O desenho como intensidade

October 9, 2017 | Autor: Márcio Pereira | Categoria: Gilles Deleuze, Arte Contemporanea, Arte contemporáneo, Desenho, Intensidade
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SENAC– EAD; Pós graduado pelo curso de especialização em Artes Visuais – Cultura e Criação; [email protected]. Projeto concluído em fevereiro de 2014. Área de estudo: Estética. Orientador: Marcos Antônio Venuto. Área de atuação: Artista plástico com habilitação em desenho e serigrafia e arte-educador, licenciado em artes plásticas pela Escola Guignard – UEMG e bacharelando em artes plásticas pela mesma instituição

LEVY, Tatiana Salem. A experiência do Fora: Blanchot, Foucault e Deleuze. Conexões (19). Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003, pág 123)
Para pensar verdadeiramente em termos de potência, seria preciso de início colocar a questão a propósito do corpo, seria preciso em primeiro lugar liberar o corpo da relação inversamente proporcional que torna impossível qualquer comparação de potências, e que, portanto, também torna impossível qualquer avaliação da potência da mente tomada em si mesma. (DELEUZE, 1968, p. 236)
A experiência da duração parece ser puramente psicológica, pois é preciso uma consciência que rememore as mudanças das coisas exteriores para que se possa dizer que elas se modificam. Parece que, fora de nós, apenas haveria o presente ou a simultaneidade. No entanto, a experiência física do movimento faz com que as coisas pareçam suceder-se e não se disporem todas ao mesmo tempo; o espaço percorrido pelo móvel forma uma multiplicidade numérica cujas partes são todas atuais e diferem apenas em grau. Além disso, ao mesmo tempo, o movimento puro é alteração, multiplicidade virtual qualitativa. Assim, se somos capazes de considerar o movimento como momentos sucessivos de nossa duração, devemos inevitavelmente considerar que as coisas mudaram e que é preciso que o movimento das coisas não seja apenas duração como experiência psicológica, e sim que as coisas participem diretamente na própria duração. A duração psicológica é uma abertura a uma duração ontológica, levando-se em conta inclusive que ela é definida como multiplicidade. FORNAZARI, Sandro K. . O bergsonismo de Gilles Deleuze. Trans/Form/Ação, São Paulo, v. 27, n.2, p. 31-50, 2004
A idéia de 'pura presença' pensada no texto acima foi concebida a partir do conceito de presença metafísica em Jacques Derridá, e quer dizer da dimensão da presença percebida pelos sentidos e pelo espírito, sendo resultado da influência de pessoas e das ideias. Também aqui foi pensado o termo puras presenças a partir do livro L'etretien infini de Maurice Blanchot, no qual ele afirma que "A 'presença' é tanto a intimidade da instância quanto a dispersão do fora, mais especificamente, a intimidade como fora, o exterior tornado a intrusão que asfixia e a inversão de um e de outro, o que chamamos de 'a vertigem de espaçamento'. (BLANCHOT, 1969, pág. 65-66)

O desenho como intensidade
Drawing as intensity
El dibujo como la intensidade

Márcio Otávio Ferreira Pereira

Resumo: O atual trabalho pretende analisar as aproximações entre o desenho e o processo de produção do pensamento. A investigação parte de uma série de ações desenvolvidas pela linguagem do desenho e estabelece relação com conceitos da filosofia contemporânea, como intensidade, acontecimento, imanência, experiência do fora. O desenho será abordado aqui como uma força intensiva que atravessa tanto o suporte, que serve como registro, como também o corpo do desenhador.
Palavras chave: estética, arte contemporânea, repetição, duração, acontecimento, experiência do fora

Abstract: The present study aims to examine the similarities between the design and production process of thought. The research is part of a series of actions undertaken by the language of drawing and establishes relationship with concepts of contemporary philosophy, such as intensity, event, immanence, experience the outdoors. The design will be discussed here as an intensive force through both the support serving as a record, as well as the body of the designer.
Keywords: aesthetics, contemporary art, repetition, duration, event, experience outside

Resumen: El presente estudio tiene como objetivo examinar las similitudes entre el proceso de diseño y producción de pensamiento. La investigación es parte de una serie de acciones llevadas a cabo por el lenguaje del dibujo y establece relación con los conceptos de la filosofía contemporánea, como la intensidad, el evento, la inmanencia, la experiencia al aire libre. El diseño será discutido aquí como una fuerza intensa a través de tanto el apoyo que sirve como un registro, así como el cuerpo del diseñador.
Palabras clave: la estética, el arte contemporáneo, la repetición, la duración, acontecimiento, experiencia fuera

introdução
O presente trabalho pretende analisar práticas do desenho que operam como instrumentos investigativos, utilizados pelo desenhador para apreender os movimentos da realidade que o cercam e também os próprios movimentos da mente. Para isso, este trabalho se propõe construir diálogos entre escritos sobre o desenho, algumas práticas com a linguagem do desenho e conceitos filosóficos de intensidade, acontecimento, duração e imanência.
Segundo Cláudio Sousa, em sua dissertação de mestrado intitulada Desenho efêmero e oscilante, o desenho seria uma ferramenta capaz produzir "uma comunicação entre o pensar, o compreender, o registrar e o representar."(SOUSA, 2011) Ainda segundo Souza "o desenho, por seu turno, permite-nos abrandar, sentir, desfrutar, compreender e penetrar a essência das coisas"(SOUSA, 2011).
Dessa forma o desenho seria a linguagem mais privilegiada para a experimentação e registro de uma experiência, pois ele pode se configurar como planejamento de uma ideia, como representação, como configuração de um pensamento ou mesmo como estrutura base para outras realizações.
Segundo Claudia Amandi,
No plano artístico, de forma pontual ou contínua, o desenho torna-se instrumento com o qual o autor desenvolve critérios de ordenação, composição, relação entre conteúdos, planejamento de ações, estrutura do pensamento, entre outras. (AMANDI, 2010, pág. 231)

A partir dessa constatação podemos perceber a aproximação do desenho aos processos operacionais que ocorrem na mente durante a produção de pensamento. Verificamos que o desenho é uma linguagem artística que se aproxima muito das operações efetuadas pelo ato de pensar. Poderíamos então afirmar que desenhar é produzir pensamento, de forma equivalente à produção de pensamento produzido pela filosofia?
Antes de tentar responder a esta indagação se faz importante entender o que caracteriza a produção de pensamento na filosofia. Para isso tomaremos emprestado a noção de imagem do pensamento, elaborada por Gilles Deleuze a partir da análise da obra de Marcel Proust Em busca do tempo perdido.
Segundo Deleuze o pensamento se dá como uma aventura do involuntário(DELEUZE, 1988), contrário à ideia de inteligência voluntária. Para ele, o pensamento não seria um componente de nossa estrutura psicológica mas sim, gerado por uma força que atua sobre o pensamento e o força a pensar. O pensamento se daria por um ato involuntário de caráter violento.
Diferente de nossa inteligência, que busca organizações lógicas e significações dominantes, o pensamento, quando acontece, rompe com as faculdades voluntárias, responsáveis pelo reconhecimento e as representações geradas pelo mesmo, forçando a pensar o novo. Seria este procedimento, segundo Deleuze, o responsável pela capacidade humana de produzir arte. Ele denomina esse processo como a experiência do fora, como nos mostra Tatiana Salem Levy:
Em Deleuze, a experiência do fora aparece sobretudo nas discussões sobre o pensar e sobre a arte. Em ambos os casos o que prevalece é a tentativa de escapar do senso comum. Fazer do pensamento e da arte uma experiência do fora pressupõe o contato com uma violência que nos tira do campo da recognição e nos lança diante do acaso, onde nada é previsível, onde nossas relações com o senso comum são rompidas, abalando certezas e verdades.

Retomando agora a indagação sobre a aproximação do desenho com a produção de pensamento, percebemos que para que essa aproximação se efetive o desenho teria que deixar de operar apenas como um instrumento de reprodução e representação do mundo e de ideias, para figurar como ferramenta de criação, para poder produzir pensamento a partir dele.
Dessa forma poderíamos pensar o desenho como forças ou intensidades que não se delimitam pelas dimensões do suporte utilizado para seu registro. Nem mesmo pela capacidade intelectual ou perceptiva do desenhador. O desenho seria então intensidades que atravessam suportes e desenhadores, inaugurando acontecimentos e propiciando a produção de pensamento e a abertura para novos territórios de criação. É a partir dessa hipótese que o trabalho a seguir se desenvolve.


A profunda indagação de um percurso gráfico

O atual trabalho pretende analisar formas de construção em desenho que utilizam estratégias espontâneas, nas quais o livre jogo do pensamento é requisitado. O termo estratégias espontâneas, usado na frase anterior é utilizado por Claudia Amandi, em sua tese de doutorado denominada Funções e tarefas do desenho no processo criativo e está associado "à construção e ao uso de formas orgânicas gerais, sem detalhes e elaboradas sem um plano." (AMANDI, 2010) A aplicação dessas estratégias, segundo ela, causaria uma disfunção, ou seja, torna evidente o conflito durante o ato criativo, o qual é usado como válvula de escape para obter, num segundo momento a integração de alguns elementos.
Como no Dadaísmo e no Surrealismo, movimentos artísticos que pretendiam permitir que a imaginação se expressasse livremente, sem o freio do espírito crítico, tais desenhos buscam se pautar em impulsos psíquicos variados e espontâneos, muito próximos do que esses movimentos denominaram como automatismo. Esse procedimento possibilita estabelecer outras conexões e maneiras de desenhar. Cada gesto do desenhador surge como uma hipótese, não sabendo no que vai resultar. Essas características se encontram em desenhadores que usam o desenho como uma forma de investigação/descoberta, tentando erradicar a falsidade de imagens estereotipadas, e arriscar limites.
Durante tal investigação uma constatação se tornou evidente: tal processo, que pode ser entendido como a liberação da linha, também consegue gerar imagens extremamente significativas e persuasivas. Elas podem argumentar a partir da oscilação de intensidades, entre estados psíquicos e físicos do corpo humano em interação com o ambiente que o cerca, utilizando-se do movimento da linha em analogia a um sismógrafo, que registra oscilações de movimento da Terra. Essas imagens são geradas durante instantes privilegiados de criação, pautados sempre por uma polirritmia.


Márcio Otávio, Sem título, esboço a lápis sobre caderneta, dimensões 33cm X 11,7cm, 2011, acervo particular

Através da polirritmia, ou seja, a ideia de vários ritmos no e pelo desenho, foi possível constatar outro conceito imprescindível para essa pesquisa: o desenho como o resultado de um processo de repetição. O desenho é um constante ato de repetição. Cada nova tentativa de repetir é um novo gesto. Repetir é, segundo Gilles Deleuze, "comportar-se, mas em relação a algo único ou singular, algo que não tem semelhante ou equivalente." (DELEUZE, 1988).
Dessa forma, nos distanciamos da representação mimética da realidade, que tem como objetivo final uma réplica verossímil da mesma, para explorar a instauração de uma realidade, tal como afirma Mário de Andrade, em um texto intitulado Do desenho:
O desenho, muito mais agnóstico, é um jeito de definir transitoriedade, se posso me exprimir assim. Ele cria, por meio de traços convencionais, os finitos de uma visão, de um momento, de um gesto. Em vez de buscar as essências misteriosas e eternas, o desenho é uma espécie de definição, da mesma forma que a palavra "monte" substitui a coisa "monte" para nossa compreensão intelectual. (ANDRADE, 1975)
Podemos entender então essa forma de desenhar como uma busca pela experiência do real. Ao invés de tentar ilustrar possíveis realidades ou criar planos fantasiosos de uma outra realidade, o desenho aqui possibilita uma investigação da realidade imanente. Ou seja, através da tentativa de capturar os movimentos do pensamento chegamos ao que Gilles Deleuze denomina como plano de imanência, assim como afirma Tatiana Salém Levy, em seu livro A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze: "O plano de imanência é a própria imagem do pensamento, a imagem do que ele se dá do que significa pensar, fazer uso do pensamento."(LEVY, 2003). Na sequência, ela ainda afirma: "Potência máxima da vida, o plano de imanência é um corte determinado por uma velocidade infinita, por linhas de fuga, por forças selvagens."(LEVY, 2003).
Essa experiência pode também se dar pelo ato de desenhar, pela constante repetição de linhas desordenadas, que fogem a qualquer tipo de codificação. A repetição é um procedimento de suma importância para a consumação dessa experiência. Como afirma Deleuze, em seu livro Diferença e repetição, a ideia de repetição estaria bem distante do entendimento comum aplicado a este termo: "A repetição não é a generalidade (...) repetir é comportar-se, mas em relação a algo único ou singular, algo que não tem semelhante ou equivalente"(DELEUZE, 1988, pág. 13).
A partir desse pressuposto a repetição se torna uma das premissas da experimentação, do ato criativo e da experiência com a linha pelo desenho. "Repetir, repetir até ficar diferente."(BARROS, 2001, pág. 47). E através da ideia de repetição que chegamos ao conceito de intensidade, muito caro a essa pesquisa. Segundo Cláudia Amandi,
A tarefa intensificar indica que a repetição de uma ideia, forma ou processo retorna ao decurso criativo do autor. No lugar da invenção o autor regressa a uma coisa para a reinventar e reformular. Não terá portanto a ver com a ideia de repetição mecânica de soluções, mas com a repetição de um conjunto de procedimentos que lhe permite voltar a equacionar e experimentar relações em torno de um determinado centro. Logo é uma tarefa com formação transversal, ou seja, atravessa vários períodos da obra do autor em que é possível observar que o desenho funciona como centro operativo para reposicionar um conjunto de proposições renovadamente trabalhadas e transformadas, e que adquirem diferentes configurações e deliberações com caráter essencialmente convergente. (AMANDI, 2010, PÁG. 383)

Algumas perguntas nortearam a presente investigação: Como se constrói um desenho que tenha sentido e que não seja uma representação mimética da realidade visível?; É possível estabelecer uma relação de aproximação entre desenho e o pensamento?; Construímos intensidades através do ato de desenhar?


Intensificar as buscas para reafirmar a disparidade
Márcio Otávio, O intensivo, nanquim e lápis de cor sobre papel manteiga, dimensões 99cm x 69cm , 2013, acervo particular

A relação estreita que tenho mantido com o desenho na minha prática artística, fez com que esse trabalho se tornasse um reflexo natural de análise dessa experiência. O intuito dos experimentos apresentados são o deslocar a linguagem do registro da proposição, que predica algo de alguma coisa, para o anúncio, que não predica nada de nada. Desta forma, há uma tentativa de enfraquecer a mimese de uma certa realidade concreta e estabelecer um ritmo desenvolto, por meio da linha e do automatismo.
Nestas experiências buscou também evidenciar, através da repetição de alguns procedimentos, a possibilidade de se alcançar certas "intensidades". O conceito de intensidade, referido acima foi emprestado dos escritos filosóficos de Gilles Deleuze que, constrói esse conceito a partir do conceito de potência em Espinosa. Segundo Deleuze,
a intensidade se explica, desenvolve-se numa extensão (extensio). É essa extensão que se refere ao extenso (extensum), onde ela aparece fora de si, recoberta pela qualidade. A diferença de intensidade anula-se ou tende a se anular nesse sistema; mas é ela que, explicando-se, cria esse sistema. (DELEUZE 1, p.364-365; orig. p.294)

Márcio Otávio, Fluxos, nanquim sobre papel manteiga, dimensões 99cm X 69cm, 2013, acervo particular

Dessa forma, poderíamos entender o conceito de intensidade por variadas forças ou tensores de ordens sensíveis sobrepostas, que atravessam, torcem e retorcem, com imensa violência, o corpo ou a figura humana apontando sempre para o exterior, para o fora de si. Neste sentido, tais desenhos são tentativas de tornar visíveis tais forças, o que, através da representação figurativa ou narração linear, seria impossível de se mostrar.
Ao se permitir atravessar por esse terreno de intensidades, poderíamos romper com o mundo das representações para acessar signos que acontecem simultaneamente ao ato e que resistem à codificação e à institucionalização . O desenho, neste momento, não se justifica mais por elementos externos representáveis e se daria no próprio ato de ser atravessado por intensidades diversas durante o registro do mesmo sobre o suporte.
Márcio Otávio, Atravessamentos, nanquim sobre papel manteiga, dimensões 99cm X 69cm, 2013, acervo particular

Esta atitude se coloca em consonância com uma tendência contemporânea do desenho, através do qual o desenho é considerado um método de investigação, de autoconhecimento e de conhecimento do real e das forças que operam sobre esses elementos, assim como afirma Garry Garrels:
Noções como autenticidade, ou verdade psicológica, ou convicção substituíram o critério baseado na representação mimética do mundo real ou da imitação da natureza. Enquanto controlo e nuance se mantém fundamentais, estes são alcançados através de meios não tradicionais. O cubismo introduziu a collage, os Surrealistas cultivaram as operações acidentais, tal como a frottage, e o Expressionismo Abstracto liberou o potencial da linha através da inabilidade (deskilling). (GARRELS, 2007, Op. Cit., p. 21)

É fundamental tratar aqui da questão do desejo como linha de força na prática da experimentação. Durante a ação de desenhar, vários são as sensações que atravessam o corpo de quem desenha: dúvida, euforia, medo, incerteza, etc.. A linha se torna um refúgio para um pensamento incerto, perturbado, instável e agitado. A linha torna visível o contorno desse pensamento. Ela o delimita. Funciona como um sismógrafo que tem nas mãos o mecanismo de registro dos movimentos do pensamento. É uma forma de concentração, quase um ato de meditação.
O que surge então é um traço solto, despreocupado e que, na medida em que vai sendo registrado sobre o suporte, estabelece um jogo mental que absorve todos os impulsos sensoriais. Esses impulsos estão agora dirigidos à experimentação improvisada que buscam revelar intensidades que atravessam o corpo naquele exato instante.
Márcio Otávio, Passagem, nanquim e lápis de cor sobre papel manteiga, dimensões 69cm X 99cm 2013, acervo particular


O desenho é um acontecimento

Ao se formar uma ideia, seja qual for o campo de estudo, pode-se usar o desenho como artifício de investigação, partindo de uma noção particular para um grau de generalização maior. O desenho estaria neste campo aberto às possibilidades, se configurando como uma grande potência para a criação. Durante a criação é necessário desconstruir, decodificar para reconfigurar.
No decorrer da ação, o acaso se põe em jogo. Outras formas, não previamente planejadas se insinuam e vão sendo registradas sobre o suporte. Isso exige que a mente apreenda impulsos racionais, mas também impulsos intuitivos e estéticos para a construção de uma imagem.
Um caminho que a linha fluída conduz em uma velocidade inebriante e contagiante. A velocidade é sempre um ponto importante nessas produções. São desenhos rápidos, mas nunca fáceis. Todos carregam um grau de angústia e incerteza em seu processo. Os resultados refletem muito do estado físico e mental em que são concebidos.
Recorrendo à ideia de velocidade mencionada acima poderíamos refletir por um momento sobre a relação com o tempo contido em tais desenhos. Levy, ao pensar sobre a arte como uma manifestação para além da memória de uma consciência, imputa à arte a tarefa de redescobrir um tempo perdido, que seria um tempo primordial, contrário à sucessão gradual do tempo ao qual estamos habituados:
O tempo original, assim como revelado por Proust e Deleuze, é o tempo vertiginoso, o tempo fora dos eixos, ou seja, 'saído da curvatura que um deus lhe dava, liberado de sua figura circular muito simples, libertado dos acontecimentos que compunham o seu conteúdo, revertendo sua relação com o movimento, descobrindo-se, em suma, como forma vazia e pura.' (LEVY, 2003 pág. 119)


Márcio Otávio, Duração, nanquim e grafite sobre papel, dimensões 50cm X 64,5cm 2013, acervo particular

Usa-se o automatismo na tentativa de construir uma linguagem plástica autêntica. Existe uma constante especulação a partir de grafismos. Nesse processo o erro é tomado como elemento tão relevante quanto a intenção que move a procura.
Entre o gesto e a incerteza, o desenho torna-se o sismógrafo dessas flutuações detectadas pelo caráter repetitivo que, exprime o sentido desordenado, provisório e transitivo do processo criativo.
Linhas errantes que, por serem errantes, traduzem o próprio devir do desenho. Afinal, o que é uma linha? Segundo Zourabili, em O vocabulário de Deleuze "a linha é um signo que engloba o tempo, o elemento de base de uma semiótica da duração, de uma clínica da existência" (ZOURABICHVILI, 2004, PÁG. ).
Linhas de segmentarização, linhas quebradas, linhas de demolição, linhas de derivação, indefectivelmente linhas de ruptura e fuga: toda uma cartografia de intensidades. (FONTES FILHO, 2007, pág. 7)
Dessa forma, aproximando a linha da ideia de duração obtemos um modo de ser no tempo que, ao usar da repetição como procedimento para construção destes desenhos geraria um acontecimento. É através da linha e de outros elementos gráficos que é registrado o acontecimento ao qual chamamos de desenho.
O conceito de acontecimento para Deleuze "passaria ao mesmo tempo pela linguagem e pelo mundo" (ZOURABICHVILI, 2004, pág. 7). Dessa forma poderíamos situar o desenho como um acontecimento que abarcaria a instância da linguagem, mas que se inscreve no mundo através do corpo. Assim, nos deparamos com desenhos figurando como topologias de superfícies inscritas por 'puras presenças', que tentam instaurar o prolongamento incessante do presente e reencontrar as articulações possíveis dentro da realidade no desenho.
Após essas linhas se estabelecerem, a partir de uma estrutura improvisada, entra em jogo a ideia de variação. Essa ideia também parte do caráter improvisado mas, a todo custo, procura estabelecer uma relação estética, sensorial, etc., com as linhas traçadas anteriormente. Isso se dá através de vários procedimentos como o preenchimento de tais linhas, alternância no uso das cores, aproximação e distanciamento das linhas, etc.. É nesse momento que realmente se estabelece a noção de jogo e ao terminar um jogo se instaura novamente a vontade de reiniciar outro, sem saber o que nos espera na sequência.


Márcio Otávio, O triunfo oscilante, grafite e lápis de cor sobre caderneta, dimensões 11cm X 16cm, 2013, acervo particular


Considerações finais

Esta pesquisa pretendeu contribuir para pensar a multiplicidade de interfaces que o desenho assume no contemporâneo. O desenho como um processo de investigação e liberto da função apenas representativa de objetos que figuram no mundo, nos faz pensar na aproximação do desenho aos processos de pensamento. O desenho pode operar de forma a tentar capturar e registrar alguns movimentos da mente, do corpo e suas relações com o entorno. Dessa forma a atual pesquisa se focou na relação proposta entre o desenho, intensidade, duração, acontecimento e imanência, de forma a evidenciar também a relação do desenho e o corpo do desenhador.
Foi através da linha, de sua liberação e de suas variações que se tornou possível a escrita desse trabalho. A linha pensada como um elemento gráfico e também como o detonador de um acontecimento, que atravessa a esfera da linguagem, do registro em variados suportes e do corpo de quem desenha, gerando o que se denominou de intensidades.
Dessa maneira tentamos escapar do aspecto simplesmente subjetivo ou até da ideia de interioridade do artista durante o ato de criação das imagens. Para isso, foi importante apontar para a experiência do fora, conceito criado por Maurice Blanchot e utilizado em vários textos de Gilles Deleuze. Em um texto-conferência intitulado O pensamento Nômade Deleuze afirma sobre a escrita de Nietzsche ter essa capacidade de inaugurar uma experiência do fora, o que nos faz pensar se isso também não se aplicaria à prática do desenho que tem como intuito a produção de pensamento:
Dizemos, então, que tais textos são atravessados por um movimento que vem do fora, que não começa na página do livro nem nas páginas precedentes, que não cabe no quadro do livro, e que é absolutamente diferente do movimento imaginário das representações ou do movimento abstrato dos conceitos tais como eles acontecem habitualmente através das palavras e na cabeça do leitor. Alguma coisa salta do livro, entra em contato com um puro fora. ( FLECHEUR, A, DELEUZE, G, 2006, pág. )
No desenho, partindo da ação repetitiva de traçar linhas fluídas chagaríamos a uma sensação de disjunção ou acidente. O acidente gera uma espécie de abstração, realizada pelos instrumentos de registro gráfico. Pela intensificação do ato, que muitas vezes acontece de modo involuntário, poderíamos ter uma espécie de mapa dos movimentos corporais e mentais. Ao observarmos esse desenhos percebemos que tais movimentos estão ali de forma tão detalhada que a ideia de os retraçar seria absurda.
Estes processos dizem sempre da relação entre quem desenha, os estímulos que o cercam e a experiência do registro. No suporte usado para registrar percebemos agora uma experiência relacional que começa muito antes da própria ideia sobre o desenho. Forças que atuam o tempo todo durante o exercício de desenhar, indicando algo que está além do suporte gerado. Este seria o desenho como intensidade!

Este trabalho não pretende mensurar um resultado exato para tais indagações, devido a impossibilidade de afirmações definitivas nas áreas de interesse dessa pesquisa. O intuito do corpo da pesquisa foi tentar estabelecer um início de diálogo entre as áreas abordadas. Dessa forma, buscou-se abrir um campo para aprofundamento de futuras pesquisas que tratarão do tema com mais densidade. Por hora evidenciamos satisfação em poder concluir o presente trabalho com uma vontade renovada de aprofundar os temas com mais questões que irão surgir.


Referências:
AMANDI, Cláudia. Funções e Tarefas do Desenho no Processo Criativo. Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, Porto, 2010 (PhD. Dissertation)

ANDRADE, Mário de. Aspectos das artes plásticas no Brasil. São Paulo: Martins; Brasília: INL, 1975.

BARROS, M. de. Livro das Ignorãças. 10ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.

BLANCHOT M. , L'Entretien infini, Paris, Gallimard, 1969.

DELEUZE, G. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

DELEUZE, G. A ilha deserta: e outros textos. São Paulo, Iluminuras, 2006.
DELEUZE, G. & GUATARRI, F. O anti- Édipo. Trad. Campos A. Lisboa: Assírio e Calvin, 1996.
FONTES FILHO, Osvaldo . Francis Bacon sob o olhar de Gilles Deleuze: a imagem como intensidade. Viso : Cadernos de Estética Aplicada, v. 3, p. 1-17, 2007.



GARRELS, Gary, Drawing from the Modern 1945-1971.
LEVY, Tatiana Salem. A experiência do Fora: Blanchot, Foucault e Deleuze. Conexões (19). Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003

PATRIZIO, Andrew, Perspicuous by their absence: the Wimbledon drawings of Claude Heat IN What is drawing?: three practices explored : Lucy Gunning, Claude Heath, Rae Smith. London ; New York, NY : Black Dog Publishing, 2003.

SILVA, C. V. . Da física do intesivo à estética do intensivo: Deleuze e a essência singular em Espinosa. Cadernos Espinosanos (USP), v. 22, p. 37-53, 2010.
SOUSA, Cláudio, Desenho Efémero e Oscilante, FBAUP, Porto, 2011 (Master Thesis)
ZOURABICHVILI, François. O Vocabulário de Deleuze. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 2004





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