O DESENHO DO DESIGN: REPRESENTAÇÃO E CONSTRUÇÃO DA CULTURA MATERIAL ATRAVÉS DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS.

September 1, 2017 | Autor: Ed Sarro | Categoria: Design, Comics Studies, Culture
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Eixo temático HQ e Linguagem.

O DESENHO DO DESIGN: REPRESENTAÇÃO E CONSTRUÇÃO DA CULTURA MATERIAL ATRAVÉS DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS. Ed Marcos Sarro Mestre em Design e Arquitetura pela FAUUSP. Professor nos cursos de Desenho Industrial e Engenharia da Universidade São Judas Tadeu, R. Taquari, 546 - Mooca - São Paulo/SP - CEP 03166-000 [email protected] [email protected]

RESUMO

Como outras linguagens, os quadrinhos funcionam como registro subjetivo e interpretativo da memória tanto da cultura material da sociedade contemporânea quanto da sua produção simbólica. Os quadrinhos modernos surgem no final do século XIX como elemento de renovação da indústria editorial norte-americana, através do mercado dos grandes jornais, no meio de todo um conjunto de transformações tecnológicas, políticas e sócio-econômicas que vieram a moldar o nascente século XX, colaborando para forjar a sociedade industrial e a cultura de massa. A presença de elementos da linguagem das histórias em quadrinhos no imaginário popular e na cultura visual contemporânea é fruto de anos de exposição da sociedade à comunicação de massa (principalmente às mídias impressas). Os quadrinhos fizeram a iniciação de gerações de indivíduos aos rudimentos da estética visual.

Palavras-chave: quadrinhos, design, arquitetura, artes, projeto. Abstract

Like other languages, comics plays a role as the record of subjective and interpretive memory of the material culture of contemporary society as well as its symbolic production. Modern comics appears in the late nineteenth century as part of the renewal of the American publishing industry, through the major newspapers in the midst of a whole set of

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technological, socio-economic and political changes that came into shape during the nascent century , helping to forge the industrial society and hence the mass culture. The presence of elements of the language of comics in popular imagination and in the contemporary visual culture is the result of years of exposure of society to the mass media (especially the print media). Comics made the initiation of generations of people into the rudiments of visual aesthetics.

Keywords: comics, design, architecture, arts, design.

Introdução.

O objetivo deste estudo é refletir sobre a influência da linguagem das histórias em quadrinhos na cultura visual contemporânea e identificar contaminações mútuas entre quadrinhos, arte, design e arquitetura. Surgidas como substrato de outras linguagens, as histórias em quadrinhos acabaram ganhando status próprio, desempenhando uma função análoga como registro da interação humana com o ambiente imediato.

Além disso, deixando há tempos o lugar apenas de entretenimento acessível, os quadrinhos acabaram por se tornar também uma fonte de geração de valor estético e de conhecimento útil e produtivo, influenciando as artes, a comunicação, a economia e a cultura em diversas formas e manifestações. É sobre a dinâmica dessas interações que trata esse estudo.

Através do ferramental teórico das ciências da linguagem, nas teorias da comunicação, nos textos acadêmicos sobre a narrativa gráfica, na teoria e história da arte e do design e nas ciências humanas aplicadas pode-se ter uma dimensão desse impacto e das contaminações mútuas entre quadrinhos, arte, design e arquitetura. Buscamos nosso embasamento teórico primariamente nos textos de E. Gombrich, Scott McCload, Rafael Cardoso, Umberto Eco e Will Eisner dentre outros.

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1 - Os quadrinhos e o registro da cultura material.

Desde a Pré-História o homem tem utilizado as imagens como meio para registrar e preservar sua memória. Na arte rupestre é possível ter um vislumbre dinâmico e por vezes preciso da vida daquele tempo e das coisas que eram importantes: animais, cenas de caça e de guerra, armas, fantasias cerimoniais e os locais onde essas coisas existiam (fig.1). Algo semelhante a uma história em quadrinhos. Segundo Eisner, esta teria sido a primeira “crônica ilustrada” da Humanidade (EISNER, 2005).

Figura 1: Nicho Policrômico - Toca do Boqueirão da Pedra Furada - Serra da Capivara – PI. Fonte: http://www.fumdham.org.br

Mesmo hoje podemos encontrar os mesmos mecanismos de simulacro da realidade no trabalho de Walt Disney: nas histórias de Mickey e Donald as coisas parecem de fato funcionar, apesar da simplicidade de sua representação. Notório também é o desenho preciso e detalhista do quadrinhista belga Georges Prosper Remi, o “Hergé” (fig.2).

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Figura 2: Foguete para viagens espaciais. Fonte: “Tintin - On a Marché sur la Lune”, Editora Casterman, 1993.

Segundo o documentário “Os Super-Heróis Dos Quadrinhos”, Hergé registrou a história da Europa nos últimos cinquenta anos através das aventuras de Tintim. Sobre Tintim escreve ainda o matemático e estatístico português Nuno Crato: A viagem de Tintin (sic) à Lua é um dos grandes feitos de Hergé. Hergé aconselhou-se junto de vários cientistas, entre os quais o professor Alexandre Ananoff, autor de uma conhecida obra de astronáutica editada em francês pela Fayard. Ao contrário das verdadeiras viagens tripuladas à Lua, que se realizariam 15 anos depois, o foguetão de Tournesol é movido a energia nuclear, pelo que tinha uma reserva energética imensa, que lhe dava a possibilidade de pousar sobre o nosso satélite e de vencer depois a atracção lunar. Como se sabe, apenas o módulo lunar americano pousou sobre a Lua, enquanto a nave principal se mantinha em órbita para aproveitar o combustível. O foguetão de Tintin é inspirado no V-2 alemão de von Braun. Entre outros pormenores realistas relatados na viagem, destaca-se a ausência de peso sentida pelos astronautas quando o motor para, assim como o desenho do

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asteróide Adonis. De notar que, na altura, nunca se tinha visualizado um asteróide. Pelas imagens hoje conhecidas vê-se que o desenho é bastante realista. Menos realista é a ausência de movimento relativo entre o foguete e o asteróide. Enquanto este se mantém numa órbita que cruza a da Terra, a inércia do movimento da nave deveria afastála do asteróide (CRATO, 2009).

Citando Jean-Paul Crespelle, Eichler Cardoso analisa o registro de época do Império Brasileiro feito através dos desenhos humorísticos de Angelo Agostini:

(...) dentro de mil anos os sociólogos não disporão de fontes mais seguras para entenderem os costumes e as ideias de nossa época, do que as histórias em quadrinhos. Estas são, ao mesmo tempo, o reflexo e o prolongamento de nossa civilização. (EISCHLER CARDOSO, 2005, p.30).

2- Os quadrinhos como linguagem de projeto.

Além do seu caráter documental, a partir da Segunda Guerra e da expansão da influência cultural norte-americana, a linguagem dos quadrinhos passou a permear o repertório visual de gerações de profissionais criativos no mundo todo, influenciando a sua forma de projetar e a sua estética. No que tange à formação de uma cultura visual contemporânea, via a influência dos quadrinhos, Rafael Cardoso escreve sobre Mauricio de Sousa: “(...) a produção de Mauricio tem se transformado em marco de toda uma época, formando a iniciação visual de gerações de brasileiros.” (CARDOSO, 2008 p.202). Quanto à influência dos quadrinhos na construção do atual modelo mental que organiza e sistematiza nosso conceito de projeto gráfico, Cardoso afirma também que: Pode-se dizer, na verdade, que a sobreposição e a recombinação de elementos são princípios básicos da imaginação gráfica, pelo menos desde a primeira colagem ou da primeira história em quadrinhos (CARDOSO, 2008, p.239).

Poderíamos elencar alguns campos de influências e contaminações mútuas:

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a)

Artes: no bojo da cultura pop os quadrinhos influenciaram e foram influenciados por outras formas de arte. Exemplo mais evidente disso é a pop art de Roy Fox Lichtenstein (fig.3).

Figura 3: Quadro de Roy Lichtenstein. Fonte: livro “Lichtenstein”, Editora Taschen, 2007.

Umberto Eco entende, no entanto, que a força dos quadrinhos sobre a cultura visual contemporânea se deu a partir da sensibilização prévia do olhar do público pelas experiências estéticas do Futurismo:

Entre Dinamismo di un foot-balleur, de Boccioni, e a típica representação de um super-herói de estória em quadrinhos (cuja passagem supersônica é significada por uma espécie de traço horizontal, como imagem que tivesse passado a grande velocidade diante de uma objetiva fotográfica) a relação é evidente. É bem verdade que seria possível individuar representações do gênero em cartoons e tiras que precedem as experiências futuristas, mas também é verdade que, só após os experimentos da pintura contemporânea e as descobertas dos técnicos e artistas da fotografia, pôde a estória em quadrinhos impor suas próprias convenções gráficas como linguagem universal, com base numa sensibilidade agora adquirida por um público mais vasto (ECO, 2006, p. 150).

Experiências recentes, como a exposição “Comics Abstraction”, no MoMa de Nova York em 2007 (fig.4), e adaptações para o cinema e para o teatro da obra de

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cartunistas como Bob Kane, Frank Miller, Maitena e Will Eisner demonstram o versatilidade das histórias em quadrinhos ao ser traduzidas para outras linguagens (convém ressaltar que o próprio advento do cinema enriqueceu o universo descritivo dos quadrinhos, através da assimilação do uso dos planos, dos cortes e dos enquadramentos).

Figura 4: Sem título, 1996, Michel Majerus. Fonte: livro “Comics Abstraction – Image-Breaking, Image -Making”, The Museum of Modern Art, 2007.

Há quem afirme que a leitura de Katzenjammer Kids tenha influenciado as experiências cubistas de Picasso (1).

A toy art é outra manifestação artística contemporânea fortemente inspirada na estética dos quadrinhos.

Podemos mencionar ainda a recém admissão de Mauricio de Sousa à Academia Paulista de Letras, sugerindo aos quadrinhos um pretenso status de literatura (VEIGA). b)

Comunicação Visual e Desenho Industrial: os quadrinhos contribuíram para enriquecer o imaginário moderno através da popularização de certas convenções gráfico-visuais que se tornaram quase códigos na comunicação visual (fig.5).

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Figura 5: Balão de fala em folder publicitário. Fonte: Correios, s/d.

Como escreve Rafael Cardoso: A importância do quadrinho para o design gráfico não está apenas no seu sucesso como fenômeno de comunicação visual, mas também nas transformações que efetuou em termos de linguagem gráfica. Elementos básicos do repertório semiótico moderno – como os balões para expressar falas e pensamento, as linhas de força para expressar movimento e toda uma série de signos tipográficos para expressar ações e sons – devem a sua codificação à penetração do quadrinho no imaginário moderno (CARDOSO, 2008, p.138).

Alguns cartunistas mantêm uma produção bastante consistente em termos de design, como o espanhol Javier Mariscal que criou o cachorrinho Cobi (mascote dos Jogos Olímpicos de 1992 em Barcelona) e desenhou a cadeira Garrini (fig.6), que traz claras referências a Mickey Mouse.

Figura 6: cadeira “Garrini” Fonte: livro “Design do século XX”, Taschen, 2005.

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De fato, a ligação do design com os quadrinhos não é nova, remontando ao estilo Streamlining (fig.7), popular nos Estados Unidos em meados do século XX, como afirma Cardoso: No design, a admiração pela velocidade como elemento estético deu origem a um modismo bastante peculiar durante a década de 1930. (...) um grande número de objetos industrializados passou a sofrer um arredondamento e/ou alongamento assimétrico das formas, às vezes com a aplicação superficial de nervuras estruturadas na horizontal, remetendo claramente às linhas de força das histórias em quadrinhos (CARDOSO, 2008, p.145).

Diversos segmentos da economia no mundo industrializado, indo da publicidade e propaganda às marcas e ao merchandising, passando pelos licenciados, pelos brinquedos e pela indústria do entretenimento, além dos têxteis e da moda e da indústria alimentícia, encontraram nos quadrinhos um poderoso aliado na construção de uma cultura de consumo baseada no apelo visual e no lúdico. De fato, o próprio processo de desenhar personagens e produzir histórias em quadrinhos e desenhos animados acabou por incorporar a mesma lógica de reprodutibilidade e de linha de produção em série preconizada pela indústria.

Figura 7: Rádio “bala” marca Fada. (Estados Unidos, 1946). Fonte: www.jahsonic.com

c)

Arquitetura e urbanismo: surgidas como linguagem eminentemente urbana e difundida principalmente a partir dos grandes centros, os quadrinhos sempre

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tiveram a cidade em alta estima e como protagonista muitas vezes (fig.8). São notórias as descrições de cidades como Sin City, Patópolis e Gotham, da Nova York de The Spirit e do Homem Aranha ou da pequena aldeia de Asterix.

Figura 8: retratando Nova York. Fonte: livro “Nova York – a vida na grande cidade”. Quadrinhos na Companhia, 2009.

Elementos da linguagem e da estética dos quadrinhos invadiram a cidade através da arte de rua, dos graffiti e das alegres e coloridas vacas da Cow Parade. Um aspecto menos inocente e mais questionável desta invasão é a “disneyzação” da sociedade e por conseqüência da cidade, fato apontado já no livro “Para Ler o Pato Donald”, de Ariel Dorfman e Armand Mattelart e também nos escritos recentes de Alan Bryman.

Essas apropriações mútuas entre quadrinhos e outras linguagens e áreas de conhecimento, com a transposição do bidimensional ao tridimensional e vice-versa,

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ensejaram a elaboração de um vocabulário visual e estético que acabou por caracterizar o nosso tempo. Conclusão.

Entendemos haver demonstrado, ainda que superficialmente, os mecanismos do discurso visual dos quadrinhos que operam a representação da cultura material, bem como ter apresentado o papel dos quadrinhos na construção do imaginário e suas implicações na produção simbólica contemporânea. O estudo procurou focar os quadrinhos enquanto parte de uma estrutura maior que é a própria cultura de massa. De fato, essa análise pode ser ampliada para uma abordagem muito mais ampla, abrangendo o próprio conceito de cultura de massa e seu impacto sobre a produção material e simbólica contemporânea, refletindo sobre as implicações desta dinâmica para o desenvolvimento estético e espiritual da sociedade pós-moderna. Esperamos ter começado aqui uma investigação que vá além das histórias em quadrinhos, mas que analise o impacto da cultura de massa como um todo sobre as artes, o design e a arquitetura.

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EISNER, Will. Narrativas Gráficas de Will Eisner, São Paulo: Ed. Devir, 2005. ___________. Quadrinhos e Arte Sequencial, São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, 1995. DORFMAN, Ariel; MATTELART Armand. Para Ler O Pato Donald – Comunicação de Massa e Colonialismo. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra. 1977. FLUSSER, Vilém. O mundo codificado – por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac Naify, 2007. GOMBRICH, E.H. Arte e Ilusão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2007. HENDRICKSON, Janis. Lichtenstein. Colônia: Taschen GmbH, 2007. JONES, Jonathan. Comic strips and cubism. Disponível em http://www.guardian.co.uk/books/2002/apr/13/books.guardianreview1, Acesso em: 18 maio 2011, 09:30:00. MARCOCCI, Roxana. Comic Abstraction – Image-Breaking, Image-Making. Nova York: The Museum of Modern Art, 2007. MARNY, Jacques. Sociologia das histórias aos quadradinhos. Porto: Livraria Civilização Editora, 1970. MCCLOUD, Scott, Desvendando os Quadrinhos- História, Criação, Desenho, Animação, Roteiro. São Paulo: M. Books do Brasil, 2005. MOYA, Álvaro de. Shazam! São Paulo: Editora Perspectiva, 1977. VEIGA, Edison, Mauricio de Sousa vira imortal das Letras de SP. O Estado de S.Paulo, 12 mai. 2011, Caderno Metrópole, p. 56. OS SUPER-HERÓIS dos Quadrinhos, Dirigido por Richard Belfield. Nova York, Discovery Communications: 2002, 1 DVD.

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