O DILEMA DA LEGALIDADE DA AGRICULTURA EUROPÉIA FRENTE A ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO

September 17, 2017 | Autor: M. Maurer de Salles | Categoria: International Trade, European Union, International trade law
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1 O DILEMA DA LEGALIDADE DA AGRICULTURA EUROPÉIA FRENTE AO DIREITO INTERNACIONAL DO COMÉRCIO Marcus Maurer de Salles1

1. INTRODUÇÃO: A INFLUÊNCIA EUROPÉIA NA REGULAMENTAÇÃO DO COMÉRCIO INTERNACIONAL DA AGRICULTURA

O atual Direito Internacional do Comércio é fruto de um longo processo de construção de um sistema multilateral de livre comércio iniciado a mais de meio século. Embora os fundamentos teóricos liberais orientem o comércio internacional desde o início do século XIX, foi somente após ter sobrevivido a duas guerras mundiais que a comunidade internacional decidiu lançar as bases jurídico-institucionais de um sistema que regulamentasse a circulação de riquezas internacionais. Por isso, o Direito Internacional do Comércio, além de visar tornar pacifica a reconstrução do mundo pós-guerra, objetivou a consolidação e a efetivação dos princípios econômicos liberais vigentes.2 No plano teórico, a racionalidade econômica do comércio internacional está, desde então, centrada nos fundamentos da teoria das “vantagens comparativas”. Segundo tal teoria, um país tem interesse em especializar-se na produção de mercadoria para a qual detém a vantagem comparativa mais elevada ou a menor desvantagem comparativa. Considerando as disparidades entre os seus recursos naturais e humanos, cada país desfruta de uma vantagem comparativa sobre os demais em determinado produto. Quando tais diferenças são exploradas em benefício mútuo, ocorre uma divisão internacional do trabalho, o que possibilita a cada país que volte a sua produção aos itens nos quais apresenta melhor desempenho relativo para trocá-los por produtos nos quais outros países são especializados. Em termos de políticas comerciais, a teoria do comércio internacional ensina que um bem-estar global que beneficie a todas as nações só poderá ser alcançado quando erigido sobre as vantagens comparativas “reais” dos países, e não sobre vantagens comparativas “artificiais”, alcançadas através de incentivos resultantes de barreiras comerciais (como tarifas e quotas) ou estimulantes (como subsídios domésticos e subsídios para exportação). No

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Professor de Relações Internacionais, Organizações Internacionais e Direito Comunitário da FADISMA, em Santa Maria, RS. Mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM com concentração em Direito da Integração Econômica. E-mail: [email protected]. 2 Jacques Adda. As origens da globalização da economia. Barueri: Manole, 2004. p. 46.

2 mesmo sentido da teoria do laissez faire, a teoria das vantagens comparativas parte do pressuposto que quanto menor a intervenção governamental nos fluxos do comércio internacional, melhor.3 A Conferência de Bretton Woods foi o marco da consolidação destes paradigmas. Em 1944, os aliados da Segunda Guerra Mundial reuniram-se com o intuito de reconstruir a nova ordem mundial sobre bases econômicas fortes em termos monetários, com a criação do Fundo Monetário Internacional (FMI), no plano financeiro, com o Banco Mundial (BIRD), e no âmbito comercial, com a criação da Organização Internacional do Comércio (OIC). Ao final da Conferência, a tentativa de constituir a OIC fracassou, restando aos 23 Estados a possibilidade de negociar e ao final aprovar, em 1947, um Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, o GATT-47. Desde sua institucionalização através do GATT-47, o postulado do livre comércio internacional difundiu-se muito mais como ideal do que como princípio efetivamente implementado pelos Estados, dado ao alto grau de intervenção das políticas governamentais em determinados setores da economia, como no caso da agricultura. Por tanto, a inclusão da agricultura no Direito Internacional do Comércio foi condicionada pela maioria dos Estados à necessidade de dar um tratamento jurídico diferenciado ao comércio agrícola internacional. Deve se ressaltar que, no momento da elaboração do Acordo Geral, a agricultura estava sujeita aos mesmos compromissos gerais dos demais produtos regulados pelo GATT47. A única exceção estava prevista no artigo XI, que regulava as proibições gerais à imposição de restrições à importação. Mais especificamente, os artigos XI.2(a) e (c) permitiram expressamente a adoção de restrições quantitativas ao comércio de produtos agrícolas, tanto em forma de quotas de produção como de importação. Tais restrições poderiam ser aplicadas apenas em casos específicos e por um tempo determinado. 4 No entanto, a disciplina do artigo XI foi relativizada por um fator principal: o waiver concedido aos Estados Unidos (EUA).5 Além do artigo XI, outro dispositivo do GATT-47 fundamental para compreender a relativização do Direito Internacional do Comércio direcionado à agricultura foi o artigo 3

Para maiores elucidações sobre as teorias de comércio internacional, vide Paul R. Krugman & Maurice Obstfeld. Economia Internacional: teoria e política. 5ª ed. São Paulo: Pearson Education, 2001; Michel Rainelli. Comércio Internacional. Barueri: Manole, 2004. 4 Fabian Delcros. The Legal Status of Agriculture in the World Trade Organization: State of Play at the Start of Negotiations. In Jornal of World Trade. Ed. 36. Haia: Kluwer Law International, 2002. p. 219-253. 5 Em 1955, os EUA conseguiram, por meio de um pedido de dispensas dirigido ao Painel, um waiver que lhe permitiu ignorar a disciplina do artigo XI e manter restrições à importação para uma série de produtos agrícolas que outorgavam aos EUA o direito de derrogações específicas dos compromissos da já frágil disciplina do comércio agrícola. Ibid. p. 222.

3 XVI.4, que permitiu a utilização de subsídios à exportação quando destinados à agricultura. De acordo com tal dispositivo, os Estados haviam se comprometido a cessar a concessão de subsídios à exportação para todo e qualquer produto que não fosse um produto primário, o que isentou do compromisso o comércio da agricultura, a pesca e dos minerais.6 Este tratamento especial à agricultura tem raízes históricas. No século XVIII, já existia uma preocupação por parte dos teóricos liberais em relação à real capacidade de atuação das forças do livre mercado no comércio internacional da agricultura. Adam Smith afirmava que: A lei da Inglaterra favorece a agricultura não apenas indiretamente através da proteção do comércio, mas através de diversos incentivos diretos. Exceto em tempos de escassez, a exportação de milho não é apenas livre, esta é encorajada por subvenções. Em tempos de suficiência plena, a importação de milho estrangeiro é carregada com obrigações alfandegárias que equivalem à proibição. A importação de gado vivo, exceto da Irlanda, é proibida em qualquer tempo. Aqueles que cultivam a terra, portanto, têm o monopólio contra seus compatriotas sobre dois dos maiores e mais importantes artigos que a terra produz, o pão e a carne do açougueiro.(sem grifo no original).7

Há uma série de razões pelas quais os Estados decidiram atribuir um tratamento jurídico diferenciado à agricultura. A este conjunto de fundamentos a cerca da relativização do

livre

comércio

internacional

da

agricultura

convencionou-se

denominar

de

“multifuncionalidade da agricultura”. Em primeiro lugar, muitos países a consideram estratégica por natureza, diante da importância dada à auto-suficiência alimentar decorrente da Segunda Guerra. Nesse sentido, ao incentivar a agricultura, um país poderia garantir seus estoques alimentares sem depender de países terceiros. Em segundo lugar, há uma série de fatores econômicos que justificam o status diferenciado da agricultura. Uma das principais características do comércio internacional da agricultura é a alta variação dos preços, devido ao constante aumento na demanda alimentar decorrente do crescimento da população mundial. No entanto, a oferta de produtos agrícolas nem sempre acompanha o aumento da demanda, tendo em vista a alta flutuação no volume de colheitas, por questões naturais e ambientais. Logo, os Estados seguidamente intervém na produção e no comércio agrícola, com o objetivo de assegurar preços razoáveis aos consumidores e de proteger os produtores contra a flutuação dos preços internacionais. Além disso, em muitos países, os interesses em torno da agricultura se revestem de um caráter político que lhes confere uma influência decisiva nos rumos da vida política de seus governos. Quando o sistema eleitoral dos Estados privilegia critérios geográficos ao invés de 6 7

Ibid. p. 223. Adam Smith. A Riqueza das Nações. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 443

4 critérios demográficos, geralmente os interesses das áreas rurais acabam sobre-representados, como acontece em países como os EUA, Alemanha e França. A título de exemplo, o eleitorado rural da França corresponde a apenas 5% da população empregada do seu país. No entanto, é um dos setores eleitorais mais influentes politicamente da Europa.8 Há também fortes fatores culturais, sociais e históricos que levam os países à perpetuarem sua agricultura, através da manutenção da vida rural familiar tradicional, da proteção ao meio ambiente, do bem-estar animal e da segurança alimentar. A maior defensora dessa multifuncionalidade da agricultura é a Comunidade Européia (CE) que, desde seu advento, implementa um modelo de agricultura diferenciado por meio da Política Agrícola Comum (PAC), que constitui o objeto central de estudo do presente trabalho. Quando os seis Estados membros fundadores da então Comunidade Econômica Européia (CEE) - Bélgica, França, Holanda, Itália, Luxemburgo e Alemanha - assinaram o Tratado de Roma em 1957, a agricultura foi erigida como primeira prioridade para a construção de um mercado comum. Na época, a Europa ressurgia das cinzas da guerra e sentia a importância estratégica da produção agro-alimentar e da ocupação do seu território pois, em números, a agricultura representava mais de 25% do seu emprego de mão de obra total e quase 10% do Produto Interno Bruto.9 Ao transferir a agricultura ao nível supranacional com a criação da PAC, os Estados tiveram o objetivo de, por um lado, criar políticas de sustentação de renda, principalmente através de preços de garantia para seus agricultores e, por outro, estabelecer um sistema relativamente sofisticado de proteção comercial.10 Nestes termos, a PAC foi constituída com base em três princípios fundamentais: a unidade de mercado, a preferência comunitária e a solidariedade financeira. A aurora da PAC foi extremamente bem sucedida. Na época, falava-se da agricultura como “petróleo verde”. A título de exemplo, só no primeiro ano de funcionamento da política comunitária, os rendimentos dos agricultores na França aumentaram 40% em termos reais.11 No entanto, expirada a lua de mel da PAC, sucederam-se diversos desequilíbrios e crises estruturais, como os volumosos excedentes de produção em determinados setores agrícolas e o aumento exacerbado dos custos orçamentários da PAC para o erário comunitário. 8

Fabian Delcros, op. cit. p. 220. Arlindo Cunha. A Política Agrícola Comum na Era da Globalização. Coimbra: Livraria Almedina, 2004. p. 13. 10 Josep Maria Jordan Galduf (Coord.). Economía de la Unión Europea. 2 ed. Madrid: Civitas, 1997. p. 30. 11 Arlindo Cunha. op. cit. p. 16. 9

5 Além disso, a PAC viu-se obrigada a adaptar-se às cinco etapas de alargamento pela qual passou a Comunidade. Em 1973, houve a adesão de Reino Unido, Irlanda e Dinamarca. Em 1981, a Grécia foi admitida. Já Espanha e Portugal só se tornaram membros em 1986. Com a reunificação da Alemanha, em 1990, e com o ingresso, em 1995, de Áustria, Finlândia e Suécia, formou-se a chamada “Europa dos 15”. Por último, em 2004, com o alargamento abarcando a Europa Central e Oriental, uniram-se ao bloco Chipre, República Checa, Estônia, Hungria, Letônia, Lituânia, Malta, Polônia, Eslováquia e Eslovênia. Neste ínterim, em 1986, foi lançada junto ao GATT a Rodada Uruguai, iniciada em Punta del Leste, cujas negociações envolveram 123 países. Nas negociações agrícolas, com raras ressalvas à atuação do Grupo de Cairns,12 as discussões mais relevantes mantiveram-se invariavelmente no plano bilateral, entre a CE e os EUA. Esse protagonismo dos dois maiores atores do comércio internacional da agricultura refletiu-se tanto na evolução da Rodada Uruguai, levando ao rompimento das negociações agrícolas em duas oportunidades - 1988 e 1990 - como na própria natureza das negociações, nas quais qualquer acordo multilateral que visasse à liberalização do comércio agrícola deveria promover alterações nas políticas agrícolas tanto dos EUA como da CE. Em 1991, a CE decidiu reformar radicalmente a PAC, por força de diversos desequilíbrios econômicos estruturais, como alto custo orçamentário, diminuição da renda dos agricultores, queda de consumo e o conseqüente excesso de produção. Por conseguinte, a CE modificou o mecanismo de intervenção no mercado agrícola, renunciando às políticas de controle de preços e instituindo uma nova política de apoio direto complementar à renda dos agricultores. Além de minimizar diversos impactos negativos internos, essa reforma teve, ao mesmo tempo, o objetivo de reduzir as pressões externas na PAC sofridas pela comunidade internacional que atuava nas negociações multilaterais. Isto se deve ao fato que, ao reduzir o controle sobre os preços internos e aproximá-los dos preços mundiais, a CE automaticamente diminuiria o volume de subsídios destinados à exportação, o que conseqüentemente, reduziria a interferência comunitária no comércio internacional da agricultura. A reforma de 1992 da PAC foi fundamental para o prosseguimento da Rodada Uruguai sob a ótica dos interesses da CE. Ao reduzir em parte sua interferência nas forças do mercado agrícola, a Comunidade flexibilizou sua posição junto às negociações multilaterais 12

O Grupo de Cairns tem esse nome devido a uma reunião realizada pelos países agro-exportadores na cidade de Cairns, na Austrália, em 1986, com o intuito de delinear uma estratégia de negociação para a Rodada Uruguai. Fazem parte do grupo a África do Sul, Austrália, Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Fiji, Filipinas, Indonésia, Malásia, Nova Zelândia, Paraguai, Tailândia e Uruguai.

6 do GATT e aumentou o seu poder de barganha frente aos EUA e aos demais signatários do GATT-47, que na época estavam negociando um importante documento da Rodada Uruguai denominado “Proposta Dunkel”. Arthur Dunkel, o então Diretor Geral do GATT, havia proposto a adoção de um documento que servisse de base para a futura elaboração de um acordo sobre agricultura. Amplamente aceita pelos EUA e pelo Grupo de Cairns, a proposta foi recusada pela CE, inconformada com a possibilidade de restringir sua nova política de apoio direto à renda por regras e compromissos multilaterais. Em 1992, negociadores dos EUA e da CE reuniram-se na Blair House, em Washington, para pôr termo ao impasse nas negociações multilaterais e alcançar o consenso em relação ao projeto de acordo sobre agricultura da Proposta Dunkel. Além disso, a reunião visava dar solução de continuidade a uma marcante disputa comercial entre ambos, relativa a sementes oleaginosas. Os resultados desta reunião, conhecidos como Acordo de Blair House, tiveram uma influencia decisiva na Rodada Uruguai onde, após oito anos de intensas negociações, a agricultura foi pela primeira vez integrada às regras e disciplinas do comércio internacional através do Acordo sobre Agricultura da Rodada Uruguai (AARU). O AARU, que entrou em vigor em 1º de janeiro de 1995, juntamente com todo o conjunto de acordos da recém criada Organização Mundial do Comércio (OMC),13é dividido em três pilares: acesso a mercados, apoio doméstico e subsídios à exportação. Para cada pilar foram estabelecidos regras e compromissos específicos de redução,14 a implementar a partir de 1995, durante prazos determinados, denominados “período de implementação”. Ocorre que, transcorrido os períodos de implementação das regras e dos compromissos de redução do AARU, causa estranheza o fato de que a CE persista na prática de diversas políticas comerciais como, por exemplo, ao aplicar tarifas de três dígitos para os produtos que considera “sensíveis” ao mercado comunitário, ou quando destina recursos financeiros anuais superiores à €60 bilhões em apoio doméstico, ou concede diversas formas de subsídios a exportações a uma série de produtos que, sem tais subsídios, dificilmente seriam competitivos 13

Os resultados da Rodada Uruguai resultaram no estabelecimento de quatro anexos. O Anexo 1 é formado por 13 Acordos Multilaterais de Comércio de Bens – GATT-94, pelo Acordo Geral sobre Comércio de Serviços – GATS e pelo Acordo sobre Aspectos de Propriedade Intelectual – TRIPS. Já o anexo 2 trata das Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias. O mecanismo de exame de políticas comerciais está previsto no Anexo 3. Por último, alguns acordos de Comércio Plurilaterais encontram-se no Anexo 4. 14 O direito internacional do comércio agrícola é composto de regras e compromissos. As regras correspondem aos dispositivos acordados pelos Estados nas negociações da Rodada Uruguai, previstas no GATT-94 e no AARU. Já os compromissos se referem às disposições com as quais cada país se comprometeu individualmente e estão previstas nos Cronogramas de Concessões.

7 no mercado internacional. Por isso, a CE é freqüentemente acusada por ser protecionista e conduzir medidas distorsivas ao comércio internacional da agricultura. Por outro lado, contrariando o senso comum, a CE é, de fato, o bloco comercial que oportuniza maior acesso ao seu mercado. Atualmente, a CE é a maior importadora mundial de produtos agrícolas e a segunda maior exportadora, representando, em 2002, 40% do comércio internacional de produtos agrícolas. Além de ser o maior importador agrícola, o bloco absorvia, em 2001, cerca de 85% das exportações agrícolas africanas e aproximadamente 45% das oriundas dos países da América Latina.15 A plena aplicação dos princípios do livre-comércio e da divisão internacional do trabalho preocupa a CE quanto ao futuro de sua agricultura, pois, num contexto de livre comércio, ocorre uma inevitável tendência para a produção se concentrar nas zonas de maior aptidão agrícola que disponham de vantagens comparativas de comércio. Por conseqüência, a industrialização da agricultura na base da filosofia americana do get bigger or get out (cresça ou desapareça) coloca a Europa numa desvantagem clara. Nesse sentido, argumenta-se que: É evidente que a Europa não dispõe nem dos infindáveis espaços de terra do Novo Continente nem da mão de obra barata que possuem os países em desenvolvimento. Pouco restaria da agricultura do Velho Continente, razão pela qual a União Européia nunca poderá aceitar a lógica da mundialização levada a seu extremo, ou seja uma liberalização total dos mercados agrícolas.16

Para além das relevantes ponderações sobre quais valores devem primar no comércio internacional da agricultura – livre comércio ou protecionismo – e sobre a natureza que se diferencia das demais mercadorias reguladas pelo GATT, a presente pesquisa visa a analisar, sob a ótica da legalidade, o processo de implementação do AARU por parte da CE e a conseqüente legalização da PAC frente às regras e compromissos consensuados pelos Estados ao final da Rodada Uruguai. Nesse sentido, busca-se responder às seguintes indagações: 1) A PAC está conforme ao direito internacional do comércio agrícola? 2) Em caso de resposta afirmativa, como a resistência da CE nas negociações da Rodada Uruguai influenciou na criação de um sistema multilateral de comércio capaz de aceitar a PAC nos seus atuais moldes?

15

Arlindo Cunha. op.cit. p. 189. Ibid. p. 188.

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8 3) Em caso de resposta negativa, em que situações o Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) da OMC manifestou-se sobre a legalidade da PAC frente ao AARU e às regras gerais do GATT-94? Para tanto, erigiu-se o tratamento destas questões em três capítulos, que correspondem aos três pilares do AARU. Inicialmente, buscou-se uma abordagem pontual das negociações das regras e compromissos negociados em cada um dos temas, dando especial enfoque para os interesses da CE nas negociações. Superado o histórico introdutório da Rodada Uruguai em cada pilar, passa-se à análise jurídica propriamente dita da PAC. Para compreender o Direito Internacional do Comércio em sua essência, o OSC da OMC desempenha papel fundamental no estabelecimento de precedentes e na conseqüente construção de uma jurisprudência internacional do comércio. Nas ocasiões em que a jurisdição internacional manifestou-se em relação à CE, em questões relacionadas direta ou indiretamente ao AARU, a ênfase correspondeu às valiosas lições dos Relatórios dos Painéis e do Órgão de Apelação (OAp). Nestes casos, o método de estudo de caso torna-se apropriado por permitir uma abordagem indutiva de situações concretas onde o OSC analisa a legalidade de políticas comerciais de Estados-membros que são levados por demais Membros à jurisdição da OMC. No âmbito deste trabalho, não será feita menção às negociações da Rodada do Milênio nem à Rodada de Doha. Optou-se por analisar exclusivamente o Direito Internacional do Comércio positivo e vigente aplicável à aferição da legalidade da PAC. No entanto, a análise dos resultados das negociações agrícolas da Rodada de Doha na continuidade da construção do Direito Internacional do Comércio é um estudo que mereceria atenção específica. Por último, deve se ressaltar que todas as citações de documentos e bibliografia em língua estrangeira exigiram traduções livres do autor, tendo em conta a parca, quiçá inexistente, bibliografia sobre o tema no Brasil. Desse modo, a presente pesquisa almeja contribuir aos estudos que visam à compreensão das relações econômicas internacionais, enfocando especificamente o tratamento jurídico dado à agricultura pelo Direito Internacional do Comércio.

2. PRIMEIRO PILAR: ACESSO A MERCADOS

O tema de acesso a mercados, embora menos controverso que os temas relacionados a apoio doméstico e subsídios às exportações, foi o centro das negociações da Rodada Uruguai.

9 As regras e os compromissos alcançados ao final das negociações, analisados em conjunto com o Cronograma de Concessões de cada membro e com o Acordo de Modalidades da Rodada Uruguai, constituem o primeiro pilar do Direito Internacional do Comércio ao qual está sujeita a CE no âmbito da PAC. Historicamente, as barreiras não-tarifárias destinadas a impedir o acesso de produtos de Estados estrangeiros aos mercados nacionais são uma constante no comércio agrícola internacional. O maior desafio da Rodada Uruguai foi encontrar mecanismos capazes de regular, reduzir e, se possível, eliminar essas medidas. Idealizou-se o princípio da tarifação, pelo qual todas as barreiras não-tarifárias à importação deveriam ser convertidas em tarifas, de valores e quantidades equivalentes. Além disso, os Estados comprometeram-se com a redução progressiva das tarifas e dos equivalentes tarifários ao longo do período de seis anos de implementação do AARU. Por isso, o princípio da tarifação foi saudado como uma das maiores conquistas da Rodada Uruguai. No entanto, no caso da CE, a tarifação suscitou diversas questões relacionadas à efetividade, por força de diversas manobras políticas de implementação do AARU, como altos picos tarifários, alta dispersão tarifária, discriminação por quotas e manipulação dos mecanismos de salvaguarda. Nesse sentido, este capítulo visa demonstrar, num primeiro momento, a forma pela qual se deu o processo de implementação das regras e dos compromissos sobre acesso à mercados por parte da CE para, em seguida, detalhar duas características principais desta implementação: a dispersão tarifária e a tarifação suja (2.1). Num segundo momento, tratarse-á de um mecanismo de quotas tarifárias criado através do AARU com o intuito de aprimorar as condições de acesso a mercados agrícolas. No entanto, a adoção de tal mecanismo por parte da CE foi questionada junto ao OSC no caso CE – Bananas pelo tratamento tarifário dado aos produtos intra-quota (2.2). Por último, serão analisadas as medidas de salvaguarda especial, com base no caso CE – Frangos, situação na qual a CE foi questionada por manipular ilegalmente o preço-gatilho, um dos mecanismos de medição e aplicação das salvaguardas especiais (2.3).

2.1 A implementação das regras e dos compromissos sobre acesso a mercados do AARU pela Comunidade Européia

O princípio da tarifação é fruto da interpretação do artigo 4.2 e se refere à obrigação imposta aos Estados de converter toda e qualquer barreira não-tarifária à importação em

10 tarifas equivalentes. Essas tarifas equivalentes deveriam ser estabelecidas de maneira a fazer com que se mantivesse o antigo nível de proteção alcançado pelas barreiras não-tarifárias, mas através de “direitos alfandegários propriamente ditos”.17 Existem, no entanto, três exceções ao princípio da tarifação. A primeira está prevista na nota ao artigo 4.2, que exime de tarifação as medidas não-tarifárias mantidas com base em disposições de balança de pagamentos ou outras disposições gerais que não sejam especificamente agrícolas, tanto do GATT como dos demais acordos multilaterais previstos no Anexo 1 do Acordo da OMC. A segunda refere-se à aplicação de medidas de salvaguarda especial, prevista no artigo 5º do AARU; e a terceira concerne os casos de tratamento especial estabelecidos no Anexo 5 do AARU. No decorrer das negociações da Rodada Uruguai, houve uma polarização em relação ao princípio da tarifação, proposto pelos EUA e apoiado pelo Grupo de Cairns. Do outro lado, estava a CE, que rejeitava tal proposta, argumentando que a tarifação só seria um importante instrumento para aprimorar o acesso a mercados caso fosse sujeito a uma série de condições pois, na época, a PAC da CE baseava-se numa espécie de medida não-tarifária denominada de “tributação variável à importação”.18 O processo de implementação de equivalentes tarifários teve como objetivo estabelecer um teto que servisse como referencial para as negociações dos compromissos de redução tarifária. No entanto, os Estados, em especial a CE, esforçaram-se para escolher um período que lhes fosse mais conveniente, quando verificada a maior acentuação da diferença entre o preço interno (o maior possível) e o preço mundial (o menor possível) de seus produtos. Ao final das negociações, foi escolhido o período de 1986 a 1988, o período onde os preços mundiais de produtos agrícolas foram os mais baixos das últimas décadas.

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Para melhor compreender a definição de direitos alfandegários propriamente ditos, o AARU elenca, por meio de nota ao artigo 4.2, uma lista não-exaustiva dos tipos de medidas que devem ser convertidas e sujeitas aos compromissos de acesso a mercados previstos no próprio dispositivo, da seguinte forma: “Nestas medidas estão compreendidas as restrições quantitativas de importações, os tributos variáveis à importação, os preços mínimos de importação, os regimes de licenças de importação discricionários, as medidas não tarifárias mantidas por meio de empresas comerciais do Estado, as limitações voluntárias de exportações e as medidas similares aplicadas na fronteira que não sejam direitos aduaneiros propriamente ditos, independentemente de que as medidas se mantenham ou não ao amparo de exceções de cumprimento das disposições do GATT de 1947 outorgadas a países específicos; não estão compreendidas, no entanto, as medidas mantidas em virtude das disposições em matéria de balança de pagamentos ou ao amparo de outras disposições gerais não referidas especificamente à agricultura do GATT de 1994 ou dos outros Acordos Comerciais Multilaterais incluídos no Anexo 1A do Acordo sobre a OMC”. 18 Essa medida não é, em sentido estrito, uma restrição não-tarifária pois atua por meio de tributos de importação. No entanto, o valor do tributo varia de acordo com o preço mundial, o que a torna uma medida discriminatória em relação a produtos estrangeiros. Nesse sistema de tributação, o valor do tributo aplicado na importação é inversamente proporcional ao preço mundial de mercado – se diminui o preço mundial, aumenta o tributo e vice-versa. Por seu caráter discriminatório, essa medida foi, ao final da Rodada Uruguai, elencada entre as medidas do artigo 4.2 a serem transformadas em tarifas.

11 A escolha desse período-base, além de influenciar na determinação do preço de referência, repercute em toda a estrutura das regras do pilar de acesso a mercados do AARU : a) os níveis tarifários máximos, estabelecidos com base nos equivalentes tarifários calculados para esse período; b) o volume de compromissos para acesso mínimo e corrente, estabelecido proporcionalmente ao volume das importações do período-base; c) a aplicação das disposições de tratamento especial, que depende da proporção de importações do períodobase; d) o “preço-gatilho” das medidas de salvaguarda especial, determinado com base no preço corrente comparado ao preço do período-base. Para cada linha tarifária foi determinada uma redução mínima de 15% enquanto a redução geral mínima deve ser de 36%. Para os países em desenvolvimento, estes compromissos são distintos: 10% para cada linha tarifária e 25% de redução geral mínima. Dos países de menor desenvolvimento relativo só foi exigida a submissão ao processo de tarifação, dispensada a redução de suas tarifas ou equivalentes tarifários. A implementação das regras de tarifação e dos compromissos de redução tarifária pela CE apresenta duas características de fundamental relevância para a compreensão da sua “fortaleza” de barreiras tarifárias que permitiu que a Comunidade tenha não somente se mantida protegida como, em alguns casos, tenha aumentado os seus níveis de proteção aduaneira. Com base nas regras do AARU, a CE desenvolveu dois mecanismos – a dispersão tarifária e a tarifação suja - que lhe garantiram manter dentro dos parâmetros da legalidade a proteção do seu mercado contra produtos de países agro-exportadores que objetivassem ingressar no mercado comunitário. A alta “dispersão” tarifária é oriunda dos compromissos de redução alfandegária que estabeleceram uma redução mínima de 15% no percentual das linhas tarifárias acompanhadas de uma redução geral mínima de 36% no percentual médio. No entanto, essa redução geral mínima média das linhas tarifarias, por levar em conta indistintamente cada produto, abriu a possibilidade de dispersar a redução tarifária de maneira desigual entre cada linha de produto, permitindo a manutenção de tarifas mais altas para os chamados produtos “sensíveis”. 19 Observa-se que os compromissos de redução tarifária tiveram um efeito inverso ao esperado, possibilitando um alto grau de dispersão tarifária, o que tem levado à conclusão de 19

Um exemplo pode aclarar essa situação. Um determinado país submete quatro produtos estrangeiros a tarifas, dos quais três são considerados “sensíveis”, com um percentual de 100%, e outro produto é reputado “nãosensível”, tarifado em apenas 4% sobre o valor do produto. Reduzindo os percentuais das três primeiras tarifas para 85% (redução de 15% por tarifa) e eliminando a tarifa de 4% do quarto (redução de 100% por tarifa), seria alcançada a média de redução tarifária geral de 36,25%. Com isso, embora o país mantenha um alto nível de proteção (tarifas de 85%) para os produtos que considera “sensíveis”, esse país está perfeitamente de acordo com as disposições do AARU, quais sejam, a exigência da redução percentual da tarifa de 15% por produto e a média geral de 36%.

12 que o AARU, no que tange ao acesso a mercados, na realidade aumentou, ao invés de reduzir, o nível de distorção no comércio agrícola internacional. Com efeito, o que se comprovou na implementação dos compromissos de redução tarifária do AARU por parte dos países desenvolvidos foi exatamente a grande redução das tarifas mais baixas – chegando a 100% de redução - e pequenas reduções nas maiores tarifas, atingindo artificialmente a redução média exigida na norma. No caso da CE, essa possibilidade de tratar com desigualdade as tarifas dos produtos dentro da mesma linha tarifária lhe permitiu manter, concomitantemente, alguns produtos com tarifas zero e outros com tarifas de 3 dígitos, medida esta paradoxalmente considerada legal frente ao AARU, como se verá mais adiante. Além da alta dispersão tarifária, a CE valeu-se igualmente da denominada “tarifação suja”, medida que tem estreita relação com o período-base definido nas negociações da Rodada Uruguai. Uma vez definido o período-base, os Estados foram encarregados de criar equivalentes tarifários para as barreiras não-tarifárias então existentes, com base nos dados de tal período. No entanto, os Estados interpretaram os dados da época de maneira a impor as tarifas mais altas possíveis, incluindo nos cálculos uma série de medidas não-tarifárias que originalmente não estavam previstas para serem computadas no período-base. À esta postura se convencionou denominar de tarifação suja. Em decorrência de sua adoção, ao final do período de implementação do AARU em 2000, existiam barreiras comerciais muito maiores do que no período anterior à Rodada Uruguai.20 O quadro abaixo demonstra efetivamente os reflexos de ambos os mecanismos - tanto a dispersão tarifária como a tarifação suja – implementados pela CE em determinadas linhas tarifárias de produtos que considerava sensíveis ao mercado internacional. Estima-se que, em decorrência da tarifação suja, o nível tarifário da CE tenha aumentado em 60% em relação ao período anterior à Rodada Uruguai.21 QUADRO 01 (FAO/200022) Valores das tarifas impostas pela CE para produtos agrícolas selecionados (%) Pré-Rodada Uruguai Pós-Rodada Uruguai 20

Um exemplo de como a tarifação suja resultou em equivalentes tarifários é o caso das tarifas suíças para importação de produtos lácteos. Calcula-se que o montante de restrições não-tarifárias do período-base na importação de produtos lácteos era de 321%. No entanto, os dados apresentados pela Suíça na Rodada Uruguai indicavam 795%, por ter incluído no cálculo uma série de medidas que não eram considerados restrições tarifárias propriamente ditas. Essa diferença de 474% acrescentada nos cálculos do equivalente tarifário é a chamada “sujeira”, incluída na tarifação para alcançar picos tarifários que possibilitassem a proteção do mercado interno.Melaku Geboye Desta. ob. cit. p. 75. 21 Walden Bello & Aileen Kwa. Guide to the Agreement on Agriculture: Technicalities and Tricks Explained. Bangcock: Chulalongkorn University, 1998. p. 23. 22 FAO. Multilateral Trade Negotiations on Agriculture – a resource manual. Vol. II. Roma, 2000. p. 58.

13 Produtos de zona tropical Café Cacau Tabaco Óleo vegetal Produtos de zona temperada Açúcar Trigo Laticínios Carne bovina

5 3 20 17

0 0 16 12

297 172 289 96

152 82 178 76

Como se depreende da análise dos dados acima, a CE trata de maneira especial os produtos de zona temperada em relação aos oriundos de zona tropical. Esta distinção de tratamento tarifário tem uma razão principal: a larga vantagem em termos de competitividade dos produtos de zona temperada dos países em desenvolvimento. Por isso, para não ver desaparecer a produção em importantes setores de sua economia agrícola, a CE criou picos tarifários que equivalem a barreiras proibitivas em termos de acesso ao mercado comunitário, como nos casos das tarifas de 152% ao açúcar, 178% aos laticínios e 76% à carne bovina. No entanto, o que salta aos olhos é que tais tarifas estejam em perfeita compatibilidade com as regras e os compromissos sobre acesso a mercados do AARU. Bastou à CE submeter as altíssimas tarifas do período-base de quase 300% à uma redução de 15% por produto, e à redução média geral de 36%, para que tais barreiras tarifárias se mantivessem conforme ao determinado pelo Direito Internacional do Comércio. Por isso, a tarifação é muitas vezes compreendida pela doutrina como vitória e fracasso a um só tempo. Por um lado, o AARU estabeleceu pontos fundamentalmente positivos que, ao lado do processo de tarifação, o transformou, ao menos em teoria, num valioso instrumento multilateral para reduzir a interferência governamental nas políticas comerciais nacionais. Como vitórias, há que se destacar, em primeiro lugar, que o AARU estabelecer que todas as restrições não-tarifárias fossem convertidas em equivalentes tarifários, além de introduzir novas obrigações para reduzir os novos equivalentes tarifários e as tarifas já existentes. Em segundo lugar, além da redução tarifária, os Estados obrigaram-se a aumentar ou criar onde ainda não existissem - as oportunidades de acesso ao mercado interno para produtos estrangeiros. Em terceiro lugar, por conseqüência, a tarifação possibilitou uma maior transparência nas relações comerciais e principalmente, na identificação das medidas adotadas pelos Estados, o que trouxe consigo outros benefícios como maior previsibilidade e menor discriminação na aplicação das medidas restritivas à importação por parte dos Estados.

14 Por outro lado, em termos de fracasso, o processo de tarifação parece não ter alterado, na prática, a efetividade do acesso aos mercados; pelo contrário, legitima e legaliza o protecionismo estatal por meio da imposição de equivalentes tarifários. Além disso, se o objetivo do processo de implementação dos equivalentes tarifários era realmente alcançar um maior grau de liberalização comercial, este foi em grande parte frustrado, tanto pelas manobras de dispersão tarifária como pela tarifação suja, como comprovam os números da CE. 2.2 A política discriminatória de quotas tarifárias e o caso CE – bananas

Além de a Rodada Uruguai ter criado o princípio da tarifação, o Acordo de Modalidades (§6) elenca uma série de compromissos dos Estados de manterem as oportunidades de acesso já existentes (acesso corrente) bem como de criar oportunidades mínimas de acesso onde estas ainda não existam (acesso mínimo), sempre tendo como referência o período-base de 1986-1988. Esses compromissos de acesso corrente e mínimo foram idealizados para atenuar possíveis efeitos negativos que o processo de tarifação poderia trazer para o comércio internacional, o que, como foi demonstrado, de fato ocorreu. Em relação aos compromissos de acesso corrente, foi estabelecido que o volume de importação nunca seja inferior à média anual de importações do período-base. No entanto, para que esse acesso seja considerado acesso “corrente”, o volume de importação de determinado produto deve representar, no mínimo, 5% do volume de consumo interno de tal produto. Se o volume for inferior, devem ser garantidas condições de acesso mínimo a esse produto. Para tanto, os compromissos de acesso mínimo obrigam a criação de espaços no mercado interno para produtos que não alcançaram média de acesso de 5%. Em tais casos, o volume mínimo de acesso no decorrer do primeiro ano do período de implementação (1995) deve ser de 3% e tal média deve atingir 5% até o final do período (2000). Para auxiliar na criação desse volume de mercado, foi criada a política de quotas tarifárias. A introdução de “quotas tarifárias de importação” foi vista como um importante mecanismo de melhoramento das condições de acesso a mercados pois, com base no volume da quota estipulada, os produtos “intra-quota” estariam sujeitos a tarifas menores do que os produtos “extra-quota”, o que facilitaria seu ingresso no mercado estrangeiro. Ocorre que, por força dessa diferença entre a tarifação de produtos intra e extra-quota, os critérios de alocação dos produtos em relação ao contingente tarifário – se essas quotas são estabelecidas com base

15 no princípio da não-discriminação ou se são específicas para cada Estado – assumiram crucial importância para a aplicação das regras de acesso a mercados do AARU. Novamente é necessário recorrer ao Anexo 3 do Acordo de Modalidades, onde estão estabelecidos os critérios para a criação de quotas tarifárias. Ali se determina expressamente que a criação de oportunidades de acesso mínimo deverá ser baseada no critério da nãodiscriminação, mas não se prevê critério algum para os compromissos de acesso corrente.23Dita lacuna explica as razões pelas quais diversos compromissos de acesso previstos no Cronograma de Concessões estabelecem quotas tarifárias específicas por Estado, o que os tornariam incompatíveis com o princípio da não-discriminação, exigido pelo Acordo de Modalidades e pelo artigo XIII do GATT 1994.24 Essa questão foi o cerne de uma das controvérsias mais longas e complexas da recente história do OSC da OMC. O caso Comunidade Européia – Regime de importação, venda e distribuição de bananas25 tem como objeto o regime de quotas tarifárias de importação de bananas estabelecido pelo Regulamento nº 404/93 do Conselho da CE.26 Ao criar a Organização Comum de Mercado (OCM) para bananas, essa norma comunitária introduziu um sistema de quotas tarifárias com três formas de tratamento dependendo da origem das bananas, privilegiando dois acordos comerciais firmados pela CE, um com os países da Ásia, Caribe e Pacífico (ACP) e outro, um Acordo-Quadro sobre Bananas (AQB), firmado com Colômbia, Costa Rica, Venezuela e Nicarágua.27 As quotas de importações de bananas previstas no Regulamento cobriam 2,2 milhões de toneladas do produto por ano, distribuídas em três níveis de tarifação: 4,7% para os ACP, isentos de tarifas; 49,4% para os países do AQB, com uma tarifa de 75 ECU/ton28 e; 46,4%

23

Anexo 3 do Acordo de Modalidades. § 14. Artigo XIII:2 (d) do GATT-94. 25 European Communities – Regime for the Importation, Sale and Distribution of Bananas. Relatório do Painel adotado em 22/05/1997. 26 Regulamento (CEE) nº 404/93 do Conselho, de 13 de Fevereiro de 1993, que estabelece a organização comum de mercado no sector das bananas. Jornal Oficial nº L 047 de 25/02/1993 p. 0001 – 0011. 27 Este Regulamento, juntamente com o Regulamento nº 1442/93, levou também a um importante caso para o Direito Comunitário, o "Caso das Bananas", em que a República Federal da Alemanha combateu a referida norma emanada do Conselho da União Européia. Desde a fundação da Comunidade Européia, a Alemanha gozou do privilégio de poder livremente importar bananas de terceiros Estados, sem observância da tarifa externa comum. Isso mudou em 1993 com o Regulamento do Conselho nº 404/93 que criou uma nova estrutura para o mercado de bananas. Dezoito meses mais tarde, a Alemanha perdeu sua causa em Luxemburgo, onde havia reclamado a nulidade da atuação do Conselho, alegando vícios de forma e de fundo. Vide Jürgen Samtleben. A solução de controvérsias na União Européia e no Mercosul. in . Acesso em 12/02/2005. 28 O European Currency Unit (ECU) foi uma unidade monetária adotada pela CE objetivando a criação da União Econômica e Monetária. A ECU era constituída por um conjunto de moedas compostas por quantidades fixas de moedas dos integrantes e tinha o objetivo de servir com unidade referencial de valor para as instituições comunitárias. Atualmente, a ECU foi substituída pelo EURO. In Josep Jordan Galduf. op cit. 481. 24

16 para os demais exportadores, com uma tarifa de 822 ECU/ton. Por força desse tratamento discriminatório na alocação de quotas, cinco países – Equador, Estados Unidos, Guatemala, Honduras e México - ingressaram com pedido de consultas ao OSC, alegando que o Regulamento 404/93 violava simultaneamente o GATT-94, o AARU, o GATS,29o TRIMS30 e Acordo sobre Procedimentos para o Licenciamento de Importações. Os reclamantes alegaram a violação específica do artigo 4.2 do AARU, por afirmarem que o sistema de licenciamento de importações de bananas para cada quota é, na verdade, uma barreira não-tarifária aplicada de maneira totalmente discricionária e discriminatória pela CE, em conseqüente violação aos artigos I.1 (princípio da não-discriminação) e XIII.2 (alocação de quotas tarifárias) do GATT-94. A CE, em sua defesa, alegou que as quotas e as tarifas aplicadas às bananas, por serem produtos agrícolas, devem ser examinadas à luz do AARU e não do GATT-94, pelo fato de que o tratamento diferenciado está expressamente previsto no seu Cronograma de Concessões. Logo, a CE pondera em favor da consistência jurídica de seus atos em relação às normas do GATT-94, ainda que essa política de quotas diferenciadas fosse contrária ao artigo XIII, porque se trata de compromissos previstos no seu Cronograma resultante das negociações da Rodada Uruguai. Contrapondo-se a este argumento, os reclamantes invocaram o caso Estados Unidos – Restrições à importação de açúcar, no qual o OSC do antigo GATT-47 estabeleceu que “os compromissos dos Cronogramas de Concessões dos países não poderiam justificar violações às regras gerais do GATT”.31 No entanto, de acordo com a CE, os Cronogramas de Concessões da Rodada Uruguai têm uma natureza diferente dos acordos anteriores do GATT47. As quotas tarifárias para as bananas, por estarem previstas no Cronograma de Concessões com base no artigo 21 do AARU, teriam prioridade em relação ao artigo XIII do GATT-94. Ao final, o Painel considerou que a política européia de alocação de quotas tarifárias era incompatível com os requisitos impostos pelo artigo XIII do GATT. Com base no precedente invocado, o Painel determinou que a inclusão de alocações incompatíveis com as regras do GATT e dos demais acordos no Cronograma de Concessões não pode isentar um Estado membro de uma futura demanda contrária a tais medidas. Quanto à questão da prioridade da disposição do AARU em relação ao GATT e aos demais acordos, o Painel emitiu o seguinte parecer:

29

Acordo Geral sobre Comércio de Serviços. Acordo sobre Medidas de Investimentos Relativas ao Comércio 31 United States – Restrictions on Imports of Sugar. Relatório do Painel adotado em 22/06/1989. §§ 5 - 7. 30

17 Resta claro, da interpretação do artigo 21.1, que as disposições do Acordo sobre Agricultura prevalecem sobre o GATT e os demais acordos anexos. No entanto, deve haver uma disposição do Acordo sobre Agricultura que seja relevante para a aplicação desse princípio da prioridade. O artigo 21.1 não quer dizer que os princípios e as regras do GATT não se apliquem ao comércio de produtos agrícolas, ao menos que sejam expressamente incorporados ao Acordo sobre Agricultura. Não existe dispositivo algum no Acordo sobre Agricultura que incorpore compromissos tarifários para o comércio de produtos agrícolas. Enquanto os anexos do AARU são incorporados ao Acordo através do artigo 21.1, os compromissos tarifários não o são. De acordo com o §1º do Protocolo de Marraqueche, os cronogramas da Rodada Uruguai anexos ao mesmo, incluindo os compromissos tarifários agrícolas, são expressamente transformados em cronogramas do GATT.32

O Órgão de Apelação seguiu a linha de argumentação do Painel e determinou o seguinte: Não encontramos nada no artigo 4.1 que sugira que as concessões de acesso a mercado, bem como os compromissos resultantes das negociações agrícolas da Rodada Uruguai, sejam incompatíveis com o previsto pelo artigo XIII do GATT 1994. Não existe nada no artigo 4.1, 4.2 ou em qualquer outro artigo do AARU que trate especificamente da alocação de quotas tarifárias para produtos agrícolas. Se os negociadores tivessem a intenção de permitir aos membros agirem de maneira a contrariar o artigo XIII do GATT, o teriam feito de maneira expressa. Os negociadores do AARU não hesitaram em especificar tais limitações em outros temas do AARU; se tivessem intenção de fazê-lo em relação ao artigo XIII, poderiam, e provavelmente o teriam feito. Além disso, observamos que o AARU não faz menção alguma ao Acordo de Modalidades ou a qualquer “entendimento comum” dos negociadores do AARU de que os compromissos de acesso a mercados para produtos agrícolas não estariam sujeitos ao artigo XIII do GATT 1994. 33

Primeiramente, essas interpretações representam uma aplicação modelar do Direito dos Tratados, em especial, a regra de interpretação dos tratados prevista no artigo 31 da Convenção de Viena. Além disso, no que se refere à aplicação das regras multilaterais de comércio, o OSC da OMC estabeleceu um precedente fundamental para o futuro da interpretação do AARU e das regras gerais do GATT-94. Ao analisar ambas as interpretações do OSC, pelo fato do AARU não fazer referência expressa ao Acordo de Modalidades, conclui-se que o valor de tal documento não pode ser mais do que suplementar, em virtude do artigo 32 da Convenção de Viena, eis que as disposições do AARU não dão margem para a incorporação do mesmo. Com efeito, o caso CE- bananas deixa claro que, independente do que for incluído pelos Estados-membros nos

32

European Communities – Regime for the Importation, Sale and Distribution of Bananas. Relatório do Painel § 112. 33 European Communities – Regime for the Importation, Sale and Distribution of Bananas. Relatório do Órgão de Apelação adotado em 25/09/1997. parágrafo 157.

18 seus Cronogramas de Concessões, as regras e os princípios multilaterais permanecem sempre intactos.34 Assim concluiu o Painel: A essência da obrigação de não-discriminação é que produtos iguais devem ser tratados igualmente, independentes de sua origem. Se, por escolher um diferente fundamento legal para impor restrições à importação, ou por impor diferentes tarifas, um Membro pudesse eximir-se do respeito ao princípio da não-discriminação para a importação de produtos iguais de diferentes Membros, o objetivo e o propósito do princípio da não-discriminação seriam derrotados.35

Parece claro que o objetivo da CE através de seus argumentos no caso era obter uma justificativa para impor tarifas diferentes conforme a procedência das bananas. No entanto, as conclusões do OSC da OMC derrubaram tal manobra e recomendaram a adequação do Regulamento 404/93 às normas da OMC, especialmente no que se refere ao princípio da nãodiscriminação. 2.3 A manipulação das medidas de salvaguarda especial e o caso CE – Frangos

De acordo com as regras do sistema multilateral de comércio, aos Estados não é permitido impor quaisquer obrigações adicionais em relação a produtos agrícolas além das previstas no Cronograma de Concessões e permitidas pelo AARU. Esta situação gerou um temor, principalmente entre os países desenvolvidos, de que a conversão de todas as restrições não-tarifárias em medidas tarifárias possibilitaria um ingresso excessivo de produtos de preços inferiores aos preços do mercado interno, o que traria prejuízos significativos para a produção e concorrência doméstica. Visando a prevenir estes riscos, formulou-se o artigo 5º, um dos mais extensos artigos do AARU, que disciplina as “medidas de salvaguarda especial” para o comércio agrícola, permitindo aos Membros que se eximam temporariamente das obrigações do artigo II do GATT.36 O dispositivo do AARU se assemelha sobremaneira ao artigo XIX do GATT, que regula as medidas de salvaguarda, chamadas no GATT de “medidas emergenciais de

34

José Cretella Neto. Direito Processual na Organização Mundial do Comércio – OMC. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 304. 35 European Communities – Regime for the Importation, Sale and Distribution of Bananas. Relatório do Órgão de Apelação adotado em 25/09/1997. §190. 36 Artigo II do GATT-94 (Regras para implementação do Cronograma de Concessões dos Estados-membros)

19 importação de produtos determinados”. No entanto, o artigo 5º é bem mais flexível do que o dispositivo do GATT. Enquanto o artigo XIX, juntamente com o Acordo sobre Salvaguardas, só pode ser invocado em caso de grave dano ou ameaça de dano causado pelo aumento de importações e em casos de interesse público, o artigo 5º exige apenas a observância dos níveis de quantidade e de preço estabelecidos, independente do dano causado e do interesse público em questão. Nesse sentido, o OSC definiu os requisitos da medida de salvaguarda especial do AARU nos seguintes termos: O mecanismo de salvaguarda do artigo 5º do AARU não está condicionado à prova do dano, diferentemente dos demais mecanismos de salvaguarda; ele pode ser acionado automaticamente quando houver um aumento no volume de importações (artigo 5.1.a) ou uma determinada queda no preço do produto (artigo 5.1.b).37

Com efeito, o artigo 5º prevê duas situações em que um Estado pode utilizar-se de medidas de salvaguarda especial: a) um aumento no volume de importações e; b) a queda do preço do produto importado. Além disso, para que um Estado possa valer-se de medidas de salvaguarda em relação a um produto, é necessário que este tenha sido considerado “sensível” pelo Estado no seu Cronograma de Concessões. De acordo com a OMC, 38 Estados fizeram tais considerações, abarcando mais de seis mil produtos ao total. Só a CE considerou “sensíveis” 539 produtos agrícolas, portanto, aptos a socorrerem-se de medidas de salvaguarda especial.38No entanto, não é qualquer aumento no volume ou queda no preço que capacita o Estado a utilizar-se de medidas de salvaguarda especial. Nos dois casos, há níveis estabelecidos no dispositivo em tela, que se convencionou chamar de níveis de volume-gatilho e preço-gatilho. O volume-gatilho é determinado de acordo com as oportunidades de acesso a mercados em termos de importação, com base na porcentagem do consumo doméstico de tal produto importado nos três anos anteriores. Quanto maior o volume do consumo doméstico de importados nesse período de três anos, menor é o volume-gatilho. São três os volumes-gatilho previstos no Artigo 5.4 do AARU: a) quando o volume de importação constituir menos de 10% do consumo doméstico, o volume-gatilho é 125%; b) quando o volume variar entre 10 e

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European Communities – Measures affecting the Importation of Certain Poultry Products. Relatório do Órgão de Apelação. Adotado em 23/07/1998. § 167. 38 Special Safeguard Mesaures: Background Paper by the Secretariat. Documento do Comitê de Agricultura. Adotado em 06/06/2000. §3º.

20 30%, o volume-gatilho é 110%; e c) quando o volume for superior a 30%, o volume-gatilho é 105%.39 Deve se ressaltar que essa tributação adicional permitida pelo artigo 5.4 sofre duas limitações: o aumento não pode exceder um terço do volume normal de tributação para o ano e só pode perdurar, no máximo, até o final do ano em que for imposta a tributação adicional. 40 Um exemplo pode aclarar esse mecanismo. Tomando como referência o primeiro volume, para que um país invoque as medidas de salvaguarda especial e possa impor tributos adicionais sobre os produtos que representem ao menos 10% do consumo doméstico, o volume de importação deve alcançar, no mínimo, 125% do volume médio importado nos últimos três anos. Por exemplo, se um país consumiu uma média de 100 toneladas de trigo por ano nos últimos três anos, das quais 10 toneladas eram importadas, a medida de salvaguarda especial só poderá ser invocada por esse país caso o volume de trigo importado atingir 12.5 toneladas. O preço gatilho, por outro lado, é determinado com base em cada carregamento de importação. Se um determinado carregamento chegar ao mercado importador com um preço inferior ao preço-gatilho, que é uma média do preço do produto no período-base de 19861988, a medida de salvaguarda poderá ser invocada. O artigo 5.1.b estabelece que o preço-gatilho deve ser determinado com base no preço de importação CIF41do carregamento em questão. Além disso, o preço-gatilho deve ser publicamente especificado por produto para permitir aos demais Estados conhecer a tributação adicional que poderá ser imposta. Essa definição do preço-gatilho foi objeto de uma controvérsia suscitada pelo Brasil no âmbito do OSC da OMC para questionar as medidas de salvaguarda especiais impostam pela CE em relação à importação de produtos derivados de frango. O caso Comunidade Européia – Medidas que afetam a importação de determinados produtos avícolas42 tem sua origem ligada à outra controvérsia elevada pelo Brasil ao OSC do antigo GATT-47. Naquela ocasião, o caso Comunidade Européia – Ressarcimentos e subsídios pagos aos elaboradores e produtores de sementes oleaginosas e proteínas conexas 39

Artigo 5.4 do AARU. Artigo 5.5 do AARU. 41 Preço CIF(Cost, Insurance and Freight) é uma definição largamente utilizada no comércio internacional que, de acordo com a INCOTERMS-2000, significa o seguinte: “Modalidade equivalente ao CFR (Cost and Freight), com a diferença de que as despesas de seguro ficam a cargo do exportador. O exportador deve entregar a mercadoria a bordo do navio, no porto de embarque, com frete e seguro pagos. A responsabilidade do exportador cessa no momento em que o produto cruza a amurada do navio no porto de destino. Esta modalidade só pode ser utilizada para transporte marítimo ou hidroviário interior.” 42 European Communities – Measures affecting the Importation of Certain Poultry Products. 40

21 destinadas à alimentação animal43 foi resolvido através de um acordo bilateral, chamado “Acordo sobre Sementes Oleaginosas”. Tal acordo tinha o intuito de atribuir compensações ao Brasil por prejuízos causados por práticas comerciais consideradas ilegais pelo Painel e previa o estabelecimento de um contingente tarifário global isento de tributos alfandegários de 15.500 toneladas de carne avícola congelada.44 É em relação ao Acordo sobre Sementes Oleaginosas e seus aspectos jurídicos que se desdobra o objeto principal do caso ora analisado. A controvérsia concerne particularmente a dois aspectos: primeiro, a interpretação dos termos do Acordo sobre Sementes Oleaginosas no sentido de reger o contingente tarifário criado pelo Regulamento do Conselho nº 774/9445; e segundo, a definição de qual o instrumento capaz de reger a situação, o Acordo sobre Sementes Oleaginosas ou o Cronograma de Concessões da CE. De acordo com as alegações do Brasil, o Cronograma da CE prevê um contingente tarifário livre de tributos de até 15.500 toneladas oferecidas sob a cláusula da nãodiscriminação, ou seja, tal contingente tarifário beneficiaria a todos os Estados signatários do GATT-94 indistintamente. Com isso, o Brasil argumenta que a aplicação do contingente tarifário, tal como regulado pelo Cronograma da CE, causaria a anulação ou equiparação das vantagens de que desfrutava o Brasil pois, de acordo com o Acordo sobre Sementes Oleaginosas, tal contingente seria exclusivamente para produtos oriundos do Brasil. Além disso, tanto o Acordo como o Cronograma de Concessões reservavam à CE o direito de introduzir impostos adicionais nas importações de carne avícola não abrangidas pela quota, caso as condições das salvaguardas especiais do artigo 5º do AARU estivessem satisfeitas. O Brasil, nesse sentido, solicitou ao Painel que concluísse que a CE não estava cumprindo com as disposições dos artigos 4.2 e 5.1 do AARU, no que tange à aplicação de salvaguardas especiais destinadas ao comércio de carne avícola fora da quota do contingente tarifário comunitário. Surgiu dessa controvérsia uma questão de natureza exegética de extrema relevância para a implementação do artigo 5.1.b: o que é o “preço relevante”? Ou seja, qual preço deve 43

European Economic Community – Payment and Subsidies Paid to Processors and Producers of Oilseeds and Related Animal-Feed Proteins. 44 PEREIRA, Ana Cristina Paulo (Org.). Direito Internacional do Comércio – Mecanismo de Solução de Controvérsias e Casos Concretos na OMC. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003. p. 167. 45 Regulamento (CE) nº 774/94 do Conselho, de 29 de Março de 1994, relativo à abertura e modo de gestão de determinados contingentes pautais comunitários de carne bovina de alta qualidade, carne suína, carne de aves de capoeira, trigo e mistura de trigo com centeio, sêmeas, farelos e outros resíduos. in Jornal Oficial nº L 091 de 08/04/1994 p. 0001-0003.

22 ser levado em consideração para que os Estados possam se socorrer da medida de salvaguarda especial - o preço CIF em si mesmo ou o preço CIF somado à tarifa aduaneira? O OAp ressaltou, no seu relatório de decisão, a importância da definição da questão em tela: O significado prático dessa disputa se torna aparente quando o preço-gatilho se situa entre os outros dois, isto é, quando o preço-gatilho é maior que o preço CIF e menor que o preço CIF somado à tarifa aduaneira. Vejamos um exemplo: preço CIF somado à tarifa aduaneira = 1,200 preço-gatilho = 1,000 preço CIF = 800 Se o preço relevante é definido como preço CIF somado à tarifa aduaneira, a tarifa adicional não poderá ser imposta pois o preço relevante está acima do preço-gatilho. Se, por outro lado, o preço relevante for definido como o preço CIF em si mesmo, isto é, sem a tarifa aduaneira, a tarifa adicional poderá ser imposta pois o preço relevante está abaixo do preço-gatilho. Essa definição determinará quando um país importador poderá impor medidas de salvaguarda especial ou não.46

O Brasil alegou que o preço de importação referido no artigo 5.1.b do AARU deveria ser “preço CIF somado à tarifa aduaneira” e não somente “preço CIF” e que, pelo fato da CE medir unicamente o preço CIF, quando tal preço fosse inferior ao preço-gatilho, estaria habilitada a impor as tarifas adicionais previstas. A CE contra-argumentou que o texto do AARU estabelecia de forma clara que a expressão “com base no preço CIF” do artigo 5.1.b se refere ao preço CIF em si mesmo. Segundo a CE, o preço de importação CIF do artigo 5.1 deveria ser calculado no momento da chegada de um carregamento, e antes, portanto, da imposição de tarifas alfandegárias. Logo, o preço previsto no dispositivo do AARU nada mais seria do que o próprio CIF. Numa situação pouco comum, o OSC da OMC não alcançou uma decisão unânime, pois um dos membros do Painel emitiu uma opinião dissonante, ao definir que “o artigo 5 do AARU requer que o país importador calcule o preço relevante conforme o artigo 5.1.b, com base apenas no preço CIF”. No entanto, a posição majoritária prevalecente do Painel estabeleceu o seguinte: O preço relevante das importações é referido de duas maneiras no artigo 5.1.b: o texto do dispositivo se refere tanto ao ”preço pelo qual os produtos importados podem entrar na união aduaneira que assegura a concessão” com ao “preço CIF”. O significado da frase “preço pelo qual os produtos importados podem entrar na união aduaneira que assegura a concessão” inclui o pagamento das tarifas devidas pois tais tarifas devem estar pagas antes do ingresso, e portanto, fazem parte do “preço”. O termo “preço CIF” é qualificado pela frase “determinado com base no” o que indica que o preço

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European Communities – Measures affecting the Importation of Certain Poultry Products. Relatório do Órgão de Apelação adotado em 23/071998. §143.

23 de ingresso no mercado é algo a ser interpretado usando o preço CIF com um dos parâmetros.47

Com esse fundamento, o Painel concluiu que a CE havia violado as disposições de salvaguarda especial do artigo 5.1.b do AARU tendo em vista que o objetivo do artigo 5.1 foi oferecer uma proteção adicional contra uma diminuição significativa dos preços de importação durante o período de aplicação do AARU. No entanto, essa proteção deveria atuar sobre uma situação produzida depois da tarifação promovida pelo artigo 4.2 do AARU. Por isso, o preço de importação CIF do Acordo deveria incluir os tributos alfandegários pagos. Assim, o Painel entendeu que as salvaguardas especiais invocadas pela CE para o comércio dos produtos avícolas estariam em desacordo com as disposições do artigo 5.1.b. O OAp, por outro lado, reverteu a decisão majoritária do Painel e seguiu o entendimento do voto dissidente, emitindo um posicionamento mais elaborado e fundamentado dessa visão. O OAp enfatizou que os negociadores do AARU optaram por adotar, como parâmetro do AARU, o preço de ingresso na união aduaneira e não o ingresso no mercado doméstico. Conseqüentemente, o preço de importação c.i.f se referia simplesmente ao preço CIF, sem a imposição de tarifas aduaneiras ou impostos internos. Nesse sentido, dispôs o OAp: Essa escolha sugere que eles tinham em mente o momento imediatamente anterior ao ingresso do produto na união aduaneira, e certamente anterior ao ingresso no mercado doméstico do Estado importador. O significado dos termos do artigo 5.1.b fundamentam a opinião de que o ‘preço pelo qual os produtos importados podem entrar na união aduaneira’ do país importador deve ser interpretado para significar somente isso – o preço pelo qual o produto pode entrar na união aduaneira, não o preço pelo qual ingressa no mercado doméstico. E este preço é um preço que não inclui tarifas aduaneiras nem qualquer encargo interno. É mediante o ingresso do produto na união aduaneira, mas antes do ingresso no mercado doméstico, que surge a obrigação de pagar tarifas aduaneiras e encargos internos. 48

Revertida a decisão do Painel, o OAp passou a formular suas conclusões acerca da compatibilidade do Regulamento nº 774/94 com o artigo 5.5 do AARU. O OSC questionou se seria admissível que um membro da OMC oferecesse a possibilidade de escolher outro preço que não o de importação CIF para regular a aplicação das salvaguardas especiais, como fazia a CE com o preço representativo criado pelo Regulamento. Por configurar uma exceção, a aplicação de salvaguardas especiais do AARU somente é permitida dentro dos parâmetros do artigo 5 devendo o preço de referência para imposição de tais salvaguardas ser baseado unicamente no preço de importação CIF do carregamento. 47 48

Ibid. §278. Ibid. §145.

24 Logo, concluiu o OAp que o preço representativo da CE, por não ser calculado sobre o preço de importação c.i.f de um carregamento específico, seria incompatível com o artigo 5.5 do AARU.

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Em suma, pode se afirmar que a conquista mais significativa da Rodada Uruguai, no que se refere ao pilar de acesso à mercados foi, indubitavelmente, o princípio da tarifação, por ter proibido expressamente as barreiras não-tarifárias do comércio internacional da agricultura, revertendo pela primeira vez a condição especial de que gozava a agricultura no antigo GATT-47. No entanto, os impactos imediatos na liberalização comercial foram largamente comprometidos no decorrer da implementação do AARU, pelas manobras de tarifação suja e pela dispersão tarifária. Logo, os avanços foram demasiadamente limitados e em alguns casos, como o da CE, houve inclusive retrocessos no processo de liberalização do comércio internacional da agricultura. Nas duas situações em que a legalidade da PAC foi questionada junto ao OSC da OMC, tanto a utilização discriminatória de quotas tarifárias como a manipulação do preço gatilho foram considerados incompatíveis com os preceitos do AARU e do GATT-94 o que demonstra a relevância de um mecanismo de jurisdição internacional capaz de avaliar a compatibilidade das políticas agrícolas dos seus membros, bem como recomendar alterações e adequações quando estas estiverem em desacordo com o Direito Internacional do Comércio.

3. SEGUNDO PILAR: APOIO DOMÉSTICO A Rodada Uruguai, lançada em 1986 com o objetivo de “aumentar a disciplina no uso de todo subsídio direto ou indireto no comércio internacional da agricultura”, 49 foi levada a enfrentar questões fundamentais, atinentes às políticas de subsídios domésticos praticadas pelos Estados, em especial, pelos EUA e pela CE. Por isso, a disciplina do pilar de apoio doméstico foi aclamada como o mais importante e inovador elemento do AARU. No entanto, por força do Acordo de Blair House, os Estados atualmente mantém liberdade quase ilimitada de prover apoio doméstico por meio das medidas listadas nas caixas

49

Declaração Ministerial da Rodada Uruguai. §4. Adotada em Punta de Leste. 20/09/1986.

25 azul e verde, eis que este apoio foi excluído dos cálculos dos compromissos de redução anual e final de apoio doméstico. Além disso, devido ao período-base escolhido – um pico histórico para a maioria das commodities agrícolas no mundo – a redução de 20% no volume total de apoio doméstico foi facilmente alcançada pelos Estados, antes mesmo do término do período de implementação do AARU. Para compreender os motivos pelos quais a disciplina de apoio doméstico do AARU chegou à sua atual forma, com três diferentes categorias de apoio doméstico (caixas âmbar, azul e verde), bem como as conseqüências em termos de efetividade desta disciplina frente a PAC, faz-se necessário analisar brevemente o histórico das negociações da Rodada Uruguai para observar, em especial, a relevância de três fatores que influenciaram diretamente na disciplina de apoio doméstico: a Proposta Dunkel, o caso Comunidade Econômica Européia – Pagamentos e Subsídios Pagos aos Processadores e Produtores de Sementes Oleaginosas e Proteínas de Alimentação Animal Relacionadas,50 doravante denominado CE – Oleaginosas, e o Acordo de Blair House (3.1). Em seguida, analisar-se-á os reflexos da disciplina da caixa âmbar na política de apoio ao preço de mercado da PAC, que interfere diretamente no volume final dos compromissos de redução de apoio doméstico com o qual se comprometeu a CE (3.2). Além disso, deve se compreender as isenções aos compromissos de redução garantidas pela disciplina das caixas azul e verde (3.3), criadas em grande medida para abrigar os pagamentos diretos dos programas de limitação da produção da CE. 3.1 A influência do caso CE – Oleaginosas nas negociações da disciplina sobre apoio doméstico do AARU

A Proposta Dunkel, apoiada pelos EUA e pelo Grupo de Cairns, em matéria de apoio doméstico, seguiu a mesma metodologia de “sinaleira” do Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias (ASMC), que classifica os subsídios legalmente em três categorias conforme sua natureza: vermelho, amarelo ou verde. Nesse sentido, a Proposta estabelecia duas classificações para as formas de apoio doméstico destinado à agricultura. De um lado, todo apoio considerado economicamente neutro, isto é, aquele que não causasse distorção ao comércio, foi classificado dentro da “caixa verde” e não foi sujeito à limitação. De outro, as demais formas de apoio doméstico que causassem impacto nos mercados foram classificadas de caixa “âmbar” e submetidos às regras e compromissos de redução. 50

European Economic Community – Payments and Subsidies Paid to Processors and Producers of Oilseedsand Related Animal-Feed Proteins. Relatório do Painel adotado em 25/01/1990.

26 No entanto, a CE não estava disposta a considerar um Acordo junto ao GATT que pudesse limitar a sua concessão de subsídios diretos, mecanismo central das recentes reformas que havia instituído na PAC.51 Nesse sentido, a CE contrariou a Proposta Dunkel e bloqueou as negociações da Rodada Uruguai, por não aceitar negociar separadamente apoio doméstico e subsídios à exportação, pois, de acordo com a CE, seriam temas indissociáveis no âmbito da PAC.52 A forte influência da PAC nas negociações de apoio doméstico alcança dois pontos altos no decorrer da Rodada Uruguai: primeiro, a condenação da política européia de subsídios domésticos no caso das oleaginosas; em seguida, o Acordo de Blair House, que encerra a árdua guerra comercial entre os dois lados do atlântico estabelecendo as bases para a disciplina de apoio doméstico para o prosseguimento da Rodada Uruguai. O caso CE – Oleaginosas desempenha um papel fundamental na construção das normas sobre apoio doméstico da Rodada Uruguai, por ser uma das disputas comerciais mais acirradas e conhecidas do antigo GATT-47 e por tratar do penoso tema de subsídios domésticos para produtos agrícolas, que se torna ainda mais controverso quando envolve a PAC. Segundo os EUA, as medidas de apoio doméstico que a CE destinava a seus produtores e processadores de oleaginosas e proteínas de alimentação animal afetavam a competitividade de determinados produtos em relação aos quais a CE havia se comprometido em termos de redução tarifária. Portanto, os EUA argumentaram que os subsídios aos processadores e produtores de sementes oleaginosas da CE, independentemente da legalidade dos mesmos em relação às regras do GATT, destinavam-se exclusivamente a “anular ou equiparar” os reflexos da abertura comercial causada pelas concessões tarifárias do Cronograma de Concessões da CE. A teoria da “anulação ou equiparação de benefícios tarifários” é invocada quando outro Estado adota medidas domésticas após a adoção da concessão tarifária, caso esta medida venha a assumir duas características: ser prejudicial à posição competitiva de produtos importados dentro do mercado e; não ser previsível pelo Estado demandante ao final das negociações da concessão tarifária. Nesse sentido, os EUA afirmavam que não poderiam de

51

Fabian Delcros. The Legal Status of Agriculture in the World Trade Organization – State of Play at the Start of Negotiations. In Journal of World Trade 36. Haia: Kluwer Law International, 2002. p. 219-253. 52 Mais especificamente, a CE contra-argumentava que o cálculo da MAA Total, no momento da sua redução, deveria abarcar os subsídios domésticos e os destinados à exportação, indiferentemente da sua natureza. in Melaku Geboye Desta. op cit. p. 388.

27 maneira nenhuma ter previsto que o volume das Concessões seriam anuladas ou equiparadas pelos compromissos originais e que era ônus da Comunidade superar esta presunção. A CE contra-argumentou a questão da presunção da anulação ou equiparação de benefício tarifário, pois, segundo a CE se tratava de um subsídio legal, logo, não poderia haver tal presunção, que só existe em casos de subsídios contrários às disposições do GATT. De acordo com o Painel: A existência de um limite no direito dos Estados de subsidiar seus produtos regulamentados pelo Cronograma de Concessões é um elemento fundamental no processo de negociação tarifária. Sem este elemento, teria pouca utilidade passar vários anos negociando concessões e reduções tarifárias cujos efeitos poderiam ser facilmente compensados por outras medidas domésticas não-regulamentadas.53

Nesse sentido, reafirmando que o caso tratava com subsídios legais perante o GATT, e que, na ausência de violação legal, o Painel não poderia recomendar modificações compulsórias, o Painel limitou-se a sugerir que a CE considerasse maneiras de eliminar a equiparação das concessões tarifárias para sementes oleaginosas.54 Com base nas recomendações do Painel, a CE emitiu o Regulamento nº 3766/91,55 que instituiu um novo sistema de apoio para produtores de sementes oleaginosas, baseado não mais em apoio aos preços de mercado, mas em renda.56 Os EUA não ficaram satisfeitos com o novo regime, argumentando que tal mudança não havia respeitado as recomendações do Painel e que os pagamentos do novo sistema continuavam a anular ou equiparar benefícios tarifários. A CE assegurava que, ao apoiar a renda dos produtores, ao invés de apoiar o preço de mercado, não estaria afetando a competitividade de produtos importados em seu mercado. Dessa discussão emergiu um segundo Painel, encarregado de determinar se a CE havia eliminado as equiparações dos benefícios tarifários do setor de oleaginosas. O painel CE – Oleaginosas Reconstituído concordou com os argumentos dos EUA, afirmando que: Houve uma mudança de forma mas não de substância nos subsídios à produção que equipararam e continuavam a equiparar os benefícios das concessões tarifárias, ao permitir que os produtores vendessem suas sementes oleaginosas, protegidos dos efeitos da competição dos preços do mercado.57(sem grifo no original) 53

CE – Oleaginosas. Relatório do Painel. parágrafo 142. CE – Oleaginosas. Relatório do Painel. parágrafo 156. 55 Regulamento (CEE) nº 3766/91 do Conselho, de 12 de Dezembro de 1991, que estabelece um regime de apoio aos produtores de sementes de soja, de canola e de nabo silvestre e de girassol. In Jornal Oficial nº L 356 de 24/12/1991 p. 0017 - 0020 56 Com isso, os pagamentos por tonelada do antigo sistema efetuados aos produtores através dos processadores foram substituídos por pagamentos por hectare, efetuados diretamente aos produtores, com base no volume de terras destinadas à produção de sementes oleaginosas. 57 Reconvened Oilseeds Panel Report. Relatório do Painel adotado em 19/06/1992. §78. 54

28

O Relatório do Painel novamente destacou que, apesar da legalidade dos subsídios destinados à produção de oleaginosas, estes são instrumentos altamente distorsivos ao comércio internacional, por neutralizarem os benefícios tarifários. Portanto, novamente incapaz de instituir modificações compulsórias, o Painel recomendou que: A CE deveria agir rapidamente no sentido de eliminar as equiparações das concessões tarifárias, seja modificando seu novo sistema de subsídios para oleaginosas, seja renegociando as concessões tarifárias para sementes oleaginosas, com base no art. XXVIII. 58

Isto levou a disputa novamente ao âmbito bilateral, onde as partes passaram a negociar questões de compensação comercial. Essa negociação se estendeu sem sucesso até novembro de 1992, quando os EUA requereram autorização ao GATT para suspender concessões tarifárias no valor total de US$ 1.000.000.000 (um bilhão de dólares). Como primeira etapa da retaliação, anunciaram uma tarifa discriminatória de 200 por cento ad valorem em cerca de US$ 350.000.000 (trezentos e cinqüenta milhões de dólares) para produtos originários da CE, a efetivar-se num prazo de 30 dias.59 Depois de um mês de ameaças de retaliação e contra-retaliação, as partes reuniram-se em uma casa presidencial em Washington, EUA, a Blair House, e concluíram um acordo tanto no plano bilateral, da disputa das Oleaginosas, como em questões envolvendo comércio agrícola que estavam travadas no âmbito da Rodada Uruguai. Este acordo foi denominado de Acordo de Blair House. Na esfera bilateral, a CE concordou em reduzir a extensão de terras destinadas a plantação de sementes oleaginosas em 10 por cento num prazo de três anos. Nas questões da Rodada Uruguai, EUA e CE acordaram em “adaptar” a Proposta Dunkel para a realidade dos interesses dos dois maiores exportadores de produtos agrícolas da época. A modificação mais importante foi a introdução da caixa azul, criada para abrigar os pagamentos compensatórios da CE e os pagamentos diretos dos EUA. Todo apoio que fosse compreendido dentro dessa caixa estaria isento dos cálculos dos compromissos de redução, desde que estes pagamentos fossem feitos com o intuito de limitar a produção. Além disso, foram excluídos dos compromissos de redução da caixa verde alguns subsídios domésticos que eram pagos diretamente a agricultores por programas de limitação de produção e que não estavam ainda incluídos. Outra modificação trazida pelo Acordo de Blair House referia-se à forma de cálculo dos compromissos de redução da MAA, alterado para que tais compromissos incidissem 58 59

CE – Oleaginosas Reconstituído. Relatório do Painel. §88. Melaku Geboye Desta. op.cit. p. 392.

29 sobre o agregado de produtos agrícolas e não especificamente por produto. Assim, os Estados garantiram uma maior margem na dispersão ao reduzir os subsídios, semelhante à dispersão tarifária que praticou a CE na implementação das regras sobre acesso a mercados. Em suma, os acordos alcançados em Blair House foram determinantes para a conclusão das negociações agrícolas, por adequarem a Proposta Dunkel aos interesses da CE e dos EUA, encerrando uma guerra comercial bilateral e possibilitando que a Rodada Uruguai finalmente fosse concluída, com a conseqüente aprovação do AARU. Com a conclusão da Rodada Uruguai, três categorias de tratamento das medidas de apoio doméstico foram disciplinadas pelo AARU: as medidas consideradas altamente distorsivas ao comércio estão sujeitas a compromissos de redução (caixa âmbar); as medidas que forem implementadas visando à limitação da produção agrícola, se adequadas aos requisitos legais, estão isentas de compromissos de redução (caixa azul); e aquelas medidas que não causam nenhuma ou pouca distorção no comércio não estão sujeitas a disciplina alguma (caixa verde). Estas três caixas serão objeto de uma análise mais detalhada a seguir.

3.2 A caixa âmbar e os compromissos de redução da MAA Total da Comunidade Européia

O artigo 3.2 do AARU é uma das disposições mais importantes no que se refere à implementação dos compromissos de redução de apoio doméstico do AARU. Com efeito, o referido dispositivo determina que todos os Membros que não firmaram compromissos de redução em seus Cronogramas estão proibidos de empregar qualquer medida prevista na caixa âmbar. Logo, a ausência de compromisso de redução corresponde a um compromisso de não utilizar os subsídios listados na caixa âmbar. É o que dispõe o referido artigo: Salvo o previsto no artigo 6, um membro não poderá conceder apoio em favor de produtores domésticos em excesso aos níveis de compromissos estabelecidos na Seção 1 da Parte IV do Cronograma de Concessões. 60

Cerca de 30 membros firmaram compromissos de redução em apoio doméstico nos seus respectivos Cronogramas, dentre eles a CE, o que significa que tais países estão sujeitos à disciplina da caixa âmbar.

No entanto, esta restrição se aplica apenas aos subsídios

previstos no Cronograma de Concessões. Todas as medidas que não estão listadas no Cronograma

60

- a caixa verde, a caixa azul, as medidas de minimis e as destinadas ao

Artigo 3.2 do AARU.

30 desenvolvimento - estão isentas de compromissos de redução, o que conseqüentemente as exclui dos cálculos agregados. Isto suscita questões em relação à fragilidade da disciplina de apoio doméstico do AARU, por permitir, de um lado, a adoção de medidas que, na sua maioria, são aplicadas apenas por países desenvolvidos, enquanto, por outro, proíbe aquelas medidas que poderiam ser adotadas pelos países em desenvolvimento. Essa disparidade de tratamento se agrava quando o AARU legitima os subsídios elencados nos Cronogramas de Concessões de apenas 30 Estados, em volumes anuais bilionários, como é o caso da CE, que tem autorização legal para apoiar até o limite anual de €61.204.000.000 (sessenta e um bilhões bilhões, duzentos e quatro milhões de euros), conforme seu Cronograma que será detalhado a seguir. Primeiramente, é importante destacar que os compromissos de redução de apoio doméstico devem, necessariamente, ser expressos em números. Para tanto, foi necessário de alguma forma “monetarizar” os níveis de apoio doméstico de cada país, para, a partir daí, negociar os compromissos de redução desse volume total. Dentre várias metodologias existentes, os Estados concordaram em adotar a Medida Agregada de Apoio (MAA) como método adotado pelo AARU. Além disso, os Estados estipularam como período-base o período 1986-1988 para servir como referência em relação aos compromissos de redução. Conseqüência direta do Acordo de Blair House, a MAA é fundamentalmente uma expressão monetária do volume agregado de transferências anuais realizadas para beneficiar os produtores agrícolas. Estas podem ocorrer de duas formas: um apoio específico por produto, a quem oferece os denominados “produtos agrícolas básicos”61 ou um apoio não específico por produto, concedidos aos produtores em geral. No entanto, de acordo com o artigo 1º(a) do AARU, não são todas as formas de apoio que estão abarcadas na MAA. Medidas adotadas por programas que se qualificam como isentos, nos termos do Anexo 2, não estão incluídas. Além disso, é discutível se a lista de exceções trazidas pelo artigo 6º também exclui tais medidas da MAA. Esta relevante discussão será tratada mais adiante. Na realidade, a MAA legitima os subsídios à produção e os isenta de qualquer compromisso de redução, desde que seu impacto na distorção do comércio não seja “significativo”. Por estabelecer tal exceção, o método adotado pelo AARU distingue-se de outro método importante de cálculo de subsídios utilizado pela Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OCED), denominado Equivalente de Subsídios ao Produtor (ESP). Conforme a OCED: 61

Produto agrícola básico é definido pelo artigo 1(b) como aquela produto mais próximo possível do ponto da primeira venda como especificado no Cronograma do Estado Membro e nos documentos relacionados.

31

O ESP é essencialmente a medida de transferências resultantes de políticas agrícolas. Apesar de grande parte das transferências medidas serem relacionadas à políticas de apoio ao preço de mercado, que são as mais distorsivas à produção e ao comércio, o ESP não distingue entre diferentes medidas no sentido de atribuir valor ao grau de distorção no comércio. A MAA, por outro lado, ao excluir certas medidas dos compromissos de redução implicitamente distingue entre distorção à produção e distorção ao comércio.62

De acordo com o parágrafo 1º do Anexo 3, são três os tipos de medidas destinadas a produtos agrícolas básicos que devem ser incluídas no cálculo da MAA: apoio ao preço de mercado, pagamentos diretos não-isentos e demais medidas não-isentas. O “apoio ao preço de mercado” é um dos subsídios mais antigos e comumente utilizados no apoio aos produtos agrícolas, por ser uma medida através da qual o governo pode alcançar objetivos políticos, sociais e econômicos, intervindo diretamente nas operações do mercado. Nesse sentido, o apoio ao preço de mercado se destina a estabelecer um diferencial entre o preço recebido pelos produtores domésticos e o preço que prevalece no comércio internacional visando manter os preços agrícolas domésticos acima dos preços mundiais. Esses preços domésticos elevados, estabelecidos pelo governo trazem duas conseqüências importantes para o comércio internacional. Por um lado, os benefícios garantidos aos agricultores induzem artificialmente a produção doméstica o que, conseqüentemente, resulta em sobre-produção em relação à demanda interna, gerando redução nos preços do comércio internacional e prejudicando a livre concorrência entre os principais exportadores agrícolas. Por outro, como o preço doméstico mais elevado acaba por atrair produtos importados, os Estados são forçados a impor medidas restritivas em relação ao acesso ao mercado como restrições quantitativas, altas tarifas e quotas para que este aumento no ingresso de produtos não afete os objetivos dos programas de apoio doméstico. Outro ponto importante dessa questão é que grande parte dessa venda do excedente de produção da CE só consegue ser efetuada através de medidas de incentivo à exportação, os chamados subsídios à exportação, que serão tratados no 3º capítulo deste trabalho. A CE é o ator do comércio agrícola internacional que mais utiliza este método de apoio, através de suas OCM. Estima-se que, em 1994, os preços dos produtos agrícolas da CE eram 94% maiores que os preços do mercado internacional.63Com efeito:

62

OCED. The Uruguay Round: A Preliminary Evaluation of the Agreement on Agriculture in the OECD Countries. Paris: 1995. página 35. 63 Melaku Geboye Desta. op cit. p. 310.

32 No regime das organizações comuns de mercado onde a principal forma de intervenção se dá através do apoio aos preços, o objetivo essencial é manter o preço do mercado em um determinado nível ou acima. Nesse sentido, o Conselho da CE anualmente fixa um número de preços comuns que indicam os níveis nos quais estes devem se situar, além de estabelecer os níveis nos quais os diversos mecanismos de apoio (compras de intervenção, estoques públicos e uma variedade de outros instrumentos de financiamento) tornamse operantes.64

O modelo clássico do sistema de preços comuns da PAC consiste em três conceitos de preço comum: preço alvo, preço de intervenção e preço limiar. O preço alvo é estabelecido num nível onde se presume que o produtor receberá uma justa remuneração por sua produção. Um pouco abaixo desse preço está fixado um preço de intervenção. Esse preço constitui o nível no qual se tornam operantes vários mecanismos de regulação do mercado interno. Com base no preço alvo, surge o preço limiar, fixado em níveis aptos a impedir que os produtos importados entrem na Comunidade a um preço inferior do preço alvo. Esse modelo de três preços reflete a função essencial das organizações comuns de mercado, qual seja a de salvaguardar a renda dos produtores agrícolas através de medidas de apoio ao preço no mercado interno e proteção contra a influência dos preços do mercado internacional. O parágrafo 8 do Anexo 3º do AARU estabelece que é necessário identificar três elementos para qualificar uma medida de apoio ao preço de mercado: um preço de referência externo fixo, um preço administrado e a quantidade de produção elegível a receber o preço administrado. Uma vez determinado o preço de referência externo fixo, passa-se à definição dos demais elementos: o preço administrado pode ser facilmente consultado na legislação vigente; já a quantia de produtos elegíveis a receber este preço pode ser definida por meio de cálculos e estatísticas.65 Portanto, definidos os três elementos do apoio ao preço de mercado para um produto agrícola, o cálculo da MAA para tal apoio será “a diferença entre o preço de referência externo fixo e o preço administrado para o produto, multiplicado pela quantia de produtos elegíveis a receber o preço administrado”.66 Além do apoio ao preço de mercado, um produto agrícola pode estar sujeito a outras formas diretas de pagamento, denominados de “pagamentos diretos não-isentos”, previstos no parágrafo 10 do Anexo 3 do AARU. Um exemplo de pagamento direto não-isento são os chamados pagamentos compensatórios. 64

René Barents. The Agricultural Law of the EC. p. 77. in apud. p. 311. O parágrafo 9 de mesmo anexo determina que o preço de referência externo fixo será o valor unitário f.o.b. médio do produto agrícola básico em questão em um país exportador liquido e o valor unitário c.i.f. médio do produto agrícola básico em questão em um país importador líquido dentro do período base 1986-1988. 66 Parágrafo 8, Anexo 3 do AARU. 65

33 A política de pagamentos compensatórios, implementada quase exclusivamente pelos EUA, é outra importante forma de apoio doméstico, por ser uma das duas principais formas de apoio doméstico isentos de compromissos de redução pela caixa azul. No entanto, os pagamentos compensatórios só são computados na caixa azul se forem efetuados sob condições de restrição à produção, como se verá mais adiante. Semelhante ao apoio ao preço de mercado, na política de pagamentos compensatórios, o governo estabelece um preço de mercado para produtores agrícolas num nível considerado justo e remunerado para a renda do produtor, chamado de preço político. Quando o preço de mercado cair abaixo do preço político, essa diferença é arcada pelo erário público. Nesse caso, a MAA é calculada usando a diferença entre o preço político e o atual preço de mercado multiplicado pela quantidade de produção elegível. Por fim, o Anexo 3 inclui no cálculo da MAA qualquer outra política não-isenta pelo AARU, chamadas de “demais políticas não-isentas”, que abarcam isenções tarifárias, medidas de redução de custo de marketing, subsídios de investimento, etc. O cálculo da MAA das demais políticas não-isentas tem como base a diferença entre o preço do produto ou serviço subsidiado e um preço representativo de mercado de um produto ou serviço semelhante, multiplicado pela quantidade de produto ou serviço.67 Apesar da MAA ser calculada levando em considerando o apoio concedido especificamente por produto e por política, os compromissos de redução final do AARU foram calculados de maneira agregada. A essa soma total de todo o apoio doméstico concedido em favor de produtores agrícolas se denominou “Medida Agregada de Apoio Total” (MAA Total). Conforme o artigo 1º do AARU: Por “MAA Total” entende-se a soma de todo o apoio interno fornecido em favor de produtores agrícolas, obtida pela soma de todas as medidas agregadas de apoio para produtos agrícolas básicos, todas as medidas de apoio não especificadas por produto e todas as medidas equivalentes de apoio para produtos agrícolas...68

A MAA Total é a soma de todas as MAA dos produtos agrícolas básicos, as MAA não-específicas por produto, além de todas as medidas equivalentes de apoio para produtos agrícolas. Com base nesse método de cálculo, tomando como referência o período-base 19861988, cada país deveria definir a sua MAA Total Base como parâmetro para negociar compromissos de redução em relação ao apoio doméstico. 67 68

Parágrafo 13, Anexo 3 do AARU. Artigo 1(h) do AARU.

34 Por fim, o AARU determina que, ao final do período de implementação das regras e dos compromissos, a MAA Total Base deveria ser reduzida em 20%. Em outras palavras, no ano de 2000, o volume de apoio concedido pelos governos aos produtores agrícolas deveria ser 20% inferior à MAA Total Base do período de 1986-1988. Estas definições transformaram-se em compromissos por meio dos Cronogramas de Concessões da cada membro, onde estão estabelecidas a MAA Total Base utilizada como referência para os cálculos de redução, os níveis de compromisso de redução anuais e o nível de compromisso de redução final. A CE, na Sessão I da Parte IV do seu Cronograma de Concessões LXXX, calculou a sua redução de apoio doméstico, como ilustra a tabela abaixo.

QUADRO 2 Parte IV, Seção I, Cronograma de Concessões LXXX da CE Níveis de compromisso de redução da MAA Total (€ bilhões)

MAA Total Base

Ano de implementação

Níveis de Compromisso

(em bilhões de euros)

(1995-2000)

de Redução Anual e Total

1995

71.476

1996

69.422

1997

67.367

1998

65.313

1999

63.259

2000

61.204

73.530

Fonte: OMC/1995

Para verificar se os cálculos apresentados por um membro estão de acordo com os compromissos de redução por ele assumidos em determinado ano de implementação, deve-se comparar o efetivo nível de apoio concedido naquele ano, denominado de MAA Total Corrente, com o Nível de Compromisso de Redução Anual previsto no Cronograma. Se o volume de apoio calculado pelo MAA Total Corrente não superar o Nível Anual do ano em questão, o apoio doméstico estará conforme ao AARU. Nesse sentido, dispõe o artigo 6.3: Um membro é considerado conforme com seus compromissos de redução de apoio doméstico em qualquer ano em que seu apoio doméstico em favor dos produtores agrícolas expresso em MAA Total Corrente não exceder o Nível

35 de Compromisso de Redução Anual ou Final correspondente especificado na parte IV de seu Cronograma. 69

Como se depreende da análise do Cronograma de Concessões acima, a CE partiu de uma MAA Total Base de €73.530 bilhões para o período base e, ao calcular a redução gradual total de 20% – que corresponderia a 3,33% ao ano – alcança um Nível Final de apoio de €61.204 bilhões, legalmente permitido pelo AARU. No entanto, ao confrontar a MAA Total Base e a MAA Total Corrente para verificar a legalidade do volume de subsídios de um Estado, emerge uma questão de extrema relevância para a efetivação das regras de apoio doméstico do AARU, relacionada à inclusão ou não de determinadas políticas nos cálculos da MAA Total Corrente e da MAA Total Base. Os dispositivos do AARU não determinam claramente se todas as políticas incluídas no cálculo da MAA Total Base estão também incluídas no cálculo da MAA Total Corrente, pois as políticas da caixa verde são as únicas mencionadas pelo artigo 1. No entanto, o artigo 6º, que trata dos compromissos de redução de apoio doméstico, traz em si uma segunda exceção, ao dispor que: Os compromissos de redução dos Membros abrangem todas as medidas de apoio doméstico agrícola, com exceção das medidas domésticas que não estão sujeitas à redução nos termos dos critérios deste artigo e do Anexo 2 deste Acordo. 70 (sem grifo no original)

As exceções “deste artigo” referem-se às medidas de tratamento preferencial em relação aos países em desenvolvimento, às cláusulas de minimis e aos pagamentos diretos vinculados a programas de limitação de produção da caixa azul. Cumpre questionar se estas medidas a que se refere o artigo 6º estão excluídas do cálculo da MAA Total Base bem como dos compromissos de redução, como ocorre no cálculo da MAA Total Corrente ou se estão apenas excluídas da anterior como dispõe o referido artigo. Em outras palavras, as políticas que estão excluídas do cálculo da MAA Total Corrente, estão também excluídas dos cálculos iniciais da MAA Total Base e dos compromissos de redução anual e final? Essa definição tem repercussão substancial no cumprimento das disposições e na efetividade da liberalização comercial do setor agrícola pretendida pelo pilar de apoio doméstico do AARU, pelos motivos que se verá a seguir. Por um lado, afirma-se que as medidas do artigo 6º devem ser excluídas de ambos os cálculos da MAA Total por força da interpretação do preâmbulo do AARU pois, como estabelece o direito da interpretação dos tratados, “as disposições de um tratado devem ser 69 70

Artigo 6.3 do AARU. Artigo 6.1 do AARU.

36 interpretadas de boa-fé, de conformidade com o sentido comum que deve ser atribuído aos termos do tratado em seu contexto e à luz do seu objeto e finalidade”. 71 Nesse sentido, de acordo com o preâmbulo do AARU, sua principal finalidade é “alcançar reduções substanciais e progressivas no apoio e na proteção agrícola...corrigindo e prevenindo restrições e distorções no mercado agrícola internacional”.72 Portanto, uma interpretação que inclua as medidas do artigo 6º no cálculo da MAA Total base, mas as exclua do cálculo da MAA Total Corrente enfraquece a liberalização comercial de duas formas: aumenta a medida de referência do período-base ao incluir as políticas no cálculo da MAA Total Base e; reduz a medida efetiva de apoio doméstico de um determinado ano, por excluir do cálculo da MAA Total Corrente. Logo, uma interpretação que exclua estas políticas de ambas as variantes da MAA evitaria tais conseqüências e estaria de acordo com o Direito dos Tratados. No entanto, tal interpretação não prevaleceu durante as negociações da Rodada Uruguai tampouco no decorrer da implementação do AARU. Em sentido contrário, os Estados entenderam que as medidas do artigo 6º não deveriam ser incluídas em ambos os cálculos, mas apenas na MAA Total Base. Tanto o artigo 1º como o artigo 6º têm o claro objetivo de, por um lado, inchar o volume alcançado com o cálculo da MAA Total Base, o que permite aos Estados ter como referência um patamar maior de subsídios, e por outro lado, esvaziar o volume resultante do cálculo da MAA Total Corrente, excluindo tais medidas do cálculo do volume efetivo de apoio concedido durante o período de implementação. Como conseqüência, os Estados facilmente mantém seu volume de apoio doméstico dentro do permitido legalmente pelo AARU e por seus Cronogramas de Concessões, possivelmente até aumentando o real volume de subsídios em relação ao período-base. Com efeito, uma das maiores causas do enfraquecimento das regras e dos compromissos relacionados ao apoio doméstico é precisamente a forma como as medidas do artigo 6º são tratadas no AARU, ora incluídas, ora excluídas das MAA Totais dos Estados. Na CE, por exemplo, devido à isenção da sua política de pagamentos compensatórios dos compromissos de redução, a MAA Total Corrente de 1995 já era inferior ao compromisso final de 2000. 73

71

Artigo 31.1 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados. Parágrafo 3 do Preâmbulo do AARU. 73 Conforme observação da Comissão Européia, “apenas com a redução dos preços de intervenção para os cereais e carne, a PAC já conseguiria reduzir a MAA Total da Comunidade abaixo do objetivo de redução final de 20%”. In European Commission. CAP working notes: GATT and European Agriculture (Special Issue, 1996). p. 23. 72

37 3.3 As caixas azul e verde e as isenções da CE aos compromissos de redução da MAA Total Corrente

Um princípio fundamental alcançado na Rodada Uruguai no que se refere à isenção dos compromissos de redução de apoio doméstico, previsto no artigo 6.1, determina que: Os compromissos de redução de apoio doméstico de cada Membro devem aplicar-se a medidas de apoio doméstico em favor de produtores agrícolas, com exceção das medidas domésticas que não estejam sujeitas à redução nos termos dos critérios dispostos neste Artigo e no Anexo 2 deste Acordo.74

Como regra, a MAA abrange toda e qualquer forma de apoio doméstico direcionada ao setor agrícola. A isenção dos compromissos de redução é uma exceção à regra que só existirá se determinada medida preencher todos os critérios elencados tanto no artigo 6º como no Anexo 2 e se com tais fundamentos for invocada. Caso contrário, o AARU presume que todo programa de apoio doméstico esteja incluído no cálculo da MAA Total Corrente bem como nos compromissos de redução. O artigo 6º introduz três formas de isenção que, em conjunto, compõem a caixa azul: o apoio de minimis, os pagamentos diretos de programas de limitação da produção e os programas específicos de desenvolvimento econômico de países em desenvolvimento. Já o Anexo 2 cria a caixa verde, composta por uma série de medidas, com as quais os Estados devem manter-se em conformidade, respeitadas as condições e os requisitos elencados no Anexo. Qualquer medida que não satisfizer as condições de isenção dispostas pelo artigo 6º ou pelo Anexo 2 está automaticamente incluída no cálculo da MAA Total Corrente.75 O Anexo 2 do AARU, ao disciplinar a caixa verde, elenca de maneira não-exaustiva um conjunto de práticas para as quais os governos podem requerer isenção. Há um requisito geral e dois requisitos específicos para que essas medidas sejam aptas à isenção. Estes são os termos do parágrafo 1º: As medidas de apoio interno para as quais se solicite isenção de compromissos de redução, atenderão ao requisito fundamental de não causar efeitos de distorção do comércio nem efeitos na produção ou, no máximo, de causá-los em níveis mínimos. Como conseqüência, todas as medidas para as quais se solicite isenção estarão em conformidade com os seguintes critérios: a) o apoio em questão será concedido por intermédio de um programa governamental financiado com fundos públicos (incluindo renúncia fiscal) que não implique transferências de consumidores; e 74

Artigo 6.1 do AARU.

75

Artigo 7.2 do AARU.

38 b) o apoio em questão não terá efeito de conceder apoio de preços a produtores; assim como aos critérios e às condições relativas à políticas específicas indicados abaixo.76

Par que uma medida não tenha efeitos distorsivos na produção e no comércio, as forças do mercado devem estar livres, não podendo o Estado interferir nos rendimentos dos produtores, tampouco no preço final aos consumidores. Além disso, estas medidas devem ser financiadas apenas por programas governamentais. Tomando como referência estes dois requisitos básicos, as medidas devem também observar os requisitos especificados para cada política, conforme o Anexo 2. Os “critérios e condições específicos por política” dependem da natureza da política em particular. O Anexo 2 elenca 12 medidas políticas, cada uma com seus critérios e condições específicos, agrupados em 4 categorias de políticas isentas de compromisso de redução da caixa verde do AARU, quais sejam: serviços gerais, estocagem pública para segurança alimentar, ajuda alimentar e pagamentos diretos à produtores. Além das isenções do Anexo 2, o artigo 6º prevê outras três medidas que são expressamente excluídas do cálculo da MAA Total Corrente: o apoio de minimis, os pagamentos diretos de programas de limitação da produção (caixa azul), e os programas específicos de desenvolvimento econômico de países em desenvolvimento. Toda e qualquer medida que se encaixar nas definições do artigo estará isenta de compromissos de redução, conseqüentemente, excluída do cálculo da MAA Total Corrente. A primeira isenção está prevista no artigo 6.2, que estabelece três formas específicas de apoio doméstico utilizada por países em desenvolvimento: os subsídios de investimento direcionados de maneira geral ao setor agrícola; os subsídios agrícolas disponibilizados especificamente para produtores de baixo nível de renda e; o apoio doméstico destinado a encorajar a diversificação da produção, quando o produtor dedicar-se ao cultivo de produtos agrícolas ilegais, relacionados ao narcotráfico.77 A segunda isenção é o denominado apoio de minimis, previsto pelo artigo 6.4, que permite a não inclusão, no cálculo da MAA Total Corrente, de determinadas medidas de apoio doméstico, seja produto-específico ou não, que não excederem 5% do valor da produção, tanto do produto específico como do total da produção. Para os países em desenvolvimento, este percentual se eleva a 10%.78

76

Parágrafo 1º do Anexo 2 do AARU. Artigo 6.2 do AARU. 78 Artigo 6.4 do AARU. 77

39 A terceira isenção é a mais relevante para o presente trabalho, por tratar das políticas de limitação de produção, criadas e utilizadas, atualmente, apenas pela CE. De acordo com a disciplina da caixa azul, todas as formas de pagamentos diretos previstos no artigo 6.5 estão excluídas do cálculo da MAA Total Corrente e isentas dos compromissos de redução, desde que preencham uma série de condições. Nesse sentido, o AARU dispõe: Os pagamentos diretos realizados no âmbito de programas de limitação da produção não estarão sujeitos ao compromisso de redução do apoio doméstico se: i) tais pagamentos se basearem em área e produção fixas; ou ii) tais pagamentos forem feitos em relação a 85 por cento ou menos do nível de produção de base; ou iii) no caso de pagamentos relativos a rebanhos, forem feitos em relação a 79 um número fixo de cabeças.

Com base no referido dispositivo, para que uma medida se encaixe na disciplina da caixa azul, é necessário observar uma série de requisitos. Primeiramente, os pagamentos devem ser “diretos”, no sentido de que estes não sejam transferidos aos produtores por meio de mecanismos de manipulação de mercado, devendo ser pagos pelo governo e não transferido para os consumidores. Em segundo lugar, os pagamentos devem ser “vinculados a alguma espécie de medida de limitação de produção”. Por último, estes programas de limitação devem tomar como referência tanto uma área ou produção fixa, ser feitos em relação a oitenta e cinco por cento (85%) ou menos do nível de produção base, e quando se tratar de pagamentos relativos a rebanhos, em números fixos de cabeças. Preenchidos tais requisitos, o artigo 6.5 dispõe expressamente exclui os pagamentos diretos, afirmando que: Esta isenção dos compromissos de redução para os pagamentos diretos deve refletir-se na exclusão do valor destes pagamentos no cálculo da MAA Total Corrente do Estado Membro.80

A caixa azul, criada pelo Acordo de Blair House de 1992, tem o claro propósito de permitir, de um lado, a continuidade da política de pagamentos compensatórios da PAC, e, por outro lado, a adoção do sistema de pagamentos deficitários pelos EUA, sem a necessidade de satisfazer o critério de desvinculação dos pagamentos diretos (decoupling). Nem os EUA, nem a CE estavam dispostos a desvincular seus pagamentos deficitários e compensatórios para trazê-los para a caixa verde, como foi feito com os demais pagamentos diretos.81 79

Artigo 6.5 (a) do AARU. Artigo 6.5(b) do AARU. 81 A maior preocupação destes Estados é que isto tornaria a transferência de recursos para os produtores agrícolas muito transparentes, o que revelaria o volume de recursos transferidos e distribuídos. 80

40 Como resultado, a caixa azul torna-se a prova inequívoca do poder de influência exercido pela CE na construção dos pilares do direito internacional do comércio agrícola, que acabou por esvaziar quase que na sua totalidade os compromissos de redução alcançados ao final da Rodada, ao legitimar o protecionismo europeu através da legalização da PAC frente ao AARU.

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Como conclusão, os resultados da Rodada Uruguai em matéria de apoio doméstico podem ser vistos sob dois ângulos contraditórios. Por um lado, pela primeira vez na história, o Direito Internacional do Comércio conseguiu reduzir as medidas de apoio domésticos a seus equivalentes monetários e estabelecer limites no volume de subsídios. Logo, as normas sobre apoio doméstico podem ser consideradas um marco fundamental na história do sistema multilateral de comércio. No entanto, por mais inovador e importante que possa ser considerado o pilar de apoio doméstico do AARU, suas disposições nunca chegaram a ter um significado prático em termos de redução nos níveis de subsídios domésticos dos membros da OMC. Por força do Acordo de Blair House, foi esvaziada a grande maioria das regras e dos compromissos alcançados até então com a Proposta Dunkel, o que tornou a disciplina de apoio doméstico a menos coercitiva e eficaz do AARU. Dentre as disposições sobre apoio doméstico do AARU, a caixa azul é indubitavelmente a questão mais relevante, quando se analisa a posição da CE frente ao sistema multilateral de comércio agrícola. Como ficou demonstrado, através desta vitória européia nas negociações da Rodada Uruguai, com a criação da caixa azul, a CE conseguiu com que a PAC se mantivesse praticamente intacta, sofrendo muito pouco os efeitos da disciplina de apoio doméstico do direito internacional do comércio agrícola. Em suma, os resultados da Rodada Uruguai, no que toca à apoio doméstico, podem ser considerados o primeiro passo, mas um passo muito pequeno, rumo à liberalização do comércio agrícola.

4. TERCEIRO PILAR: SUBSÍDIOS À EXPORTAÇÃO

Conseqüentemente, isto tornaria o sistema mais vulnerável às críticas, tanto entre a população como do ponto de vista político. in Melaku Geboye Desta. op. cit. p. 412.

41 Disciplinar os subsídios à exportação foi uma tarefa que, da mesma forma que os demais temas agrícolas negociados durante a Rodada Uruguai, pôs à prova o desafio de introduzir a agricultura no sistema multilateral de comércio. À primeira vista, os resultados da Rodada podem parecer insignificantes diante das ambiciosas propostas iniciais de negociações dos EUA e do Grupo de Cairns. No entanto, quando se recorda o passado intransigente da CE no setor agrícola, ter pela primeira vez limitada uma das práticas comerciais mais distorsivas utilizadas no setor agrícola, em torno de listas de subsídios permitidos e de produtos subsidiáveis, pode ser considerada uma vitória notável. Contudo, cabe lembrar que os subsídios à exportação agrícola são os únicos que ainda são explicitamente permitidos e largamente utilizados pelos países desenvolvidos, em especial pela CE. Ao fazer uma breve recapitulação dos principais pontos negociados no decorrer da Rodada, dando especial atenção aos interesses da CE (4.1), emergem vários motivos pelo qual o bloco atualmente consegue facilmente manter a PAC dentro dos parâmetros legais do AARU, no que se refere ao pilar de subsídios à exportação. Nesse sentido, o OSC recentemente estabeleceu um marco fundamental ao interpretar as disposições sobre subsídios à exportação do AARU no caso CE – Açúcar. Naquela situação, o Painel deparou-se com dois problemas jurídicos que serão tratados no decorrer deste trabalho. Primeiramente, foi necessário definir a legalidade do nível dos compromissos da CE para redução dos subsídios à exportação de açúcar (4.2) para, em seguida, passar à analise da legalidade do sistema de pagamentos do regime açucareiro comunitário (4.3). É o que se verá a seguir.

4.1 As negociações da disciplina de subsídios à exportação do AARU e a relevância do caso CE - Açúcar

Durante as negociações da Rodada Uruguai, a CE insistiu de modo veemente sobre a impossibilidade de relegar a agricultura inteiramente às forças do jogo do mercado. No que se refere aos subsídios à exportação, defendeu que não poderia haver uma total extinção no volume de subsídios à exportação, concordando apenas em estabelecer uma redução progressiva nos mesmos. Essa resistência da CE à liberalização comercial da agricultura tem fundamento, em grande parte. na política de controle de preços, um dos mecanismos centrais da PAC. Esta política tem como objetivo controlar o nível de oferta de produtos agrícolas no mercado comunitário e é acionado sempre que há excesso de oferta de um determinado produto dentro

42 do mercado interno, o que, conseqüentemente, causa uma redução no preço do mercado interno. Nesses casos, para evitar essa queda no preço interno, a CE “incentiva”, através de subsídios à exportação, os produtores europeus a venderem para o mercado internacional, subvencionando grande parte de suas exportações agrícolas, manipulando os preços dos produtos comunitários e tornando-os competitivos no mercado internacional. Mais especificamente, a CE propôs durante a Rodada Uruguai que deveria ocorrer um re-balanceamento entre a quantidade dos volumes de subsídios que estivessem acima do nível comprometido e aqueles concedidos em níveis inferiores ao comprometido. Assim, o volume reduzido serviria de crédito para aqueles subsídios que estivessem abaixo do nível máximo previsto no futuro acordo sobre agricultura. O instrumento apto para tanto seria a forma de cálculo da MAA que havia proposto a Comunidade, que, em linhas gerais, constituiria uma forma flexível de reduzir os subsídios domésticos e os destinados à exportação, com um compromisso de redução que agregaria ambas as formas de subsídios. Assim, os Estados ficariam livres para determinar como cumpririam os compromissos de redução nos dois pilares. Tal proposta não prosperou e os compromissos em relação aos temas de apoio doméstico e subsídios à exportação foram disciplinados separadamente na Proposta Dunkel. Tomando como base a referida Proposta, os EUA e a CE lançaram negociações bilaterais no ano de 1991, para tratar da proposta de regulamentação trazida pelo Acordo. No que se refere aos subsídios à exportação, a Proposta previa o corte de 36% nos valores e de 24% no volume anual de subsídios. A CE particularmente não concordava com a limitação quantitativa dos subsídios, desejando apenas se comprometer em relação aos valores. Além disso, a controvérsia das Oleagionosas foi um importante ingrediente para tornar as negociações entre ambos ainda mais tensas. Com o Acordo de Blair House, a disciplina de subsídios à exportação reduziu os compromissos alcançados multilateralmente na Proposta Dunkel nos seguintes termos: primeiramente, reduziu os compromissos em relação ao volume de subsídios de 24% para 21%; em segundo lugar, criou a cláusula de paz, que garantia por um prazo de nove anos de imunidade frente ao OSC de determinados subsídios que estivessem de acordo com o AARU; por último, criou uma exceção ao período-base que originalmente era de 1986-1990, e que foi estendido até 1992 para situações em que países tivessem um volume de subsídios maior nesses anos após o período-base. Antes de ingressar na análise pontual das regras e compromissos alcançados através do AARU, deve-se, preliminarmente, construir uma definição de “subsídio à exportação

43 agrícola”, conceito este não aclarado no texto do AARU. Além disso, é necessário compreender a natureza jurídica das listas de “subsídios permitidos” e de “produtos subsidiáveis” que trazem o AARU e o Acordo de Modalidades. Os esclarecimentos preliminares serão de grande relevância para o prosseguimento da análise da legalidade da PAC frente aos dispositivos sobre subsídios à exportação do AARU. Antes de mais nada, o artigo 1º(e) do AARU, que esclarece as definições empregadas ao longo do Acordo, define “subsídios à exportação” como aqueles subsídios subordinados ao desempenho das exportações, incluindo-se os subsídios à exportação listados no artigo 9º do presente Acordo”. Com isso, para que uma determinada política se caracterize como um subsídio à exportação é necessário que: a) possa ser definida como subsídio e, b) esteja condicionada ao aumento no desempenho das exportações de determinado produto. No entanto, o AARU não estipula o conceito de “subsídio”. Nesse caso, é necessário socorrer-se de alguma definição de subsídio que seja compatível com as definições do AARU, e que tal definição seja interpretada de acordo com seu contexto, como dispõe o Direito dos Tratados.82 Ao analisar o artigo 1º(e) no contexto geral do ordenamento jurídico da OMC, vê-se a oportunidade de interpretá-lo à luz do ASMC, tendo em vista a definição de “subsídios” que tal tratado apresenta no seu artigo 1, nos seguintes termos: 1.1Para os efeitos do presente Acordo, se considerará que existe subsídio quando: a) 1) haja uma contribuição financeira de um governo ou de qualquer organismo público no interior do território de um Membro, ou; 2) haja alguma forma de receita ou sustentação de preços no sentido do artigo XVI do GATT de 1994; b)com isso se confirma uma vantagem. 83

Aplicando tal definição ao artigo 1º(e) do AARU, pode se definir subsídios à exportação agrícola como sendo “toda contribuição financeira dada por um governo ou órgão público ou qualquer forma de receita ou suporte de preços no sentido do artigo XVI do GATT 94 que sejam subordinados ao desempenho das exportações e que confiram uma vantagem ao produtor/ comerciante”. O artigo 1º(e) faz também referência ao artigo 9.1, no qual estão listadas políticas comerciais definidas como subsídios à exportação. Além dos subsídios elencados no referido artigo, há também o artigo 10.2, que trata de prevenir a tentativa de eludir os compromissos

82 83

Artigo 31 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados. Artigo 1.1 do ASMC.

44 de subsídios à exportação,

definindo, ainda, outras três políticas comerciais que são

consideradas subsídios.

QUADRO 3 Lista de subsídios disciplinados pelo AARU Artigo 9.1(a) – Subsídios diretos Artigos 9.1(b) – Exportações abaixo do preço do mercado interno Artigo 9.1 (c) – Pagamentos para exportações agrícolas Artigo 9.1 (d) e (e) – Subsídios de custos de transporte e logística para exportações Artigo 9.1 (f) – Subsídios para produtos incorporados na exportação Artigo 10.2 - Créditos à Exportação, Garantias de Crédito para Exportação e Programas de Seguro.

Outro importante esclarecimento encontra-se no parágrafo 7º do Anexo 8 do Acordo de Modalidades, onde há uma lista de vinte e dois produtos ou grupo de produtos sobre os quais deveriam se estabelecer compromissos de redução. São eles:84

QUADRO 4 Lista de produtos subsidiáveis do Acordo de Modalidades - Trigo/ Farinha de Trigo - Grãos in natura - Arroz - Sementes oleaginosas - Óleos vegetais - Óleos de linhaça - Açúcar - Manteiga e óleo de manteiga - Leite em pó - Queijo - Derivados de leite - Carne bovina - Carne suína - Carne de frango - Carne de ovelha - Animais vivos - Ovos - Vinhos - Frutas 84

Parágrafo 7º do Anexo 8 do Acordo de Modalidades

45 - Vegetais - Tabaco -Algodão

Cotejando as duas listas, juntamente com os compromissos de redução de cada Estado, pode-se extrair as seguintes conclusões fundamentais para a posterior compreensão do caso CE - Açúcar. No que concerne aos compromissos de cada Estado para os subsídios à exportação: 1º) os Estados-membros são livres para utilizar os subsídios listados relativamente aos produtos agrícolas elencados pela norma, dentro dos limites de seus compromissos de redução; 2º) Eles estão proibidos de usar os subsídios listados em produtos agrícolas não-listados; 3º) Eles são livres para oferecer subsídios não-listados em relação aos produtos agrícolas listados, desde que tal gesto não se configure como uma tentativa de elidir os compromissos de subsídios à exportação; 4º) Eles são proibidos de utilizar subsídios nãolistados relativamente aos produtos agrícolas não–listados. Portanto, a inclusão ou não de um produto agrícola no Cronograma de Concessões de cada Estado torna-se elemento fundamental na definição do status jurídico das diferentes formas de práticas de subsídios à exportação dos Estados-membros. Em outras palavras: Enquanto o uso de subsídios na exportação de produtos agrícolas que estejam elencados no Cronograma é (condicionalmente) permitido, sejam eles listados ou não no AARU, a mesma prática é terminantemente proibida no que concerne à exportação de produtos agrícolas que não estejam elencados no Cronograma. 85

Com a experiência adquirida pelos Estados ao longo da história das negociações do GATT – 47, os participantes da Rodada Uruguai decidiram negociar separadamente compromissos específicos para os três pilares do comércio agrícola internacional – acesso à mercados, apoio doméstico e subsídios à exportação. Para cada tema, foi necessário estabelecer uma metodologia específica, a fim de quantificar o grau de intervenção estatal. Nesse sentido, para acesso à mercados, foi estabelecida a tarifação, para apoio doméstico, a Medida Agregada de Apoio e para subsídios à exportação, foram estabelecidos no Artigo 3.3 do AARU dois tipos de compromissos de redução, tanto em termos quantitativos como em termos monetários. Assim dispõe o Artigo 3.3, AARU: Sujeito às disposições dos parágrafos 2º (b) e 4º do Artigo 9º, nenhum membro concederá os subsídios à exportação listados no parágrafo 1º do 85

Melaku Geboye Desta, op. cit. p. 240.

46 Artigo 9º aos produtos agrícolas ou grupos de produtos especificados na Seção II da Parte IV de seu Cronograma, além dos níveis de compromisso para desembolsos orçamentários e quantidades ali especificados e não concederá tais subsídios a qualquer produto agrícola que não esteja especificado naquela Seção de seu Cronograma. 86

Assim, conforme tal dispositivo, existem duas formas de obrigações que os Estados devem observar, no que se refere aos subsídios à exportação: de um lado, há uma obrigação de respeitar os níveis de compromissos de redução estabelecidos no Cronograma de Concessões de cada Estado membro; por outro, existe um compromisso de não introduzir ou re-introduzir subsídios à exportação de produtos agrícolas, exceto aqueles que eram concedidos durante o período-base. Para que tais compromissos fossem implementados, foi necessário determinar um período que servisse de referência para os cálculos dos níveis quantitativos e orçamentários dos subsídios concedidos e, em relação a estes números, estabelecer compromissos. Ao final das negociações, o período-base estabelecido através do Acordo de Blair House foi de 1996 à 2000, uma das épocas em que os EUA e a CE mais concederam subsídios à exportação aos seus produtores agrícolas. Com base nos volumes de 1996-2000, o AARU determinou que os compromissos de redução seriam de 36% em termos orçamentários e 21% em termos quantitativos, a serem implementando durante um período de 6 anos. Para os países em desenvolvimento, foi concedido tratamento especial e diferenciado, estabelecendo compromissos de redução dos subsídios à exportação de 24% em termos orçamentários e 12% em termos quantitativos, a implementar durante um período de 10 anos. Os países menos desenvolvidos não têm compromissos de redução no que se refere aos subsídios à exportação. Além de estabelecer compromissos finais de redução para os volumes quantitativos e orçamentários, foi subscrita também uma obrigação de redução anual mínima durante o período de implementação de 3.5% em termos quantitativos, e de 6% em termos orçamentários, em iguais parcelas anuais. Estes

compromissos

de

redução

serão

adiante

aprofundados,

enfocando

especificamente um caso de grande relevância para a jurisprudência do Direito Internacional do Comércio, por ter sido a primeira interpretação do OSC em relação aos dispositivos do AARU que disciplinam os subsídios à exportação. É o caso Comunidade Européia – subsídios à exportação de açúcar .87

86 87

Artigo 3.3 do AARU. European Communities – Export Subsidies on Sugar. Relatório do Painel adotado em 15/10/2004.

47 No dia 1º de outubro de 2002, Austrália, Brasil e Tailândia apresentaram comunicação ao OSC requerendo consultas à CE, questionando, assim, os subsídios à exportação concedidos ao setor açucareiro comunitário.88 Na ocasião, a consulta recebeu a adesão, como terceiros interessados, de mais de 20 países, quase todos de economias em desenvolvimento.89 No entanto, tais consultas não foram capazes de resolver o impasse. Em decorrência disso, em 11 de julho de 2003, as partes requereram o estabelecimento de um Painel, onde enfatizaram e detalharam as alegações apresentadas na fase de consultas. As partes questionam a legalidade do Regulamento nº 1260, 90 além de outros instrumentos relacionados ao regime açucareiro da CE pois, com base no referido Regulamento, a CE provê subsídios à exportação para açúcar e derivados que excedem os níveis de compromisso de redução estipulados na Seção 2 da Parte IV do seu Cronograma de Concessões. Além dos subsídios, argumentou o Brasil que o regime açucareiro da CE concede tratamento menos favorável a produtos importados em comparação aos do mercado interno, eis que o produto importado não goza do benefício da política de intervenção nos preços garantida pela CE. Assim, o Regulamento fere o princípio básico do GATT, qual seja o de tratamento nacional aos produtos importados. De modo específico, as partes questionam duas categorias de exportações subsidiadas da CE: a) os subsídios concedidos para a exportação do açúcar da “quota C” e b) os subsídios concedidos para a comercialização com seus parceiros de comércio preferencial, isto é, com os quais firmou acordos comerciais segundo o art. XXIV, GATT. Ocorre que a CE não computa em seus cálculos o total de ambas as modalidades de subsídios. Com isso, segundo o governo brasileiro, a CE subsidiou a exportação de mais de 4.097 milhões de toneladas, quando se comprometeu a subsidiar não mais do que 1.273 milhão de toneladas, de acordo com seu Cronograma de Concessões. Portanto, em relação ao AARU, a CE incorre na violação dos artigos 3.3 (incorporação de concessões e compromissos), 8 (compromissos para a exportação competitiva), 9.1 {a} e {c} (compromissos para os subsídios à exportação). Já em relação ao ASMC, os subsídios da CE se enquadram nos artigos 1.1{a}{1}{I} e {IV}, que elencam as formas de apoio interno 88

Por não haver necessidade de distinção entre os mesmos, no decorrer deste trabalho, esse conjunto de produtos será denominado simplesmente “açúcar”. Compõem a lista: Açúcar branco, Açúcar bruto, Isoglicose, Xarope de inulina, Açúcar A, B ou C, isoglicose A, B ou C, Beterraba A e B, transformadas em Açúcar A e B, Xarope de inulina A, B e C. 89 Requereram o ingresso como terceiros interessados os Estados Barbados, Belize, Canadá, Colômbia, Congo, Côte d´Ivoire, Fiji, Guiana, Índia, Jamaica, Quênia, Madagascar, Malawi, Ilhas Maurício, Saint Kitts e Nevis, Swazilândia e Zimbábue. 90 Regulamento (CE) n.° 1260/2001 do Conselho, de 19 de Junho de 2001, que estabelece a organização comum de mercado no sector do açúcar. in Jornal Oficial nº L 178 de 30/06/2001 p. 0001 - 0045.

48 proibidas pelo ASMC. Além disso, o caso tem como fundamento os artigos 1.1{a}{2} e 1.1{b}, que tratam da questão do controle governamental dos preços. Conseqüentemente, com base nas duas formas de subvenção apontadas pelo governo brasileiro – apoio governamental e controle de preços – a CE descumpre os artigos 3.1{a} e 3.2, que tratam respectivamente dos subsídios proibidos à exportação e do tratamento preferencial dos produtos nacionais. Para efeito do presente trabalho, serão analisadas as questões jurídicas relacionadas exclusivamente ao AARU, excluída a apreciação atinente ao ASMC. Os problemas jurídicos ora abordados são dois. Primeiramente, o OSC deveria determinar o volume de subsídios à exportação de açúcar com o qual se comprometeu a CE no seu Cronograma de Concessões, tendo em vista a controvérsia surgida em relação à nota de rodapé nº 1 do Cronograma. A seguir, coube analisar a compatibilidade do sistema de pagamentos instituído pelo Regulamento nº 1260 com os dispositivos do AARU.

4.2 A definição do nível dos compromissos da Comunidade Européia para redução dos subsídios à exportação de açúcar

Durante a Rodada Uruguai, a CE assumiu compromissos orçamentários e quantitativos específicos em seu Cronograma de Concessões, em relação aos subsídios à exportação do açúcar, nos termos indicados no quadro abaixo.

QUADRO 5 Parte IV, Seção II, Cronograma de Concessões CXL da CE Níveis de compromisso orçamentários para o açúcar (€ bilhões) Cronograma CXL – Comunidade Européia Parte IV – Produtos Agrícolas: Compromissos limitando a prática de subsídio (artigo 3 do Acordo sobre Agricultura) Seção II - Subsídios à exportação: Desembolsos orçamentários e compromissos quantitativos de redução Produto – Açúcar¹

Níveis de compromissos orçamentários anuais e final (em milhões de ECU) Nível orçamentário-base – 779,9 1995 – 733,1 1996 – 686,3 1997 – 639,5 1998 – 592,7

49 1999 – 545,9 2000 – 499,1

Níveis de compromissos quantitativos anuais e final (em milhares de toneladas) Nível quantitativo-base – 1.612,0 1995 – 1.555,6 1996 – 1.499,2 1997 – 1.442,7 1998 – 1.386,3 1999 – 1.329,9 2000 – 1.273,5

1. Não inclui as exportações de açúcar de origem dos países ACP/Índia sobre as quais a Comunidade não está celebrando compromissos de redução. A média de exportações no período 1986-1990 foi de 1.6 milhões de toneladas.

Foi especificamente em relação ao cálculo do nível de compromisso quantitativo final que emergiu a primeira análise jurídica do caso CE - Açúcar. A Seção II da Parte IV do Cronograma de Concessões CXL, que trata das limitações à prática de subsídios à exportação de açúcar, aponta que a quantidade-base sobre a qual a CE estabeleceu compromissos de redução foi de 1.612 milhões de toneladas, sobre as quais, aplicando os cálculos de redução determinados pelo AARU (redução de 21% em termos quantitativos), alcançou-se um compromisso de redução final de subsídios para uma quantidade de 1.273,5 milhões de toneladas de açúcar. No entanto, ao lado do produto “Açúcar”, há uma nota que dispõe que tal compromisso de redução “não inclui as exportações de açúcar de origem dos países ACP/Índia, sobre as quais a Comunidade não está celebrando compromissos de redução.” A nota afirma também que, em relação ao nível de subsídios à exportação de açúcar dos países ACP/Índia, “a média de exportações no período 1986-1990 foi de 1.6 milhões de toneladas.” Com base nesta nota, a CE considera que todo e qualquer subsídio à exportação destinado ao açúcar, tanto originário da Índia como dos países da África, Caribe e Pacífico, está automaticamente isento dos compromissos de redução do Cronograma de Concessões e, conseqüentemente, imune ao AARU. Para a CE, seu nível de compromisso de redução está composto de dois volumes: o volume especificado no Cronograma (1.273,5 mi/ton), somado ao volume de 1.6 mi/ton relacionados aos países ACP/Índia, que consta da nota nº 1. Do outro lado, as partes demandantes consideram que esta nota reduz e contradiz as obrigações

50 fundamentais da CE frente ao AARU, mais especificamente os artigos 3º, 8º e 9º, o que a invalidaria juridicamente, privando-a de eficácia. Para resolver a presente controvérsia, o Painel, preliminarmente, estabeleceu uma principiologia interpretativa para a relação jurídica e hierárquica entre o AARU e o Cronograma de Concessões de um membro da OMC, para poder averiguar se há compatibilidade entre diferentes dispositivos das diferentes fontes de direito. Estabelecidos os critérios interpretativos, foi analisada a validade jurídica da nota incluída no Cronograma da CE,

para determinar se tal dispositivo é compatível com as disposições do AARU.

Finalmente, definida a validade jurídica da nota, o Painel passou a decidir sobre a legalidade do nível de compromisso de redução para os subsídios à exportação de açúcar da CE, mais precisamente sobre a validade da isenção pretendida pela CE no que concerne ao Cronograma de Concessões e aos compromissos de redução do nível de 1.6 mi/ton destinados aos países ACP/ Índia. Em primeiro lugar, o Painel analisou as disposições do AARU para responder à discordância entre as partes sobre o exato nível de compromisso de redução que deveria observar a CE em relação aos subsídios à exportação destinados ao açúcar. No entanto, de acordo com o Painel, os artigos 3º, 8º e 9º não definem satisfatoriamente as expressões “nível de compromisso”, “nível de compromisso de redução” e “compromissos especificados no Cronograma do Membro”. Portanto, seguindo os princípios da Convenção de Viena, 91o Painel foi levado à examinar os referidos dispositivos do AARU “em seu contexto”, com o escopo de definir o efetivo nível de compromisso de um Estado-membro. O artigo 8º do AARU contém uma proibição geral para subsídios à exportação, ao dispor que: Cada membro se compromete a não conceder subsídios à exportação que não estejam em conformidade com o presente Acordo e como os compromissos especificados em seu Cronograma. 92

Os compromissos que estão especificados no Cronograma de Concessões a que se refere o artigo 8º trazem uma clara descrição dos compromissos para cada produto, com os níveis quantitativos e orçamentários com os quais se comprometeu para cada ano do período de implementação dos compromissos. Assim, convencionou-se denominar ”produtos listados” aqueles que estão sujeitos aos compromissos de redução e sobre os quais podem incidir

91 92

Artigo 31.1 e 31.2 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados. Artigo 8 do AARU.

51 subsídios, desde que dentre dos níveis comprometidos no Cronograma. Os produtos que não estão previstos no Cronograma são denominados “produtos não-listados”. Especificamente em relação aos produtos listados, os subsídios à exportação listados no artigo 9.1 do AARU sofrem proibições específicas que estão elencadas no artigo 3.3: Sujeito às disposições dos parágrafos 2º (b) e 4º do Artigo 9º, nenhum membro concederá os subsídios à exportação listados no parágrafo 1º do Artigo 9º aos produtos agrícolas ou grupos de produtos especificados na Seção II da Parte IV de seu Cronograma, além dos níveis de compromisso para desembolsos orçamentários e quantidades ali especificados e não concederá tais subsídios a qualquer produto agrícola que não esteja especificado naquela Seção de seu Cronograma. 93

Segundo o artigo 3.3, os subsídios à exportação listado no artigo 9.1 do AARU só poderão ser concedidos de acordo com o Cronograma de Concessões de um Membro. Portanto, um Membro não pode conceder subsídios à exportação para produtos listados além dos níveis orçamentários e quantitativos com os quais se comprometeu no Cronograma, além de não poderem conceder subsídios à exportação para qualquer produto que não esteja listado no Cronograma. Além disso, o Artigo 9.1 do AARU descreve tipos específicos de subsídios à exportação, sujeitos a compromissos de redução, e dispõe que, em relação a tais subsídios, devem ser especificados compromissos de redução para o nível de desembolso orçamentário destinados aos subsídios, bem como compromissos de redução para a quantidade de exportações que recebem subsídios. Conseqüentemente, na ausência de alguma exceção específica do AARU, todos os subsídios listados no artigo 9.1, de (a) até (f), devem estar sujeitos à compromissos de redução. Tendo tais dispositivos em mente, o Painel interpretou os artigos 3º, 8º e 9º do AARU da seguinte forma: Em suma, os artigos 8º e 3º do AARU tornam claros que Membros não podem prover subsídios à exportação senão em conformidade com o Acordo e – e não ou - com seu Cronograma de Concessões.(...) Através da aplicação dos artigos 3º e 9.1 do AARU, todo subsídio à exportação destinado a produtos listados, para que sejam compatíveis com as normas da OMC, devem ter sido sujeitos à compromissos de redução.94

Seguindo tal parâmetro, o Painel considerou que a CE não conseguiu sustentar suas alegações em relação à definição do compromisso de redução para os subsídios à exportação de açúcar que consta em seu Cronograma. O Painel não encontrou fundamento em dispositivo 93

Artigo 3.3 do AARU. European Communities – Export Subsidies on Sugar. Relatório do Painel adotado em 15/10/2004. Parágrafo 134. 94

52 algum do AARU que permitisse a um Membro estabelecer níveis quantitativos de subsídios que não estivessem sujeitos à compromissos de redução, como é o caso do nível quantitativo previsto na nota já referida. Definido o que seja o “nível de compromisso de redução”, passou-se à consideração de princípios básicos para a interpretação de um determinado dispositivo do Cronograma de Concessões, quando este alegadamente esteja em contradição às obrigações fundamentais de um Membro da OMC, como as obrigações do AARU. O OSC já se manifestou sobre essa questão em outra oportunidade, no caso CE – Equipamentos de Informática, concluindo que as disposições do Cronograma de um Membro devem ser interpretadas como disposições de tratados. Assim, dispôs o OAp no caso: Um Cronograma é tornado parte integral do GATT-94 por força do seu artigo II:7. Portanto, as concessões estabelecidas em tal Cronograma são parte dos termos do tratado. Como tal, as únicas regras gerais de interpretação dos tratados que devem ser aplicadas são as presentes na Convenção de Viena.95

Nesse sentido, o Painel invocou o dispositivo da referida Convenção ao interpretar a nota de roda-pé ACP/Índia que consta no Cronograma de Concessões da CE, buscando avaliar sua compatibilidade com o AARU para, finalmente, determinar a legalidade do nível do compromisso de redução utilizado pela CE para os subsídios à exportação de açúcar. A exigência do artigo 31 da Convenção de Viena de que um tratado deva ser interpretado com base na boa-fé, traz consigo a necessidade de observar o princípio da interpretação efetiva dos tratados, segundo o qual “para todos os termos de um tratado deva ser dado um significado”. No caso Coréia – Produtos Lácteos, o OSC das OMC considerou o referido princípio da seguinte forma: À luz do princípio da interpretação efetiva, é dever de qualquer intérprete de tratado observar todas as disposições aplicáveis de um tratado no sentido de dar significado a todos, harmoniosamente. Um importante corolário deste princípio é o de que um tratado deva ser interpretado como um todo, observando tanto suas seções e partes como um todo.96

Nesse sentido, o Painel definiu que a nota ACP/Índia deve ser interpretada sob o prisma do princípio da interpretação efetiva dos tratados, para que se possa analisar a sua

95

European Communities – Customs Classification of Certains Computer Equipment. Relatório do Órgão de Apelação. Parágrafo 84. 96 Korea – Definitive Safeguard Measures on Imports of Certains Dairy Products. Relatório do Órgão de Apelação. Parágrafo 81.

53 validade jurídica, o que conseqüentemente determina o nível do compromisso de redução dos subsídios à exportação de açúcar da CE. De acordo com a Enciclopédia de Direito Internacional Público: Só existe conflito quando dois ou mais instrumentos de tratados contenham obrigações que não podem ser cumpridas simultaneamente. (...) No entanto, nem toda divergência se constitui em um conflito. (...) Incompatibilidade de conteúdos é uma condição essencial de conflito.97

A jurisprudência da OMC, além de ter sustentado o princípio geral de Direito Internacional de que só existe conflito ente dois dispositivos quando estes forem mutuamente excludentes, o OSC foi além, ao estabelecer a relação entre disposições do Acordo GATT com disposições do Cronograma de um Membro. No caso CE – Bananas, o OSC determinou que: O artigo II permite às partes contratantes incorporarem em seu Cronograma atos de cedência de direitos, porém não atos que relativizem suas obrigações frente ao GATT.98(sem grifo no original)

Nesse mesmo sentido, o Painel do caso CE – Frangos dispôs: O GATT e a jurisprudência da OMC indicam que Membros da OMC podem utilizar-se de dispositivos nos Cronograma de Concessões desde que para aclarar e qualificar as concessões que tenha individualmente concordados em assumir em seus Cronogramas, mas não podem caso seja para reduzir ou conflitar com obrigações que tenham assumido frente ao GATT ou ao Acordo da OMC, incluindo o Acordo sobre Agricultura. 99 (sem grifo no original)

Portanto, com base no princípio da interpretação efetiva, no princípio da harmonia dos tratados e na proibição de dispositivos de Cronogramas que reduzem ou conflitem com o AARU, o Painel passou à interpretação da nota ACP/Índia para decidir sobre a validade jurídica do referido dispositivo e a conseqüente legalidade do nível dos compromissos de redução da CE. A nota determina o seguinte: Não inclui as exportações de açúcar de origem dos países ACP/Índia sobre as quais a Comunidade não está celebrando compromissos de redução. A média de exportações no período 1986-1990 foi de 1.6 milhões de toneladas.

97

Encyclopedia of Public Internacional Law, p. 468 in Relatório do caso CE – Açúcar. p. 155. European Communites – Bananas. Relatório do Órgão de Apelação. P. 154. 99 European Communites – Poultry. Relatório do Órgão de Apelação. P. 98. 98

54 De acordo com a interpretação da CE, 100 ambas as frases da nota de são relevantes para compreender os compromissos da CE. Segundo a CE, a primeira frase possui dois elementos. Primeiro, ela confirma que uma quantia equivalente de açúcar dos países ACP/Índia não foram incluídas nas quantidades e nas despesas computadas para o cálculo dos níveis do período-base de 1996-2000. O segundo elemento da primeira frase esclarece que as exportações da quantidade de açúcar importada dos países ACP/Índia não podem ser consideradas como se fossem partes dos compromissos dos níveis do período-base. Além disso, a CE salienta ser a segunda frase vital para que se compreenda a nota em questão. Ela expressa a média de exportações do equivalente em açúcar dos países ACP/Índia no período 1986-2000. Essa referência ao período-base indica que a CE se comprometeu a limitar suas exportações a um nível estabelecido com base nas exportações feitas no períodobase, funcionando da mesma forma que os demais compromissos da CE, como autorização limitada a prover subsídios à exportação. Portanto, a CE afirma que, de acordo com uma interpretação apropriada da nota, seus compromissos de subsídios estão articulados em dois componentes. Um componente estabelece limites que estão sujeitos à redução e um segundo componente (a nota) estabelece um teto máximo. O Painel discordou da interpretação da CE sobre o dispositivo em tela por diversos motivos. Em primeiro lugar, os termos da nota não indicam nenhuma limitação no nível de 1.6 mi/ton de subsídios à exportação do açúcar oriundo dos países ACP/Índia. Por isso, não há um ”compromisso limitando a prática de subsídios”, requisito essencial para todo produto listado no Cronograma de Concessões. De acordo com o Painel, há também inconsistência nos argumentos da CE em relação à afirmação de que a nota do Cronograma de Concessões da CE tem efeito jurídico e se constitui num “compromisso”. Nesse sentido, os demandantes alegaram que a prática de notificações da CE ao Comitê de Agricultura da OMC sempre foi a de omitir dados relacionados aos subsídios à exportação de açúcar equivalente dos países ACP/Índia. Portanto, se a CE entendesse que havia assumido compromissos de redução dos subsídios à exportação no que se refere ao açúcar dos países ACP/Índia, ela teria apresentado estatísticas das exportações em suas notificações, tal como faz com os demais subsídios à exportação elencados no seu Cronograma. Conseqüentemente, o Painel deduziu que a CE nunca tratou a nota como um dispositivo sujeito às obrigações do AARU, isentando os subsídios à exportação do açúcar

100

Interpretação extraída da primeira submissão escrita da Comunidade Européia ao OSC. Parágrafos 167-169.

55 destinado aos países ACP/ Índia dos compromissos de redução do Cronograma de Concessões. É o que dispõe o relatório: Os termos da nota indicam que a CE não está fazendo nada mais do que afirmando que as exportações de açúcar subsidiado dos países ACP/ Índia não serão sujeitos aos compromissos de redução previstos nos artigos 3º, 9.1 e 9.2(b)(iv) do Acordo sobre Agricultura. 101

Ao final, o Painel concluiu pela invalidade jurídica da nota por considerar que ela não constitui nada além de uma declaração unilateral da CE que, em relação à exportação de açúcar subsidiado dos países ACP/Índia, não irá submetê-los aos compromissos de redução estabelecidos durante a Rodada Uruguai e tornadas partes integrantes do GATT 94. Nestes termos, o Painel é da visão que a nota é incompatível com os artigos 3º, 8º e 9º do Acordo sobre Agricultura, não podendo, portanto, ser interpretada de maneira harmoniosa em relação às disposições do Acordo. O Painel decidiu o seguinte: Portanto, o conteúdo da nota não possui efeito jurídico, tampouco modifica o nível do compromisso de redução especificado na Seção II, Parte IV do Cronograma, de 1.273,5 mi/ton, bem como o compromisso de desembolso orçamentário de €499.1 mi/ano. 102

Após ter concluído pela ilegalidade do nível de compromisso de redução para a exportação de açúcar da CE, o Painel passou à analise do segundo problema jurídico do caso CE – Açúcar, suscitado pelos argumentos da CE, para quem suas exportações de açúcar não são subsidiadas, conforme o artigo 10.3 do AARU.

4.3 A legalidade do sistema de pagamentos do regime açucareiro da Comunidade Européia

Os demandantes alegaram que a CE estaria subsidiando e exportando um produto listado – no caso, o açúcar – em volume excedente ao nível do compromisso do Cronograma, violando conseqüentemente os artigos 3º e 8º do AARU. Nesse contexto, as partes invocaram a aplicação do artigo 10.3 do AARU, que determina regras especiais sobre o ônus da prova: Qualquer Membro que alegue que uma quantidade exportada acima do nível de compromisso de redução não está subsidiada deverá demonstrar que, para a quantidade exportada em questão, não se concedeu qualquer subsídio à exportação, esteja ele ou não arrolado no artigo 9.

101 102

European Communities – Export Subsidies on Sugar. Relatório do Painel adotado em 15/10/2004. p. 179. European Communities – Export Subsidies on Sugar. Relatório do Painel adotado em 15/10/2004. p. 222.

56 Em outra oportunidade, o OSC, ao interpretar o referido dispositivo, afirmou que: Quando um Membro exporta um produto agrícola em quantidade excedente ao nível de compromisso de redução, este membro será tratado como se houvesse concedido subsídios à exportação incompatíveis com o AARU para o volume em excesso, ao menos que o Membro apresente prova adequada para estabelecer o contrário.

Portanto, com base no artigo 10.3 e na sua interpretação pelo OSC, uma vez provado factualmente pelos demandantes que a CE está exportando açúcar em excesso ao nível de compromisso de redução, há uma inversão no ônus da prova, e se transfere à CE o dever de provar que o açúcar exportado em excesso ao nível de compromisso não é subsidiado. Com efeito, as exigências do artigo 10.3 do AARU são baseadas na presunção de que os membros estão cientes dos subsídios que costumam prover aos seus próprios produtores. Se de fato não há subsídio, a CE deveria ser capaz de demonstrá-lo. De acordo com o Painel: Um demandado deve ser capaz de efetuar uma demonstração de que a medida não corresponde a nenhuma das definições constantes no artigo 9.1, de (a) até (f), do AARU. O demandado deve ser também capaz de demonstrar que a medida contestada não seja ‘’um subsídio subordinado ao desempenho das exportações’, conforme o sentido do artigo 1(e) do AARU.

No presente caso, os demandantes apresentaram provas prima facie de que, desde 1995, a CE tem exportado açúcar em quantidades que excedem o nível de compromisso pois, enquanto o nível previsto no Cronograma era de 1.273,5 mi/ton, o verdadeiro volume de açúcar subsidiado foi de 4.097 mi/ton, o que corresponde a um excesso no nível de exportações de açúcar de 2.823,5 mi/ton. Os demandantes alegaram que o açúcar subsidiado em excesso era essencialmente composto de açúcar equivalente dos países ACP/Índia e de açúcar C, o que corresponderia, respectivamente, aos subsídios definidos nos artigos 9.1(a) e (c) do AARU. Além disso, em relação às exportações de açúcar equivalente dos países ACP/Índia, afirma-se que, nos últimos cinco anos, o total de exportações de açúcar da CE excedeu seus níveis de compromisso, ao exportar 1.725 mi/ton de equivalente de açúcar dos países ACP/ Índia. Conseqüentemente, este volume de subsídios ultrapassaria o nível de compromisso final da CE, que é de 1.273,5 mi/ton. Além disso, conforme o artigo 10.3, as partes esclareceram que, se a CE alega que suas exportações de equivalente de açúcar não foram subsidiadas, é ela quem deve prová-lo.

57 De acordo com o Painel, a CE não nega as alegações dos demandantes de que o equivalente de açúcar dos países ACP/Índia beneficia-se do mesmo nível de reembolsos à exportação por unidade do açúcar A e B. Além disso, a CE não refuta as alegações que tais subsídios encaixam-se na definição do artigo 9.1(a) do AARU. Ela alega unicamente que o volume de açúcar equivalente dos países ACP/Índia está incluído no seu nível de compromisso conforme exige o artigo 3.3 do AARU. Segundo manifestação anterior do OSC no caso CE – Hormônios, ao tratar dos efeitos da inversão do ônus da prova, “um caso prima facie é aquele em que, na ausência de uma refutação pela parte demandada, o Painel é obrigado, por questão de direito, a concluir em favor das partes demandantes que apresentaram o caso prima facie”.103Portanto, com base no artigo 10.3, o Painel concluiu que a CE não demonstrou que suas exportações de açúcar equivalente dos países ACP/Índia não são subsidiadas, como indicam as provas prima facie. Segundo o Painel: As exportações que a CE denomina de açúcar equivalente dos países ACP/Índia recebem subsídios à exportação no sentido do artigo 9.1(a) do AARU, o que conseqüentemente lhe faz exceder seu nível de compromisso final de 1.273,5 mi/ton, agindo, portanto, de maneira ilegal frente aos artigos 104 3º e 8º do AARU.

Tendo concluído que as exportações da CE de açúcar equivalente dos países ACP/Índia são inconsistentes com as obrigações dos artigos 3º e 8º do AARU por excederem o nível de compromisso de 1.273,5 mi/ton, o Painel passou a examinar uma segunda categoria de açúcar subsidiada do regime açucareiro, denominada de exportações de açúcar C, a fim de aferir a correspondência de tal subsídio ao sentido do artigo 9.1(c) do AARU, alegada pelos demandantes. No entanto, antes disso, torna-se fundamental esclarecer o funcionamento do sistema de pagamentos do regime açucareiro da CE, estabelecido pelo Regulamento 1260/01. Em 1968, a CE estabeleceu uma Organização Comum de Mercado (OCM) para Açúcar. As principais regras dessa OCM se mantêm até hoje por força do Regulamento do Conselho nº 1260/2001, de 19 de junho de 2001.105 As OCM são instituições que regulamentam a produção e o comércio dos produtos agrícolas de todos os Estados-membros da União Européia. Desde a instituição da PAC, as

103

European Communities - Measures Concerning Meat and Meat Products (Hormones). Relatório do Órgão de Apelação. Parágrafo 104. 104 European Communities – Export Subsidies on Sugar. Relatório do Painel adotado em 15/10/2004. parágrafo 238. 105 Adotado em 19 de junho e publicado em 30 de junho de 2001 no Jornal Oficial da Comunidade Européia (L 178/1-45).

58 OCM substituíram, progressivamente, as organizações nacionais de mercado. As OCM visam, sobretudo, a cumprir os objetivos da PAC, quais sejam: incrementar a produtividade da agricultura, assegurar um nível de vida eqüitativo à população agrícola, estabilizar os mercados, garantir o abastecimento e assegurar preços razoáveis nos fornecimentos aos consumidores. Conforme o preâmbulo do Regulamento 1260/2001, seu objetivo é assegurar aos produtores comunitários de açúcar a manutenção das garantias necessárias ao emprego e ao nível de vida do produtor da CE. Para tanto, o Regulamento considera necessário criar medidas que visem à estabilização do mercado do açúcar, o que pode ser atingido de duas maneiras: por meio da aquisição da produção excedente pelos organismos de intervenção e pela fixação de um preço de intervenção. Com efeito, ao disciplinar a atuação da OCM do açúcar, o Regulamento permite à CE fixar preços de intervenção para o açúcar em todo o mercado europeu, além de conceder ajuda aos produtores ou aos profissionais do setor, instaurar mecanismos que permitem controlar a produção e organizar as trocas com países terceiros através de acordos de comércio preferencial. O maior instrumento da OCM do açúcar é o controle dos preços no mercado interno. O preço de intervenção do açúcar, também denominado de preço mínimo de garantia, é aproximadamente três vezes maior que os preços do mercado internacional. Esse preço de intervenção atua como uma rede de proteção que permite às agências de intervenção comprarem quotas de açúcar da CE a um preço garantido, caso a queda dos preços do açúcar no mercado doméstico atinja determinado nível. Além da intervenção nos preços do açúcar, a OCM prevê um regime de quotas de produção e de comercialização para o açúcar que funciona da seguinte maneira: a OCM estipula um preço indicativo, geralmente alto, para o açúcar que é produzido dentro de certas quotas de produção (Quotas A e B). Se houver produção acima das quotas estabelecidas, o açúcar excedente – doravante denominado de “açúcar C” – não poderá ser vendido no mercado interno no ano em que for produzido, devendo ser exportado ou estocado para garantir as quotas do ano seguinte. Para incentivar a exportação, a OCM de açúcar possibilita ao produtor do açúcar C a comercialização a preços inferiores ao custo total de produção, através de reembolsos à exportação. Estes reembolsos à exportação do regime açucareiro cobrem a diferença entre o preço de intervenção comunitário e o preço de exportação do açúcar C da CE.

59 Segundo os demandantes, o regime açucareiro da CE envolve uma duas formas de pagamentos destinados à exportação de produtos agrícolas: a) o pagamento em forma de redução de custos da beterraba C vendida para os produtores de açúcar C e, b) pagamento em forma de subsídio cruzado, resultante dos lucros obtidos com a venda de açúcar A e B usados para cobrir os custos fixos de produção e exportação de açúcar C. No presente caso, coube ao Painel examinar se ambas as formas de pagamento se enquadram na definição do artigo 9.1(c) do AARU: Os seguintes subsídios à exportação estão sujeitos aos compromissos de redução assumidos em virtude do presente Acordo:(c) os pagamentos para exportação de um produto agrícola financiado por medidas governamentais, que representam ou não um ônus ao tesouro nacional, incluindo os pagamentos financiados com recursos procedentes de uma taxa imposta ao referido produto agrícola ou imposta a um produto agrícola do qual o produto exportado é obtido.106

Segundo o Painel, o artigo 9.1(c) requer a demonstração de três elementos: primeiro, deve haver ”pagamento”, segundo, estes pagamentos devem ser efetuados “para a exportação de um produto agrícola” e terceiro, estes pagamentos devem ser “financiados por medidas governamentais”. Somente quando se presentes todos os elementos do dispositivo nos subsídios alegados pelos demandantes é que o Painel poderá considerá-los compatíveis com o AARU. No entanto, a CE silenciou. Seguindo a inversão do ônus da prova do já mencionado artigo 10.3, o Painel alcançou suas conclusões finais em relação ao sistema de pagamentos do regime açucareiro da CE, nos seguintes termos: À luz do artigo 10.3 do AARU, o Painel alcançou a conclusão de que a CE não demonstrou que suas exportações de açúcar C e do equivalente de açúcar dos países ACP/Índia que excedem os níveis de compromisso de redução da CE não são subsidiados. Conseqüentemente, o Painel considera que a CE tem agido de maneira inconsistente com suas obrigações dos artigos 3.3 e 8º do AARU ao prover subsídios à exportação de açúcar de acordo com as definições dos artigos 9.1(a) e 9.1(c) do AARU, em excesso ao nível de compromisso quantitativo especificado na Seção II, Parte IV do seu Cronograma de Concessões. 107

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A título de conclusão, as virtudes que se destacam no pilar de subsídios à exportação são, de um lado, o duplo compromisso alcançado tanto em termos de volume como em 106

Artigo 9.1(c) do AARU. European Communities – Export Subsidies on Sugar. Relatório do Painel adotado em 15/10/2004. parágrafos 339-340. 107

60 valores dos subsídios, e de outro, um grau considerável de precisão e detalhamento dos dispositivos do pilar, tanto nas suas definições como nas listas de produtos subsidiáveis e de subsídios permitidos. Estas virtudes garantiram maior transparência e maior objetividade na aplicação dos dispositivos do AARU . Há quem sustente que o pilar de subsídios às exportações seja uma das disciplinas mais rigorosas e potencialmente efetivas de todo o pacote agrícola acordado ao final da Rodada Uruguai. Tangermann observa que “dentre as disciplinas estabelecidas pelo AARU, a regulamentação dos subsídios à exportação pode ser considerada a mais coercitiva e a com maior efetividade em potencial, tornando-se elemento fundamental do Acordo sobre Agricultura”.108 No entanto, as aclamadas “virtudes” do AARU são acompanhadas dos seus “vícios”, como a lacuna na definição de subsídios à exportação agrícola, bem como a incompreensão dos efeitos jurídicos das listas de subsídios permitidos e de produtos subsidiáveis. Tais vícios tornam a disciplina de subsídios à exportação suscetível ao surgimento de controvérsias em relação aos cálculos quantitativos e orçamentários dos compromissos anuais e finais dos Estados, como foi no caso envolvendo os subsídios à exportação de açúcar da CE ora estudado. Ao final, o OSC considerou que a nota inserida pela CE em seu Cronograma de Concessões não passou de um subterfúgio às regras e aos compromissos de redução dos subsídios à exportação. Além disso, com base na inversão do ônus da prova imposta pelo AARU, o Painel concluiu pela ilegalidade do sistema de preços do Regulamento 1260, pelo fato da CE não ter demonstrado que suas exportações não eram subsidiadas.

5. CONCLUSÃO Ao fazer um balanço do processo de implementação do AARU por parte da CE, pode se afirmar que a aplicação do atual acordo da OMC não criou grandes problemas para a CE, por três motivos: a) o período de referência adotado ser um período de baixos níveis dos preços mundiais; b) a reforma da PAC de 1992 ter amenizado o esforço que a CE haveria que fazer em termos adaptação de sua política comunitária, e por ultimo; c) os subsídios da caixa azul estarem isentos de redução.

108

Tangermann, S. Implementation of the Uruguay Round Agreement on Agriculture by Major Developed Countries. p. 15. in Melaku Geboye Desta. op.cit. p. 212.

61 Pode se afirmar que o que houve no decorrer da Rodada Uruguai foi, na verdade, uma legalização intencional da PAC. Em razão da empenhada atuação em cada pilar das negociações agrícolas, a Comunidade conseguiu, ao final, forjar a criação de um direito internacional do comércio agrícola apto a abrigar a PAC dentro dos critérios de legalidade. De fato, a marcante atuação diplomática da CE durante as negociações da Rodada Uruguai garantiu que fossem firmados compromissos e regras que exigissem poucas mudanças substanciais no novo modelo europeu de agricultura da época. Em matéria de acesso a mercados, a conquista mais significativa da Rodada Uruguai foi indubitavelmente o princípio da tarifação. No entanto, como os impactos imediatos na liberalização comercial foram comprometidos no decorrer da implementação do AARU, pelas manobras de tarifação suja e pela dispersão tarifária adotadas pela CE, os avanços foram demasiadamente limitados. Em relação a CE houve, de fato, um retrocesso no processo de liberalização do comércio internacional da agricultura. No que se refere a acesso a mercados, houve duas situações em que a CE foi questionada junto ao OSC da OMC em relação à legalidade da PAC. Em tais situações, tanto a utilização discriminatória de quotas tarifárias no caso CE - bananas como a manipulação dos mecanismos de salvaguarda especial no caso CE – frangos foram considerados incompatíveis com os preceitos do AARU e do GATT-94. Em matéria de apoio doméstico, os resultados da Rodada Uruguai são contraditórios. Por um lado, por ser a primeira vez na história que o direito internacional do comércio conseguiu reduzir as medidas de apoio doméstico a seus equivalentes monetários e estabelecer limites no volume de subsídios, as normas sobre apoio doméstico podem ser consideradas um marco fundamental na história do Direito Internacional do Comércio. No entanto, por força do CE através do Acordo de Blair House, a criação da caixa azul enfraqueceu a disciplina de apoio doméstico, tornando-a a menos coercitiva e eficaz do AARU. A caixa azul é indubitavelmente a questão mais relevante quando se analisa a posição da CE frente ao sistema multilateral de comércio agrícola. Como ficou demonstrado, através desta vitória européia nas negociações da Rodada Uruguai, a Comunidade conseguiu que a PAC se mantivesse praticamente intacta, sofrendo muito pouco os efeitos da disciplina de apoio doméstico do AARU. Além disso, a disciplina de apoio doméstico, através da caixa âmbar, acabou por isentar das regras e compromissos de redução um volume anual de mais de €60 bilhões de euros em subsídios diretos à agricultura concedidos através da PAC.

62 Por último, no pilar de subsídios à exportação, as duas virtudes que se destacam são, de um lado, o duplo compromisso alcançado tanto em termos de volume como em valores dos subsídios, e de outro, um grau considerável de precisão e detalhamento dos dispositivos do pilar, tanto nas suas definições como nas listas de produtos subsidiáveis e de subsídios permitidos. No entanto, as aclamadas “virtudes” do AARU são acompanhadas dos seus “vícios”, que tornaram a disciplina de subsídios à exportação suscetível ao surgimento de controvérsias frente ao OSC em relação aos cálculos quantitativos e orçamentários dos compromissos anuais e finais dos Estados, como foi no caso dos subsídios à exportação de açúcar da CE ora estudado. A atuação do OSC da OMC deve receber destaque pela função que exerce na construção da jurisprudência sobre Direito Internacional do Comércio. A constante remissão do OSC ao Direito dos Tratados demonstra a natureza eminentemente “jurídica” do tratamento dado aos Acordos do GATT-94, entre eles o AARU, bem como aos Cronogramas de Concessões dos Estados membros. Em última análise, o OSC da OMC é atualmente o maior responsável pela efetiva integração da agricultura ao Direito Internacional do Comércio. Para além dos fundamentos protecionistas e das atuais negociações diplomáticas junto à OMC, um ponto deve ser reputado inequívoco: o comércio agrícola internacional é um pilar fundamental da arquitetura jurídica da OMC que ainda se encontra em construção. A CE, que historicamente relutou em negociar o comércio agrícola nos foros multilaterais, a partir da Rodada Uruguai, passou a assumir uma postura pró-ativa e vem tentando “multilateralizar” os fundamentos da PAC e do seu modelo europeu de agricultura, centrando sua negociação no princípio da multifuncionalidade da agricultura. Cabe aos negociadores dar continuidade ao processo de reforma do sistema multilateral de comércio agrícola, iniciado pelo AARU, e decidir em que medida a agricultura poderá seguir gozando de um status jurídico diferenciado diante das regras da OMC. Além disso, os Estados devem assegurar que haja uma consolidação da regulamentação internacional no setor agrícola, visando transformar aquilo que pode ter sido um casamento forçado – entre a agricultura e a OMC – numa relação sincera e duradoura. É dever da comunidade internacional prosseguir na construção de um Direito Internacional do Comércio destinado à agricultura cada vez mais justo e eficaz, permitindo que os ideais de livre comércio, de livre concorrência e de não discriminação não sigam sendo meras utopias a serem sempre pregadas mas nunca alcançadas pelo sistema multilateral de comércio.

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