O Desenvolvimento como Extinção dos Sistemas de Subsistência

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Ensaio .

O Desenvolvimento como Extinção dos Sistemas de Subsistência José Augusto Drummond Resumo: Depois de seis ou sete décadas de uso e debate contínuos, o conceito de desenvolvimento com ou sem aspas, não chegou a uma formulação minimamente consensual e que evite controvérsias desgastantes, mas o seu uso continua tão ou mais intenso do que em qualquer momento anterior. Os diferentes e muitas vezes contraditórios significados que o conceito adquiriu e perdeu nesse período passaram quase sempre pela operação inicial de colocar o termo entre aspas e, em seguida, tentar explicar as aspas. No entanto, creio que podemos e devemos ir além das aspas, dos adjetivos, dos prefixos e das qualificações e encontrar um conceito que, mesmo saudavelmente controvertido, funcione melhor como base para discussões sobre e para o entendimento das muitas questões correlatas ao desenvolvimento. Palavras chaves: Desenvolvimento,produção, sistema econômico e bem-estar. Abstract: After six or seven decades of use and debate, the concept of development with or without quotes, has not reached a consensus formulation minimally stressful and avoid controversy, but its use remains as or more intense than ever before. The different and often contradictory meanings that the concept has gained and lost in this period almost always passed the initial operation to put the term in quotation marks and then try to explain the quotes. However, I believe that we can and should go beyond the quotes, of adjectives, prefixes and qualifications and find a concept that even controversial healthily, work better as a basis for discussions and understanding of the many issues related to development. Keywords: Development, production, economic system and welfare.

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Introdução As aspas esgotaram a sua capacidade de auxiliar os estudiosos a manifestar uma atitude crítica em relação ao conceito de “desenvolvimento”. Depois de seis ou sete décadas de uso e debate contínuos, o conceito, com ou sem aspas, não chegou a uma formulação minimamente consensual e que evite controvérsias desgastantes, mas o seu uso continua tão ou mais intenso do que em qualquer momento anterior. Os diferentes e muitas vezes contraditórios significados que o conceito adquiriu e perdeu nesse período passaram quase sempre pela operação inicial – relativamente cômoda – de colocar o termo entre aspas e, em seguida, tentar explicar as aspas. A esta altura do debate sobre os assuntos correlatos ao desenvolvimento, no entanto, precisamos ser mais explícitos para definir o que queremos dizer quando falamos desenvolvimento. Alternativamente, podemos simplesmente abandonar o termo/conceito. As aspas não nos ajudam mais. Este painel é uma boa oportunidade para iniciar as atividades de um grupo de discussão interdisciplinar que eventualmente adotará um nome que incluirá a palavra desenvolvimento – de preferência sem aspas. Antes de chegar ao ponto central de minha contribuição, quero tocar em dois pontos. Primeiramente, devemos lembrar que houve e ainda há uma outra forma – além das aspas – de inscrever críticas, esperanças e ideais ligados ao conceito de desenvolvimento. Refiro-me aos numerosos adjetivos, prefixos e expressões qualificadoras que, ao longo dos anos, foram adotados intencionalmente para modificar o conceito e movê-lo em direções desejadas: desenvolvimento econômico, desenvolvimento sócioeconômico, desenvolvimento desigual, desenvolvimento

tardio,

desenvolvimento

excludente,

desenvolvimento

estrutural,

subdesenvolvimento, desenvolvimento dependente, desenvolvimento de estado estável, desenvolvimento sustentável, desenvolvimento ecologicamente sustentável, desenvolvimento integrado, desenvolvimento local, desenvolvimento externamente induzido, desenvolvimento autóctone, desenvolvimento humano e assim por diante. Adjetivos, prefixos e qualificações são de fato mais eficazes que as aspas para discriminar significados, mas infelizmente, no caso do fugidio conceito de desenvolvimento, quase sempre eles têm sido propostos ou usados por uma única “escola de pensamento” ou um único pensador. Além disso, eles têm se revelado perecíveis.

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Em segundo lugar, não devemos esquecer da possibilidade de que talvez o conceito de desenvolvimento tenha perdido para sempre qualquer significado consensual. Isso acontece frequentemente com conceitos importantes nas ciências sociais e afins, como estrutura, classe e cultura, para mencionar apenas três exemplos notáveis. No entanto, creio que podemos e devemos ir além das aspas, dos adjetivos, dos prefixos e das qualificações e encontrar um conceito que, mesmo saudavelmente controvertido, funcione melhor como base para discussões sobre e para o entendimento das muitas questões correlatas ao desenvolvimento. Escolhi discutir o conceito de desenvolvimento de forma pragmática, ou técnica, embora sem abdicar de uma discussão conceitual ou teórica. Tratarei primeiro daquilo que o conceito de desenvolvimento tem significado para uma aparente maioria das pessoas (da academia, de políticos, de partidos políticos, de grupos de interesse, de formadores de opinião, de formuladores de políticas e de tomadores de decisão), na maior parte do tempo. Em seguida argumentarei que o conceito, reconstruído dessa forma, tem ampla pertinência empírica, por assim dizer, pois indica um denominador comum a uma grande variedade de fenômenos que ocorrem em países, culturas e períodos diferentes entre si. Para tanto, vou colocar em evidênciauma ampla sobreposição que enxergo nos significados mais “antigos” de desenvolvimento – “antigo” significando aqueles que deixam de fora fatores ecológicos/ambientais que tanto me interessam na atualidade (e que comentarei brevemente mais à frente). Sustento que os conceitos de desenvolvimento que aparentemente se digladiaram nas últimas décadas compartilham duas ênfases. O desenvolvimento implicaria em: a – esforços para ampliar a produção e a circulação de bens e serviços que melhoram as dimensões básicas (sobre as quais, é claro, há divergências sérias) do bem-estar humano: nutrição, saúde, moradia, educação, lazer, segurança etc., ampliação esta feita em escalas mensuráveis, de forma a gerar registros comparáveis no tempo e entre sociedades; b - esforços para estimular processos sociais que alimentem diretamente a dinâmicade produção e circulação ampliadas, para que ela seja constante e cumulativa – tal como aumentar a produtividade, diminuir o desperdício, estimular invenções, desenvolver novas matérias primas e processos produtivos, usar novas fontes de energia e, acima de tudo,fazer a produção destinada à troca substituir a produção destinada à subsistência. Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 218 - 225

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O ponto mais importante deste texto é este: ambas as ênfases apontam para o decréscimo ou a eliminação da proporção e da quantidade absoluta de valores de uso “nãomensuráveis” produzidos e consumidos dentro dos sistemas de subsistência, em oposição a valores de troca “mensuráveis” produzidos nos sistemas de troca. Teorias e projetos do desenvolvimento, em sua maioria esmagadora, têm escolhido sistematicamente como alvos primários de modificação radical os sistemas de subsistência, dando relevo às suas limitações, sem reconhecê-los como formas eficazes – e sequer legítimas - de emprego dos recursos produtivos. Em termos leigos, o desenvolvimento dependeria de cada vez mais pessoas consumirem menos ou nada do que elas mesmas produzem e – o outro lado da mesma moeda – de cada vez mais pessoas produzirem principalmente ou exclusivamente para o consumo de outras pessoas. Nos textos clássicos e contemporâneos de economia política, esses dois fenômenos estão inscritos em outro conceito, a chamada divisão social do trabalho, mais antigo que o conceito de desenvolvimento. É verdade que os proponentes dos diferentes conceitos de desenvolvimento dos quais extraí este denomindor comum têm travado longos e sérios debates entre si. No que se refere à ênfase (a), estes debates focalizam seguintes pontos: (1) quais dimensões do bem-estar devem ser incluídas nas suas medições; (2) quais dessas dimensões devem ter maior peso analítico; (3) quais escores ou métodos de medição sao aceitáveis; e (4) qual o grau de justiça ou equidade da distribuição dos ganhos de bem-estar entre os diferentes grupos sociais. Esta lista de questões complexas tem alimentado conhecidos e polêmicos debates entre conservadores, liberais, socialistas, populistas, dualistas, dependendistas e neo-liberais. Apesar disso, nenhuma dessas correntes é contrária ao desenvolvimento como a extinção de valores de uso. Não explorarei mais essa ênfase (a). Vou me estender sobre a ênfase (b). Não importa que ela possa gerar calorosas discussões sobre propriedade privada, estatização, socialismo, controle social, nacionalismo, imperialismo, autonomia, dependência etc. – pois existe um consenso forte entre os debatedores: o cidadão da região ou país em desenvolvimento estará em situação melhor na proporção direta em que ele produz para os outros e consome a produção dos outros, com base em uma ampla divisão social do trabalho e em algum tipo de mercado ou sistema de troca legitimado e estável. O meu ponto principal, portanto, é que todos os conceitos, propostas e políticasmainstream de Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 218 - 225

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desenvolvimento concordam que o maior obstáculo para o desenvolvimento é que uma maioria ou uma grande parte da população viva em um sistema de subsistência. Não reinvidico a descoberta deste consenso antissubsistência. Não sustento que a subsistência gere necessariamente resultados sociais “superiores” aos da produção para o mercado, ou vice-versa. No entanto, sustento que esse consenso é a explicação exata das tantas aspas e dos tantos adjetivos acrescentados à palavra desenvolvimento ao longo das últimas décadas. Muito acadêmicos, políticos e outros atores, do passado ou do presente, não conseguem mais ignorar as péssimas consequências da dissolução maciça dos sistemas de subsistência, em qualquer escala geográfica. Por vezes, eles incorrem no erro de negar todo o valor das políticas desenvolvimentistas que visam melhorar o bem-estar social, destacando unilateralmente a dimensão do “mal-estar” do desenvolvimento. Sistemas econômicos modernos têm sido construídos, não importa se conscientemente ou inconscientemente, com base nesse disseminado ideal de substituir valores de uso por valores de troca. A economia global contemporânea está inserindo números absolutos de pessoas e proporções maiores de pessoas na economia de trocas (ou de mercado) do que em qualquer outro momento na história da humanidade. Os níveis físicos de produção e da produtividade das economias de mercado mais amplamente desenvolvidas – principalmente as de “primeiro mundo” – são os maiores registrados até hoje. Os escores atingidos pelos seus habitantes nos diversos índices de prosperidade e bem-estar têm sido consistentemente altos (isso não nega a existência de problemas nesses países, alguns bem sérios, inclusive na distribuição interna do bem-estar). Por outro lado, nas últimas cinco ou seis décadas, países que antigamente eram designados como pertencentes ao Terceiro Mundo (conceito que, com ou sem aspas, sofreu maciço abandono entre estudiosos, analistas e políticos), como o próprio Brasil, adotaram intencionalmente (e entusiasticamente) políticas de desenvolvimento – populistas, militares autoritários, pemedebistas, tucanos petistas etc. Essas políticas se destinaram a tirar grandes partes de suas populações dos sistemas de subsistência e a colocá-las dentro (ou na periferia) de sistemas de troca. Quando e onde essa meta-síntese foi alcançada, houve grandes perdas na produção de valores de uso, antes cruciais ou pelo menos muito importantes para grupos sociais que viviam à margem do sistema de trocas. Os sistemas de troca, mesmo em economias parcialmente modernizadas, têm, portanto, esvaziado ou mesmo esgotado os respectivos Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 218 - 225

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sistemas de subsistência, sem necessariamente realocar os produtores de valores de uso em ocupações ou postos de trabalho que gerem quantidades significativas de valores de troca. Este tipo de desenvolvimento é merecidamente criticado por não incorporar enormes proporções das populações regionais e nacionais nos ampliados sistemas de troca. Sustento que as tensões conceituais, políticas e sociais gerados por esse efeito sistemático de não-inclusão nos sistemas de troca são a principal razão para o uso das aspas em torno do conceito de desenvolvimento e para a proliferação de termos qualificativos do conceito. No entanto, devo ressaltar que este tipo de desenvolvimento mereceria ser criticado simplesmente por destruir os sistemas produtivos de subsistência, e não apenas por seu caráter não-inclusivo nos sistemas de troca. Em numerosos casos, os sistemas de troca ou de mercado têm sido duros para os milhões que antes se “abrigavam” em sistemas de subsistência, porque os primeiros têm deficiências intrínsecas ou efeitos colaterais graves – ineficiências de escala, a busca por tecnologias poupadoras de mão de obra, a acelerada obsolescência das habilidades dos trabalhadores (mesmo daqueles inseridos há mais tempo no sistema de trocas), monopólios, falhas dos planejamentos centrais ou dos mercados, serviços públicos deficientes, diluição das redes de proteção social, inflação, discriminação cultural etc. Isso não significa que os sistemas de subsistência sejam perfeitos ou ideais, mas eles parecem ser, por definição, mais inclusivos do que os sistemas de mercados. É por estes motivos que as políticas de desenvolvimento duras, hard core, devem ser criticadas em muitos casos: elas constroem ou ampliam sistemas de troca nas quais grandes setores das populações regionais ou nacionais não têm mais tempo / materiais / meios / instituições / conhecimento / disposição para produzir valores de uso. Estes grupos acabam ficandono pior dos dois mundos. Obviamente, perspectivas “tradicionalistas” surgiram no âmbito das teorias do desenvolvimento para tratar dessas limitações dos sistemas de troca, escritas por Illich e Schumacher, por exemplo. Elas explicitamente tentam salvar a subsistência da destruição ao defender a “convivencialidade”, o “conhecimento tradicional”, as “escolhas locais” ou a “teconologia apropriada”. Estas perspectivas são frequentemente cheias de bons insights e propostas plausíveis, mas dificilmente conseguem atrair a atenção da maioria dos cientistas do desenvolvimento, e muitos menos dos técnicos governamentais e dos políticos de países ao Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 218 - 225

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antigo Terceiro Mundo. Entre esses políticos francamente desenvolvimentistas, que têm tido invariavelmente amplo e contínuo apoio social/eleitoral nos países em desenvolvimento, prevalece a noção implicitamente schumpeteriana de uma “destruição criativa” ampliada, de acordo com a qual é preciso destruir um sistema velho para construir um sistema novo. Nesse grupo se incluem líderes comunistas que comandaram projetos modernizantes/industrializantes acelerados que em quase tudo (inclusive a dissolução acelerada e intencional de sistemas de subsistência) se assemelharam aos quase universalmente criticados processos de industrialização ou modernização capitalistas dos dois últimos séculos. No entanto, as perspectivas mais soft do desenvolvimentode um Schumacher ou um Illich, carregam consigo alguns aspectos de difícil aceitação ampliada. A crítica ao desenvolvimento

hard às vezes se mistura com expectativas ou previsões de altos níveis de bem-estar que, realisticamente, nenhum autêntico sistema de subsistência pode oferecer. É preciso admitir ainda que os níveis de bem-estar gerados pelos sistemas de subsistência são baixos demais para serem fortemente desejados pela grande maioria das pessoas, em todo o mundo, pessoas essasque foram desligadas de sistemas de subsistência e que estão integradas, mesmo que imperfeitamente, em sistemas de troca. Apesar dessas limitações, as perspectivas tradicionalistas ou pré-modernas me parecem ser uma dimensão necessária de um conceito ou uma teoria que coloque em evidênciaas falhas do desenvolvimento hard e as necessidades nao atendidas dos grupos sociais que ficam à margem dos sistemas de troca. A questão da “sustentabilidade ecológica” ou “sustentablidade ambiental” das economias de trocas é uma adição recente e bem-vinda às críticas, às teorias e aos conceitos de desenvolvimento. Mas, essa perspectiva, que alcançou uma aceitação notavelmente ampla nos últimos anos, ainda está longe de captar as aspirações das pessoas comuns e de influenciar substantivamente as políticas de desenvolvimento. Os proponentes da sustentabilidade ecológica/ambiental, contumazes críticos das contra-produtividades dos modernos sistema de troca, devem reconhecer, em primeiro lugar, que alguns sistemas de subsistência também desperdiçam e destroem recursos naturais, mesmo que em pequena escala. Em segundo lugar, existem controvérsias de fundo sobre o que é ou o que possa ser qualificado como uma atividade produtiva sustentável. Nesse sentido, a adesão generalizada ao conceito de sustentabilidade é ao mesmo tempo uma vitória de novas perspectivas e uma fonte de confusão quanto ao seu significado substantivo. Em terceiro lugar, mesmo uma adesão limitada ou retórica a princípios Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 218 - 225

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da sustentabilidade leva quase necessariamente à redução – ainda que temporária – da produção e/ou dos lucros e esvazia as valorizadíssimas contabilidades nacionais do “produto interno bruto” e outras contabilidades estabelecidas sobre a produção e a distribuição dos benefícios. Considerações ecológicas e ambientais, entretanto, são cruciais para o conceito de desevolvimento na minha linha de trabalho, o “desenvolvimento sustentável” (conceito polêmico e polissêmico que – admito – exige aspas e adiciona mais um qualificativo ao termo desenvolvimento). Como um quase ex-cientista político e como um cidadão que cresceu sob uma ditadura militar ufanisticamente desenvolvimentista, quero acrescentar uma dimensão crucial de um conceito de desenvolvimento ao qual eu aderiria: liberdades políticas, no sentido mais clássico da expressão. Nada justifica suspendê-las ou apagá-las, nem mesmo o desenvolvimento mais justo, mais includente, ou mais sustentável. Continuo sem encontrar uma razão para apoiar práticas e conceitos autoritários de desenvolvimento, mesmo que aleguem ser “esquerdistas” ou “benéficas para a maior parte da população”. Prefiro me arriscar com as incertezas da democracia do que com as arbritariedades e manias de grandeza de ditadores e sistemas unipartidários. Madison, Wisconsin, fevereiro de 1992 Fort Collins, Colorado,novembro de 2011 Brasília, DF, agosto de 2012

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