O Cristianismo Primitivo Segundo o Marxismo Clássico

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RAPHAEL BOTELHO DE MOURA

O Cristianismo Primitivo Segundo o Marxismo Clássico

Rio de Janeiro

2013

I

O CRISTIANISMO PRIMITIVO SEGUNDO O MARXISMO CLÁSSICO

Raphael Botelho de Moura

Instituto de História / CFCH Bacharelado em História

Demian Bezerra de Melo Doutor

Rio de Janeiro 2013

II

O CRISTIANISMO PRIMITIVO SEGUNDO O MARXISMO CLÁSSICO

Raphael Botelho de Moura

Monografia submetida ao corpo docente do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Bacharel.

Aprovada por:

_____________________________________________ Prof. Dr. Demian Bezerra de Melo - Orientador (Substituto do IH-UFRJ)

_____________________________________________ Prof. Dr. André Leonardo Chevitarese (Associado do IH-UFRJ)

_____________________________________________ Prof. Dr. Felipe Abranches Demier (Departamento de Direito da UNIFOA)

Rio de Janeiro

2013

III

BOTELHO de Moura, Raphael. O Cristianismo Primitivo segundo o Marxismo Clássico. Orientador: Prof. Dr. Demian Bezerra de Melo. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro / Instituto de História, 2013. Monografia (Bacharelado em História).

M929c

Moura, Raphael Botelho de O Cristianismo Primitivo segundo o Marxismo Clássico / Raphael Botelho de Moura – 2013. 50 f. Monografia (Bacharelado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de História. Rio de Janeiro, 2013. Orientador: Demian Bezerra de Melo 1. Cristianismo – História – Séc. XIX 2. Cristianismo –História – Séc. XX I. Melo, Demian Bezerra de (orient.) II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. III. Título CDD 209

IV RESUMO

BOTELHO de Moura, Raphael. O Cristianismo Primitivo segundo o Marxismo Clássico. Orientador: Prof. Dr. Demian Bezerra de Melo. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro / Instituto de História, 2013. Monografia (Bacharelado em História).

A geração intelectual que o historiador britânico Perry Anderson chama de "marxismo clássico", foi fundada nas obras de Friedrich Engels (1820-1895) e Karl Marx (1818 - 1883) e termina com a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Ao longo deste momento, produziu um trabalho pioneiro em diversas áreas de conhecimento social, filosofia e até mesmo as ciências naturais. Entre essas obras estão os estudos sobre a origem do cristianismo. Este trabalho tem por objetivo reconstruir sinteticamente as formulações intelectuais desta geração sobre o início do cristianismo, identificando suas influências e impulsos criativos.

V ABSTRACT

BOTELHO de Moura, Raphael. O Cristianismo Primitivo segundo o Marxismo Clássico. Orientador: Prof. Dr. Demian Bezerra de Melo. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro / Instituto de História, 2013. Monografia (Bacharelado em História).

The intellectual generation that the british historian Perry Anderson calls "Classical Marxism", has founding in the works of Friedrich Engels (1820-1895) and Karl Marx (1818 1883) and ends with the Second World War (1939-1945). Over this period, produced one pioneering work in several fields of social knowledge, philosophy, and even the natural sciences. Among these works are studies on the origin of Christianity. This work aims to synthetically reconstruct the intellectual formulations of this generation on the early Christianity, identifying their influences and creative impulses.

VI AGRADECIMENTOS

Esta simples e despretensiosa obra não seria possível sem a ajuda, incentivo e paciência dos amigos Demian Melo, Daniel Justi, e André Chevitarese.

Muito menos sem as conversas de bar com os amigos que criticaram, apontaram as dúvidas, apresentaram questões e me forneceram muitos “porquês?”.

Nem sem os camaradas de militância, que me apresentaram o marxismo, e tem a responsabilidade de renovar a cada dia minha “fé inabalável no futuro comunista da humanidade”.

Nem sem a paciência e incentivo de minha família e de Priscilla, minha namorada.

Meu muito obrigado.

VII SUMÁRIO

1. O surgimento do interesse do marxismo na origem do cristianismo.

01

2. A crítica bíblica neotestamentária alemã e suas influências em Engels.

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3. Os estudos do marxismo clássico sobre o cristianismo primitivo.

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4. Referências bibliográficas.

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1. Introdução: O surgimento do interesse do marxismo na origem do cristianismo Quando hoje falamos “marxismo”, normalmente nos referimos a uma tradição teórica bem delineada, embora constantemente o termo possa ser visto sendo empregado de maneira genérica1. O dicionário Aurélio, por exemplo, define o termo como a “Doutrina dos teóricos do Socialismo, os filósofos alemães Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (18201895)...”, e por sua vez “doutrina” como um “Conjunto de princípios que servem de base a um sistema religioso, político, filosófico, científico,...” 2. Porém, nos indagar se esse termo sempre carregou essa conotação, ou se foram operadas mudanças qualitativas em seu entendimento ao longo do tempo, ou seja, nos indagar sobre a história do termo pode ser um bom caminho para nos revelar “a natureza, as transformações e as metamorfoses que sofreu essa teoria revolucionária designada com um termo tão genérico.” 3. O tema é bastante discutido na historiografia, e é importante frisar que pretendemos nos distanciar de uma leitura que entenda o que se definiu por “marxismo” como uma rígida doutrina de natureza messiânica, pois tal entendimento, a nosso ver, pouco agrega à compreensão da historicidade da teoria e do termo. Pretendemos sim, compreende-lo como uma tradição intelectual dinâmica. Para isso buscaremos discutir em primeiro lugar a emergência dessa tradição teórica de modo a capturar não um conjunto de princípios rígidos, mas um processo ativo de elaboração e reelaboração do materialismo histórico. O fio condutor será reconstituir como a geração pioneira do marxismo lançou-se no estudo do cristianismo primitivo para compreender a religião que exercia uma acachapante influencia no operariado europeu de fins do século XIX e início do século XX, setor esse que constituía o foco do discurso marxista. 4 Incorporando esse conjunto de questões, no fim dos anos 1970 o historiador francês Georges Haupt apontou que, em primeiro lugar, na época em que Marx viveu, em geral, o termo “marxista” ou “marxiano”, quando usado, não se referia propriamente a um corpo doutrinário ou a um sistema político-filosófico bem organizado. No início da segunda metade do século XIX, por exemplo, tais termos serviam “mais para acusar Marx e seus partidários do que para definir-lhes as ideias”.5 A expressão parece ter emergido nos embates com os anarquistas e revolucionários de outros matizes ainda no contexto da Associação Internacional 1

Cf. HAUPT, Georges. “Marx e o marxismo.” In HOBSBAWM, Eric (org.). História do Marxismo I: O Marxismo no Tempo de Marx: Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1979. 2 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3ªEd. Curitiba: Positivo, 2004, pp. 703 e 1287. Grifo nosso. 3 HAUPT, op. cit. p. 348. 4 Cf. BENSAÏD, Daniel. Marx, o Intempestivo. Grandezas e misérias de uma aventura crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. 5 HAUPT, op. cit. p. 349.

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dos Trabalhadores (A.I.T.).6 A alcunha de “partido de Marx” 7 surge nos debates internos da organização, que até então agrupa variadas vertentes ideológicas do movimento operário e socialista8, mas ainda não designa um “conjunto de princípios”. Em 1882 o termo já pode ser visto com um significado diferente no panfleto “O Marxismo na Internacional”. De tom polêmico, já declina para uma visão do “marxismo” como “a prática e o objetivo da socialdemocracia” 9. De qualquer maneira, até durante os anos 80 do século XIX o termo ainda se prestará a “diferentes acepções”.10 Circulam neste ambiente Marx e Lassalle, Bakunin e Proudhon, Dühring e Benoit Malon, todos teóricos importantes que exerceram influência considerável sobre parcela do movimento operário agrupado em tono da A.I.T., cada um frequentemente acompanhado da classificação derivada de seu nome (“lassaniano”, “marxista”, “proudhoniano”, etc.).11 É de se supor, que essa variedade de classificações, ainda por cima acompanhada de uma significativa polissemia, trouxesse problemas de entendimento aos debates da época. Sugere isso, a repercussão que o indiscriminado uso dos termos “marxistas” e “bakuninistas” na imprensa europeia da época, e a reação negativa de alguns membros e simpatizantes da AIT, que convocavam seus companheiros a abandonar o léxico.12 Sucessivamente, porém, essa confusão seria substituída por uma acepção positiva. Na época da Segunda Internacional já podemos ver o termo “marxismo” ser usado como posição afirmativa, especialmente depois que é adotado oficialmente pelo Congresso do Sozialdemokratische Partei Deutschlands (S.P.D.) de Erfurt, em 1891.13 Mas como se operou essa resignificação, de alcunha negativa a corpo ideológico positivo? 6

Posteriormente também conhecida como Primeira Internacional, foi fundada em 1864, e funcionou até 1876, envolvendo-se em diversas campanhas internacionais, como pela redução da jornada de trabalho e da escravidão nas Américas. A nomenclatura em ordem crescente surgiu dos debates em torno da fundação da Terceira Internacional. Uma abordagem sobre esta questão pode ser encontrada em ANDREUCCI, Franco. “A difusão e a vulgarização do marxismo.” In HOBSBAWM, Eric (org.). História do Marxismo II: O Marxismo na Época da Segunda Internacional: Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1982, pp. 15-73. 7 RUBEL apud: HAUT, op. cit. p. 349. 8 Terry Eagleton escreveu sobre as dificuldades do termo "ideologia", devido aos seus múltiplos significados. Achamos conveniente a definição de Martin Seliger de que as ideologias podem ser pensadas enquanto "conjuntos de ideias pelas quais os homens postulam, explicam e justificam os fins e os meios da ação social organizada, e especialmente da ação política, qualquer que seja o objetivo dessa ação, se preservar, corrigir, extirpar ou reconstruir uma certa ordem social". Ainda que o próprio Eagleton tenha advertido sobre as adversidades em se "ampliar de tal forma o âmbito do termo", achamos oportuna essa definição para os fins à que esse trabalho se dedica, e o termo será pensado dessa forma quando aparecer. EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista: Editora Boitempo, 1997. p. 20. 9 HAUPT, op. cit. p. 353. 10 Idem, p. 355. 11 Idem, p. 361. 12 Idem, pp. 351-352. 13 “(...) o uso dos termos marxista e marxismo adquire então um sentido preciso no seio da social-democracia alemã. Ao invés de alcunhas pejorativas, tornam-se indicações positivas e penetram no vocabulário político com um novo sentido.” Idem, p.357.

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Embora seja um caminho intrincado, a historiografia sugere que a resposta possa ser encontrada no estudo do crescimento do movimento operário europeu de meados do XIX, terreno onde as ideias de Marx e Engels se difundiram, disputando influência com proposições rivais. Ainda segundo Haupt: “As várias etapas de cristalização do novo termo (marxismo) estão ligadas às etapas percorridas pelo movimento operário”

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, ou seja, na

medida em que podemos observar a penetração e aceitação desse marxismo enquanto doutrina no espoco teórico que orientava a ação dos militantes desse movimento. Franco Andreucci liga essa aceitação a certa sistematização do marxismo que está em curso: Em um quarto de século, o marxismo – nascido numa área geográfica relativamente limitada e no âmbito de um movimento político e social ainda em busca de sua definitiva identidade - torna-se o credo de milhões de milhões de homens, a arma teórica da social-democracia internacional; percorre caminhos sinuosos e longuíssimos até conquistar uma dimensão planetária. As vias de sua afirmação foram também, contudo, as da sua sistematização. 15.

O historiador inglês Perry Anderson parece concordar: (...) nos últimos anos de vida de Marx e após sua morte, Engels produziu as primeiras exposições sistemáticas do materialismo histórico que converteram este numa força política popular na Europa e, na casa dos setenta anos, comandou o crescimento da Segunda Internacional, na qual o materialismo histórico se tornou a doutrina oficial dos principais partidos operários do continente.16.

E também: (...) Marx nunca apresentou qualquer exposição geral mais extensa do materialismo histórico em si. Foi desta tarefa que Engels, com o AntiDühring e seus complementos, se incumbiu, no final da década de 1870 e ao longo da de 1880, respondendo ao crescimento de novas organizações operárias no continente. 17.

Essa hipótese nos parece particularmente interessante para o objetivo desse estudo. Naturalmente, não são apenas os esforços intelectuais de Engels e outros intelectuais socialistas da época que autorizam o “marxismo” a se tornar hegemônico no movimento operário europeu, que “converteram este numa força política popular”. O próprio Haupt destaca:

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Idem, p. 348. ANDREUCCI, Franco. op. cit. p. 25. Grifo nosso. 16 ANDERSON, Perry. Considerações Sobre o Marxismo Ocidental. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 26. Grifo nosso. 17 Ibid. p.24. Grifo nosso. 15

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A evolução semântica ocorrida num lapso de tempo relativamente curto deve ser entendida em relação com os profundos fenômenos de transformação do movimento operário no período de transição da I para a II Internacional. 18

Manifestamente, para Hans-Josef Steinberg a “grande depressão” econômica aberta na Europa a partir de 1873, que gerou um “grave índice de desemprego e, até o final dos anos 70, uma sensível diminuição dos salários nominais e mesmo reais”, ofereceu um terreno fértil onde o marxismo pode florecer.19 Considera que, com a derrota sofrida pela França na guerra franco-prussiana e a queda da “Comuna de Paris” em 1871, aconteceu que: o epicentro do movimento deslocou-se da França para a Alemanha, em fenômeno que Marx e Engels não só tinham previsto, mas também apreciado positivamente, na medida em que implicava um enfraquecimento da ideologia rival mais importante, o proudhonismo. 20

Além disso, os anarquistas já experimentavam divisões e enfraquecimentos importantes durante e após o processo da comuna. É possível enumerar outros pontos, mas o importante para Haupt é que: Assim os partidários da luta política se tornam majoritários no movimento operário e, a exemplo da SPD, acelera-se a formação de partidos independentes; num decênio, entre 1884 e 1892, completa-se a constituição dos principais partidos socialistas europeus. Nesse processo, o instrumental ideológico muda suas funções, e a formação de partidos operários coloca as premissas para a difusão e a aceitação do marxismo, que oferece as bases para suas ideologias oficiais: o princípio da luta política, meio de ação e de autolegitimação, e o princípio da luta de classes, elemento constitutivo de sua identidade e de sua consciência coletiva. 21.

O cientista político polonês Adam Przeworski segue o mesmo raciocínio de Haupt ao formular resumidamente que: “Aqueles que se tornaram socialistas eram os que decidiam utilizar os direitos políticos dos trabalhadores nas sociedades em que os trabalhadores tinham estes direitos e decidiam lutar por aqueles direitos, onde ainda não tinham conseguido êxito. A corrente abstencionista perdeu seu apoio dentro da Primeira Internacional depois de 1873, e os novos partidos socialistas, a maioria fundada entre 1884 e 1892, abraçaram os princípios da ação política e da autonomia dos trabalhadores”.22.

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HAUPT, op. cit. p.357. STEINBERG, Hans-Josef. “O partido e a formação da ortodoxia marxista.” In HOBSBAWM, Eric (org.). História do Marxismo II: O Marxismo na Época da Segunda Internacional: Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1982. 20 Idem, p.202. 21 HAUPT, op. cit., p. 357. Grifo nosso. O Sozialdemokratische Partei Deutschlands ou Partido SocialDemocrata da Alemanha, fundado em 1875, é uma agremiação atuante até hoje. 22 Por “abstencionistas” o autor designa aqueles que defendiam que o movimento tinha que se abster da atividade política. PRZEWORSKI, Adam. “A social-democracia como fenômeno histórico” Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n.15, São Paulo, p.41-81, outubro de 1988, p.42. O mesmo artigo foi publicado em _____. Capitalismo e social-democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 19

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Assim, cristalizaram-se no bojo do movimento operário europeu do XIX aqueles que defendiam uma atividade política como forma de alcançar a “emancipação do proletariado”. Ao mesmo tempo, no mesmo processo, ocorre uma sistematização do que acaba por ser definido como marxismo: “Como sistema concluído em si mesmo e como visão política do mundo”, na definição de Steinberg.23 Não nos parece coincidência. Temos em fins da década de 1870 e 1880, uma nova conjuntura de formação de partidos nacionais, mais sob a influência direta do marxismo do que quando daquela antiga polissemia. “O verdadeiro surgimento de partidos operários ocorreu após a morte de Marx”.

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Ao mesmo tempo,

“Engels produziu as primeiras exposições sistemáticas do materialismo histórico”, como no livro Anti-Dühring (Leipzig, 1878), onde o autor utiliza uma polêmica com Eugen Dühring para apresentar uma das primeiras grandes sínteses do que também passou a ser conhecido como “socialismo científico”.25 Essa sistematização do marxismo ocorre precisamente nessa época. “Como sistema (...) e como visão política do mundo, o marxismo se organizou posteriormente, no período que vai do fim dos anos 70 à morte de Engels”, e foi o norte com o qual se forjou o programa da social-democracia alemã da época.26 As condições de aceitabilidade do marxismo nessa nova conjuntura de fundação de partidos nacionais, cuja matriz é o partido alemão é exposta por Steinberg: Essas condições são formadas pelo longo período de crise atravessado pela economia capitalista; pela repressão estatal contra a classe operária, ligada diretamente a essa crise e que culminou nas leis contra os socialistas; pela influência exercida pelo Anti-Dühring de Engels sobre toda uma geração de jovens intelectuais socialistas (...) 27.

No mesmo sentido, Haupt sintetiza a questão nos seguintes termos: A partir do início dos anos 80 determina-se uma distinção entre a escola marxista e o “socialismo eclético”, e o fenômeno se verifica no seio da social-democracia alemã. O impulso parte do próprio Engels, com a sua polêmica contra Dühring, cuja influência sobre os socialistas alemães era enorme. O Anti-Dühring assinala sob vários aspectos um momento crucial na formação do “marxismo” como sistema. 28.

Vejamos como o próprio Engels, já em 1892, aborda a questão: “Em 1875, o Dr. E. Dühring, docente da Universidade de Berlin, anunciou inopinadamente e com bastante alarido sua conversão ao socialismo e apresentou ao público alemão não só uma teoria socialista 23

STEINBERG, op. cit. p. 208. ANDERSON, op. cit. p. 25. 25 Idem, p. 24. 26 STEINBERG, op. cit. p. 208. 27 Idem, p. 208. 28 HAUPT, op. cit. p. 362. Grifo nosso. 24

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minuciosamente elaborada, como também um plano prático completo para a reorganização da sociedade. (...)”. “Isso ocorria num momento em que os dois setores (...) acabavam de fundir-se. (...) O Partido Socialista da Alemanha convertia-se numa potência. Mas para que isso acontecesse a condição essencial residia em que não fosse posta em perigo a unidade recém-conquistada. E o Dr. Dühring dispôs-se publicamente a formar em torno de sua pessoa uma seita (...). Não havia, pois, outro remédio, senão aceitar a luva que nos atiravam e entramos na luta, (...).” “(...) Nada menos que (...) três grossos volumes, pesados por fora e por dentro, três corpos de exército de argumentos, mobilizados contra todos os filósofos e economistas anteriores, em geral, e contra Marx em particular; em realidade, uma tentativa de completa “subversão da ciência”. Tive de defrontar-me com tudo isso (...). É certo que a sistemática universalista de meu adversário me oferecia a oportunidade para desenvolver diante dele, numa forma mais coerente do que até então se havia feito, as ideias sustentadas por Marx e por mim acerca de tão grande variedade de matérias. E foi essa a razão principal que me leva a empreender essa tarefa, de resto tão ingrata.”29.

Fica claro, portanto que o Anti-Dühring de Engels foi a primeira grande apresentação sistemática do marxismo, como atestaram as já citadas afirmações de Anderson, Haupt e Steinberg. “Pode-se falar em “escola marxista” somente depois da difusão e assimilação dessa obra” 30. De fato ele exerceu uma grande atração na intelectualidade de esquerda da época. O histórico dirigente socialdemocrata Karl Kautsky (1954 - 1938) se referiu a essa obra como a que mais “contribuiu para tornar acessível a amplos estratos do partido o grandioso mundo do pensamento marxista, até agora pouco compreendido, e condicionou seus desenvolvimentos”. 31

. Também considerou que “a subversão que produziu em nossas cabeças A Subversão de

Dühring,... só são capazes de avaliá-lo aqueles que viveram o processo”

32

. Kautsky é nada

mais nada menos a quem se atribui a “paternidade das noções de “marxista” e de “marxismo” no sentido que assumiu em nosso vocabulário.

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Para Andreucci, “foi então que –

propriamente – nasceu o marxismo. Nasceu nas revistas do partido, que eram dirigidas por Kautsky e Bernstein;”

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. E completa afirmando que: “A formação (...) dessa ortodoxia

marxista, (está) substancialmente associada ao nome de Karl Kautsky.” 35.

29

ENGELS, Friedrich. Prefácio à edição inglesa de Do socialismo utópico ao socialismo científico. 2ªed. São Paulo: Editora Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2008, pp. 8-9. Grifos nossos. 30 STEINBERG, op. cit. p. 209. 31 KAUTSKY apud: STEINBERG, op.cit, p. 209. 32 KAUTSKY apud: HAUPT, op. cit. p. 362. 33 HAUPT, op.cit, p. 364. 34 ANDREUCCI, op cit. p. 27. 35 STEINBERG, op cit. p. 208.

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Isso é importante, pois mesmo sendo o Anti-Dühring “uma síntese enciclopédica de nossa concepção dos problemas filosóficos, naturalistas e históricos”

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, naturalmente, não

podia dar respostas ao conjunto de questões circulantes. E foi “o grupo de teóricos da geração que sucedeu Marx e Engels” 37, que Kautsky, pode-se dizer, foi o membro mais profícuo, que tomou para si essa tarefa: a de sistematizar, aprofundar e desenvolver o pensamento de Marx e Engels de forma a constituir um sistema doutrinário global. “Os objetivos prioritários desses sucessores eram a sistematização e a recapitulação de uma herança ainda muito recente.” 38. Perry Anderson destaca quatro membros dessa nova geração de marxistas: O italiano Antonio Labriola (1843-1904), o alemão Franz Mehring (1846 – 1919), o tcheco radicado na Alemanha Karl Kautsky (1854-1938) e o russo Guiorgui Plekhanov (1856-1918): Esses quatro homens mantiveram correspondência pessoal com Engels, que exerceu forte influência em suas formações. A direção principal dos seus trabalhos pode ser vista, na verdade, como uma continuação da última fase do próprio Engels. Em outras palavras, eles estavam interessados, de diferentes maneiras, em sistematizar o materialismo histórico como uma teoria geral do homem e da natureza, capaz de substituir disciplinas burguesas rivais e dotar o movimento operário de uma visão de mundo ampla e coerente que pudesse ser facilmente apreendida por seus militantes. Tal tarefa envolveu esses “novos teóricos”, da mesma forma que ocorrera com Engels, com um duplo compromisso: elaborar os princípios filosóficos gerais do marxismo como concepção da história e estendê-lo a domínios que não tinham sido diretamente abordados por Marx. 39.

E neste contexto que esta tradição produz suas primeiras obras históricas sobre a origem do cristianismo e das primeiras comunidades que se identificavam como cristãs. O tema não é exatamente recorrente, embora apareça com certa frequência, principalmente no fim da vida de Engels.40 Este escreve em 1882, por ocasião da morte do orientador de Marx na Universidade de Bohn, o artigo Bruno Bauer e o Início do Cristianismo, obra que reconstitui a produção de Bauer sobre a história do cristianismo, mas oferece suas próprias conclusões acerca do tema. Treze anos depois, em seu último ano de vida, publica Contribuição Para a História do Cristianismo Primitivo, seu mais importante artigo sobre a questão 41. 36

Carta de Engels a Bernstein, 11 de abril de 1884, apud: STEINBERG, op. cit. p. 208. ANDERSON, op. cit. p. 26. 38 Idem, p. 28. 39 Idem, pp. 27-28. Grifos nossos. 40 Cf. KIERNAN, V. G. “cristianismo”. In BOTTOMORE, Tom (coord.). Dicionário do Pensamento Marxista. 2ª ed, Jorge Zahar editor. Rio de Janeiro, 1988. 41 O artigo foi publicado em duas partes entre os anos de 1894 e 1895. Leandro Konder diz que sobre as origens do cristianismo “Engels lhe dedicou três artigos e lhe fez referências de passagem em textos dedicados à outros problemas”. KONDER, Leandro. “Cristo Existiu?”. In ENGELS, Friedrich. O Cristianismo Primitivo. Rio de Janeiro: Laemmert, 1969. p. 66. 37

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Cristianismo, Religião, Igreja e afins, sempre apareceram de certo modo na produção de Marx e Engels. Marx deu seus primeiros passos numa caracterização sobre o Estado moderno em A Questão Judaica (1843). Uma breve associação do cristianismo – talvez mais especificamente da Igreja Católica – a um tipo de “socialismo feudalístico” aparece no Manifesto Comunista (1848). 42 Marx observou a influência clerical francesa na segunda parte de As lutas de classes na França, de 1848 a 1850. Engels, por sua vez, observou em seu trabalho sobre as Guerras Camponesas de 1524-1525 o papel da reforma protestante.43. Porém o centro dos trabalhos aqui abordados não é exatamente a crítica filosófica ou teológica da religião confessional cristã, ou o papel da religião e suas instituições na vida social. Marx considerava que a “crítica da religião, no caso da Alemanha, foi na sua maior parte completada”

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com a crítica bíblica moderna. Talvez por isso pouco se dedicou a

análise da religião especificamente, muito embora no seu mais ambicioso projeto, da crítica da economia política, a ironia com a religião fosse recorrente, como revela o seu conceito de fetichismo da mercadoria.45 Além disso, a partir de 1845, o trabalho em conjunto de Marx e Engels havia se tornado constante, o que lhes fez realizar uma “divisão de trabalho”: “... tocou-me a tarefa de apresentar nossos pontos de vista na imprensa periódica, (...) ; de modo que sobrasse tempo a Marx para a elaboração de sua obra maior.”

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Todavia, o tema aqui

tratado é o que seria hoje chamado de uma história social das primeiras comunidades cristãs, designadas genericamente aqui de cristianismo primitivo. A primeira referência a uma certa doutrina de Marx (“marxiano”) que encontrou Haupt, foi num debate entre os anos de 1853 e 1854, em que partidários das posições de Wilhelm Weitling, importante revolucionário alemão de origem operária (era artesão) e membro fundador da Liga dos Comunistas, organização para quem Marx e Engels escreveram o Manifesto Comunista (1848). Os atritos entre esses últimos e Weitling foram, aliás, constantes. Esse mesmo Weitling, ao que parece, foi quem introduziu uma aproximação ente comunismo e cristianismo primitivo no ambiente intelectual circunscrito às esferas do movimento operário da época. Em tom de severa crítica, Engels disso só nos diz que: 42

“Nada mais fácil do que dar ao ascetismo cristão uma demão socialista. Não bradou também o cristianismo contra a propriedade privada, contra o casamento, contra o Estado? Não pregou em vez deles a caridade e a pobreza, o celibato e a mortificação da carne, a vida monástica e a Igreja? O socialismo cristão é apenas a água benta com que o padre abençoa a irritação do aristocrata." MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 9ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. 43 Cf. KIERNAN, V. G. “cristianismo”. In BOTTOMORE, Tom (coord.). op.cit. 44 MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 29. 45 Cf. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultural, 1983, 5 vols. 46 JONES, G. Stedman. Retrato de Engels. In HOBSBAWM, Eric (org.). História do Marxismo I: O Marxismo no Tempo de Marx. op. cit. p. 416. A “obra maior” a que Engels se refere aqui são os tomos do livro O Capital: crítica da economia política.

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A regressão, introduzida por Weitling, do comunismo ao cristianismo primitivo — por muitos pormenores geniais que se encontrem no seu Evangelium des armen Sanders [Evangelho do Pobre Pecador] — tinha entregado o movimento, na Suíça, em grande parte, nas mãos (...) de loucos como Albrecht e, (...) de pseudoprofetas como Kuhlmann. 47.

A historiadora Elizete da Silva afirma que o livro de Weitling sustenta que: Jesus foi o primeiro revolucionário, cuja luta contra os fariseus e os ricos dava ao Evangelho o seu significado Socialista e que Karlstadt e Thomas Münzer provaram que todas as ideias democráticas são consequências do cristianismo. (...) Engels retomaria tais ideias, mesmo reconhecendo em Weitling um socialista utópico, não cientista como ele e seus companheiros. 48 .

Weitling sempre foi respeitado tanto quanto combatido por Marx e Engels, num momento em que a se delineavam definições hoje bem marcadas entre ideologias. Esse talvez tenha introduzido o interesse histórico, o qual Engels só abordará mais tarde, nas primeiras comunidades que se identificavam enquanto cristãs. Para Engels, “Uma religião que tinha desempenhado um papel tão amplo na história do mundo (...) não podia ser posta de lado como mera ilusão;” em suas próprias palavras: A religião que subjugou o Império Romano e dominou sem dúvida a maior parte da humanidade civilizada por 1.800 anos, não pode ser explicada apenas declarando ser ela uma tolice resultante de fraudes. Não se pode elucidar esta questão e ter sucesso na explicação da sua origem e do seu desenvolvimento sem partir das condições históricas sob as quais surgiu e alcançou o domínio da situação. Isto se aplica ao Cristianismo. 49.

Engels aqui combatia o que considera “exagero” de determinados teóricos do século XIX que reduziam a religião em geral, e o cristianismo em especial a uma “tolice” articulada historicamente por uma série de “fraudes”. Pode-se dizer que as matrizes teóricas tanto destes autores quanto dos marxistas clássicos, são os intelectuais enquadrados pela historiografia na assim chamada “Primeira Busca pelo Jesus Histórico”, que realizaram no final do século XVIII e durante todo o XIX as primeiras obras de crítica bíblica modera. Podemos falar de David Friedrich Strauss (1808-1874), e Bruno Bauer (1809-1882), mais centralmente e Ernst Renan (1823-1892) mais marginalmente. Estes são os autores, em especial Bauer, de que Engels parte para escrever a sua Contribuição Para a História do Cristianismo Primitivo. 47

ENGELS, Friedrich. Para a História da Liga dos Comunistas. . Acessado em 27/01/2013. 48 SILVA, Elizete da. “Engels e a abordagem científica da religião”. In FERREIRA, Muniz; MORENO Ricardo; CASTELO BRANCO, Mauro (orgs.). Friedrich Engels e a ciência contemporânea. Salvador: EDUFBA, 2007.. p. 179. 49 ENGELS, Friedrich. Bruno Bauer e o Início do Cristianismo. < http://www.marxists.org/portugues/marx/1882 /05/11.htm>. Acessado em 27/01/2013.

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Eles são parte daqueles que fizeram os primeiros estudos laicos com o objetivo de compreender Jesus como um personagem histórico, além de observarem a vida social das primeiras comunidades cristãs. 50 Com efeito, Kautsky posteriormente também abordaria o tema. Em 1908 tornaria público se volumoso livro sobre as origens do cristianismo deixando clara sua preocupação: “Qualquer que seja a atitude diante do cristianismo, não se pode deixar de considera-lo um dos fenômenos mais gigantescos da história da humanidade. O fato de que a Igreja cristã haja perdurado cerca de dois milênios e ainda permaneça cheia de vigor, e, em muitos países, mais poderosa que o Estado, não pode deixar de provocar enorme admiração. Assim, tudo o que possa contribuir para a compreensão desse colossal fenômeno, e o estudo das origens dessa organização, tem extrema importância, atualidade e significação prática.” 51.

Também um pouco mais tarde, Rosa Luxemburgo (1871-1919) se dedicaria à questão em O Socialismo e as Igrejas, em que busca reconstruir o itinerário que o cristianismo percorreu, de religião oprimida à religião oficialmente reconhecida pelo império. Esse interesse histórico no cristianismo primitivo – parece significar o interesse desta geração de “fazer seu juízo” sobre o cristianismo, talvez, num momento de popularização do marxismo enquanto doutrina que encontrava uma massa de operários profundamente influenciados pelas Igrejas e praticantes das religiões cristãs. Essa característica fica mais marcada na obra de Luxemburgo, escrita em resposta à condenação clerical pública da revolução de 1905 na Rússia.52. Na coletânea de cartas de Antônio Labriola publicadas em dezembro de 1897 com o nome de Filosofia e Socialismo, vemos na carta IX também seu esforço de compreensão do cristianismo primitivo. Direcionada a G. Sorel, logo no primeiro parágrafo, vemos uma indicação que também sugere que o marxismo naquele momento era impelido a oferecer uma compreensão da história do cristianismo: Você faz alusão aos críticos de todas as tendências, que pensam, por muitas distintas razões, que o cristianismo escapa a inteligencia materialista da história, e por isso estimam que haja nele uma objeção de dificuldade insuperável. Devo me empenhar nesta selva, que sem ser confusa, é, no entanto, bastante obscura para mim?(...) Bem, até agora eu nunca fiz estudos ex profeso sobre a história da igreja cristã para me permitir falar dela tão livremente; Sei muito bem, por outro lado, que muitos dos que a criticam falam de acordo com impressões puramente genéricas (...) agora, como 50

Cf. CHEVITARESE, André L. & FUNARI, Pedro Paulo A. Jesus Histórico. Uma brevíssima Introdução Rio de Janeiro: Kline, 2012; 51 KAUTSKY, Karl. A Origem do Cristianismo. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 52 Cf. KIERNAN, V. G. “cristianismo”. In BOTTOMORE, Tom (coord.). Ibid.

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tantos outros, poderia, com uma pequena variante, repetir a exclamação de Fausto: ich habe, leider, auch Theologie studirt! (Infelizmente, eu também 53 estudo teologia). .

Portanto presumimos que o movimento de transformação do pensamento de Marx em doutrina sistemática, tenha desafiado Engels – que no fim da vida se deu a tarefa de “divulgador” do marxismo – e seus discípulos a apresentarem também a formulação do marxismo sobre a história do cristianismo. Esse trabalho visa reconstituir sinteticamente a caracterização que os autores filiados à tradição clássica do marxismo faziam da origem histórica das primeiras comunidades cristãs, e esboçar brevemente algumas de suas referências, de forma a demonstrar suas similaridades e eventuais dissimetrias. Consideramos que suas aproximações são mais volumosas que suas diferenças – justamente por estarem engajadas num esforço comum: autorizar o marxismo como uma doutrina capaz de oferecer respostas a todo um conjunto de questões circulantes, inclusive, a origem do cristianismo.

53

LABRIOLA, Antônio. Filosofia y socialismo. < http://www.marxists.org/espanol/labriola/1899/filosoc/ index.htm>. Acessado em 27/01/2013.

12

2. A Crítica bíblica neotestamentária alemã e suas influências em Engels Com a pretensão de delimitar nosso objeto, expressamos que quatro obras serão levadas em consideração neste trabalho para que possamos reconstruir as considerações da geração chamada por Perry Anderson de “marxismo clássico” acerca do cristianismo primitivo. Já apontamos no capítulo anterior que as produções destas obras se localizam num contexto geral de difusão e sistematização do marxismo localizado entre as duas últimas décadas do século XIX e a primeira do século XX, que desafiava seus teóricos a apresentarem sua formulação acerca da gênese e desenvolvimento do cristianismo. São elas: Bruno Bauer e o Início do Cristianismo (1882) 54 e Contribuição Para a História do Cristianismo Primitivo (1895)

55

, artigos de Friedrich Engels. O texto O Socialismo e as Igrejas (1905), de Rosa

Luxemburgo

56

. E por fim, a obra mais importante desta geração sobre este tema, o livro A

Origem do Cristianismo (1908) de Karl Kautsky 57. O filósofo italiano Antônio Labriola no capítulo IX do livro Filosofia e Socialismo (1899), que consiste numa carta ao teórico francês Georges Sorel, também fala das possibilidades da produção histórica sobre o cristianismo primitivo do ponto de vista do materialismo histórico, além de traçar alguns princípios metodológicos. Porém, como este trabalho não constrói um discurso sobre este objeto, e sim visa persuadir seu interlocutor sobre as possibilidades deste tipo de pesquisa, não trataremos dela aqui 58. É possível afirmar que essas obras já aplicam esse novo sistema de princípios denominado de marxismo 59. Já é notável a incorporação dos princípios da teoria da história marxista para a produção dessa então nova forma de abordar a questão. Podemos sintetizar este novo paradigma teórico-metodológico com uma citação do próprio Engels, contido no Anti-Dühring, já exposta como primeira grande obra que apresenta o marxismo enquanto sistema, mesmo correndo o risco de produzir um efeito de compreensão por demais sistemático: 54

Utilizaremos aqui a versão em português disponível em < http://www.marxists.org/portugues/marx/1882 /05/11.htm>. Acessado em 27/01/2013. 55 Utilizaremos aqui a versão publicada em português pela Editora Laemmert em 1969 sob o nome O Cristianismo Primitivo comparando-a à versão em espanhol publicada pela Revista Marxismo Vivo. Ano 2011, nº2. 56 Utilizaremos aqui a versão em espanhol publicada pela Revista Marxismo Vivo. Ano 2011, nº2. Considerar, portanto, a tradução do título e citações desta obra como traduções livres do autor deste trabalho. 57 Utilizaremos para esse trabalho a tradução para o português de Luiz Alberto Moniz Bandeira publicado pela editora Civilização Brasileira em 2010. KAUTSKY, Karl. A Origem do Cristianismo. op. cit. 58 Uma versão em espanhol está disponível em < http://www.marxists.org/espanol/labriola/1899/filosoc/ index.htm>. Acessado em 27/01/2013. 59 O especialista Maximilien Rubel considerou o uso dos termos “marxista” e “marxismo” “abusivos e injustificáveis” (RUBEL apud: HAUPT, op. cit. p. 347); Embora controverso, fomos obrigados até aqui a utilizar a expressão que foi hegemonizada. Daqui pra frente utilizaremos o termo que os próprios Marx e Engels usaram para definir sua teoria, materialismo histórico.

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Os novos fatos obrigaram a submeter toda a história anterior a um novo exame, e aí se mostrou que toda a história anterior era, com exceção dos estágios primitivos, a história das lutas de classe, que essas classes sociais em luta entre si são, toda vez, fruto das relações de produção e de troca, em suma, das relações econômicas de sua época; que, portanto, a estrutura econômica da sociedade constitui toda vez o fundamento real a partir do qual deve, em última instância, ser esclarecida toda a supra-estrutura (sic) das instituições jurídicas e políticas, bem como os modos de concepção 60 religiosa, filosófica, etc., de cada uma das épocas históricas. .

Esta definição pode ser contrastada com o que o mesmo autor afirma numa carta a Joseph Bloch anos depois: A situação econômica é a base, mas os diversos elementos da superestrutura – as formas políticas das lutas de classes e os seus resultados, as Constituições estabelecidas uma vez, a batalha ganha pela classe vitoriosa, etc. -, as formas jurídicas, e mesmo os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos participantes, teorias políticas, jurídicas, filosóficas, concepções religiosas e o seu desenvolvimento ulterior em sistemas dogmáticos exercem igualmente a sua ação no curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam-lhe de maneira preponderante a forma. 61.

A primeira citação é de 1875, enquanto que a segunda de 1890. Mais do que considerar “contraditória”, ou enxergar aqui “dois Engels”, preferimos, como manifestamos no primeiro capítulo, ao invés de observar um conjunto de princípios rígidos, observar neste contraste um processo ativo de elaboração e reelaboração do materialismo histórico. Na medida em que a teoria é contrastada e enriquecida pela observação empírica, identificamos na segunda citação o resultado mais acabado do desenvolvimento intelectual do autor, que em nossa opinião, é o mais visível nas obras que pretendemos analisar aqui. Tratada resumidamente esta questão, podemos falar agora de um traço peculiar destas obras. Trata-se da incorporação das formulações da crítica bíblica neotestamentária alemã 62, porém, abordadas do ponto de vista do materialismo-histórico. Isso fica mais evidente nas obras de Engels e Labriola. Engels explicitamente afirma que, para construir sua visão acerca do cristianismo primitivo, se utiliza das formulações de Bruno Bauer, e Friedrich Strauss. Acontece que ambos eram filósofos pós-hegelianos idealistas. Engels e Marx se propunham a 60

FERNANDES, Florestan (org.). Marx Engels. São Paulo, Ática, 1983 (Col. Grandes Cientistas Sociais, História, 36). p. 407. 61 ENGELS, apud: SILVA, Elizete da. op. cit. p. 177. 62 Na definição de Samuel Nunes dos Santos: “O criticismo neotestamentário compreende um segmento do criticismo bíblico, onde um variado número de eruditos empregou as técnicas literárias para investigar os escritos do Novo Testamento. Tais técnicas, geralmente, buscavam analisar: a construção textual original, a data de composição, as fontes utilizadas, a autoria, entre outras. Tentavam assim, estabelecer o grau de autenticidade destes escritos e sua base histórica.” – SANTOS, Samuel N. Criticismo neotestamentário e os evangelhos enquanto fontes histórico-biográficas para construção de uma Vita de Jesus. Revista Jesus Histórico, ano III, v. 4, p. 54-78, 2010.

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superar o pensamento de Hegel sobre a disciplina histórica, o trazendo para o campo materialista da filosofia. Sobre esta época intelectual Elizete da Silva também nos diz que: As ideias de G.W.F. Hegel tornaram-se o sistema filosófico dominante da Alemanha do período e tanto Engels, quanto Marx estudaram o pensamento hegeliano e o tomaram como ponto de partida para a construção do materialismo histórico e para sua própria crítica da religião. 63

Para realizar essa superação materialista, é de fundamental influência a filosofia de Ludwig A. Feuerbach (1804 – 1872), em especial seu livro A Essência do Cristianismo (1841). Podemos notar o impacto de Feuerbach ao mesmo tempo em que observamos uma definição sintética do que se objeta chamar por materialismo na citação: Veio então a Wesen des Christenthums (A Essência do Cristianismo) de Feuerbach. Com um só golpe, pulverizou a contradição, ao pôr de novo no trono, sem rodeios, o materialismo. A Natureza existe independentemente de toda a filosofia; ela é a base sobre a qual nós, homens, nós mesmos produtos da Natureza, crescemos; fora da Natureza e dos homens não existe nada, e os seres superiores que a nossa fantasia religiosa criou são apenas o reflexo fantástico do nosso próprio ser. O encantamento foi quebrado; o sistema foi feito explodir e atirado para o lado, a contradição, porque existente apenas na imaginação, foi resolvida. — Uma pessoa tem, ela própria, que ter vivido o efeito libertador deste livro, para fazer uma ideia disso. O entusiasmo foi geral: momentaneamente fomos todos feuerbachianos. Quão entusiasticamente Marx saudou a nova concepção e quanto ele — apesar de todas as reservas críticas — foi por ela influenciado, pode ler-se na Heilige 64 Familie. (A Sagrada Família) .

Foi sob o influxo dessa obra que Marx esboça as famosas “Teses sobre Feuerbach”, tido por muitos como o documento fundante do que a posteriori seria chamado de sistema marxista. Em Hegel a ideia é a categoria fundante do devir histórico. A filosofia de Feuerbach inverte essa relação priorizando causas materiais (política, sociedade, etc.). Ela, no entanto, ainda era limitada, segundo Marx, pois ignorava que a ideia tanto brotava quanto também fazia parte deste mundo material. Porém, fundamentalmente, Feuerbach havia conseguido “explodir o sistema” hegeliano. “O materialismo de Ludwig Feuerbach (1804-1872) o possibilita a fazer a crítica ao idealismo de Hegel”. 65. Ao acoplar a percepção de religião de Feuerbach dando-lhe uma nova roupagem, agora chamada de materialista-histórica, Marx e Engels produziram uma nova forma de abordar a questão religiosa em seu ambiente social. Agora: 63

SILVA, Elizete da. ibid. Op. cit. pp. 172-173. ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã. < https://www.marxists.org /portugues/marx/1886/mes/fim.htm >. Acessado em 23/10/13. 65 SANT’ANNA, Silvio L. “Introdução: A cosmovisão dialético-materialista da história”. MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia alemã. São Paulo: Martin Claret, 2005. p. 13. 64

15

Destituída de origem transcendente e de carácter sobrenatural, a religião vai sendo progressivamente desvendada na sua origem e feição humanas e interpretada como resposta a necessidades profundas que o homem religioso julga não poder resolver nesta vida e com os meios disponíveis na existência do real. O ‘além’, ou a ‘outra vida’, é uma componente essencial da consciência religiosa, compensação de um viver empobrecido em que até a morte é desvanecida como simples aparência e mera passagem para um aspirado e prometido mundo melhor. 66.

A citação acima, ainda que seja sobre a obra de Feuerbach, se encaixa perfeitamente na produção de Marx e Engels. Segundo o próprio Engels: Hegel havia libertado da metafísica a concepção de história, ele a havia tornado dialética – mas a sua concepção de história era essencialmente idealista. Agora o idealismo estava desalojado de seu último refúgio, da concepção de história, estava proposta uma concepção materialista de história para explicar a consciência dos homens através do ser deles, ao invés 67 de, como até então, o seu ser através da sua consciência. .

Estamos de acordo com Silva, portanto, quando ela afirma que: Engels, na juventude um hegeliano de esquerda, mergulhou nesse caudal filosófico e teórico com as armas da crítica, e de forma dialética produziria na contra-corrente (sic) um novo olhar, novos paradigmas para compreenderem-se as relações da religião com a sociedade, com seu 68 contexto histórico .

Podemos afirmar, portanto, que os textos sobre história do cristianismo aqui abordados, ao mesmo tempo em que são produzidos pelos mecanismos teórico-metodológicos do

materialismo

histórico,

indexam

criativamente

as

formulações

do

criticismo

neotestamentário alemão a partir do ponto de vista desta nova corrente de pensamento (Em especial as formulações de Strauss e principalmente Bruno Bauer), de modo a criar, a nosso ver, uma forma original de observar a questão no ambiente intelectual do final do século XIX e início do XX. Como já dito, Engels utiliza as formulações de Bruno Bauer e Friedrich Strauss para produzir seu juízo sobre o cristianismo primitivo. Este revolucionou a crítica bíblica moderna aplicando o conceito de mito aos evangelhos, enquanto que aquele foi considerado por Albert Schweitzer o autor da “primeira vida de Jesus cética”

66

69

, ou seja, estendeu o ceticismo,

SERRÃO, Adriana Veríssimo. Prefácio à 2ª Edição. FEUERBACH, Ludwig. A Essência do Cristianismo. Fundação Calouste Gulbenkian. 2ª Ed. 2002 67 FERNANDES, Florestan (org.). Marx Engels. Op.cit. p. 407. 68 SILVA, Elizete da. op. cit. p. 173.. 69 SCHWEITZER, Albert. A Busca do Jesus Histórico. São Paulo: Novo Século, 2003. p.169.

16

característica da investigação de pretensão científica, ao extremo

70

. Ambos os autores

publicaram seus trabalhos durante a juventude de Engels, que nasceu em 1820. A Vida de Jesus de Strauss é publicada em 1835 e 1836, enquanto Bauer publica seu primeiro livro de crítica bíblica, a Crítica da História do Apocalipse em 1838. O historiador Gareth Stedman Jones nos traz a informação de que já na Inglaterra, para onde partiu em fins de 1842, Engels teria ficado “estupefato”: (...) ao descobrir que o socialismo obtinha apoio somente na camada inferior da sociedade e que as obras de Strauss, Rousseau, Holbach, Byron e Shelley, embora fossem lidas pelos operários, eram praticamente inomináveis entre as classes médias e os ambientes “cultos”. (...) não conseguiu encontrar melhor explicação para o fato de o iluminismo se limitar às classes inferiores, a não se a de que se tratava de uma situação análoga à dos primitivos cristãos. 71.

Ou seja, Engels critica o “elitismo dos filósofos especulativos que tratavam os trabalhadores, a massa, como seres inferiores que precisavam ser conduzidos pelos iluminados.”

72

, enquanto que eles mesmos, não ‘precisariam’ desses autores, por isso a sua

não difusão nas elites. Esse contraste que Engels identificou e comparou aos primitivos cristãos pode ser explicado pela importância que tiveram (entre eles autores da crítica bíblica alemã) em sua formação de juventude

73

, e é possível que ao produzir sua leitura histórica

sobre o cristianismo primitivo, tenha levado em consideração essas mesmas leituras de juventude. A biografia de Engels indica que o ambiente em que viva o tenha impelido a estes autores. Vejamos um pouco, portanto, do ambiente em que passou sua juventude. Friedrich Engels nasceu em Barmen, na província renana do reino da Prússia, numa família de industriais. Em 1938 é enviado pela família à Bremen, para trabalhar na firma Heinrich Leopold. A região de Wuppertal 70

74

no final dos anos 1830/40 era importante polo

O termo “ceticismo” é abrangente, mas para fins de definição podemos classifica-lo como uma postura crítica e oposta à “tradição”. Segundo Richard H. Popikin: “O ceticismo (...), centrado principalmente em questões acerca da confiabilidade das exigências concernentes ao conhecimento, era entendido também como a principal arma contra as crenças religiosas. O termo “cético” deixou de significar apenas um questionador sobre as inúmeras aspirações relacionadas ao saber acerca de uma realidade exterior, e passou a ter um significado maior: um questionador da revelação judaico-cristã.” POPKIN, Richard H. Novas Considerações sobre o papel do ceticismo no Iluminismo. Revista Eletrônica Sképsis, ano IV, Nº 6, 2011. P. 67. 71 JONES, op. cit. p. 402. 72 SILVA, Elizete da. Op. cit. p. 174. 73 É o que sugere Jones quando diz, sobre Engels, que: “As fases que teve de atravessar para afastar-se do cristianismo ortodoxo – indo do cristianismo liberal, através da leitura de Schleiermacher, à de Strauss – podem ser acompanhadas por suas cartas de Bremen aos irmãos Graber, seus companheiros de escola.”. JONES, op. cit. p. 390. 74 Wuppertal é uma cidade independente alemã localizada na região da Renânia do Norte-Vestfália, que surgiu em 1929 pela fusão dos distritos de Barmen, Elberfeld, Vohwinkel, Ronsdorf, Cronenberg, Langerfeld e Beyenburg. O nome da cidade era, inicialmente, Barmen-Elberfeld e após 1930, Wuppertal. Em < http://pt.wikipedia.org/wiki/Wuppertal >. Acessado em 23/10/13.

17

comercial que na era pós-napoleônica, sofrera com dificuldades como a carestia, redução do nível de vida e aumento do ritmo de trabalho.

75

Combinada com essa relação de crise

emergem cada vez mais seitas milenaristas com discursos cada vez mais apocalípticas. Segundo historiador Jean Delemeau “há em geral uma ligação entre febres milenaristas e grupos sociais em crise”

76

. Jones nos oferece uma imagem desde ambiente no que diz

respeito às suas características mais culturais: A prece em família e a leitura da Bíblia, a meditação sobre a literatura devota, uma ética feita de religiosidade e de trabalho incansável, e uma teologia sectária transmitida através da terrificante retórica de púlpito de pregadores como Krummacher eram as principais componentes culturais das 77 famílias de mercadores durante a juventude de Engels. .

Não é de se surpreender, portanto, que o espírito profundamente crítico de Engels tenha empenhado seus primeiros escritos contra o obscurantismo religioso que encontrava no teólogo Friedrich Wilhelm Krummacher um de seus principais representantes, ainda que o intelecto de Engels aqui, se revelara ainda profundamente ligado ao romantismo alemão. “Foi com este pano de fundo que Engels, aos dezenove anos, lançou seu primeiro ataque, sob pseudônimo, contra o filisteísmo dos crentes do Wuppertal.”

78

Seus primeiros escritos que se

tem registro ganharam o título de Cartas de Wuppertal e foram publicas no periódico hamburguês Telegraph fur Deutschaland, causando grande escândalo à época devido suas críticas. Em uma das cartas de 1839 lê-se: Em um sermão recente em Elberfeld sobre Josué 10: 12-13, onde Josué ordena que o Sol pare, Krummacher desenvolveu a tese interessante que os pios Cristãos, os Eleitos, não deveriam supor que, nessa passagem, Josué estava aceitando as visões do povo, mas deveriam acreditar que a Terra fica parada e o Sol gira em tono dela. Na defesa dessa visão, ele mostrou o que é expresso ao longo da Bíblia. O chapéu de bobo que o mundo dará a eles por isso, eles, os Eleitos, deverão alegremente coloca-lo em seus bolsos com os diversos que já receberam. – Nós devemos estar felizes por receber uma refutação dessa triste anedota, que vem a nós proveniente de uma fonte 79 confiável. .

Assim, esse jovem que fora forçado a abandonar o liceu para cuidar dos negócios da família, expressava seu repúdio à interpretação difundida por F. W. Krummacher, que sugeriu

75

Cf. JONES, op. cit. DELEMEAU, apud: SILVA, Elizete. op. cit. 77 JONES, op. cit. p. 388. 78 JONES, ibid. 79 ENGELS, Friedrich. Sermão de F. W. Krummacher sobre o livro de Josué. Em: < https://www.marxists.org/ portugues/marx/1839/05/sermao.htm> Acessado em 23/10/2013. 76

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em um de seus discursos que “o sol gira em torno da terra.”. Em outra carta, um ano depois, continua: Ele desenha tal quadro de importância no qual os mais pobres membros de sua congregação poderiam, inevitavelmente, se classificarem como mais altivos e sábios que Kant, Hegel, Strauss, etc., cujos nomes Krummacher constantemente execra em seus sermões. Não é possível que na raiz do âmago do ser de Krummacher haja tal ambição frustrada, um descontentamento por distinção? Há muitas mentes que lutaram pela altivez, falharam em consegui-la através da diligência, talento e trabalho duro e, então, acreditam que podem consegui-la, a coroa eterna, por uma única virtude da fé. Isso, e nada mais, podemos acreditar, explica a constante polêmica de Krummacher contra tudo que é famoso no mundo. – É verdadeiramente doloroso encontrar nesses sermões tão poucos elementos 80 leves, tão poucos pathos, sentimento ou verdadeiro pesar. .

Ou seja, suas cartas de juventude expõe uma preocupação significativa com o antirracionalismo difundido por homens de autoridade religiosa como Krummacher. Por que não vemos essa preocupação tão evidente, por exemplo, na produção do jovem Marx, já resolutamente ateu e interessado numa crítica materialista do sistema de Hegel? Talvez os ambientes de que vêm esses dois nomes do pensamento oitocentista expliquem essa diferença: A formação de Engels foi completamente diferente (da de Marx). O pietismo protestante dos comerciantes de Barmen opunha-se ferozmente às associações pagãs da Aufklärung, a qualquer coloração racionalista da interpretação bíblia e à filosofia ambiguamente protestante de Hegel. 81.

Passava-se, portanto, por uma polarização muito grande no interior da vida intelectual da sociedade de Wuppertal do final dos anos 1830. De um lado a leitura pietista, de interpretação literal da Bíblia, de cunho antirracionalista. De outro, as diferentes correntes do liberalismo, do racionalismo e da crítica bíblica pós-hegeliana. Nesse ambiente polarizado, uma postura intelectual progressista, quase necessariamente empurrava o indivíduo para uma crítica da reação pietista e para o cristianismo liberal. Em outubro de 1839 escrevera “sou straussiano entusiasta”. Foi a leitura de Strauss, que havia marcado época na crítica bíblica, que o fez entrar em contato com Hegel.

82

Mas a ruptura com a educação cristã-protestante

não seria simples, e sua formação ainda seria de difícil percurso. Segundo Jones “nesse

80

ENGELS, Friedrich. Dois Sermões de F. W. Krummacher. Em: < https://www.marxists.org/portugues/ marx/1840/09/semao2.htm> Acessado em 23/10/2013. 81 JONES, op. cit. p. 387. O termo Aufklärung pode ser genericamente traduzido como “esclarecimento” e foi consagrado como conceito importante do pensamento iluminista por conta do texto de 1784 de Immanuel Kant “O que é esclarecimento (Aufklärung)?”. 82 Cf. JONES, op. cit.

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período o problema da fé religiosa foi predominante para Engels (...); podia abandonar a fé só depois de haver encontrado outra” 83; Teria a “nova fé” de Engels recaído sobre a ciência? Após o impacto do movimento intelectual genericamente conhecido por iluminismo, que priorizava princípios racionais para compreensão da realidade, todo o conhecimento deveria ser revisto, inclusive o conhecimento religioso ou bíblico. Agora, a verdade seria um estatuto atribuído por verificações racionais através de métodos específicos. Um dos esforços intelectual de Marx e também de Engels foi estender essa postura também aos domínios da narrativa histórica. Em suas palavras: A religião, a observação da natureza, a propriedade, a ordem pública, tudo era submetido a mais desapiedada crítica; tudo que existia devia justificar sua existência perante o tribunal da razão ou renunciar a continuar existindo. A tudo, aplicava-se, como crivo único, a razão. 84.. Realmente, uma das características do iluminismo mais presentes até hoje foi “jogar por terra o pressuposto que alguns pontos e aspectos da vida não poderiam ser objetos de verificação”

85

. Antes do iluminismo (ou ilustração), não podemos observar obras que

busquem reconstruir a figura de Jesus de Nazaré ou das primeiras comunidades cristãs do século I com base a referências históricas, pelo menos não históricas como a compreendemos hoje. Por exemplo, podemos falar das reconstruções que foram produzidas a partir do incômodo causado pelas incongruências contidas nos quatro evangelhos (Marcos, Mateus, Lucas e João), principais documentos acerca da vida de Jesus. Este incômodo levou à tentativas de harmonia como o Diatessaron ou como a empresa levada a cabo por Calvino de apresentar as diferenças dos evangelhos em colunas paralelas consideravam

os

evangelhos

como

relatos

fidedignos.

86

. Porém, essas tentativas

Isso

engessava

qualquer

problematização histórica, já que se encaravam estes documentos como suficientemente fidedignos, não haviam questões a serem levantadas

87

. Não por coincidência, a primeira

movimentação alheia às interpretações tradicionais foi acerca da “crítica das fontes”: No começo houve a crítica das fontes. Perguntava-se se nas narrativas evangélicas tudo era histórico, autêntico. Não se tratava de descobrir que uns poucos “versos satânicos” se infiltraram nas fontes, mas que muitos versos sobre Jesus foram envolvidos numa aura a-histórica de mito e poesia. 88

83

JONES, op. cit. p. 390. ENGELS, Friedrich. “O Anti-Dühring”. In FERNANDES, Florestan (org.). Marx Engels. Op. cit. 85 CHEVITARESE, André & FUNARI, Pedro Paulo A. Jesus Histórico. Uma brevíssima Introdução. - Rio de Janeiro: Klíne, 2012; p. 41. 86 Ibid. p. 40. 87 Ibid. p. 38. 88 THEISSEN, Gerd. & MERZ, Annette. O Jesus Histórico: Um Manual. São Paulo: Loyola, 2002. p. 20. 84

20

Esta metodologia de crítica das fontes é num mecanismo mais geral de compreensão de origem iluminista, como considera Francisco Falcon: A historiografia da Ilustração abrange na realidade dois tipos de histórias e historiadores – a história interpretada pelos filósofos e as histórias produzidas por historiadores eruditos – os antiquários. Enquanto os filósofos criticaram a natureza meramente descritiva, factual e essencialmente política das histórias eruditas, propondo como alternativa uma história filosófica – uma história racional e explicativa do devir histórico – cujo núcleo seria dados por valores universais expressos através de conceitos como cultura, civilização, liberdade, os historiadores eruditos, analisados Gusdorf, apesar de serem quase todos ilustres desconhecidos, aperfeiçoaram o instrumental da crítica das fontes documentais, além de revelarem novos acervos à investigação histórica. 89.

A partir das considerações desta crítica, outros modos de ver a questão foram brotando. Em artigo, Samuel Nunes dos Santos apresenta resumidamente a catalogação feita pelo estudioso norte-americano Donald A. Carlson. Ele: Divide a crítica aos evangelhos em três escolas: a primeira, intitulada de Crítica das Fontes, foca a sua análise no estudo das fontes utilizadas pelos evangelistas; a segunda, a Crítica da Redação (Redaktionsgeschichte, traduzido também por História da Redação), analisa a etapa final de composição dos evangelhos; e, por último, a Crítica da Forma (Formgeschichte, traduzido também por História da Forma), que trabalha a etapa das tradições orais (CARLSON, 2006: 21). 90.

Devido à amplitude da pesquisa, e por se desviar demais do objetivo deste trabalho, não vamos tratar diretamente destas considerações. Achamos somente importante destacar que ao se debruçar sobre o material bíblico e encara-lo, pela primeira vez, de forma crítica, como uma fonte privilegiada para uma produção histórico-científica, tanto sobre a personagem Jesus, quanto sobre as primeiras comunidades que foram fundadas reivindicando seus ensinamentos, esses autores produziram um movimento intelectual que a historiografia chamou de a “Primeira busca pelo Jesus Histórico”. 91. O primeiro a empreender essa busca crítica foi o professor de línguas orientais de Hamburgo, Hermann Samuel Reimarus (1694 – 1768). “Com Reimarus se inicia o tratamento da vida de Jesus em perspectiva puramente histórica”. 92 No entanto, seus trabalhos só foram publicados postumamente por G. E. Lessing durante os anos de 1774 – 1778. Seus volumosos ensaios chegaram a reunir mais de mil e quatrocentas páginas, e foram fundamentais na 89

FALCON, Francisco. “História e Poder”. In CARDOSO, Ciro F. & VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História: ensaios de metodologia. Rio de Janeiro, Campus, 1997.p 64. 90 SANTOS. Op. cit. p 60. 91 CHEVITARESE & FUNARI. op. cit. p. 41. 92 THEISSEN & MERZ. Op. cit. p. 21.

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definição de bases metodológicas para esse tipo de estudo. Ainda que dedicado ao estudo da personagem Jesus, as bases metodológicas de Reimarus fixaram o ponto de partida dos estudos puramente histórico do material bíblico, e, portanto, das primeiras sociedades cristãs. Assim, podemos definir estas bases sinteticamente em três pontos: 1) Jesus deve ser interpretado no contexto judaico: “Considero uma grande causa separar totalmente o que os apóstolos apresentam em seus escritos daquilo que Jesus de fato disse e ensinou em sua vida” 93 diz Reimarus. Disso deriva que, tratado como homem, suas mensagens só podem ser compreendidas a partir da compreensão do ambiente social que estava inserido. Assim, “Jesus é uma figura judaica profético-apocalíptica, enquanto o cristianismo, que se destaca do judaísmo, é uma invenção dos apóstolos.” 94. 2) Diferenciação entre o Jesus Histórico e o Cristo Eclesiástico: “O Jesus Histórico, não seria um messias religioso, mas segundo a esperança judaica do tempo, um libertador político da linha messiânica davídica”; 95 3) A teoria de fraude objetiva explica discrepância entre o Jesus histórico e o Cristo da Fé: “Para não verem a si mesmos como fracassados, como o como o próprio Jesus, os discípulos teriam roubado o cadáver (cf. Mateus 28, 11-15) e depois de cinquenta dias (quando o corpo já não poderia ser identificado) anunciado sua ressurreição e seu retorno iminente” 96. Tais paradigmas, em maior ou menor escala, podem ser vistos na produção da época dessa “Primeira busca”. “Multiplicaram-se as Vidas de Jesus nas quais ele aparecia como um sábio, um mestre de virtudes racionais, modelo de uma autêntica humanidade, segundo a maneira como o século XIX a concebia”

97

. Porém sobre a teoria de fraude objetiva, se

desenvolveria um debate caloroso. Após o abatimento de Jesus, e a falência de um projeto messiânico-libertador, teriam as primeiras comunidades cristãs deliberadamente fraudado o conteúdo que anunciariam como vindo dessa personagem, adaptando-a à uma mensagem puramente teológico-filosófica (ou seja, abstraído seu conteúdo político)? Sobre essa questão, não houve crítica mais fundamental que a de D. F. Strauss. Aos problemas levantados por Reimarus, Strauss incorporou a Teoria do mito religioso: a tradição sobre Jesus nos textos bíblicos (especialmente visível no Evangelho de João) é pesadamente 93

REIMARUS apud: THEISSEN & MERZ. Ibid. THEISSEN & MERZ. Ibid. 95 CORNELLI, Gabriele. “História da Busca do Jesus Histórico”. In CHEVITARESE Leonardo, André, CORNELLI, Gabriele e SELVATICI, Mônica (orgs.), Jesus de Nazaré: uma outra história. Eds. FAPESP & Annablume, 2007. p. 17. 96 THEISSEN & MERZ. Op.cit. 97 CORNELLI.. Op. cit. p. 18. 94

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revestida por mitos. Ou seja, “O a-histórico não se deve, como supunha Reimarus, a uma fraude deliberada, mas a um processo inconsciente de imaginação mítica” 98. Para Strauss: Uma apresentação puramente histórica da vida de Jesus era completamente impossível neste primeiro período; o que era possível era uma reminiscência criativa agindo sob o impulso da ideia que a personalidade de Jesus tinha chamado à vida entre a humanidade 99. Na definição de Schweitzer, o mito religioso era “... nada mais do que as ideias religiosas vestidas em uma forma histórica, modeladas pelo inconsciente poder inventivo da lenda, e corporificado numa personalidade histórica.”

100

. Assim, se cristalizava a percepção que

exprimia, segundo o próprio Strauss, a superação dialética entre as visões racionalistas (que traçava Jesus como um sábio, ou um mestre de virtudes racionais) e as supranaturalistas (Jesus como o

messias que realiza milagres). A bíblia deveria ser lida pelo cientista, portanto, como uma série de alegorias que emergiram daquele ambiente judaico, mas que emergiram de uma base objetiva, histórica. Seria a tarefa do historiador determinar o que devia ser lido como história. Acontece que esse sistema, embora divisor de águas, poderia ser aplicado à revelia, quase à totalidade das passagens, esterilizando, mais uma vez, a crítica bíblica, pois “se pode considerar como histórico tudo quanto se gosta nas narrações do Evangelho.”

101

. Como

continuar então a pesquisa e responder a perguntas ainda abertas como “Quais foram as fontes escritas utilizadas pelos evangelistas na composição dos evangelhos? Qual foi o primeiro evangelho a ser escrito? O primeiro evangelho serviu de fonte para os demais? ...”

102

.

Paralelamente a Strauss, varias teorias surgem: Em 1830, Karl Lachmann observou que várias passagens em Mateus e em Lucas não constavam em Marcos; e que os pontos coincidentes entre Mateus e Lucas só existem quando seguem Marcos. Outro resultado importante de sua análise é que as passagens de Mateus que não se apresentavam em Marcos possuíam o estilo de “sentenças” (KARL LACHMANN, apud: CARLSON, 1997: 35; KARL LACHMAN, apud: MACK, 1994: 25). Christian Wilke, em 1938, além de concordar com a teoria de Lachmann, defendia que Marcos foi o primeiro a ser escrito (CHRISTIAN WILKE, apud: CARLSON, 1997: 35; KARL LACHMAN, apud: MACK, 1994: 25). E no mesmo ano, Christian H. Weisse propôs “a hipótese das duas fontes”, ou seja, segundo ele, Mateus e Lucas utilizaram-se tanto de Marcos quanto de um outro documento que possuía as sentenças de Jesus, convencionado posteriormente como Q (CHRISTIAN H. WEISSE, apud: CARLSON, 1997: 35; KARL LACHMAN, apud: MACK, 1994: 25). 103

98

THEISSEN & MERZ. Op. cit. p. 22. SCHWEITZER. op. cit. p. 99. 100 Ibid. p. 98. 101 ENGELS, Friedrich. Bruno Bauer e o Início do Cristianismo. Op. cit. 102 SANTOS. op. cit. Pp. 60-61. 103 Ibid. p. 63. 99

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“A influência marcante de Strauss consiste no fato de ele ter removido do caminho da crítica subsequente o perigo e o problema de uma colisão com o sistema ortodoxo anterior. ” 104

, disse Bruno Bauer. Abria-se assim, uma liberdade de crítica até então inédita. Bauer encontra seu material precedente registrado para sua utilização por Weisse e Wilke, Weisse percebeu em Marcos a fonte da qual a crítica – tornada estéril na obra de Strauss – poderia tirar um renovo de vida vigorosa; e Wilke, que Bauer coloca acima de Weisse, elevou esta feliz conjectura ao nível de um resultado cientificamente seguro. Marcos não estaria mais sujeito a teste. 105

Inicialmente straussiano, as opiniões de Bauer foram evoluindo para um ceticismo crescente. Ao se utilizar das formulações de Wilke e Weisse combinando-as com um método de crítica literária, chegaria à conclusão que os evangelhos poderiam ter inicialmente uma origem meramente literária. Ou seja, de certa forma, ainda que não se voltasse à questão da fraude levantada por Reimarus, agora essa questão toma uma nova roupagem 106. Com certeza os textos bíblicos não eram produtos de uma fraude objetiva, mas também não podiam, dado a carga literária que carregavam, serem resultados de um inconsciente impelido a pensar de forma mítica. Eram criações literárias. Segundo Schweitzer: O conceito de mito e lenda de que este fez uso (Strauss), pensa Bauer, é muito vago para explicar esta ‘transformação’ deliberada de uma personalidade. Em lugar de mito Bauer coloca ‘reflexão’. A vida que pulsa na história do Evangelho é demasiado vigorosa para ser explicada como criada por uma lenda; ela é ‘experiência’ real, só que não a experiência de Jesus, mas a da Igreja. 107.

Assim, Bauer resolve a questão propondo que talvez todos os evangelhos sejam na verdade invenções literárias, produzidas por um único evangelista original, da história daquelas comunidades que a produziram. Ou seja, em muitos dos casos, “um dogma da Igreja primitiva foi lançado na forma de um dito histórico de Jesus”

108

. Bauer havia assim,

estendido o ceticismo ao extremo chegando a questionar a possibilidade dessa personagem, Jesus, ter realmente existido, e se existiu, se há realmente, algum vestígio histórico dela no que se conhece por “Novo Testamento”. Sobre a oposição entre Strauss e Bauer, Engels diz: A política era, nessa altura, um domínio muito espinhoso e, por isso, a luta principal virou-se contra a religião; esta era, (...), indirectamente também uma luta política. A Leben Jesu (Vida de Jesus) de Strauss, em 1835, tinha 104

BAUER apud: SCHWEITZER. Op. cit. p. 170. Ibid. 106 “O único critico com quem Bauer pode ser comparado é Reimarus. Cada um exerceu uma influência terrificante e incapacitante sobre seu tempo. Ninguém mais foi tão agudamente consciente como eles da extrema complexidade e importância oferecido pela vida de Jesus” - SCHWEITZER, op. cit. p. 192. 107 Ibid. p. 176. 108 Ibid. p. 184. 105

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dado o primeiro impulso. Mais tarde, Bruno Bauer opôs-se à teoria da formação evangélica de mitos aí desenvolvida, com a demonstração de que toda uma série de narrativas evangélicas haviam sido fabricadas pelos próprios autores. (...) ; a questão de se as histórias de milagres evangélicas surgiram no seio da comunidade por formação não-consciente tradicional de mitos ou se foram fabricadas pelos próprios evangelistas foi empolada na questão de se na história mundial era a “substância” ou a “autoconsciência” o poder activo decisivo; 109.

Marx já havia tocado tangencialmente essa questão quando critica Bruno Bauer em A Questão Judaica (1841). Para Marx, Bauer resumia questões políticas, a questões teológicas, e essa postura acabava por distorcer a questão. Assim, a consequência direta da postura de Bauer era que “... se o judeu deseja emancipar-se, deve também empreender, além da própria tarefa, o trabalho do cristão – a ‘crítica dos Sinópticos, da ‘Vida de Jesus. ’”, em referência direta à Crítica da História do Evangelho dos Sinópticos (1841 - 1842) de Bauer e à Vida de Jesus (1835-1836) de Strauss

110

; Ou seja, Marx e Engels consideram que o impulso destes

autores em escrever críticas à teologia oficial e estudar a fundo o material neotestamentário provém das necessidades impostas pela luta política contra o Estado prussiano, ainda teocrático, o qual fundamentara sua autoridade no protestantismo. Para Marx, no entanto, a crítica não deveria ser teológica e sim crítica ao próprio Estado. Pode ser que por isso havia afirmado que no caso da Alemanha “a crítica bíblica havia sido completada” e se dedicasse a análise da sociedade enquanto que Engels, ao surgir o interesse de produzir sua visão sobre a origem do cristianismo se utilizasse destes autores, de posições republicano-liberais, que lutavam contra elementos feudais-aristocráticos ainda presentes na sociedade alemã. Bauer também havia exposto, a revelia de qualquer demonstração histórica, que a literatura neotestamentária havia se utilizado de elementos greco-alexandrinos, em especial, da filosofia de Filon, filósofo judeu-helênico que viveu entre 25 a.e.c e 50 e.c. e tentou uma interpretação do Antigo Testamento à luz das categorias elaboradas pela filosofia grega, em especial por Platão. Essa noção também seria retomada nas produções de Engels. Sobre o embate entre Bauer e Strauss, Engels afirma que “A verdade situa-se entre estes extremos”, ainda que considere Bauer uma inovação frente à de Strauss. Labriola também cita a escola de Tübingen111, de matriz straussiana como fonte, mas foca seu trabalho 109

ENGELS, Friedrich. Lwdvig Feuerbach e o fim da Filosofia Clássica alemã. Em < http://www.marxists.org/ portugues/marx/1886/mes/fim.htm>. Acessado em 23/10/2013. 110 MARX, Karl. “A Questão Judaica”. In Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2005. Pp. 38-39 111 Na definição de Leandro Konder: “A referida ‘escola’ deu grande ênfase à luta de tendências que se teria verificado no interior do cristianismo primitivo entre os que desejavam a ruptura enérgica com os aspectos particularistas da tradição judaica (cujo líder seria São Paulo) e os que temiam precipitações e conciliavam com

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numa apresentação geral das possiblidades de se realizar uma leitura do cristianismo com base aos fundamentos do materialismo histórico. Podemos dizer que as obras de Rosa Luxemburgo e de Karl Kautsky112, mesmo que não façam referências a estes autores, são permeadas de preocupações cuja matriz teórica, pode-se dizer são as formulações de Engels, baseadas em Bauer e Strauss, a partir de mecanismos teóricos e conceituais contidos em Feuerbach, Hegel e naturalmente, em Marx. É o que objetivamos demonstrar a seguir.

3. Os estudos do marxismo clássico sobre o cristianismo primitivo. o judaísmo, freiando o movimento da nova doutrina no sentido da universalização (cuja expressão mais responsável estaria em São Pedro). A influência alcançada por tais ideias foi imensa.”. KONDER. op. cit. p. 56. 112 Kautsky chega a ilustrar algumas de suas afirmações com alguns dos estudos de Bauer, mas não o reivindica teórica e metodologicamente como faz Engels.

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Talvez a primeira boa oportunidade que Engels tenha tido de expor suas considerações acerca do cristianismo primitivo tenha sido por ocasião da morte de Bruno Bauer. Ele é figura ainda hoje ostracizada nos estudos do cristianismo antigo. Segundo Engels “durante anos, dificilmente se ouvia falar dele, somente atraindo a atenção pública eventualmente como um ‘literato excêntrico. ’”. Schweitzer concorda: Seus contemporâneos não podiam suspeitar que a anormalidade de suas soluções era devida à intensidade com que ele percebia os problemas como problemas, ... Assim, para seus contemporâneos, ele era meramente um excêntrico. 113. Conforme ele avança, seus escritos tornam-se mal humorados, e tomam a forma de diálogos controversos com “os teólogos”, que ele apostrofa de forma mordaz e injuriosa. E que ele continuamente acusa de não ousar, devido a seus preconceitos apologéticos, enxergar as coisas como realmente são, e de recusar-se a encarar os resultados finais da crítica por medo de que a tradição possa sofrer maior perda de valor histórico do que a religião pode suportar. Apesar desde ódio aos teólogos, que é patológico em seu caráter, assim como sua pontuação sem sentido, suas análises críticas são sempre extremamente agudas. 114.

Essa postura de crítica ao compromisso apologético, que se desdobra em crítica a toda mistificação e falsificação histórica parece ter atraído fortemente Engels. Mesmo que em sua produção Bauer não se utilizasse do rigor histórico, suas obras levantaram questões fundamentais: Mas sua excentricidade escondia uma percepção penetrante. Ninguém mais tinha percebido com a mesma perfeição a ideia de que o cristianismo primitivo e o cristianismo inicial não eram meramente o resultado direto da pregação de Jesus, não meramente um ensinamento posto em prática, mas antes, muito mais, já que à experiência da qual Jesus foi objeto juntava-se a experiência da “alma do mundo” numa época em que seu corpo – a humanidade sob o Império Romano – estava nas garras da morte. 115.

Curiosamente, portanto, mesmo não se utilizando do “método histórico” Bauer foi um dos que mais contribui para a percepção da historicidade contida nos evangelhos e da historicidade da dogmática cristã. Em meados do século XIX (e ainda hoje), a compreensão da religião a partir do que nos chega pela tradição ainda pesava fortemente, e por vezes se enfrentava com a análise de pretensão científica. Por isso, esse trabalho de Bauer em estender 113

SCHWEITZER, Albert. Op. cit. p. 193. Ibid. p. 175. 115 Ibid. p. 193. 114

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o ceticismo ao extremo, é encarado por Engels com naturalidade: “Bauer exagerou bastante, como acontece a todos que combatem preconceitos inveterados”. E considera que ele “valia mais do que todos eles (teólogos oficiais) e fez mais que todos eles em uma questão (...) (a) origem histórica do cristianismo”. Ainda que admita uma fragilidade no método idealista de Bauer: “... o filósofo alemão é impedido por seu idealismo de ver claramente e formular precisamente”. O ponto de partida de Engels é a definição de que a religião tem um início espontâneo, mas “através dos sacerdotes” passa a realizar um trabalho de “engano e falsificação histórica”. Este é o Engels tributário da filosofia de Feuerbach, onde a religião originalmente surge de questões internas do ser humano, da ordem psicológico-filosófica, existencial. No entanto, suas perpetuações através das instituições religiosas acabam por ter que falsificar a história a fim de apresentar uma formulação estanque e eterna quando, na verdade, os dogmas também são ideias produzidas tendo como base condições histórico-sociais específicas. Ou seja, ao mesmo tempo em que a existência da religião não pode ser atribuída a uma fraude, na medida em que já foi demonstrado por Hegel que a história não pode sobreviver sem ser por uma evolução racional, e que para Marx a base dessa “evolução racional” é a produção e reprodução da vida material, como explicar “A religião que subjugou o Império Romano e dominou sem dúvida a maior parte da humanidade civilizada por 1.800 anos...”? Para a resolução do caso do cristianismo, o autor recorre à Bauer. Na medida em que as ideias contidas na percepção de mundo cristãs não podem ser compreendidas como fruto da revelação divina, por desejar-se realizar uma investigação de estatuto científico e que, portanto, considere a realidade inteligível por ela mesma (exclui-se assim a categoria da transcendência), ao mesmo tempo, que não se pode considera-la simplesmente produto de fraudes, pois essas fraudes não poderiam se sustentar na “evolução racional da história”, conclui-se duas coisas: Primeiro, as ideias devem ter uma existência primeira anterior, e segundo devem ter emergido com base a eventos sociais específicos. Essa genealogia do sistema de pensamento cristão, Bauer encontrou nos filósofos Filon e Sêneca, mas por ser idealista, não se interessou em traçar “a base material de eventos sociais específicos”. Esse trabalho que Engels se debruçaria em fazer. Para Engels, o que Wilke demonstrou “do ponto de vista meramente linguístico”, Bauer confirmou do ponto de vista literário (a primazia do Evangelho de Marcos). Também “expôs a carência completa de espírito científico da vaga teoria de mito de Strauss”. Depois,

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utilizando este mesmo método literário, Bauer demonstrou que as noções expressas nos textos bíblicos são resultado de “uma fusão alegórica e racionalisticamente concebida das tradições judaicas com as gregas, particularmente a filosofia estoica”. Engels parece reivindicar toda a demonstração de Bauer no que diz respeito a antecedência no mundo clássico dos princípios dogmático-filosóficos do cristianismo. Sua investigação alcançou seu ponto alto na conclusão que o judeu de Alexandria, Filo, (...) foi o pai verdadeiro do cristianismo, e que o estoico romano Sêneca era, por assim dizer, seu tio. (...) Esta conciliação de perspectivas ocidentais e orientais já encerra todas as ideias essencialmente Cristãs: o pecado inato do homem, o Logos, a Palavra, que está com Deus e é Deus e que se torna o mediador entre Deus e homem: a compensação, não por sacrifícios de animais, mas trazendo-se o próprio coração a Deus,... 116.

A isso o autor também agrega a imaculada concepção que já estaria presente nos reinados de Augusto e César, que foram idolatrados como deuses. Ou seja, tudo aquilo que a tradição apresenta como originalidade característica do cristianismo, ideias nas quais repousa a resposta sobre o sucesso na empresa cristã, na verdade, não surgem do cristianismo e sim são resultados dessa fusão de tradições judaicas com elementos filosóficos estoicos e alexandrinos já presentes. A noção de Deus único é produto da fusão entre a filosofia grega vulgar, que levaria “à doutrina de um Deus único e da imortalidade da alma humana” e o judaísmo “racionalmente vulgarizado” por estrangeiros e meio-judeus. Isso misturado ao caudal da filosofia de Filon, também vulgarizada, seria a gênese filosófica do cristianismo. Isso poderia ser verificado ao analisar o Livro do Apocalipse, onde o autor considera estar “o Cristianismo em sua forma inicial”. Diz ele: Selvageria, fanatismo confuso, dogmas incipientes, a moral cristã é apenas a mortificação da carne, mas há uma multidão de visões e profecias. O desenvolvimento posterior, no qual os Evangelhos e as chamadas Epístolas dos Apóstolos foram escritos. 117.

Também é importante notar que o autor fixa, portanto, que o Apocalipse foi escrito antes dos quatro evangelhos e das epístolas que formam o novo testamento, tema que só iria retornar anos depois quando analisaria o cristianismo primitivo à luz do Livro do Apocalipse. 116 117

ENGELS, Friedrich. Bruno Bauer e o Início do Cristianismo. Op. cit. Ibid.

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Essa é a gênese ideológica do cristianismo, porém, segundo a concepção materialistahistórica essas ideias só poderiam se assentar na sociedade, como aconteceu, caso houvesse condições objetivas específicas. Bauer não demonstra suas afirmações historicamente, chega a conclusões a partir de reconstruções literárias. Schweitzer atribui isso ao fato do autor, ao mesmo tempo em que percebe problemas nos sistemas correntes, não considera possível demonstrar historicamente pelos mecanismos teóricos correntes

118

. Fixado estes paradigmas,

portanto, Engels nos informa que “daremos a nossa própria concepção deste, baseados em trabalhos de Bauer, e também em nosso estudo pessoal”; Daqui em diante, o autor busca ocupar essa lacuna presente em Bauer construindo uma narrativa histórica acerca das condições objetivas que levaram a elevação do cristianismo ao posto de “religião universal”. Bauer já havia formulado que as raízes do cristianismo deviam ser encontradas através do estudo das condições sociais as quais os homens se encontravam sob o Império Romano. Assim, Engels inicia afirmando que o Império Romano, ao impor uma série de condições, em alguns casos por centenas de anos, aos povos que dominava, acabou por alterar drasticamente a dinâmica interna destes povos. Três condições na percepção do autor eram fundamentais: 1) a substituição da organização fundamentada nas propriedades pela distinção simples entre cidadãos romanos e peregrinos ou vassalos. 2) o severo tributo imposto. 3) A anulação do sistema jurídico-social nativo, em caso de conflito com a lei romana. Por esses motivos, “a população se tornou cada vez mais nitidamente dividida em três classes”: Pessoas ricas, pessoas livre despossuídas, e uma grande massa de escravos. Enquanto que na capital do império as pessoas livres despossuídas eram alimentadas e entretidas pelo estado, isso não acontecia nas províncias. Nos três estratos se verifica impotência em relação ao império: “deveria, então, haver ainda entre eles um ódio generalizado e vigoroso, entretanto, externamente impotente, por causa das suas condições de vida.” Os ricos eram constantemente condenados à morte pelos legisladores romanos, “a fim de confiscar sua propriedade”. As pessoas livres tinham que concorrer com os escravos para sua sobrevivência, em péssimas condições de vida. E os escravos “destituídos de direitos e de si próprios”. O suporte do Estado romano era o exército, e conseguira uma liberdade de atuação que subjugou a todos. Assim: Todas as religiões da Antiguidade eram espontâneas, tribais, e velhas religiões nacionais, que surgiram da fusão das condições sociais e políticas dos respectivos povos. Uma vez que estas bases se romperam, e suas 118

Cf. SCHWEITZER, op. cit.

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tradicionais formas de sociedade, suas instituições políticas herdadas e suas independências nacionais foram destruídas, a religião correspondente a estas também naturalmente desmoronou. Os deuses nacionais podiam suportar outros deuses ao lado deles, como era a regra geral da Antiguidade, mas não acima deles. (...) Assim que os deuses nacionais ficaram incapazes de proteger a independência de sua nação encontraram sua própria destruição. 119 .

Ou seja, as antigas religiões nacionais e tribais, dados característicos de cada povo, não podiam mais explicar a nova formatação concreta daquelas sociedades. A situação objetiva havia mudado: agora exigia novas representações religiosas, que dessem conta de significar a nova dinâmica social à que esses povos, impotentes, estavam sendo submetidos. Com a filosofia restrita a determinados círculos, “... em todas as classes existiam necessariamente as pessoas que, desesperando da salvação material, buscavam em seu lugar uma salvação espiritual, uma consolação em sua consciência para salvar-se do desespero absoluto”. As cerimônias das antigas religiões limitavam quem seriam seus adoradores. O cristianismo poderia se alçar à religião universal justamente por que: ... não possuía nenhuma formalidade distintiva, nem mesmo os sacrifícios e procissões do mundo clássico. Deste modo, rejeitando todas as religiões nacionais e suas formalidades comuns, e dirigindo-se diretamente a todas as pessoas sem distinção, se tornou a primeira religião mundial possível. 120.

O texto de Engels tem um tom sintético, quase como uma apresentação, um plano geral para um estudo mais aprofundado. O que ele apenas apontara como possibilidade (olhar o cristianismo primitivo a partir do livro do Apocalipse) apresentou 13 anos depois, quando escreve para a “Die Neue Zeit”

121

um artigo intitulado Contribuição para a História do

Cristianismo Primitivo. Basicamente dividido em três momentos, o texto tem o signo de sua primeira frase: “A história do cristianismo primitivo oferece curiosos pontos de contato com o movimento operário moderno.” E explica: “Como este, o cristianismo era, na origem, o movimento dos oprimidos.” Os dois, para o autor, pregam uma libertação da servidão e da miséria, mas a diferença é que o cristianismo “transpõe essa libertação para o além.”.

119

ENGELS, Friedrich. Bruno Bauer e o Início do Cristianismo. Op. cit. Ibid. 121 O Novo Tempo. Revista teórica do Sozialdemokratische Partei Deutschlands ou Partido Social-Democrata da Alemanha. Como já dito, o artigo foi publicado em duas partes entre 1894 e 1895. Cf. ENGELS, Friedrich. O Cristianismo Primitivo. Op. cit. 120

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Assim, Engels primeiramente compara situações entre estes dois movimentos, para depois, no segundo momento do texto, apontar princípios metodológicos para o estudo do cristianismo primitivo. O ponto de partida é a afirmação de que “A crítica bíblica alemã, até agora a única base científica do nosso conhecimento da história do cristianismo primitivo, seguiu uma dupla tendência”. Uma tendência, afirmava Engels, representada pelo filósofo D. F. Strauss e a escola de Tübingen “... vai tão longe ao exame crítico quanto uma escola teológica”. Ou seja, considera que esta escola apesar de fixar marcos metodológicos importantes, como a compreensão dos Evangelhos como comunicações dos primeiros séculos do cristianismo, e não de testemunhas oculares, e excluir milagres e eventuais contradições de seus estudos, mas “procura salvar tudo o que pode ser salvo”, ou seja, procura passagens que possam ser históricas. Já a outra corrente é representada “por um único homem: Bruno Bauer”. Seu mérito, segundo o autor, é: (...) haver sido o primeiro em haver procedido no exame não somente dos elementos judaicos e greco-alexandrinos, mas também dos gregos e grecoromanos que abriram ao cristianismo o caminho da religião universal. A lenda do cristianismo, nascido inteiramente do judaísmo arrancado da Palestina para conquistar o mundo por meio de um dogma e uma ética esboçada em largos traços, é impossível de ser sustentada depois de Bauer. 122 .

E mais a frente: No desenvolvimento do cristianismo, tal como o elevou Constantino à categoria de religião de Estado, tiveram grande participação a escola de Filon, de Alexandria, a vulgar filosofia greco-romana e em particular a estoica. Muito longe está essa parte de ser precisada em detalhes, mas fica demonstrado o fato; e neste consiste, de maneira preponderante a obra de Bruno Bauer. Acentuou este as bases para demonstração de que o cristianismo não foi importado do exterior da Judéia e imposto ao mundo greco-romano, ao menos sob a forma de que se revestiu como religião universal, como produto especial daquela sociedade. 123.

Ou seja, Engels deixa claro que considera o cristianismo um produto autêntico do mundo greco-romano, e não uma imposição exterior. Neste caso, haviam de ter condições sociais que explicassem sua difusão. Bauer representa uma inovação em comparação a Strauss, pois mesmo também sendo teólogo, não se dobra ao compromisso apologético, e por 122 123

ENGELS, Friedrich. O Cristianismo Primitivo. Op. cit. p.20. Ibid. Grifo nosso.

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isso pode submeter tudo quanto for necessário a mais severa crítica, ainda que advirta que “A verdade situa-se entre estes extremos”. Mais uma vez, Engels abre sua explanação combatendo visões extremadas que desenham o cristianismo como uma religião imposta e inautêntica, assim como já havia feito em seu artigo anterior: “Não se pode elucidar esta questão e ter sucesso na explicação da sua origem e do seu desenvolvimento sem partir das condições históricas sob as quais surgiu e alcançou o domínio da situação”. 124. A partir daqui, o autor toma o ‘Apocalipse’ de São João, como linha mestra de sua interpretação sobre o cristianismo originário. Assim, compara questões apresentada no texto a questões do movimento operário do século XIX, como a confusão entre as diferentes vertentes de pensamento, a presença de líderes “messiânicos”, além da possibilidade de referencias a seitas Paulinas nas cartas que compõe o livro em questão, mas se atenta principalmente quanto ao que considera o “conteúdo dogmático” das cartas; Para Engels, no capítulo 15; 3, a imagem de Jesus como o ‘cordeiro’ que foi sacrificado pelos pecados do mundo, por todos os povos e todas as línguas revela: (...) a concepção fundamental que permite ao cristianismo converter-se em religião da Terra inteira. A ideia de que os deuses, ofendidos pelas ações dos homens, pudessem mostrar-se propícios por causa dos sacrifícios realizados era comum a todas as religiões dos semitas e dos europeus. Foi esta a primeira concepção fundamental revolucionária do cristianismo (tomada da escola de Filon), que sustenta que, graças a um grande sacrifício voluntário, de um só, os pecados de todos os homens podem ser expiados de uma vez por todas pelos fiéis. Desta maneira desaparecia a necessidade de todo sacrifício ulterior, e em consequência, a base de numerosas cerimônias religiosas. E prescindir de cerimônias que impediam o comércio com homens de diferentes crenças era uma condição indispensável para uma religião universal. Não obstante, achava-se tão arraigado nos costumes populares o hábito dos sacrifícios, que o catolicismo – que adotou novamente tantos costumes pagãos – considerou útil acomodar-se a este costume simbólico na missa. 125.

Aqui, Engels nos apresenta um dos motivos que considera que autorizou a religião cristã ao posto daquela que tinha a possibilidade ulterior de se tornar “religião universal”. Ela não proibia o comércio entre diferentes culturas, nem criava dificuldades para sua realização. Coerente com sua concepção materialista histórica, a qual ajudou a fundar, Engels coloca como questão fundamental as necessidades objetivas daquelas sociedades em contraposição às suas representações culturais (e religiosas). Ou seja, suas necessidades concretas, naquele 124 125

ENGELS, Friedrich. Bruno Bauer e o Início do Cristianismo. Op. cit. ENGELS, Friedrich. O Cristianismo Primitivo. Op. cit. pp.25-26. Grifo Nosso

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momento, eram de intensificação do comércio, embora suas representações – formuladas em outras estruturas sociais, que se modificaram - a proibissem. Quando surgiu e se consolidou uma percepção permissiva, ela se sobrepôs às antigas representações, que já não mais correspondiam às necessidades objetivas daquele momento. Assim, como consequência e causa desse elemento filosófico universalista, as comunidades judaicas de inspiração cristã – Engels frisa que os primeiros cristãos se viam como judeus – foram se espalhando pelo mundo antigo, e encontraram um mundo profundamente oprimido: O peso dos impostos e a necessidade de dinheiro, em regiões dominadas somente ou essencialmente por uma economia natural, colocavam cada vez mais os camponeses na dependência dos usurários, introduzindo uma grande desproporção de fortuna. 126.

Entre os alvos desta opressão, desde escravos a camponeses pobres, povos oprimidos e com sua religiosidade açoitada. Essa grande gama de elementos subjugados exigia, do ponto de vista filosófico-político, um corpo teórico que encarnasse a luta de “um único grande movimento revolucionário (que) os envolvesse a todos”. Então, “Essa saída encontrou-se; mas não nesse mundo. E, no estado de coisas de então, só a religião podia proporcioná-la”; Assim, o cristianismo se tornou o corpo filosófico correspondente à luta contra a opressão romana, que pelas condições da época, se manifestava no plano religioso. É numerosa a quantidade de referencias à “batalha”, a algo que vá acontecer em breve nas escrituras. Tendo isto como base, nosso autor chega até o profético momento da visão da besta no “Apocalipse”, onde após uma intrincada explanação sobre rituais judeus antigos, relaciona o número “Seiscentos e sessenta e seis” a uma suposta crença na volta do imperador romano Nero (Imperador de 37 à 68), e que a profecia do apocalipse é, nada mais nada menos, que uma narrativa simbólica onde se encontraria uma advertência aos judeus em relação à batalha que estava vindo, e a advertência que esta batalha estaria próxima, e que o povo judeu deveria se preparar. Portanto, Engels apresenta as primeiras sociedades cristãs como seitas judaicas que produziram escritos influenciadas por elementos helênicos

126

127

(ele frisa principalmente a

ENGELS, Friedrich. Sobre la historia del cristianismo originário. Revista Marxismo Vivo. Ano 2011, nº2. P. 141. Tradução livre. 127 Para um estudo de caso sobre as influencias do mundo helênico nos textos bíblicos ver “As Bases Helenísticas do Capítulo 12 do Apocalipse de João, O visionário”. In CHEVITARESE, André Leonardo. Cristianismos. Questões e Debates Metodológicos. Rio de Janeiro: Kliné. 2011.

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escola de Filon e Sêneca), e que em seu escopo filosófico continham elementos que propiciavam sua posterior elevação à condição de “religião universal”, ou seja, não como característica cultural de uma comunidade ou povo específico. Assim como o movimento operário moderno, o cristianismo originário era a filosofia dos oprimidos que lutavam contra a opressão do império romano e suas produções literárias eram profundamente marcadas por temáticas como a luta, resistência, etc. No entanto, podemos observar que o cristianismo, ao se dissociar completamente do judaísmo, se tornou a religião reconhecida oficialmente pelo império. Já que o cristianismo era o corpo filosófico em que se manifestara a luta contra a dominação de Roma, como explicar esta adaptação? Essa gradação de religião oprimida à religião oficial é que será a preocupação de Rosa Luxemburgo. Sobre Rosa, Anderson fala: Os teóricos desta geração (...) confirmaram ainda mais acentuadamente uma modificação que já tinha começado a ser visível no período precedente à transferência de todo o eixo geográfico da cultura marxista para a Europa Central e Oriental. (...) Rosa Luxemburgo filha de um comerciante de madeiras da Galícia, (...) Todos eles publicaram importantes trabalhos antes da I Guerra Mundial. 128.

As “mudanças” às quais Anderson se refere são mudanças estruturais na economia mundial da época, com o advento dos estados imperialistas e as tensões que fariam precipitar mais tarde a I Guerra Mundial. Essas informações são importantes, pois seu estilo é muito mais militante do que o de Engels. Para Anderson, isso é característica da geração de Luxemburgo, que assumiu grandes tarefas em seus partidos e dirigiu grandes processos de transformações sociais. Realmente, o texto de Luxemburgo surgiu da necessidade imediata de formar milhares de novos militantes que ingressavam no Partido Social Democrata da Polônia e Lituânia (SDKP). Rosa havia partido da Alemanha clandestinamente para a Polônia, ao irromper a Revolução Russa de 1905 que se espalhou do império russo também para a Polônia. O SDKP: Cresceu de algumas centenas de militantes para mais de trinta mil, com uma periferia de milhares. Rosa preocupou-se em educa-los nas bases do marxismo, responder aos problemas fundamentais e banir alguns dos preconceitos mais arraigados nos operários que começavam a se radicalizar. O Socialismo e as Igrejas é um dos frutos do ano de 1905... 129.

128 129

ANDERSON. Op. cit. pp.16-17. Apresentação de Mary Alice Waters. In LUXEMBURGO. Op. cit. p.151.

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Ou seja, Engels adota um tom marcadamente ensaísta em seus artigos. Já Luxemburgo escreveu com um objetivo político bem claro: travava uma polêmica com setores da igreja católica que haviam saído em defesa do Czar Nicolau II da Rússia, após esse ter irrompido a repressão contra a revolução russa de 1905. Portanto, a retórica do texto muda dado seu objetivo, mas seu conteúdo continua sendo de uma argumentação fundamentada e analítica. Para Rosa, a Igreja Católica, se fosse coerente com sua filosofia, teria de apoiar o povo russo em sua luta contra a opressão do governo do Czar. Seu ponto de partida, portanto é esse. A espantosa contradição entre as ações do clero e os ensinamentos do cristianismo deve levar-nos todos a refletir. (...) Como é que a Igreja desempenha o papel de defesa da opressão rica e sangrenta, em vez de ser o refúgio dos explorados? 130.

Assim, busca a explicação dessa contradição na história da Igreja: a concentração de muitos indivíduos na cidade de Roma combinada com a impossibilidade de absorção desta massa pela dinâmica social da capital do império (condição que só seria possível com o advento da indústria pesada) geraram um corpo social que era mantido pela caridade. Diferentemente dos proletários modernos que se mantém, e mantém toda sociedade à custa do próprio trabalho, o “proletariado de Roma”

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sofria de um problema congênito: O império

não dependia dele para perpetuar a dinâmica social, pois o trabalho socialmente necessário era feito pelos escravos. Assim, suas aspirações, necessidades e revoltas podiam ser ignoradas pelas elites imperiais ao mesmo tempo em que não tinha condições histórico-sociais se estabelecer “uma nova ordem social”, pois sua localização na produção se orientava a atividades não essenciais como artesanato, trabalhos temporários, colheita jornaleira, etc. A desgraça e miséria dos escravos e do proletariado romano contrastavam fortemente com opulência e magnificência das posses da alta aristocracia. A religião se tornou um refúgio espiritual para os explorados. E por consequência da própria carestia em que viviam era natural que vivessem em comunhão:

130

LUXEMBURGO. Op. cit. p.154. Segundo Engels “O proletariado é aquela classe da sociedade que tira o seu sustento única e somente da venda do seu trabalho e não do lucro de qualquer capital; [aquela classe] cujo bem e cujo sofrimento, cuja vida e cuja morte, cuja total existência dependem da procura do trabalho e, portanto, da alternância dos bons e dos maus tempos para o negócio, das flutuações de uma concorrência desenfreada”. Pode-se observar, portanto, que pela definição de Engels é possível empregar este conceito à antiguidade, embora, naturalmente, há diferenças entre o proletariado antigo e o proletariado industrial moderno. ENGELS, Friedrich. Princípios Básicos do Comunismo. Disponível em , Acessado em 23/10/2013. 131

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As pessoas careciam dos meios de subsistência e estavam a morrer de pobreza. Uma religião que defendia o povo pedia que os ricos partilhassem com os pobres as riquezas que devem pertencer a todos e não a um punhado de pessoas privilegiadas. (...) Assim, a exigência, pelos cristãos, da coletivização da propriedade, não diz respeito aos meios de produção, mas aos bens de consumo. Eles não pediam que a terra, as oficinas e os instrumentos de trabalho se tornassem propriedade coletiva, mas apenas que tudo deveria ser repartido entre eles, casas, roupas, alimentos e os produtos acabados mais necessários à vida. 132.

Portanto, a exigência do “comunismo cristão primitivo” era a da coletivização dos bens de consumo, diferente do comunismo científico moderno que prega a coletivização dos bens de produção da sociedade. Luxemburgo ilustra essa definição com passagens do livro “Ato dos Apóstolos” e do historiador alemão Vogel. Assim, para Luxemburgo, o “comunismo cristão primitivo” encontrava sua primeira limitação, pois os bens de consumo acabam tão logo são consumidos, e o indivíduo volta a sua situação de miséria. Além disso, o cristianismo não conseguiu reformar as sociedades pelas quais se infiltrou, mesmo que agora tenha se expandido por grandes vastidões do império romano, englobando agora até indivíduos de posses. Isso gerou uma mudança de qualidade na religião, pois na medida em que a vida em comunhão foi alterada pela entrada de grandes contingentes nas comunidades cristãs, as ofertas que os cristãos ricos ofereciam a seu grupo, perderam seu caráter de bem-comum, e começaram a tomar contorno de “esmolas”, caridades. Para ela os discursos de São Basílio e São João Crisóstomo demonstram o protesto de padres que lutavam “contra a penetração da desigualdade social na comunidade cristã” ainda no século IV. Essa é a base de compreensão que Luxemburgo traça para estruturar a posterior adaptação do clero às estruturas imperiais. No primeiro momento do cristianismo, a vida em comunhão era a lei, e o clero se resumia a indivíduos da própria comunidade com a tarefa de organizar as celebrações, rituais, enfim, a vida religiosa. No segundo momento do cristianismo, com a ampliação de sua base social, o clero também mudou. Especializou-se e começou a se separar da vida em comunidade: “em breve se guindaram a uma espécie de casta que governava o povo”. Assim, a unificação das Igrejas no concílio de Nicéia (no ano 325) já representava uma tentativa de unificação do clero, disperso ao longo do império. Ao se tornar religião oficial, “o clero exigia que as ofertas fossem trazidas tanto pelos pobres como pelos ricos”. No século XII, foi formulada a lei que definiria que “a riqueza da igreja

132

LUXEMBURGO. Op. cit..

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pertence não aos fiéis, mas é propriedade individual do clero e do seu chefe, o Papa, sobretudo.” E finalmente “o celibato foi decretado no século XIII”, como forma de “impedir a dispersão da riqueza da Igreja”. A tese fundamental de Luxemburgo, portanto, é que o cristianismo original era uma seita comunista, porém seus membros socializavam os bens de consumo, não os de produção. Assim, com a diversificação da base social da igreja, que passou a englobar ricos e pobres, combinada com o advento do clero enquanto casta separada destas comunidades, se distanciou do povo que lhe deu a incumbência de organizar os rituais litúrgicos e paulatinamente foi se aproximando das classes que dirigiam a sociedade. É no concílio de Nicéia que este processo de adaptação é coroado e a atual Igreja católica, coaduna com a dominação da sociedade e já subverteu completamente o cristianismo original. Também enquanto acompanhava atentamente a revolução de 1905, Karl Kautsky revisitava seus artigos sobre origem do cristianismo para a publicação de seu livro Precursores do Socialismo. Decidiu ampliar sua pesquisa e apresentou em 1908, por fim, a obra definitiva desta geração sobre o tema, A Origem do Cristianismo. Em mais de 500 páginas, podemos observar uma mescla de elementos presentes em Engels e em Luxemburgo. Na verdade por vezes seu trabalho parece querer explicar frase a frase os artigos de Engels. Isso está de acordo com o que Anderson delineia sobre Kautsky e sua geração: Todos os quatro se corresponderam pessoalmente com Engels, que exerceu neles uma influência construtiva. De facto, a principal orientação dos seus trabalhos pode ser vista como uma continuação da fase final de Engels. Por outras palavras, cada qual à sua maneira, todos se preocuparam em sistematizar o materialismo histórico como uma teoria global do homem e da natureza, capaz de substituir as disciplinas burguesas rivais e de fornecer ao movimento operário uma visão coerente e clara do mundo, que pudesse ser facilmente apreendida pelos seus militantes. Tal como tinha acontecido com Engels, esta tarefa obrigou-os a um duplo empreendimento: produzir exposições gerais do marxismo como concepção da história, e estendê-lo a domínios que não tinham sido abordados diretamente por Marx. (...) Kautsky se voltava para um estudo da religião (As Origens do Cristianismo) - tudo temas que o velho Engels tinha abordado de forma sucinta. 133.

Dividido em quatro partes, o trabalho de Kautsky é uma obra recheada de referências aos principais historiadores do período e aos principais documentos da época, o que lhe permite fazer deduções poderosas. Na primeira parte o autor esclarece o trato com as fontes, informando que nem em documentos pagãos nem nos cristãos podemos obter uma fonte 133

ANDERSON. Op. cit. p. 15.

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segura sobre a personalidade de Jesus, no entanto isso não comprometeria sua pesquisa já que a influência de seu líder fundante sobre o movimento que se designa por cristianismo é mínima. Percebemos aqui alguma preocupação com a figura do Jesus Histórico, fato que não observamos nos outros autores do marxismo clássico. Engels havia deixado essa questão em aberto enquanto que Kautsky admite a possibilidade da existência dessa personagem, muito embora afirme que quase nada sobre ela é histórico. Segundo Konder: Friedrich Engels, (...) sustentou que esse problema deveria permanecer aberto, enquanto novos materiais não o pudessem esclarecer e dar fundamento científico à solução. (...) Dentro da literatura marxista dedicada à delicada história do cristianismo primitivo, creio que foi Kautsky que, com maior brilhantismo, defendeu a probabilidade de um Jesus real, concreto, ter servido de modelo histórico original, remoto, a fabula narrada nos Evangelhos. 134.

É interessante notar como Kautsky, ao mesmo tempo em que seja o único a admitir abertamente a possibilidade de um Jesus real, seu ceticismo com relação às fontes parece estar intimamente ligado ao tom que a pesquisa sobre o Jesus Histórico adotou em princípios do século XX, movimento que foi designado como “Segunda Busca pelo Jesus Histórico” e se caracteriza por “um grande ceticismo quanto à possibilidade de se analisar a figura de Jesus por uma perspectiva histórica” 135. Por isso informa que se utilizará da documentação cristã somente na medida em que esta permita ilustrar as preocupações e vida cotidiana da época. Na segunda parte da obra vemos uma longa narrativa da vida sob o Império romano. O objetivo do autor é fundamentalmente demonstrar como o sistema imperial só podia existir e se reproduzir a partir da necessidade crescente e permanente de Roma por mais soldados e escravos. Que a impossibilidade de continuar se expandindo acabou por produzir um colapso interno, e a dissolução do império foi completada pelas invasões bárbaras. Ou seja, Kautsky deseja esclarecer como uma grande horda de despossuídos era sustentada pelo Estado em Roma e como funcionava o sistema de produção escravista sob este império, que produzia também uma grande e crescente necessidade de escravos. O autor também se preocupa com as condições psicológico-existenciais que era consequência desse tipo de produção. Seguindo a linha de Engels, considera que a religião surge dessas necessidades, e traça o panorama de uma sociedade profundamente dividida entre aqueles cujo prazer sensual é uma necessidade crescente e aqueles, como escravos e trabalhadores livres das cidades, que na impossibilidade de se entregarem a estes prazeres, se entregam às causas sociais e religiosas de forma absolutamente obstinada. 134 135

KONDER. Op. cit. pp 61-62. CHEVITARESE & FUNARI. Op. cit. p. 44.

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Na terceira parte da obra, Kautsky produz uma longa narrativa sobre a história da nação judaica. As migrações tribais semíticas desenvolveram um povo que se localizou geograficamente na “fronteira” de diversos impérios (Egípcio, Fenício, Romano, Babilônico...), local de diversas rotas de comércio. Isso o fez ligar-se profundamente a esta atividade. A necessidade de expansão destes impérios, porém, fez com que a principal cidade judaica, Jerusalém fosse constantemente alvo de conquistas. A dependência do comercio somado às constantes conquistas fez os judeus de dispersarem por várias cidades, mas foi depois da primeira destruição do Templo de Jerusalém, em 587 a.e.c., conquistada pelo império Babilônico, que se operaram mudanças sociais e políticas profundas. O imperador Nabucodonosor ordenou o exílio de milhares dos principais habitantes de Jerusalém para sua cidade. Ali, durante o “cativeiro da Babilônia”, uma intensa troca cultural se iniciou ao mesmo tempo em que um extremado sentimento nacionalista. Ao serem libertos pelo decreto de Ciro II em 538/539 a.e.c., imperador persa que havia conquistado a Babilônia, Jerusalém está destruída, e uma grande diáspora se inicia. No entanto, sem o norte teológico do Templo, um novo judaísmo haveria de se dispersar, marcado pelas interações culturais, e propiciando, assim, a conversão confessional, religiosa. Ao mesmo tempo, na Jerusalém arrasada, diferentes partidos lutavam sobre como libertar Jerusalém, agora, sob o domínio romano. A ordem dos essênios praticava um comunismo de consumo e se deslocava para as cidades. O essenismo ofereceu a matriz da “nova atitude para com a vida surgida da transformação e desintegração social daquela era” em que o cristianismo se desenvolveria. Finalmente na quarta e ultima parte do livro, une todas as afirmações das partes anteriores para demonstrar como elas propiciaram o desenvolvimento do cristianismo. Sobre a base a qual as próprias comunidades judaicas já estavam desenvolvidas em diversas cidades ao longo do império, surge a conversão confessional cristã. Em Jerusalém, a vida essênia ofereceu ao cristianismo as bases para se desenvolver entre o proletariado judeu desassistido e mendicante. Na medida em que Jesus, um líder revoltoso, foi preso e morto, a crença na vida do messias nacional, salvador da nação judia oprimida foi se transformando em crença no messias crucificado. Ao longo dos três primeiros séculos da cristandade, os discípulos do cristo travaram uma feroz luta pela sua memória, e no final a versão triunfante foi a paulina, a do cristo da fé, e arredia ao judaísmo. Assim, o crescimento do cristianismo foi agregando gentios de todas as classes, e finalmente, com o advento dos sacerdotes, teria criado uma casta que coroou a adaptação da nova religião às possibilidades de existência dela sob o império, e finalmente fez seu clero ser cumplice da dominação de seu povo.

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A obra de Kautsky, portanto apresenta grande similaridade com a de Luxemburgo. Também ilustra o “comunismo de consumo” com passagens do “Ato dos Apóstolos” e de diversos historiadores, no entanto aprofunda muito mais a discussão problematizando passagens e buscando a origem desta pratica coletivista, que o autor encontra na ordem judaica dos essênios. Engels localiza as bases do que permitiu ao cristianismo se realizar enquanto religião universal, na teologia que foi formulada tendo como base as novas condições sociais sob o império romano. Kautsky vai mais longe, e identifica estas bases presente já no próprio judaísmo pós-desterro. No entanto, o judaísmo não pôde se generalizar devido ao forte sentimento nacional a que ainda era preso, e aos rituais, que ainda correspondiam às tradições mais antigas. No cristianismo, pelo contrário, a fração vitoriosa foi a gentia, que não tinha apreço pelos antigos rituais e podia se mesclar facilmente com elementos culturais locais. O cristianismo que conhecemos, em seus pilares fundamentais, foi lançado por Paulo, e floresceu. Em todos os três autores vemos o princípio delineado por Bauer, de que devemos encontrar a origem e a história do cristianismo, não em seus dogmas ou em suas características peculiares, e sim na história da igreja. Mas também é possível encontrar dissimetrias entre Engels de um lado e Kautsky e Luxemburgo do outro. Engels não categoriza claramente os primeiros cristãos como “comunistas”. Luxemburgo, diferentemente, afirma isso com todas as letras. Concepção que depois seria também apresentada em Kautsky e outros estudos marxistas da época. Também não vemos a preocupação tão latente em Kautsky e Luxemburgo, como temos em Engels, de afirmar as possibilidades de que o cristianismo tenha tido uma origem natural e espontânea, e não ter sido obra de sacerdotes enganadores. Talvez isso se deva ao fato de os interlocutores de Kautsky e Luxemburgo serem as populações de massa, composta por operários profundamente religiosos ou em contato direto com a religião, alvo do discurso de seus partidos, enquanto que Engels ainda tinha como interlocutores intelectuais e círculos que já apresentavam uma mentalidade radicalizada. Também temos uma diferença latente na caracterização quanto ao grupo social em que o cristianismo se desenvolveu. Engels diz que o cristianismo foi a “religião dos escravos e oprimidos”; Luxemburgo e Kautsky, pelo contraio, localizam o foco do cristianismo no proletariado desassistido das cidades do império romano, em especial de Jerusalém. Konder também identifica essa dissimetria: Kautsky diverge, por exemplo, da caracterização engelsiana do cristianismo como um movimento vinculado aos anseios dos escravos, afirmando que a

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religião cristã "nada fez por eles". Segundo Kautsky, o cristianismo teria até servido para fortalecer o sistema escravista, levando o escravo a obedecer a seu amo não mais apenas pelo temor e sim pela convicção íntima de que a obediência correspondia a um preceito ético-religioso. 136.

Acreditamos ser possível agora, apresentar um quadro sintético da forma com que a tradição denominada de marxismo clássico entende o cristianismo primitivo. Na interpretação de Engels, a luta contra o estado prussiano, que se apoiava no cristianismo protestante de cunho calvinista, empurrou uma geração de autores a realizarem, na luta contra este estado, críticas teológicas e reconstituições históricas de modo a combater a tradição que era a origem da força ideológica deste estado. Marx, porém considerava que a discussão não deveria ser teológica, e sim contra o próprio Estado (Ver A Questão Judaica, ou Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução). Dois desses nomes foram David Strauss e Bruno Bauer (ambos teólogos). Strauss revolucionou a crítica bíblica estendendo o conceito de mito aos Evangelhos, influenciando gerações de historiadores e teólogos, como a escola de Tübingen. Enquanto que Bruno Bauer estendeu o ceticismo levantado por Strauss ao extremo, chegando até a questionar a existência histórica da personagem Jesus, além de introduzir a noção de que a filosofia cristã deriva diretamente da filosofia clássica, em especial de Filon e Sêneca. Engels, ao se ver numa situação histórica em que deseja oferecer uma interpretação própria acerca do cristianismo primitivo, (o crescimento de grandes partidos socialistas, que influenciavam amplas massas, desafiavam seus teóricos a apresentarem respostas do ponto de vista do materialismo histórico à um grande numero de questões circulantes, inclusive sobre a origem do cristianismo) se baseia nestes autores, buscando um equilíbrio entre essas duas posições, ainda que prioriza as formulações de Bauer. Também sua formação pietista contribuiu aqui. Ao mesmo tempo em que não deseja “salvar” nada, também não o interessa renegar completamente, como que por “princípio”, a existência de Cristo, ou o surgimento autêntica e espontânea do cristianismo. Indexa as formulações de Bauer sobre a origem clássica do pensamento cristão e tentar explicar suas bases históricas de modo a ser coerente com sua percepção materialista-histórica da história. As lacunas históricas que Bauer deixa, Engels preenche sinteticamente com explanações gerais sobre as possibilidades de difusão sob o império romano enquanto produz uma explicação para este cristianismo inicial com base ao Apocalipse de São João. Para Engels, com base na critica bíblica alemã, o cristianismo inicial

136

KONDER. Op. cit. p. 67.

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pregava uma luta contra o império romano, e isso poderia ser observado nas visões e profecias deste Apocalipse. Rosa Luxemburgo, já intimamente ligada ao partido, e diante da condenação clerical pública da revolução russa de 1905, busca demostrar como a religião cristã original se adaptou. Para ela o produto autêntico da religiosidade foi deturpado pelo clero na medida em que cristãos ricos aderiam a comunidade, e faziam vultuosas ofertas à igreja. Kautsky concorda com Luxemburgo e é menos complacente com a afirmação de Engels, segundo o qual o cristianismo teria sido a arma espiritual dos escravos na luta de classes sob o império romano. Para Kautsky o cristianismo teve origem no proletariado desassistido de Jerusalém, e recebeu influência do modo de vida comunista dos essênios. Ao se expandir, da luta entre as diferentes frações cristãs prevaleceu a versão paulina, de um cristo da fé e universal, alheio ao Jesus Histórico, que teria sido um judeu revoltoso executado pelo império romano, por lhe oferecer alguma ameaça. A versão paulina foi causa e consequência da adesão de pessoas de posses ao movimento cristão e, ao se generalizar, longe de ser o refúgio dos oprimidos, se tonou um auxiliador ideológico do sistema escravista, pregando a obediência moral do escravo ao seu amo, até ser, finalmente corada como religião oficialmente reconhecida pelo mesmo império que executou sua liderança fundante. Assim, podemos concluir que a imagem que os principais teóricos do marxismo clássico fazem do cristianismo primitivo, é permeada de amor e ódio. Ao mesmo tempo em que suscita admiração destes revolucionários a luta em que os cristãos travaram contra a opressão romana, não hesitam em condenar a adaptação a que suas instituições se submeteram, ao se tornarem cumplices da dominação e opressão. A história do cristianismo para os marxistas é a história da igreja, e de como povos oprimidos produziram um movimento fantástico, que se voltou contra eles próprios. Nas palavras de Kautsky, essa traição não era fato novo: “César e Napoleão também tiveram sua origem em vitórias da democracia”.

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