mais famoso, é o mais importante. Segundo Ana Claudia de Oliveira, ao desenhar o celebrado corset, utilizado pela cantora na Blonde Ambition Tour, Gaultier “[...] ironiza os efeitos de sentido explorados por essa peça vetimentar ao longo de sua adoção no vestuário feminino” (OLIVEIRA, 2008b). São diferentes momentos da lingerie modeladora feminina reunidos em um, utilizado não como roupa de baixo, mas como figurino, por uma cantora extremamente polêmica e com uma visibilidade já aumentada, em um contexto global. O soutien cônico, marca das décadas de 1930-50, e um dos maiores alvos da ira feminista de 1968. As ligas, que reenviam às meias de seda 7/8, símbolo eterno da sensualidade feminina. As linhas do corset, que o mesclam ao bodysuit dos anos 1960, e até mesmo o zíper frontal, que retoma uma conquista da autonomia feminina no vestir-se, com a invenção do split busk. Todo o conjunto coroado pelo cinto, que evidencia a cintura marcada, e em cetim rosado – material relacionado ao fetiche dos corsets do século XIX (STEELE, 2001). O famoso corset contém em si uma espécie de linha do tempo da lingerie no ocidente europeu, contemplando em uma única peça o corset, o soutien, a cinta e a calcinha. Seu design contém dois importantes aspectos da forma, o cone exagerado dos seios, e o “V” pronunciado da calcinha, que manifestam um prolongamento dos mamilos e do sexo, revestindo o corpo de Madonna de uma espécie de hiper-sexo. Ao mesmo tempo, trata-se de uma peça desenhada e confeccionada no contexto da alta-costura, o que o investe de um valor de objeto de desejo – surpreendentemente, tal e qual o mambembe “corset” utilizado por Cherie – infinitamente replicado e pirateado por corsetiers, profissionais ou não, do mundo todo. O que une estes dois momentos de uma tendência, iniciada por Cherie e continuada por Madonna, é uma espécie de adesão do grande público – que pode ser lida, neste contexto, como uma sanção – às aparições das cantoras, via imitação dos figurinos (e, no caso de Madonna, de seu estilo como um todo). Trata-se, em ambos os casos, de momentos complexos, que constituem diferentes etapas de um mesmo programa narrativo. 182

Primeiramente, ambas lideram momentos de ruptura, seja na música, seja na moda. No caso de Cherie, após este acidente inicial, o grupo desaparece, mas no caso de Madonna, há uma continuidade e um crescente aumento de seu sucesso. A partir disso, há uma adesão cada vez maior à moda lançada pela cantora, bem como à música por ela produzida. Seu papel na própria narrativa passa a ser, então, aquele de produtora de sucessivas rupturas, mantendo-se em um constante estado de produção destas descontinuidades. Neste imbricado jogo de fraturas, Madonna investe-se de um forte valor de imprevisibilidade: não há como saber o que esperar de seu próximo álbum, de seu próximo show. Apesar da recorrente aparição do corset em seus figurinos, é igualmente impossível prever como será o próximo (ou sequer prever se o corset estará presente na próxima tourné). Mesmo diante de um aparente entrelaçamento entre o programa narrativo de Madonna e do corset, a aparição ou não deste último não é uma constante programada ou algorítimica. A relação entre corpo e corset aparece, nos dois casos, invertida, passando o sujeito, portador do corpo, ao papel de destinador. Este papel, no entanto, aproxima-se mais do destinador “divino”, aquele ao qual o sujeito coloca-se em relação de assentimento, a partir da probabilidade mítica (LANDOWSKI, 2005). Em outras palavras, o destino do corset (ou seja: seu uso ou não uso, sua existência ou não existência) passa a depender do sujeito mulher, que escolhe utilizá-lo ou não utilizá-lo aleatoriamente. Na escala de uma figura como Madonna, a escolha desta destinadora particular pode (ou não) determinar uma adesão coletiva, bem como um proporcional esquecimento coletivo. Seria possível afirmar, portanto, que não é o corset que forma Madonna, mas Madonna quem forma o corset. O mesmo pode ser declarado, evidentemente em uma escala diminída, acerca de qualquer mulher que utilize o corset como um mero paradigma presente em seu guarda-roupas. O corset perde o estatuto de sine qua non da vestimenta feminina, para tornarse uma de muitas de suas possibilidade. Igualmente, sua distância do papel temático feminino nunca foi tão grande: ainda que Madonna seja mãe, a associação entre os corsets por ela vestidos e os valores de maternidade e procriação jamais seria possível. Pelo contrário: tal e qual os tightlacers, Madonna brinca com as posições estáticas do masculino e feminino, distorcendo-as e ressignificando-as, tornando-se, ela própria, um “outro gênero”, o gênero Madonna.

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Figura 55. À esquerda: “The Confessions Tour”, 2006, em corset da maison Yves Saint Laurent. Imagem: Up Style Magazine. À direita, na “MDNA Tour”, 2012, o próprio Jean-Paul Gaultier cria um corset inspirado naquele desenvolvido para a “Blond Ambition Tour”. Imagem: Daily Mail.

V.5. Amarração

A dificuldade em postular uma categoria do uso (ou não uso) do corset regida pelo regime do acidente reside, justamente, na dificuldade em identificar descontinuidades em um aspecto do social, a Moda, tão atrelado à programação, às isotopias de comportamento e à busca pelo pertencimento. Um dos principais valores apreendidos destas quatro posições, sem sombra de dúvida, é uma espécie de euforia do não-pertencer a um dado contexto. Esta disforia do pertencimento se manifesta, em cada um dos quatro movimentos analisados neste recorte do corpus, de maneiras distintas: em 1968, trata-se de um não-pertencer ao feminino; na moda de Chanel, é um não pertencer à Belle Époque; no extreme tight lacing, uma oposição focalizada, enquanto refutação da procriação como única forma de sexualidade; e finalmente, quando apreendida em conjunto com a música, esta ruptura parece abrigar uma união das três anteriores, enquanto conflito seja com a moda vigente, seja com a restrição da sexualidade, ou com qualquer tentativa de limitação da expressão de si. 184

O arranjo dos valores apreendidos neste recorte, portanto, emerge como o mais evidente de todos até então analisados: existe uma clara oposição de base entre o abismo da constrição total do corpo, e a busca pela completa supressão de sua prática, presentificados pela oposição extreme tight lacing vs. libertação feminina. Para Kunzle, no entanto, estes dois valores não são opostos (KUNZLE, 2004), mas o termo complexo que une estas duas posições presentifica o eixo da tradicional luta pela libertação feminina. O que separa os dois momentos, opondo-os, é o papel investido pelos sujeitos no corset: em 1968, enquanto opressor, e no tight lacing, como instrumento revolucionário. Nos dois casos, portanto, há um deslocamento de papéis em relação ao restante do corpus. Se até aqui os instrumentos de constrição eram os protagonistas da formação do corpo, o acidente reside justamente no fato de o próprio corpo tomar, para si, este protagonismo. Se o tight lacing e 1968 podem ser dividos em “sujeitção” e “emancipação” do corpo em um micro-corpus, presentificado pelo recorte apresentado neste capítulo, no todo da moda ocidental (ou ao menos no todo deste trabalho), ambos os corpos são emancipados, uma vez que ambos encontram-se em oposição à moda. Seja a cintura tão constrita que ultrapassa o limite do feminino, sejam os cabelos curtos e ausência de modelagem do corpo, ambos os corpos ultrapassam, para mais ou para menos, o limiar do que pode ser considerado (e aceito) como um corpo feminino. Na abordagem dos subcontrários, fica igualmente evidenciado o potencial de cooptação de tendências revolucionárias pela moda produzindo, em lugar de revoluções de cunho político e social, tendências de vestuário extremamente difundidas. É o caso de dois ícones atuais – para não dizer atemporais – da moda, Chanel e Madonna. Da mesma maneira que os contrários separam-se na sujeição e emancipação do corpo, os mesmos valores encontram-se manifestados nos subcontrários, cujas marcas mais evidentes são aquelas da ambivalência do gênero. No caso de Chanel, há uma espécie de “prévia” da revolução de 1968, presentificada não apenas pelos cabelos curtos e pela incorporação de peças típicas do vestuário masculino, mas pela própria postura do sujeito de carne e osso, Gabrielle Chanel – que, como vimos, pouco distancia-se da moda por ela criada – no que toca a emancipação financeira e profissional, bem como a almejada e praticada mobilidade do corpo. No caso de Madonna, a expressão livre de si e da própria sexualidade borra os limites entre o masculino e o feminino, deslocando completamente o uso do corset de 185

sua relação com o papel temático – e aparecendo, da mesma maneira, como um estágio anterior à marcada ruptura com o gênero feminino atingida pelos tightlacers.

Figura 56. Quadrado dos usos excepcionais do corset, regidos pelo regime do acidente.

O caráter de transição dos subcontrários, no entanto, permite uma melhor assimilação por parte da moda. Tanto a radical transformação do corpo obtida por meio do tightlacing, quanto a negação total dos objetos “definidores de gênero”, presentificam alterações corporais extremas demais para serem assimiladas por um grande público – pelos evidentes prejuízos corporais, ou mesmo sociais, decorrentes de ambas as posições. A versão Chanel da emancipação do corpo (e, consequentemente, feminina), ou a “sujeição” do corpo praticada por Madonna não apenas produzem valores estéticos melhor aceitos – em ambos os casos, manifestação de uma genuína elegância e distinção – como apresentam aos seus destinatários figuras melhor sucedidas em todos os aspectos, inclusive financeiro. A passagem pelas diferentes posições contidas neste recorte, inclusive, são cronológicas: iniciam-se no auge da prática do tightlacing, no final do século XIX, passando à negação do uso do corset pela silhueta proposta pelo total look de Chanel, que desenvolveu-se na completa negação da feminilidade no movimento pela libertação das mulheres. O resultado desta completa negação é uma negação da negação, nos anos 1970, no retorno do “corset” com valores redefinidos ou ressignificados, desenvolvido com maior visibilidade ao longo da carreira de Madonna, que perdura até os dias atuais. De maneira semelhante, os quatro movimentos analisados podem ser identificados como revolucionários até os dias atuais: o 186

corpo dos anos 1920 e a figura de Madonna são ainda hoje considerados como manifestações atuais do feminino, almejadas e admiradas por uma grande parcela das mulheres. Quanto ao feminismo e ao tight lacing, estas duas facetas do comportamento feminino, considerado por muitos como “radical”, ainda podem ser apreendidas em pequenos grupos, exceções à regra, mas que mantém-se firmes em sua postura de oposição ao papel temático, seja da moda, seja do corpo.

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VI. Amarração: do ponto de vista do corpo

A análise desenvolvida até aqui foi certamente guiada pelo objetivo de abordar o corset como o sujeito que pratica a ação sobre outro sujeito, o corpo. Para embasar tal abordagem, foram analisados quatro recortes, cada um deles composto por quatro tendências emblemáticas de lingeries constritivas, os corsets, cada grupo compondo uma categoria na qual a interação do corset com o corpo é regida por um dos quatro regimes de interação e de sentido (LANDOWSKI, 2005). No entanto, ao longo das análises, percebemos que ainda que o corset encontre-se investido de um certo papel actancial – seja ele um papel temático, um papel de destinador, um papel sensível ou mesmo um papel catastrófico – o efeito de sentido produzido no corpo que o porta pode originar valores diversos, conflitantes, sugerindo a presença de um outro modo de interação que não é complementar àquele da ação do corset. Desta maneira, é possível aprofundar o estudo dos regimes de sentido, ao admitir que existem momentos do percurso narrativo em que os regimes de interação combinam-se: tal possibilidade é apontada pelo próprio idealizador do modelo, ao postular que cada passagem por um dos quatro regimes de interação também abriga a passagem pelos demais regimes, produzindo uma espécie de “elipses dentro da elipse”. Estas passagens são produtoras de quatro posições definidas como lógicas: da regularidade, da intencionalidade, da sensibilidade e do acaso, como mostra a figura abaixo, extraída do livro “Les interactions risquées” (LANDOWSKI, 2005).

Figura 57. Elipse das lógicas dos regimes de interação e de sentido.

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Considerando tais postulações, é possível reordenar o corpus analisado em uma grande elipse, baseada naquela exposta acima, re-combinando as análises realizadas em quatro grandes “momentos”, ou nas quatro lógicas do uso do corset. No interior delas podem ser apreendidas as passagens, dentro de cada recorte do corpus, pelos diferentes regimes de interação e de sentido. Esta reorganização admite, assim, que ainda que exista programação, manipulação, ajustamento e acidente “puros” em alguns momentos isolados do percurso do uso do corset, em outras posições estes regimes podem ser combinados entre si, produzindo, por exemplo, uma “programação acidental”, ou um “ajustamento manipulado”, ou, ainda, um “acidente programado”. O estudo das passagens que não limitam-se ao estudo das posições complementares – ou seja, da programação programada, da manipulação manipulada, do ajustamento ajustado e do acidente acidental – abriga a importante incumbência de expor que as interações nem sempre (ou quase nunca) ocorrem de maneira tão dicotômica ou prática, protocolar, mas geralmente existe conflito entre os atores de um mesmo percurso, sobretudo no campo da moda. Na apreensão e análise destes conflitos entre diferentes maneiras de inter-agir, encontramos um sentido mais profundo, no qual inscrevem-se as rupturas nos humores da moda a partir do que pode ser lido como a vontade do corpo, ou da observação das mudanças nas tendências de uma época a partir do ponto de vista do corpo como primeiro sujeito da interação. Observando a elipse das lógicas do uso do corset (figura 58), é possível apreender que em apenas quatro, das dezesseis posições observadas, foi identificada a convergência dos modos de interação do corpo e do corset, produzindo uma relação de complementaridade. Estas quatro posições, que podem ser categorizadas como investidas da presença “pura” de cada um dos quatro regimes, presentificam tendências de moda consolidadadas, na constelação da prudência – como a moda de meados do século XVIII, ou a tendência atual de corpo manifestada pelo uso do Shaper de Dr. Rey – ou as rupturas com tendências do traje mais reconhecidas historicamente enquanto tais, formadoras da constelação da aventura – a passagem de uma moda “rococó” para aquela “neoclássica”, e a revolução da “queima do soutien”. Estas duas constelações, por sua vez, resumem o tom das mudanças ocorridas na moda ao longo dos séculos estudados, que podem ser lidas como trânsitos entre movimentos de “Sujeição do Corpo” (a prudência, caracterizada pela regularidade e pela 189

intencionalidade)e a “Emancipação do Corpo” (a aventura, caracterizada pelo acaso e pela sensibilidade).

Figura 58. Elipse do corpus reorganizado a partir das quatro lógicas da interação e do sentido propostas por Landowski (2005).

Contudo, caso nossa análise objetivasse caracterizar apenas as relações de complementaridade entre ação do corpo e ação do corset, seria possível resumir o resultado obtido ao longo da pesquisa no seguinte esquema:

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Figura 59. Quadrado das conformidades entre o uso do corset e o sentido produzido no corpo. Quando lido a partir do primeiro termo, presentificado pelos stays do século XVIII, as passagens podem ser lidas inclusive de maneira cronológica, iniciando no século XVIII, seguindo para a ruptura com a constrição do torso no período neoclássico, passando aos movimentos de 1968 e terminando, no século XXI, no uso de cintas elásticas e tecnológicas. Finalmente, a última posição, termo de negação da Libertação das mulheres, possui uma forte relação de implicação com o primeiro corset analisado neste trabalho, caminhando para a sujeição total do corpo, fechando um grande ciclo do uso da constrição na moda ocidental.

Elaborando mais profundamente o esquema acima, percebemos que não apenas ele encontrase regido também por uma relação cronológica, diacrônica, mas igualmente, ele nos revela o caráter não estático ou cristalizado das tendências de corpo. Por um lado, o salto de 1795 para 1968 pode parecer excessivamente amplo, porém devemos ter em mente que ambas as tendências de corpo – a neoclássica e a feminista – constituem emblemas, categorias representativas que reenviam a diversas outras configurações de corpo que abarcam traços semelhantes. Tal como postulado por Greimas (1966), as isotopias apreendidas destas categorias poderiam ser reoperadas, posteriormente, em uma análise mais completa – ou talvez mais histórica – da moda ocidental. Ao mesmo tempo, quanto mais atuais são os objetos analisados, maior é a percepção de um trânsito quase que simultâneo entre diferentes valores, que passam a co-existtir de maneira concomitante, em uma mesma época, como observamos no estudo do recorte que compõe o capítulo III. O mesmo ocorria, contudo, no início do século XX, analisado no capítulo II, quando o uso do corset S-bend e do corset Underbust ocorreu de maneira paralela,

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em uma mesma sociedade e, muito possivelmente, pelas mesmas mulheres que já possuíam mais de um corset, destinado cada um a um uso específico. Este trânsito entre diferentes valores, apreendido tanto em um grande recorte temporal quanto simultanemente, em um mesmo período, pode ser reformulado como um trânsito entre diferentes modos de interação entre o corpo e o corset, produtor dos diferentes regimes de sentido. Estas passagens pelas categorias encontram-se relacionadas às passagens cíclicas das configurações de silhueta apreendidas da relação entre corset e corpo:

Figura 60. Elipse das passagens entre as quatro categorias de uso do corset identificadas pela análise do corpus: uso tradicional, regido pelo regime da programação, corset reformulado, regido pelo ajustamento, uso excepcional, regido pelo acidente e corset elástico, regido pelo regime de manipulação.

Mas de que maneira podemos ler as outras doze posições identificadas, onde há relações de conformidade, contradição e mesmo contrariedade entre o papel investido no corset e o papel assumido pelo corpo? Considerando a natureza dos sentidos produzidos, seria possível, talvez, afirmar que esta relação de não complementaridade entre os papéis do corset e do corpo manifesta uma maior autonomia do corpo – e consequentemente, do feminino – ou ao menos a sugestão de uma busca ou luta por esta maior soberania. Por um lado, este dado confirma a nossa hipótese inicial, de que é o corset que determina a moda e, consequentemente, seu entorno, o contexto da interação social com este 192

corpo, formado pelas silhuetas vestidas. Não existe uma mudança substancial de sentido do corpo vestido enquanto o corset não muda, ou seja, é difícil que o corpo produza esta mudança por si só, e como vimos, em alguns momentos analisados – como o uso da ‘Little X’, nos anos 1960 – mesmo quando o corset oferta uma maior liberdade para o corpo, o sujeito mulher continua a demandar uma conformação a um ideal, de certa maneira, ultrapassado. Por outro lado, no entanto, as passagens podem igualmente manifestar uma gradual “revolução” do corpo, que serve de instrumento de coerção na transformação do próprio corset. Aceitando esta direção, advinda da própria análise, é possível concluir que as quatro grandes categorias manifestam a ação do corset como sujeito “principal” da interação, ao passo que as doze posições de passagem, nas quais não há complementaridade entre corpo e corset, manifestam o que pode ser chamado de um “corpo inconformado” com sua própria conformação, em luta contra a sujeição (ou na conquista do direito de retorno a ela).

VI.1. As programações do corpo

Para dar prosseguimento à análise a partir do ponto de vista do corpo como primeiro sujeito da interação, iniciaremos reunindo as quatro posições nas quais foi identificado um predomínio do investimento de um papel temático na ação do ator corpo, independente do papel assumido, na interação, pelo corset. Nestes quatro momentos do uso da lingerie constritiva há uma prevalência do regime de sentido da programação, fundada em uma regularidade simbólica do papel do corpo. No esquema abaixo, retomamos a complementaridade entre os dois papéis, identificada no uso do corset e da crinolina, no século XVIII, como manifestação última de um papel temático feminino de procriadora, bem como da vontade do corpo de cumprí-lo, de adequar-se a ele – por meio do aumento do quadril e da diminuição da cintura que, por sua vez, permitiam ao vestido manifestar, no exterior, os mesmos valores cultivados no corpo pela roupa de baixo. A prática do extreme tight lacing aparece, nesta configuração, enquanto oposição mais clara ao papel temático, via exacerbação das características sexuais. O exagero da cintura, oposto ao realce “normal”, aceito pela moda, aparece como produtor de um sentido de repulsa, disfórico, oposto à euforia (atração) pelo corpo “correto”, do século XVIII.

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Figura 61. Elipse dos usos do corset nos quais predominam o regime de programação na ação do ator corpo, em complementaridade (séc. XVIII), conformidade (La Perla), contradição (Little X) e contrariedade (Extreme Tight Lacing) com o papel assumido pelo corset.

Como identificado por Kunzle, por meio de outras metodologias, o tight lacing é mais um instrumento revolucionário do que de opressão (KUNZLE, 2004), e pode ser lido, nos termos propostos ao longo deste trabalho, como uma emancipação do corpo, uma vez que a transformação radical, que ultrapassa o corpo “correto”, liberta-o (e, conjuntamente, liberta o sujeito) da sujeição aos ideais em circulação. Do ponto de vista do feminino, este corpo que quer ser visto pela exacerbação de sua cintura – e consequentemente de seus seios e quadris – está, em realidade, manifestando sua emancipação (sobretudo sexual) do papel temático de esposa procriadora, dando lugar à busca por uma construção de um parecer livre das obrigações sociais. O que causaria a relatada repulsa às tightlacers (Cf. KUNZLE, 2004, STEELE, 2001), portanto, seria a disforia da liberdade feminina, no plano do conteúdo, figurativizada pela cintura extremamente constrita. Trata-se de uma apreensão semi-simbólica, na qual a liberdade de constringir a cintura além do ideal aceito é homologada à prática do aborto e do infanticídio, enquanto oposição à própria fertilidade. Esta oposição ao valor manifestado pelo corset tradicional, por sua vez, permite entrever a contrariedade entre corpo e corset, na qual o corpo permanece apoiando-se em uma programação, necessária à realização do corpo

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almejado, mas cuja figuratividade pretendida transforma o sentido original do corset, conferindo a ele um papel catastrófico. Nesta oposição de base, ambos os usos identificados permanecem, do ponto de vista do corpo e do corset, compondo um eixo de valores tradicionais. O tight lacing, ainda que apareça como uma prática de afronta aos papéis estabelecidos para a mulher, apoia-se tanto no fazer tradicional do corsetier, quanto na anatomia original do corset. O caráter de oposição do tight lacing pode ser lido, portanto, como um hiper exagero do tradicional, tal como o sentido conferido ao corpo é aquele de um excesso na manifestação de suas características sexuais, o que reenvia à figura do virtuoso (LANDOWSKI, 2009), ou aquele que ultrapassa, por meio de sua performance, os limites estabelecidos para o uso ou a prática de um objeto. A relação de conformidade, identificada no shaper de La Perla, aparece como negação da exacerbação sexual, por meio da masculinização das linhas da silhueta e da interdição do próprio sexo. Esta masculinização – em realidade uma negação dos traços femininos homologados ao valor de procriação – manifesta uma negação da sexualidade acentuada, que é identificada com um ideal pós-libertação feminina, de igualdade entre os sexos, sobretudo no que toca o mundo do trabalho. Contudo, em lugar de buscar a libertação feminina pelo exagero da feminilidade (que, por vezes, transcende-a, como ocorre na figura da tightlacer), o sujeito busca a libertação por meio da castração, identificando-se ao corpo dos homens. Tratase da adesão a um complexo contrato, no qual além do corset, outros destinadores sociais encontram-se atuantes, todos contribuindo para a formação de uma imagem feminina idealizada, na qual o sexo (e consequentemente a família, os relacionamentos, os filhos) não ocupa um papel central. Esta aspiração feminina é substituída pelo desejo de sucesso profissional e financeiro, que só pode ser atingido por meio da dedicação total ao trabalho. Finalmente, a negação do papel temático pela relação de contradição, identificada na cinta Little X dos anos 1960, aparece na permanência de uma configuração de corpo – com a cintura marcada e quadril modelado – porém investida de outros valores, como a mobilidade, a prática esportiva. O corset reveste-se de competências estésicas, mas o corpo permanece vinculado ao ideal de silhueta vigente, rechaçando a iminente revolução feminista. A contradição aparece como uma espécie de luta por um “direito à feminilidade tradicional”, em um cenário da inevitável destruição deste modelo de mulher, que ocorreria alguns anos após o lançamento desta cinta. O próprio corset deseja conduzir o corpo em direção a um papel mais emancipado, todavia este recusa a mudança, mantendo-se leal ao formato conhecido. É 195

interessante a relação de implicação entre a “Little X” e o extreme tight lacing, que abriga uma emancipação do corpo via exagero de um ideal. Pela conformação do corpo material, é possível atingir uma libertação dos ideais em circulação, ao exagerá-los e ostentá-los na própria figura. Este eixo subcontrário posiciona o corpo que veste o Shape Couture e a “Little X” no termo neutro que presentifica o valor atual, que pode ser lido de duas maneiras distintas. Primeiramente, pela cronologia e pela própria inovação do estado conferido ao corpo: em ambos os casos, tratam-se de corsets confeccionados em matérias que apresentam elasticidade em sua composição, que apesar de produzirem modelagens impositivas, permitem uma mobilidade maior do que aquela do corset tradicional, presente nos corpos do eixo tradicional. Por outro, os dois corpos manifestados nos subcontrários são versões aperfeiçoadas de outros corpos, propriamente tradicionais, seja o corpo masculino proposto pelo movimento de 1968, aprimorado pelo modelador de La Perla, seja o corpo tido até hoje como hiper-feminino, herdado dos anos 1930-50. É importante observar que existe um forte traço plástico que atravessa os três corsets analisados que aproximam-se mais do regime de programação – e que pode ser identificado, de maneira extremada, também no corpo do tightlacer. Trata-se do cruzamento de linhas no centro do corpo, na cintura, que forma um “X” central. Este traço aparece de maneira mais literal no “X” central do La Perla Shape Couture e na modelagem da “Little X”, mas pode ser identificado nos arranjos plásticos dos corpos vestidos formadores do eixo dos contrários, o corpo do traje à francesa, e o corpo do tightlacer. Reelaborando as dêixis da sujeição e emancipação, é possível retomar a oposição entre constrição e liberdade, que vai se relativizando conforme as relações estabelecidas consideram o ponto de vista do corpo. Além da sujeição tradicional, relacionada ao papel temático, há a sujeição do corpo via adesão, uma sujeição do corpo para uma ilusão de emancipação em outros níveis (profissional, financeira), que é produtora de uma sujeição total do sujeito, uma constrição de sua presença social. A mulher manifestada pelo uso de La Perla encontra-se constrita não apenas em sua silhueta, mas em sua agenda, em seus horários, em seu tempo livre, em seu orçamento. Esta sujeição, no entanto, é elástica, tanto quanto o corset que recobre o corpo do século XXI, e é vendida como um ticket para a libertação feminina. Papel voluntário, de destinatária do corset, rumo à volta ao papel temático, que nos deixa a questão: seria a “mulher carreira” o papel temático feminino de nossa era? 196

Do lado da liberdade, ou da emancipação, ambos os corpos apropriam-se de características femininas tradicionais, principalmente o quadril modelado e ressaltado pela constrição da cintura, para opor-se ao contexto social vigente. No extreme tight lacing, tratase da liberdade de ser extremamente modelada, mais constrita do que as outras mulheres, produzindo um corpo único, fora do padrão. No uso da Little X, trata-se do direito de ser feminina – e, porque não, ao modo da personagem Joan, no filme “O Sorriso da Monalisa”, desejar ter uma família, mais do que a carreira de advogada – em um contexto de iminente revolução feminista, apoiada na dissolução da feminilidade tradicional como única via para o fim da opressão das mulheres.

VI.2. O corpo manipulado/manipulador

Revisitando o corpus, é possível igualmente reconhecer que um forte traço plástico une todos os objetos identificados com a presença do regime de manipulação na ação do corpo: trata-se de uma divisão precisa do talhe, manifestada pela modelagem do corset, que pode ser relacionada com maior ou menor clareza à própria divisão anatômica do corpo. Esta relação vai tornando-se menos evidente conforme o papel do corset desloca-se da constelação da prudência (marcada pela sujeição do corpo) em direção à constelação da aventura (lugar da emancipação), mas não deixa de ser perceptível sequer quando o corset encontra-se associado ao papel catastrófico. O traço da setorização do corpo beira a obviedade no Shaper de Dr. Rey, em cuja análise, inclusive, indicamos a proximidade entre o corte da cinta e o diagrama dos cortes bovinos: a precisão do fazer do cirurgião (ou do açougueiro...) encontra-se manifestada de maneira clara na modelagem deste corset. Nesta diagramação do corpo, inclusive, reside a precisão do fazer da cinta, elaborada a partir dos conhecimentos do cirurgião plástico, transpostos para a indústria têxtil pela mediação do designer Bruno Schiavi. Uma proposição semelhante àquela identificada no corset S-bend, cuja principal bandeira era aquela da saúde conferida ao corpo ao longo de seu uso: os recortes, mais anatômicos do que aqueles dos stays do século XVIII ou dos demais corsets do século XIX, serviam à criação de uma modelagem em maior sintonia ao corpo natural, poupando os órgãos internos da compressão do corset vitoriano e, ao mesmo tempo, facilitando a digestão e a respiração durante seu uso. A consequência desta modelagem mais “consciente” é uma setorização do corpo muito 197

semelhante, na qual, ainda que de maneira menos precisa, a mesma separação das “carnes” femininas é manifestada. A relação mais evidente com esta divisão do corpo – setorizar para modelar melhor – aproxima os dois modelos do valor de sujeição do corpo, uma vez que reforça o caráter subjetal do corset – que é modalizado com um saber sobre os lugares do corpo, bem como com um saber-modelar, saber-transformar – e igualmente o papel mais objetal do corpo – que entrega-se nas mãos do “escultor” (shaper) que remodelará seus tecidos em um novo desenho, considerado mais ideal pelos modelos de silhueta em circulação. O traço de setorização do corpo é reiterado no corset de 1820, ainda que de uma maneira mais poética, não por meio de painéis reforçados, mas de um gracioso e decorativo bordado, realizado pela técnica denominada trapunto (ponto atrás), que serve à dupla função de ornamento e de reforço/endurecimento do delicado tecido de algodão. A divisão do corpo é dada pela intensidade do uso da linha em cada um dos locais do corset, produzindo desenhos mais abertos ou mais fechados que adquirem uma precisão anatômica que o aproxima dos demais, ainda que de maneira mais ajustada (e menos constritiva) do que o shaper de Dr. Rey ou o corset S-bend.

Figura 62. Elipse dos usos do corset nos quais predomina o regime de manipulação. Além da relação de complementaridade entre os papéis do corset (destinador) e do corpo (destinatário), identificada no uso do Shaper Dr. Rey, há a relação de conformidade (S-bend, de 1905), contrariedade (Corset de 1820) e de contradição (uso do corset pela cantora Madonna).

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Finalmente, nos dois modelos de Jean-Paul Gaultier utilizados por Madonna, o original (1990) e o modelo nele inspirado (2012), promovem uma marcada divisão do corpo da cantora, separando-o em seios, abdome central e lateral, quadris e sexo. Não se trata, como nos demais casos, de uma divisão do corpo para melhor modelá-lo – uma vez que a função do uso do corset nos shows é mais estética, no sentido da decoração, do que funcional, ou de modelagem – mas uma setorização que acentua os atributos sexuais do corpo, conferindo destaque a eles, prolongando-os. A diferença entre o uso realizado por Madonna e aquele dos demais modelos analisados é que, apesar de utilizar os modelos mais complexamente construídos, o corpo de Madonna é o mais livre de todos. Seria possível afirmar que, na relação entre destinador e destinatário, no caso do uso (excepcional) realizado por Madonna, o corset assume o papel de destinatário, e não de destinador. Esta inversão, inclusive, é extendida ao contexto social, uma vez que na figura de Madonna predomina o papel de destinador – do corset, da tendência de moda e musical – ainda que em alguns casos ela também assuma o papel de destinatária – dos estilistas de alta costura, por exemplo. Em outras palavras, neste caso específico, talvez fosse possível falar em uma inversão da relação de sujeição: não se trata apenas de uma emancipação do corpo de Madonna, mas de uma sujeição do desenho do corset ao seu corpo. A liberdade aparece presente, ainda que em menor grau, também no modelo neoclássico, de 1820. Apesar de promover uma constritiva transformação do corpo, o modelo é o único deste recorte que exalta um corpo que parece ser livre, herdado da virada do século XVIII para o XIX. Surpreende, nesta recategorização do corpus, a identificação de Madonna ao eixo tradicional. Tal posicionamento não deixa de ser verdadeiro, se considerarmos que, apesar das constantes rupturas manifestadas pelas figuras da cantora, nós nos acostumamos, de certa maneira, à sua previsível imprevisibilidade. O próprio “título” conferido a ela, de “Rainha do Pop”, coloca-a em uma posição tradicional, monárquica, constantemente utilizada como parâmetro de comparação quando a crítica é exercida a outras divas (ou princesas...) do pop mais atual, como Britney Spears, no início dos anos 2000, ou mais recentemente, Lady Gaga. Madonna é, de maneira semelhante, “tradicionalmente” um ícone da moda, há mais de vinte anos a favorita de diversas maisons (CHURCH GIBSON, 2012). Esta análise revela superficialmente o próprio caráter contraditório da construção mediática da cantora, hora 199

tradicional, hora atual, mas transitando igualmente entre diversos polos opostos, como masculino e feminino. Caberia, em uma ocasião futura, um estudo mais aprofundado exclusivamente desta relação, entre Madonna e o corset, para conclusões mais satisfatórias acerca desta polêmica figura. No eixo ocupado pelo atual, no entanto, fica evidente que ambos os corsets encontram-se bem colocados, seja a inovadora cinta de Dr. Rey, na qual são empregadas tecnologias de ponta do século XXI, ou o próprio corset de 1820, inovador à sua maneira, no contexto do século XIX, e atual na própria configuração de corpo, mais exaltadora de uma liberdade. Esta tendência, inclusive, parece apontar um dos possíveis rumos futuros do corpo ocidental atual, quando há, em paralelo à hiper construção do corpo, uma busca por uma maior liberdade, ou mais precisamente, uma naturalidade do corpo, exaltada nos dias de hoje. Esta busca por naturalidade, em oposição à busca por uma hiper construção do corpo retoma, inclusive, o dilema exposto por Pamela Church Gibson, acerca das duas distintas configurações de corpo coexsitentes no século XXI, uma mais próxima da moda das passarelas, outra mais próxima da moda popular, das ruas (CHURCH GIBSON, 2012). Estas duas maneiras da moda afastam-se, justamente, pela sujeição do corpo, pertinente à primeira, e sua emancipação, almejada pela segunda: dilema eterno que pauta, como comprovam as análises aqui expostas, uma separação entre o estar na moda ou fora dela, aderindo aos programas por ela determinados, ou contestando-os.

VI.3. Os corpos sensíveis

Um dos aspectos mais interessantes das análises realizadas é, certamente, a discreta presença do papel sensível do corpo na interação, desde o uso tradicional até as lógicas do acaso, marcadas pelo uso excepcional do corset ou do corpo. Esta progressiva presença do ajustamento é uma das grandes propulsoras do desenvolvimento do próprio corset, uma vez que a busca por uma situação mais cômoda do corpo na lingerie constritora, ou de matérias que proporcionem este conforto ao longo do uso, é um dos grandes motivadores dos avanços na indústria têxtil voltada para a confecção deste tipo de roupa de baixo. Começando pela relação de complementaridade, há a primeira ruptura substancial do uso da constrição por meio do corset, como era praticada a cerca de dois séculos. O stays de 1795, como vimos no item IV.4., propunham uma revolução do formato do corpo, tornando-o 200

mais livre. Esta transformação da silhueta abrange todos os âmbitos do vestuário, do vestido à profissão de corsetier, que é completamente modificada, começando com a experimentação de uma nova maneira de fazer corsets a partir dos materiais e ferramentas então disponíveis. Outras relações entre o papel do corpo e do corset, no entanto, produzem sentidos tão surpreendentes quanto este do corpo do neoclássico. Começando pela silhueta proposta por Chanel, na qual identificamos a relação de conformidade entre papel do corpo e o papel do corset – que, nesta tendência de moda, é um elemento ausente do traje – ainda que a moda iniciada pela estilista adquira um caráter de forte ruptura, trata-se de uma ruptura ajustada, sensível, que prima pela competência estésica de todos os elementos de seu total look. Do uso de tecidos mais macios e confortáveis à utilização do perfume como complemento da roupa, a moda de Chanel certamente inscreve-se em um forte fazer sentir, seja a mulher que a veste, seja o outro, aquele para quem esta mulher se veste – que pode ser, como destaca Greimas, ela própria (GREIMAS, 2002).

Figura 63. Elipse dos usos do corset nos quais predomina o regime de ajustamento. A relação de complementaridade foi identificada nos Stays de 1795, o primeiro corset reformulado para uma melhor acomodação do corpo. Em seguida, a relação de conformidade foi identificada na moda de Chanel, uma das maiores disseminadoras do corpo sem corset. A relação de contrariedade foi identificada ao uso da lingerie do fabricante TC Fine Intimates, e a contradição aparece relacionada ao uso tradicional do underbust, de 1906.

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Termo oposto à moda de Chanel, o uso do underbust no início do século XX estabelece com o total look uma relação parecida com aquela identificada entre o extreme tight lacing e o movimento pela libertação das mulheres. De um lado, Chanel procura a estesia pela negação do uso do corset; de outro, o underbust confeccionado apenas em fitas de seda busca a mesma sensibilidade no uso do corset, tornando sua ação mais confortável, macia e afável. Esta divisão será, sempre, a linha que determina a separação entre a formação da silhueta por sujeição ou por emancipação do corpo. Introduzir a competência sensível no traje exaltando, por meio dela, a competência estésica do próprio corpo, pode ocorrer pelas duas vias. No caso do uso do underbust, o foco encontra-se na estesia da relação corpo-corset, e perpassa tanto sua materialidade, quanto a diminuição da área do torso recoberta pela peça de roupa. No caso de Chanel, outras formas da sensibilidade são exploradas: na supressão do uso do corset, a estesia emerge do contato direto do corpo com a roupa, acessórios e, claro, com o perfume. Finalmente, até mesmo a manipulação, por parte do corset, pode ocorrer por uma via sensível, como é o caso da lingerie vendida pela marca TC Fine Intimates. O corset, comercializado em diferentes intensidades de constrição, permite que a própria usuária decida o quanto de compressão é confortável (ou desejável) para o seu próprio corpo. Ainda que no contexto do contrato de manipulação, existe um evidente ajustamento entre o corpo e o corset, no qual ambas as vontades são relevantes. Igualmente, o TC Fine Intimates produz mais uma contensão do corpo do que uma transformação, estendendo o ajustamento também à relação entre corset e roupa. Em lugar de propor uma revolução na silhueta para um modelo de vestido, este corset atua suavizando a silhueta, e permitindo que a roupa escorregue sobre ele, sem a imposição de um novo formato, seja ao corpo, seja ao traje. Tanto no que toca a tendência de moda, sobretudo dos anos 1920 e 1950, quanto o caráter de ruptura do total look, Chanel é indescutivelmente tradicional. No contexto do “abandono do corset”, sua moda manifestava uma tendência atual, mas que foi rapidamente assimilada como um “clássico” – e que para Floch, inclusive, é indiscutível a predominância de uma figuratividade clássica, segundo as cinco categorias de Wölfling exploradas pelo autor em sua análise do total look (FLOCH, 1995). Esta tradição, inclusive, amplia-se quando se trata do ideal de beleza andrógina imposto pela estilista, melhor aceito do que a androginia propriamente revolucionária de 1968 – a sutil porém fundamental diferença entre o corte de cabelo conhecido, justamente, como chanel, e o corte estilo pixie, que tornou-se famoso a partir da imagem da modelo Twiggy. 202

No eixo marcado pelo valor “atual”, de maneira semelhante, conservam-se as posições ocupadas pelas inovações tecnológicas mais pronunciadas, seja sua descoberta (stays de 1795), seja o aprimoramento têxtil necessário para produzir o mesmo modelador em diferentes graus de constrição (TC Fine Intimates). Em ambos os casos, inclusive, concentram-se invenções muito importantes para a indústria de lingeries como um todo, as principais: a descoberta (e aperfeiçoamento) das taças de suporte para os seios, a possibilidade de constrição com menor volume de estrutura rígida, e a modelagem da Lycra® tubular, sem costuras. De maneira semelhante, do underbust a Chanel, há uma emancipação do corpo cada vez maior, primeiro em sujeição, ainda que minimamente, à moda de frente reta, passando por uma tendência de corpo que procura sua libertação total (1795), mas não a concretiza, até o “abandono do corset”, idealizado por Poiret e plenamente realizado por Chanel. A volta à constrição, no modelador de TC Fine Intimates, denuncia novamente o forte caráter de aprisionamento do corpo vivido pelas mulheres de nosso século, no qual os modeladores são tão populares quanto o corset tradicional o foi em seu tempo.

VI.4. O corpo como destinador (mítico) do corset

Resta retomar a interação regida pelo regime do acidente, a partir do ponto de vista do corpo. Nesta última elipse, organizamos as rupturas com os papéis temáticos, da moda e da mulher, a partir do sentido produzido no corpo. Novamente, a organização do corpus na elipse produz um efeito cronológico, diacrônico, que permite identificar, em uma espécie de linha do tempo (elíptica) os fatos que culminaram na detonação do movimento pela Libertação das Mulheres. A complementaridade entre papel catastrófico do corpo e do corset foi apreendida apenas no movimento pela Libertação das Mulheres, no qual é evidente que a única via é o desentrelaçamento total dos programas narrativos do corpo e do corset. Mais que isso, não basta manifestar o abandono da constrição pela plástica da silhueta não constrita: é preciso destruir, ainda que simbolicamente, todos os objetos relacionados à conformação do corpo, ou à sua sujeição aos padrões da moda, criados e perpetuados pelos homens como instrumento da opressão feminina. Trata-se da cinta (corset), mas igualmente do soutien, das meias, dos saltos, e até mesmo de objetos que não atuam diretamente na modelagem do corpo, no sentido 203

da compressão e aumento de suas diferentes partes, mas que dissimulam seu desenho original de outras maneiras, como é o caso da maquiagem, dos produtos para cabelo, etc.

Figura 64. Elipse dos usos (ou não usos) do corset nos quais predomina, no corpo, o regime do acidente. Na relação de complementaridade encontra-se o movimento pela Libertação das Mulheres, de 1968. Seguindo, na relação de negação, há a contradição com o corset de Agent Provocateur, utilizado apenas como lingerie sensual (e não como modelador do corpo). Na relação de contrariedade, há a interessante roupa de baixo de 1880, na qual aparecia figurativizado o tema da morte do corset e da crinolina. Finalmente, na relação de conformidade, identificamos o inovador bodysuit de Mary Quant, o primeiro a libertar as pernas das mulheres permitindo, simbolicamente, a luta por sua real libertação.

A começar pelas décadas de 1870-90, estas são descritas por Kunzle como as mais feministas de todo o século XIX (KUNZLE, 2004), nas quais não apenas foi mais aceito o uso de contraceptivos, como a própria relação sexual foi parcialmente desvinculada do ato de procriação. Esta maior liberdade sexual feminina aparece manifestada, no traje completo, em sua maior leveza e dinamicidade, mas sobretudo na alteração da topohierarquia, que deixa de privilegiar a visibilidade do sexo para deslocar a atenção do enunciatário para as costas. Kunzle, inclusive, divaga sobre a possibilidade de uma relação deste destaque dos glúteos a um suposto aumento do interesse pelo sexo anal, mas o próprio autor afirma não existirem relatos ou documentos que comprovem tal hipótese (KUNZLE, 2004). Deixadas de lado estas distrações, é possível perceber uma clara relação entre o fim do destaque dos quadris como 204

“ponto principal” do traje e a desvinculação do papel do vestido ao papel temático feminino. Esta dissociação, inclusive, liberta o próprio vestido de seu papel temático de manifestar a fertilidade daquela que o porta, permitindo que outros sentidos sejam investidos, tanto na roupa quanto na figura da mulher. Este primeiro esforço, no sentido de não manifestar-se enquanto fêmea fértil, delineia a relação de negação entre a moda de 1880 – que, ainda que livre simbolicamente, permanece bastante construída, constrita – e o bodysuit de Mary Quant. Em lugar de manifestar uma liberdade simbólica, mas permanecendo com o corpo constrito e em sujeição a um ideal, Mary Quant permite uma liberdade completa, seja da manifestação “obrigatória” das competências da fertilidade e da maternidade, seja uma liberdade mais literal, aquela das pernas, que podem agora abrir-se (ou fechar-se), caminhar e correr. O modelador que fecha-se entre as pernas, ao mesmo tempo, manifesta em si um primeiro indício do celibato revolucionário, propostos pelas líderes de algumas células do movimento pela Libertação das Mulheres, ou a negação do sexo, que aparece “lacrado” e constrito no bodysuit, como instrumento da libertação – da objetificação sexual, do papel da procriação, da situação de oprimido conferida ao sexo feminino. Finalmente, após 1968 (e, retomando as análises apresentadas até aqui, após os atos de Cherie Currie e, subsequentemente, Madonna) o corset tem sua entrada no guarda-roupas novamente permitida. Desta vez, porém, ele retorna enfraquecido e destituído de suas competências de modelagem do corpo. Trata-se de um corset sem cintura, privado de seu tradicional formante eidético, que deixa de ser o poderoso sujeito de outrora, para tornar-se uma espécie de brinquedo erótico, um fetiche acetinado e rendado, mas que não impõe sua forma ao corpo. Pelo contrário, conforma-se ao corpo, ou sujeita-se a ele, apenas recobrindoo, reenviando aos seus “dias de glória”, mas sem o saber-poder transformar o corpo. Na busca de identificar um papel catastrófico do corset, este encontra-se inscrito nesta peça de Agent Provocateur de maneira quase tão pronunciada quanto na revolução de 1968: em lugar de destruí-lo, no entanto, a mulher de 1990 opta por “castrá-lo” ou, ainda, domesticá-lo, tornando-o conformado à sua vontade e necessidade, que deixa de ser a modelagem da silhueta. Para esta função, ela pode servir-se de modeladores melhor formulados (e supostamente mais confortáveis) do que o corset tradicional. À mulher do século XXI – à exceção das tightlacers, que jamais encontrarão uma lingerie melhor – o corset só serve enquanto símbolo, manifestado sobretudo na amarração por ilhoses, no cetim, nas rendas. 205

Os subcontrários, portanto, presentificam de maneira eficaz as tendências atuais da constrição, atuais inclusive no sentido do século XXI: o uso de lingeries constritoras/ modeladoras que prezem pela maior liberdade de movimentos do corpo, geralmente fechadas entre as pernas ou em forma de bermuda, e o recurso aos designs inspirados no passado para o realce da sensualidade, da feminilidade. Não se trata do corset como fetiche de constrição, de diminuição da cintura, mas da “atmosfera” erótica que o reveste, do burlesco, do boudoir. Esta sexualidade feminina manifestada pela lingerie opõe-se à necessidade do celibato revolucionário, que é perpetuado atualmente na castração da sensualidade imposta ao ambiente de trabalho, no qual as mulheres devem ser masculinizadas para conquistar seu espaço. Esta necessidade de constrição sexual aponta o modelador de Mary Quant como primeiro sintoma de que a luta feminista concentrava-se neste tema, da sexualidade feminina, que pode ser tanto marca de sua emancipação, quanto de sua sujeição. No eixo onde encontram-se investidos os valores tradicionais, nos deparamos novamente com o dilema proposto por Kunzle, ao afirmar que o corset (e o salto alto) não são inimigos do feminismo (KUNZLE, 2004). Observando os dados contextos, evidentemente, é possível afirmar que as mulheres de 1880 possuíram quase tanta autonomia sobre seus corpos quanto as feministas. Ambas, no entanto, encontravam-se sujeitas ao risco da interação com os homens. Este risco aparece, no traje de 1880, manifestado pela presença de “armas” nas costas, as lâminas armadas do corpete que apontam para o outro, como que protegendo aquela que porta este vestido. Em ambos os casos, os perigos são semelhantes, relacionados às consequências do não cumprimento do papel temático. Em 1880, o maior perigo seria, provavelmente, não conseguir encontrar um marido – seja pelo cultivo excessivo do corpo, seja pelo cultivo excessivo da mente, ambos considerados repulsivos e “anti-higiênicos” na era Vitoriana. Em 1968, o perigo era mais iminente, e de caráter mais literal: não apenas nos insultos verbais, mas nas constantes ameaças de estupro. No contexto de oposição ao feminismo, o estupro aparece investido de um valor “corretivo”, mais que punitivo: para aquelas que recusam o cumprimento do papel temático tradicional, seja pelo celibato ou pela homossexualidade, o ato sexual forçado – ou a injunção do papel temático – surge como uma reação masculina ao desentrelaçamento do programa narrativo masculino e feminino, por meio da qual busca-se forçar o re-entrelaçamento destes programas, ou um reestabelecimento da programação, na qual a fêmea é dominada e o macho é dominante. 206

Considerações Finais

Será possível afirmar que o papel do corset é maior, ou mais importante do que aquele do corpo, nesta arriscada interação, produtora de tantos sentidos, da extrema conformação – feminina, do corpo – à total ruptura com qualquer constrição, seja ela corporal ou social? Quando iniciamos as análises, apresentadas nos capítulos de II a V, ficou evidenciado o papel fundamental do uso do corset – independente do nome dado a esta peça – não apenas na (con)formação do corpo, como do consequente papel feminino. Isto se dá, sobretudo no âmbito mais programado, na constelação da sujeição (prudência), na qual fica evidente a imbricada relação entre corpo, corset e vestido. Neste arranjo, no qual um papel temático depende do outro, sentidos que determinam o todo da interação social entre os indivíduos de um contexto são produzidos, seja pelos regimes de visibilidade presentes – geralmente em relação de complementaridade, como fica evidente no traje à francesa – seja pela delimitação espacial, que precisam de maneira clara a proxêmica adequada para a interação, principalmente, entre homens e mulheres. Na análise desenvolvida no capítulo II, desta maneira, fica evidenciada que nossa hipótese principal se confirma: é possível ler a ação do corset como determinadora do entorno social, uma vez que ele atua, num papel protagonista, na definição das relações de proximidade e distância entre indivíduos do sexo oposto, mediando a relação da conquista, ao mesmo tempo em que a silhueta por ele formada manifesta, no traje completo, as competências esperadas da mulher, bem como a ação esperada do homem sobre aquele corpo. Esta foi, no entanto, a única posição identificada no corpus no qual há uma perfeita complementaridade entre os papéis do vestido, do corset, da crinolina, do corpo, da mulher e, consequentemente, do homem. A importância do papel do corpo na interação é progressiva, conforme a moda deixa de ser ditada exclusivamente pelos homens – e isso já ocorre no primeiro recorte do corpus, no qual analisamos o corset S-bend, cuja idealização é atribuída a uma mulher. A presença masculina, no entanto, é constante, seja no papel de adjuvante ou mesmo de destinador – como na marcada persona do cirurgião Dr. Robert Rey – ou de anti-sujeito, do qual busca-se uma emancipação – como é evidente no movimento de 1968, mas também de maneira mais sutil, na moda de Chanel, Mary Quant, e mesmo no shaper de La Perla. 207

Igualmente, ao longo do corpus, existe uma forte recorrência de traços plásticos que relacionam-se diretamente à identificação de pontos do corpo feminino relacionados à sua sexualidade – seios, baixo ventre, púbis e sexo. Este destaque atravessa o corpus, independente do papel assumido, pelo corpo ou pelo corset, e manifesta-se mesmo quando o intuito do destaque é atentar para a negação (ou oposição) do papel temático. Este último dado demanda nossa atenção para o fato de que, independente das fortes revoluções ocorridas, na lógica do vestuário (Chanel) ou do social (1968), a visão da mulher por parte da indústria da lingerie constritiva ainda concentra-se, e muito, no entorno do papel temático feminino considerado como correto no Antigo Regime. Após fortes transformações mais emancipatórias, como aquelas de 1920 e 1960-70, a moda rapidamente retorna a configurações corporais mais constritas, como é o caso da moda de 1930-50 – de cinta e soutien cônico – ou das próprias cintas e shapers de nosso século, por vezes mais constritivas e sujeitas a um ideal de corpo mais tirânico do que a própria silhueta do século XVIII. Em “The Corset – A Cultural History”, Valerie Steele se pergunta se o ser constrito é, então, sinônimo de ser civilizado (STEELE, 2001). O questionamento parece extremamente pertinente, no que toca a permanência da “necessidade” de apoio da figura feminina em objetos que promovam uma transformação de sua figura. Por que as rupturas com o uso de tais objetos geralmente não duram mais que alguns anos, ao passo que os períodos de constrição marcada são tão longos? É chocante, assim, a breviedade da moda neoclássica – pouco mais de 20 anos – em relação ao período de quase dois séculos de uso de stays, seguido de quase um século de uso ininterrupto do corset. Da mesma maneira, uma década, a de 1920, contrapõe-se a quatro (1930-70) de uso abusivo de cintas e soutiens estruturados. Após uma breve quase década de “liberdade”, de 1968-77, o corset volta a aparecer na figura das cantoras do punk e, logo depois, de Madonna – e isto, sem mencionar que a “liberdade” do movimento pela Libertação das Mulheres não manifesta uma “adesão global”, mas a luta de uma minoria muito pontual que, de fato, acreditava nesta emancipação. Chegando ao nosso século, desde 1968, não há uma expressiva luta contra os objetos constritivos. Pelo contrário: revestidos de novos valores e novas qualidades de conforto e mobilidade, os corsets elásticos atuais são cada vez melhor aceitos, no mercado e na gaveta de lingerie. Seu uso, gradativamente difundido entre mulheres de todas as classes sociais, aparece como uma alternativa prática à rigidez da dieta e dos exercícios, e segura, quando comparada aos riscos de submeter-se à cirurgia plástica. No entanto, ainda que uma pessoa 208

opte por treinamento e cirurgia estética, ao invés do uso de um modelador, seria possível afirmar que este corpo presentifica valores de liberdade, de emancipação? Esta contradição é repetida, ao afirmarmos que o corpo da tightlacer é livre, apesar de constrito ao limite do extremo. Após tantas análises, portanto, resta uma última reflexão, um encaminhamento futuro para este trabalho, que é o questionamento, quase filosófico, acerca do que é ser livre e do que é ser constrito. Nossa reflexão apontou que, deslocando o ponto de vista, é possível perceber que algumas constrições podem ser lidas como liberdades, ao passo que algumas liberdades são, em realidade, constrições. Neste aspecto, ao afirmar que o sentido está na relação, Saussure nos presenteia com um fechamento para nossa reflexão: ser livre ou ser constrito, em uma observação do uso do corset, depende apenas do ponto de vista adotado pela análise, bem como do ponto de partida da comparação. Em outras palavras, é possível determinar diferentes parâmetros de liberdade e constrição, dependendo de onde posicionamos o ponto de partida da análise. Este deslocamento de parâmetros foi desenvolvido ao longo de todos os estudos apresentados, pontualmente, mas com mais força no capítulo VI, no qual optamos por perguntar ao corpo – ou dar voz às mulheres – acerca de sua liberdade ou constrição. Esta última análise nos revelou que, mesmo quando o corset coloca-se como advogado da liberdade feminina, a mulher pode optar pela constrição e pela sujeição a um ideal. A mulher também pode escolher constringir-se até o limite suportado por seu corpo, e fazê-lo não por opressão, mas por busca da própria liberdade de expressão de si. A mulher pode cortar os cabelos e queimar e soutien, se assim desejar. E depois de tudo isso, pode escolher um corset não constritivo, e brincar de companheira submissa com o amante, amarrada com fitas de cetim, cinta linga e meias de seda. A resposta para nossa pergunta problema – se seriam as passagens por diferentes formas do corset as determinadoras do contexto social que as engloba – parece encontrar assim uma dupla resposta, um termo complexo articulando afirmação e negação. Por um lado, fica evidente o marcado papel exercido pelo corset de formador das interações sociais, sobretudo na constelação da prudência/sujeição. Estas maneiras, delimitadas pela silhueta realizada pelo corset, delimitarão as maneiras de tratamento, de proximidade, de contatos permitidos/interditos entre os sujeitos. Ao mesmo tempo, ainda que o corset seja jogado em uma lata de lixo simbólica, sob ameaça de destruição por incêndio, seu papel na formação da interação social continua sendo de suma importância, ao admitir-se 209

que o contexto social só pode ser transformado com a destruição do corset – e consequentemente, de todos os valores que ele manifesta, ao recobrir e transformar o corpo das mulheres. Olhando a questão por outro ângulo, no entanto, vimos que, a partir do ponto de vista do corpo, é possível ler as passagens por suas diferentes configurações, dadas pela não complementaridade entre o papel do corpo e do corset, como a luta do corpo por sua emancipação, em direção à constelação da aventura, que termina no grito feminista de 1968, e na dominação feminina sobre o corset tradicional, manifestada na figura de Madonna. O protagonismo do corpo, em algumas das posições analisadas, é inegável: ainda que a importância do corset seja admitida, especialmente no que toca sua apreensão simbólica, os esforços do corpo são importantíssimos, sobretudo na constelação da aventura/emancipação. Da descoberta do corpo pelo corsetier, em 1795, à destruição e domesticação do corset, pós 1968, pode-se dizer que o corpo aparece “liderando” a interação, ainda que esta se coloque de maneira ajustada, ou não hierarquizada. Igualmente, após a efervescência dos movimentos pela Libertação das Mulheres, o corset jamais foi o mesmo: ainda que o corset tradicional preserve seu espaço na cena fetichista ou na prática do tightlacing, a predominância do mercado atual é aquela dos corsets elásticos e desestruturados – termo empregado de maneira proposital, para chamar a atenção para a ferida em nosso objeto de estudo após a visibilidade conquistada pelo feminismo. No entanto, o que dizer de momentos em que, ainda que o corset ofereça a liberdade, ou mesmo “aceite” sua saída de cena, o feminino clama por constrição, como é o caso da “Little X”, que presentifica um emblema também das décadas anteriores, consecutivas à moda de Chanel? Ou mesmo do retorno do corset, após o período neoclássico? A cada reentrada do corset na moda, ele torna-se mais constritivo. Como se, após ferido em uma batalha mortal, ele se retirasse por alguns anos, para retornar ainda mais forte. Ao falar sobre a atual histeria dos padrões de beleza impossíveis, Eliette Abécassis discorre sobre o “corset invisível” (ABÉCASSIS & BONGRAND, 2007), manifestado pela sujeição aos ideais inatingíveis de magreza e juventude, disseminados pelas mídias atualmente. Esta suposta presença “invisível” – e, como vimos, um dos valores investidos no corset do século XXI é justamente aquele da invisibilidade sob a roupa, reforçando a euforia da transformação conferida – pode ser estendida ao culto ao corpo por meio dos exercícios e da cirurgia: ambos, em conjunto com o uso de corsets nomeados de outra maneira, reiteram a paixão de nosso 210

século por uma sujeição – extrema – aos padrões em circulação. Tal euforia da transformação total do corpo alerta para o perigo da ilusão de sua liberdade, que pode ser extendido ao mesmo perigo enfrentado na esfera política: a ilusão de democracia, de liberdade de expressão, de privacidade. Talvez seja pertinente arriscar a afirmação de que, entre todos os momentos do uso (e não uso) do corset analisados, nosso século seja o mais constrito de todos. Nunca fomos tão magras, e nossa busca por este ideal nunca foi produtora de tantas trajédias, que ultrapassam as ocasionais costelas quebradas, documentadas por Ambroise Paré (apud. STEELE, 2001) – mas consideradas por Kunzle como sensacionalismo mediático, uma vez que a manchete “morte por tightlacing” é muito mais atraente (KUNZLE, 2004) do que uma “morte por (qualquer outra causa)”. Nossa busca pela conformação – voluntária – a um ideal de beleza ultrapassa o uso de objetos externos, e abarca a dieta extrema, os distúrbios alimentares, o abuso de exercícios e até mesmo atrocidades como cirurgias caseiras de redução de estômago, ou lipoaspirações realizadas em clínicas clandestinas – todos estes temas não abordados neste trabalho, por não pertencerem diretamente ao uso do corset “material” como meio de transformação do corpo. No âmbito mais histórico, explorado nos capítulos II, IV e V, é possível contrapor, como procuramos fazer, os valores identificados por meio da homologação das categorias da expressão e do conteúdo, aos fatos históricos já documentados. Tal nos denunciou que, ao longo dos séculos, ainda que a permanência de uma figuratividade do corpo seja observada, há sempre uma renovação dos conteúdos manifestados pelo corset, adequando-o às novas demandas do feminino e, assim, assegurando sua duradoura continuidade, na moda e na função desempenhada no âmbito social. Em se tratando de nosso século, no entanto, muito ficou em aberto, e caberá, talvez, aos semioticistas do futuro observar-nos e confirmar (ou refutar) a pertinência de nossa análise. Por enquanto, contudo, é possível terminar deixando ao leitor uma pergunta: em que medida nós, mulheres do século XXI, permitiremos que o corset, este fortíssimo sujeito destinador, do corpo e do social, (con)forme nosso entorno, como o fez no passado da mulher e da moda do Ocidente?

Marília Jardim São Paulo, 09/10/2014

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Glossário A

Anquinha (pt): o mesmo que bustle ou tournure, espécie de crinolina típica do final do século XIX que recobre e aumenta apenas a traseira do vestido.

B

Barbatana (pt): termo genérico que define o tipo de estrutura utilizada no vestuário. Pode ser de baleia, de diferentes densidades metálicas (em espiral ou em chapa, também chamada flat), de madeira e até mesmo de plástico. Trata-se de um filamento de uma matéria, geralmente com espessura de 0.5 a 2mm, largura entre 0.5 e 2 cm, que é cortado no comprimento adequado e aplicado vertical ou obliquamente em diversos pontos do traje, para garantir reforço e estruturação.

Bodice (en): o mesmo que corpete. Peça de roupa exterior que compõe a parte superior do vestido. Até o século XVI a peça possuía a dupla função de traje e de peça constritora, mas a partir do século XVII a separação entre bodice e stays tornou o primeiro exclusivamente decorativo, e o segundo destinado à ação modeladora da silhueta.

Body (en): ou bodysuit, tipo de lingerie modeladora que une em uma peça única a calcinha, a cinta e o soutien. Construído em modelagem semelhante àquela do maiô, esta peça normalmente é confeccionada em tecido constritivo, com ou sem barbatanas, e geralmente fechado com colchetes entre as pernas.

Bone (en): o mesmo que barbatana. Na língua inglesa, o termo geralmente é acompanhado de um prefixo, indicando a matéria na qual é confeccionada, como “whalebone”, quando produzida a partir da cartilagem das baleias, ou “steel bone”, quando manufaturada em aço.

Busk (en)/Busc (fr): até o século XVIII, tal nomeação era atribuída a uma prancha de madeira aplicada no painel frontal dos stays. Mais largos que as barbatanas, os busks geralmente 219

continham decorações, inscrições e até mesmo declarações de amor gravadas em sua matéria, normalmente presenteados como lembranças de um pretendente ou amante, e no caso de avaria dos stays, este material poderia ser reaproveitado para a confecção de uma nova peça. Em 1829, o corsetier Jean-Julien Josselin patenteou uma nova versão do busk, denominada split-busk (busk dividido), confeccionado em aço e, como diz seu nome, dividido em duas peças que ficavam metade para dentro e metade para fora do corset. A parte interna, composta de um par de chapas de aço, servia à mesma função do busk do século XVIII, que é aquela de estruturar a frente do corset. A inovação residia justamente nas parte exteriores do busk, do lado direito uma fileira de ganchos, do lado esquerdo uma correspondente fileira de pinos ou travas que, quando sobrepostos e encaixados, mantinham o corset fechado. Este mecanismo permitia o abrir e fechar do corset pela frente, sem a necessidade de desfazer a amarração traseira, que passou a servir apenas à função de ajuste da peça. Este aviamento é utilizado em corseteria até a atualidade, e possui diversas nomeações que fazem menção às propriedades específicas, como “wide busk” (busk largo), “spoon busk” (busk colher, mais largo e arredondado no baixo ventre), “conical busk” (busk cônico, igualmente mais reforçado no baixo ventre), além de “wooden busk” (busk confeccionado em madeira, próprio para réplicas de stays do século XVII e XVIII).

Bustler (en): espécie de crinolina típica do final do século XIX, que recobria e aumentava apenas a traseira do vestido. Também chamado de tournure, em francês, ou anquinha, em português, este tipo de roupa de baixo foi confeccionado em diversas configurações, com diferentes composições. Algumas eram manufaturadas em aros de aço, outras em tecido acolchoado, ou até mesmo em tecidos rígidos, como a crina, e franzidos e drapeados que garantiam o efeito de volume.

C

Cage Crinoline (en): crinolina típica de meados do século XIX, “crinolina de gaiola”, nomeada desta maneira pelo formato de sino ou gaiola atribuído à saia, composta de estruturas horizontais circulares, normalmente em aço, sustentadas por estruturas verticais maleáveis, em lã, crina ou algodão rústico. Este modelo de crinolina era confeccionado em diversas densidades, algumas mais leves, completamente vazadas e sem a aplicação de tecidos 220

sobre a estrutura em aço, ou em modelos completamente recobertos por matéria tecida. O uso mais comum desta forma de crinolina, no entanto, combinava pontos de estrutura vazada à aplicação de tecidos, normalmente franzidos ou drapeados, que criavam uma ilusão ainda maior de volume, principalmente na parte inferior do vestido.

Cinta (pt): o mesmo que girdle, tipo de lingerie constritora/modeladora confeccionada em tecidos elásticos e estruturas rígidas, geralmente metálicas, fechadas pela frente com colchetes e sem amarração nas costas. As cintas podem ser utilizadas tanto para a finalidade estética – redução das medidas do torso e modelagem de sua forma – ou médica/ortopédica – contensão dos tecidos no pós-parto ou qualquer pós operatório que envolva o corte dos músculos abdominais, ou ainda para a correção de postura e imobilização da coluna.

Corpete (pt): o mesmo que bodice ou corps, peça de roupa exterior que pode ser estruturada ou não, e compõe a parte superior do vestido. Atualmente, a palavra “corpete” também é utilizada no Brasil para definir um tipo de peça de roupa que pode ser interior ou exterior, geralmente estruturada com barbatanas de plástico, mas que não possui ação modeladora sobre o torso.

Corps (fr): o mesmo que corpete ou bodice. Peça de roupa exterior, que pode ser estruturada com barbatanas ou não, que compõe a parte superior do vestido.

Corps à baleine (fr): o mesmo que stays, peça de roupa interior estruturada com barbatanas de baleia e destinada à função constritora/modeladora da silhueta.

Corselet (pt): o mesmo que corpete, mas geralmente refere-se a um tipo de lingerie, estruturada com barbatanas de plástico, que não possui ação modeladora sobre o torso. Alguns corselets inclusive são confeccionados como réplicas dos corsets do século XIX, com abertura frontal em colchetes e ajuste pelas costas com ilhoses e fitas ou cadarços de cetim.

Corselette (en): tipo de lingerie típica dos anos 1950, que recobre dos seios ao quadril em uma peça única, uma espécie de camisola ou combinação estruturada, que possui ação modeladora sobre os seios, a cintura e os quadris. Incluímos aqui este termo com a finalidade 221

de desfazer a confusão entre “corselet” e “corselette”, muito comum no Brasil, onde a palavra “corselette” (“corselête”) é muitas vezes erroneamente utilizada para referir-se a corpete, corselet ou corset.

Corset (en, fr): historicamente, o termo refere-se exclusivamente às lingeries constritoras e modeladoras do século XIX, geralmente mais acinturadas do que aquelas do século XVII e XVIII. Os corsets geralmente são confeccionados em duas camadas de tecido plano, estruturados com barbatanas de baleia ou metálicas, com abertura frontal (split busk) e ajuste pelas costas, por meio de ilhoses e cadarços de amarração. Ao longo do século XX, o corset passou a ser utilizado igualmente como roupa exterior, mas sempre produzido nas mesmas especificações de tecidos, estruturas e modelagem do século XIX e início do XX. A característica mais marcante que separa os corsets dos corpetes e corselets é, sem dúvida, a modelagem peculiar, que ressalta a cintura conferindo ao torso um aspecto de ampulheta ou de vespa (“wasp waist”).

Corsetier/Corsetière (fr): também adotado na língua inglesa, profissional especializado(a) exclusivamente na confecção de stays e corsets. Historicamente, esta profissão aparece na moda ocidental a partir da separação entre bodice e stays, no século XVII, que marca a separação entre os fazeres do alfaiate e do corsetier.

Crinolina (pt): o mesmo que crinioline.

Crinoline (en, fr): peça de roupa interior utilizada para armar a parte inferior do vestido. Ao longo do século XVIII e XIX diversos modelos de crinolinas foram criados, de maneira que esta peça é melhor conhecida pelas nomeações dos modelos (cage crinoline, hoop skirt, bustle,...). O que todas as crinolinas possuem em comum, no entanto, é a união de duas matérias – uma tecida, cuja mais comum era a “crina”, o que que originou tal nomeação, e uma estrutural, normalmente madeira ou metal – para a produção de um efeito de aumento da porção inferior do corpo, seja os quadris (século XVII-XVIII), seja o glúteo (final do século XIX) ou a circuferência da saia como um todo (meados do século XIX).

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E

Espartilho (pt): semelhante aos stays, peça de roupa interior constritiva, confeccionada em tecido rígido e estruturada com barbatanas vegetais, normalmente de uma planta conhecida como esparto (Setaria geniculata), da qual deriva sua nomeação. Espartilho é igualmente o nome do corte do esparto em filamentos para a utilização como estrutura rígida. Na língua portuguesa, o termo ficou conhecido como sinônimo de corsets, o que é equivocado, uma vez que tal como stays e corps à baleine, a palavra espartilho refere-se ao tipo de estrutura (neste caso, de esparto) empregada em sua manufatura.

F

Flossing (en): espécie de bordado característico do século XIX, aplicado na camada exterior do corset, empregado não apenas como decoração, mas como reforço dos painéis nos quais eram inseridas as barbatanas. O flossing também age como uma espécie de limite, que impede o movimento descendente ou ascendente das barbatanas dentro da costura, protegendo a peça do desgaste por atrito, e consequentemente de possíveis rupturas do tecido nos pontos mais sensíveis. Com a invenção das proteções metálicas ou plásticas aplicadas nas pontas das barbatanas, o flossing tornou-se obsoleto enquanto protetor do tecido, mas continuou sendo empregado como ornamento.

G

Girdle (en): o mesmo que cinta, lingerie constritora/modeladora criada nos anos 1920, construída a partir da mescla de tecidos firmes, planos ou elásticos, e estruturas rígidas. Algumas destas peças ainda possuíam a amarração pelas costas, até que os tecidos completamente elásticos passaram a ser empregados, a partir dos anos 1930, suprimindo a necessidade de ajuste da peça ao corpo.

Gusset (en): o mesmo que nesga, uma peça de molde em forma de semicírculo ou triângulo, utilizada para criar um volume em uma peça plana, alargando-a em um determinado ponto. Nos corsets, os gussets são utilizados, a partir do século XIX, para formar as taças dos seios 223

ou o volume do quadril.

M

Midbust (corset, en): modelagem do corset até a linha dos mamilos. Literalmente: meio busto.

Modelador (pt): no Brasil, nome genérico atual para as lingeries constritoras, que abrange os mais diversos modelos – calcinhas, shorts, bermudas, bodies, vestidos, saias, macaquinhos, macacões, etc.

O

Overbust (corset, en): modelagem do corset recobrindo todo o busto. Literalmente: sobre o busto.

P

Panier (fr): o mesmo que side hoops, crinolina típica do século XVIII, confeccionada em tecido rígido e estruturas vegetais. O que diferencia o panier das demais crinolinas é seu formato de trapézio, com ênfase exagerada na lateralidade dos quadris.

Pocket Hoops (en): tipo de side hoops ou panier, típico do século XVIII, construído em duas peças unidas por uma espécie de cinto, do qual pendem as duas metades da crinolina que recobrem apenas as laterais do quadril – como se fossem dois bolsos gigantes, aos quais refere-se o termo “pocket” – deixando livres os glúteos e a área do púbis.

S

Side Hoops (en): o mesmo que panier, crinolina típica do século XVIII, confeccionada em tecido rígido e estruturas vegetais, com formato acentuado de trapézio e ênfase na amplitude lateral do quadril. A nomeação “side hoops” significa literalmente “aros laterais”, e faz 224

referência à construção estrutural da peça, em semi ovais aplicados diretamente na lateral do quadril, atribuindo um desenho achatado na frente e nas costas, mas dotado de prolongamento horizontal.

Shaper (en): literalmente, “shaper” é a nomeação de uma ferramente utilizada para modelar madeira e metal. Passou a ser empregado, a partir dos anos 1990, como nomeação das lingeries modeladoras e constritoras mais tecnológicas. O termo é amplamente utilizado no Brasil para nomear as mesmas peças de roupa interior, e pode ser um sinônimo de modelador.

Shapewear (en): o mesmo que shaper, singnifica literalmente roupa modeladora.

Slip (en): espécie de combinação constritora e modeladora, que une cinta e soutien em uma única peça sem estruturas rígidas.

Stays (en): o mesmo que corps à baleine, semelhante aos espartilhos, roupa interior constritora e modeladora do século XVII-XVIII. Confeccionada geralmente em duas camadas de linho costuradas à mão, e estruturada com um grande número de barbatanas de baleia – os “stays” ou “estruturas” – fechadas e ajustadas exclusivamente pelas costas, e normalmente com alças ajustáveis. O nome da peça significa literalmente “estruturas” ou “esteios”, no plural, que manifesta a repetição de estruturas que compõe este tipo de lingerie.

T

Tabs (en): ou “pontas”, são os picotes realizados na bainha inferior dos stays. Devido à ausência de conhecimento de modelagem plana no século XVII e XVIII, os stays eram confeccionados em uma forma triangular, que não ajustava-se à cintura e aos quadris. A função das tabs era, portanto, aquela de fazer abrir a peça de roupa na altura dos quadris, permitindo um ajuste mais adequado da peça ao corpo. No conjunto stays-side hoops, as tabs também serviam de encaixe entre as duas peças, posicionando-se por fora da crinolina e impedindo que a mesma se deslocasse do lugar correto.

Tightlacer (en): termo existente apenas no inglês, designa o praticante do “tight-lacing”, ou 225

do “aperto” (excessivo) da cintura. Em outras palavras, tightlacer é aquele que utiliza o corset para a obtenção de uma constrição da cintura além daquela considerada como padrão nas diversas tendências de moda.

Tight-Lacing (en): termo existente apenas no inglês, designa a prática da constrição da cintura além do padrão aceito pela moda. Considerado até o século XIX como perversão ou doença psiquiátrica, o tight-lacing possui suas raízes na antiguidade, quando a constrição extrema da cintura era praticada com outros instrumentos – como cintos ou faixas de tecido. A prática ganhou força no século XIX e pode ser observada até a atualidade, quando um grande número de corsetiers e corsetières especializa-se na produção de corsets especialmente para esta maneira de modificação da cintura.

Tournure (fr): o mesmo que anquinha e bustle, crinolina típica do final do século XIX que recobre e aumenta apenas a traseira do vestido.

U

Underbust (corset, en): modelagem do corset que não recobre o busto. Literalmente: abaixo do busto.

W

Whalebone (en): barbatana de baleia.

Whalebone bodice (en): o mesmo que corps à baleine, espécie de corpete, típico do século XVI, que servia à dupla função de peça constritora e decorativa, compondo a parte superior do vestido. Quando especificado como “whalebone bodice”, trata-se exclusivamente da peça estruturada com barbatanas de baleia.

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