O direito à cidade na urbanização planetária, ou: Henri Lefebvre por uma nova cidadania urbana

July 3, 2017 | Autor: João Tonucci Filho | Categoria: Urban Studies, Henri Lefebvre, Arquitetura e Urbanismo, Geografia Urbana
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TONUCCI FILHO, João B. M.. O direito à cidade na urbanização planetária, ou: Henri Lefebvre por uma nova cidadania urbana. In: COSTA, Geraldo M.; COSTA, Heloisa S. M.; MONTE-MÓR, Roberto L. de M. (Orgs.). Teorias e práticas urbanas: condições para a sociedade urbana. 1. ed. Belo Horizonte: C/Arte, 2015. v. 1. 556p.

João Bosco Moura Tonucci Filho

O direito à cidade na urbanização planetária, ou: Henri Lefebvre por uma nova cidadania urbana O direito à cidade: onde, ainda? Em meio à pluralidade do vozerio e da imagética multitudinária que invadiu as ruas brasileiras durante as jornadas de junho de 2013, reiteradas vezes defrontei-me com bandeiras e gritos pelo direito à cidade. A expressão está na boca de todos, apropriada e difundida – outros diriam banalizada – por um amplo espectro de sujeitos políticos: de movimentos urbanos radicais a entidades internacionais, como o Banco Mundial e a UN-Habitat. A existência de uma Carta Mundial pelo Direito à Cidade, elaborada entre 2004 e 2005 ao longo do Fórum Social das Américas, do Fórum Social Urbano e do V Fórum Social Mundial, atesta a atualidade global da ideia. Ideia originalmente formulada pelo filósofo marxista Henri Lefebvre, ainda em 1968. Segundo Lefebvre (1999; 2008), com a industrialização a cidade vai sofrer um duplo processo de implosão/explosão, perdendo seus traços anteriores de totalidade orgânica, sentido de pertencimento, espaço demarcado e monumentalismo. A realidade urbana (induzida pela industrialização) torna-se causa indutora, e a problemática urbana impõe-se à escala mundial. Os trabalhadores, expulsos da cidade para as periferias, perdem o sentido da cidade como obra criativa e coletiva. É contra esse estado de coisas que o autor vai formular conceitualmente o direito à cidade: direito à vida urbana e à centralidade, à realização do urbano como uso em detrimento da troca. Em recente publicação, Andy Merrifield (2013) questiona se ainda hoje a noção lefebvriana do direito à cidade guardaria seu vigor original. Basicamente, o argumento principal de Merrifield é que, ante o processo de urbanização planetária e completa urbanização da sociedade, a cidade desapareceu, pelo menos enquanto realidade concreta (fenômeno igualmente vislumbrado por Lefebvre). Como reclamar então por

 

um direito a algo que é agora tão somente história, memória, o espectro de uma experiência urbana pretérita? Ademais, ao mesmo tempo que as aglomerações urbanas se tornaram demasiado colossais e disformes para serem reivindicadas em sua totalidade por seus moradores, os protestos que tomam as ruas e praças em todo mundo se fazem em prol de um horizonte de transformação social e radicalização democrática que extravasa os limites metropolitanos, alcançando outras escalas espaciais. Ante essas contradições – mas ainda inspirado pela natureza espacialmente politizada da obra de Lefebvre –, Merrifield sugere que passemos do direito à cidade à “política do encontro”, não mais restrita a uma luta por direitos confinada à circunscrição da cidade. Não tenho aqui a pretensão de polemizar com a proposta de Merrifield, mas apenas apontar para o fato de que talvez a própria obra de Lefebvre aponte saídas teórica e politicamente produtivas para superar a contradição entre o grito do direito à cidade e o processo de urbanização planetária. Como se verá adiante, isso fica mais evidente ao explorarmos outras obras e textos do autor nas quais as questões urbanas – e o direito à cidade – são rediscutidas nas suas relações com a problemática da cidadania, dos direitos e da possibilidade de desvanecimento do Estado na modernidade. Destarte, o que aqui proponho é acompanhar como a ideia do direito à cidade é enunciado originalmente por Lefebvre, delinear seu momento de formulação teórica e política mais precisa, seguir os rastros da sua temporária submersão em meio à démarche do pensamento lefebvriano, e acercar-se, enfim, da sua reemergência, já transformada, ao final da vida do autor, pela articulação com outras problemáticas levantadas pelo mundo contemporâneo, principalmente com a questão da cidadania e dos direitos do cidadão no bojo da emergente sociedade urbana.

Direito à vida urbana: a cidade do uso, da festa e do encontro A ideia do direito à cidade foi originalmente formulada em termos conceituais pelo filósofo marxista francês Henri Lefebvre (1901-1991), que, no catártico ano de 1968 – mas pouco antes da irrupção de maio – publicou, pela Éditions Anthropos, um pequeno livro intitulado Le droit à la ville. Até então, Lefebvre se permitira investigar temas à margem do marxismo oficial e dogmático (como a vida cotidiana, a alienação, a festa, a espontaneidade, o mundo rural, a modernidade etc.) a partir de uma renovação do método dialético, e se colocara, logo no pós-II Guerra, numa posição de crítica ao socialismo de Estado, o que lhe custara não apenas a censura – e subsequente expulsão

 

– do Partido Comunista Francês, mas também haver sido relegado à periferia no panteão do pensamento crítico: posição essa que só há pouco começa a ser revertida, ante o reconhecimento do vigor e atualidade do seu pensamento. O interesse de Lefebvre pela questão urbana remonta anteriormente ao livro Introdução à modernidade (1962), em que o autor discorre algumas notas críticas acerca da experiência de Mourenx, cidade nova planejada nos Pirineus franceses, a poucos quilômetros de Navarrenx, sua querida terra natal. Os espaços racionalmente organizados, as vias cartesianamente desenhadas, as máquinas de morar dos grandes conjuntos habitacionais, a separação criteriosa de todas as funções urbanas: esse espaço concebido por tecnocratas a serviço da modernização representava para Lefebvre a negação de tudo que a cidade tinha de mais positivo: o encontro, a diversidade, o imprevisível (Merrifield, 2006). N’A proclamação da comuna, de 1965, o pensador aponta a Comuna de Paris de 1871 como a primeira expressão de um urbanismo revolucionário, ao sabor do situacionismo. Mas é na pequena coletânea de ensaios O direito à cidade, rascunhados ao longo da década de 1960, que Lefebvre realiza a sua primeira incursão substantiva em torno da problemática urbana, que iria se desdobrar em outras obras fundamentais ao longo da década de 1970 (como A revolução urbana, 1970, Espaço e política, 1972, e A produção do espaço, 1974). Para Lefebvre (2008), a cidade, dos gregos à Idade Média, constituiu-se como uma totalidade orgânica, obra máxima da civilização. Socialmente produzida, a cidade é diferente de todos os demais produtos: o que lhe dá especificidade é o primado do valor de uso sobre o valor de troca. Como se usa a cidade? Por meio das suas ruas, quarteirões, monumentos e espaços públicos: pela festa, momento de consumo improdutivo de energias e recursos em favor tão somente do prestígio e do prazer. Não pode haver cidade sem centralidades, sem um centro dinâmico repleto de urbanidade, momentos vividos, espaços públicos vibrantes, encontros encantadores, confrontos das diferenças e reconhecimentos recíprocos a cada esquina. (...) a cidade é obra a ser associada mais com a obra de arte do que com o simples produto material. Se há uma produção da cidade, e das relações sociais na cidade, é uma produção e reprodução de seres humanos por seres humanos, mais do que uma produção e reprodução de objetos. A cidade tem uma história; ela é a obra de uma história, isto é, de pessoas e de grupos bem determinados que realizam essa obra nas condições históricas (Lefebvre, 2008, p. 52).

 

O desenvolvimento do capitalismo industrial rompe essa unidade, destrói as barreiras e a simbiose entre a cidade e o campo, coloniza e secciona a vida cotidiana. A cidade tradicional (pré-capitalista, pré-industrial) explode no tecido urbano informe e estendido, formado por fragmentos múltiplos e disjuntos (periferias, subúrbios, cidadessatélites etc.). A cidade, outrora valor de uso (fruição, beleza), é transformada em mercadoria, produto com valor de troca, espaço privado para realização do lucro. (...) não é a razão que convém incriminar, mas sim um certo racionalismo, um racionalismo limitado e os limites dessa racionalidade. O mundo da mercadoria tem sua lógica imanente, a do dinheiro e do valor de troca generalizado sem limites. Uma tal forma, a da troca e da equivalência, só exprime indiferença diante da forma urbana; ela reduz a simultaneidade e os encontros à forma dos trocadores, e o lugar de encontro ao lugar onde se conclui o contrato ou quase contrato de troca equivalente: o reduz ao mercado. A sociedade urbana (...) tem uma lógica diferente da lógica da mercadoria. É um outro mundo. O urbano se baseia no valor de uso. Não se pode evitar o conflito (Lefebvre, 2008, p. 87).

Posteriormente, Lefebvre (2014) vai argumentar que o fracasso do urbanismo em produzir uma cidade viva e habitável não pode ser creditado somente ao capitalismo, à busca pelo lucro, já que o socialismo encontrou a mesma dificuldade: esse fracasso estaria antes relacionado ao próprio pensamento ocidental, que, desde os gregos, foi capaz apenas de produzir uma concepção meramente instrumental do urbano. Para o autor, somente os poetas entenderam a cidade como morada dos homens. É a partir de Paris que Lefebvre (2008) vai tecer suas reflexões. O risco da democracia urbana, que se torna evidente nas jornadas de 1848, e vai se confirmar na Comuna de 1871, assusta a burguesia ascendente. Qual a resposta, a estratégia política colocada em curso pelo poder? Expulsar os trabalhadores do centro da cidade, remodelando-a à imagem e semelhança da nova classe dominante. É este o sentido principal das reformas urbanas empreendidas pelo Barão de Haussmann em Paris, entre 1853 e 1870, que dilaceraram o coração tortuoso e vivo da cidade medieval, abrindo-a em vastos bulevares a serem povoadas por edificações padronizadas. Destarte, com a industrialização, uma extrema segregação se impõe aos grupos, etnias, estratos e classes sociais, destruindo morfologicamente a cidade e ameaçando a vida urbana. Os trabalhadores, expulsos da cidade para as periferias, perdem o sentido da cidade como obra criativa e coletiva. O habitat (a moradia reduzida à função, o habitante submetido à cotidianidade alienada) substitui o habitar (o viver plenamente a cidade). O urbanismo, ideologia e estratégia de classe calcada sob uma racionalidade  

fragmentadora, intensifica as segregações ao preconizar a separação e disjunção funcional das atividades urbanas e da sociedade no espaço. Apesar das boas intenções humanistas e das boas vontades filosóficas, a prática caminha na direção da segregação. Por quê? Por razões teóricas e em virtude de causas sociais e políticas. No plano teórico, o pensamento analítico separa, decupa. Fracassa quando pretende atingir uma síntese. Social e politicamente, as estratégias de classes (inconscientes ou conscientes) visam a segregação (...) As segregações que destroem morfologicamente a cidade e que ameaçam a vida urbana não podem ser tomadas por efeito nem de acasos, nem de conjunturas locais. Contentemo-nos com indicar que o caráter democrático de um regime é discernido em relação à sua atitude para com a cidade, para com as “liberdades” urbanas, para com a realidade urbana, e por conseguinte, para com a segregação (Lefebvre, 2008, p. 99, grifos do autor).

Entretanto, e contraditoriamente, (...) sobre essa base abalada, a sociedade urbana e “o urbano” persistem e mesmo se intensificam. As relações sociais continuam a se tornar mais complexas, a se multiplicar, a se intensificar, através das contradições mais dolorosas. A forma do urbano, sua razão suprema, a saber a simultaneidade e o encontro, não podem desaparecer. (...) O uso (o valor de uso) dos lugares, dos monumentos, das diferenças, escapa às exigências da troca, do valor de troca. (...) o urbano se torna aquilo que sempre foi: lugar do desejo, desequilíbrio permanente, sede da dissolução das normalidades e ações, momento do lúdico e do imprevisível. (...) Desta situação nasce a contradição crítica: tendência para a destruição da cidade, tendência para a intensificação do urbano e da problemática urbana (Lefebvre, 2008, p. 84-85).

É contra esse estado contraditório entre a desolação provocada pela crise da cidade e a esperança utópica carregada pelo urbano (pela vida urbana) que Lefebvre formula a ideia iluminadora do direito à cidade. Ele assim aponta a sua definição: (...) o direito à cidade (não à cidade arcaica mas à vida urbana, à centralidade renovada, aos locais de encontro e de trocas, aos ritmos de vida e empregos do tempo que permitem o uso pleno e inteiro desses momentos e locais etc.). A proclamação e a realização da vida urbana como reino do uso (da troca e do encontro separados do valor de troca) exigem o domínio do econômico (do valor de troca, do mercado e da mercadoria) (Lefebvre, 2008, p. 139, grifos do autor). O direito à cidade não pode ser concebido como um direito de visita ou de retorno às cidades tradicionais. Só pode ser formulado como direito à vida urbana, transformada, renovada. Pouco importa que o tecido urbano encerre em si o campo e aquilo que sobrevive da vida camponesa conquanto que “o urbano”, lugar de encontro, prioridade do valor de uso, inscrição no espaço de um tempo promovido à posição de supremo bem entre os bens, encontre sua base morfológica,

 

sua realização prático-sensível (Lefebvre, 2008, p. 117-118, grifos do autor).

O direito à cidade tampouco se confunde com a ideologia da participação, simulacro de informação e de atividade social para obter a aquiescência dos interessados. “É evidente que a participação real e ativa já tem um nome. Chama-se autogestão” (Lefebvre, 2008, p. 104, grifo do autor). Lefebvre estranha ainda que o direito à natureza (ao campo e à “natureza pura”) tenha entrado, à sua época, para a prática social em favor dos lazeres, contra o barulho, a fadiga, a excessiva concentração das cidades: Face a esse direito, ou pseudodireito, o direito à cidade se afirma como um apelo, uma exigência. Através de surpreendentes desvios – a nostalgia, o turismo, o retorno para o coração da cidade tradicional, o apelo das centralidades existentes ou recentemente elaboradas – esse direito caminha lentamente. A reivindicação da natureza, o desejo de aproveitar dela são desvios do direito à cidade. Esta última reivindicação se anuncia indiretamente, como tendência de fugir à cidade deteriorada e não renovada, à vida urbana alienada antes de existir “realmente”. A necessidade e o “direito” à natureza contrariam o direito à cidade sem conseguir eludi-lo (Isto não significa que não se deva preservar amplos espaços “naturais” diante das proliferações da cidade que explodiu) (Lefebvre, 2008, p. 117, grifo do autor).

O autor vai enfrentar também o problema dos lazeres – os “hobbies”, a “criatividade”, as férias, a produção cultural industrializada –, subordinados ao valor de troca na vida cotidiana da sociedade de consumo dirigida, a eles opondo a festa: O problema é acabar com as separações “cotidianidade-lazeres” ou “vida cotidiana-festa”. O problema é restituir a festa transformando a vida cotidiana. A cidade foi um espaço ocupado ao mesmo tempo pelo trabalho produtivo, pelas obras, pelas festas. Que ela reencontre essa função para além das funções, na sociedade urbana metamorfoseada (Lefebvre, 2008, p. 128).

Contra o centro de consumo – centralidade própria da cidade capitalista, lugar de consumo e consumo de lugar –, contra o centro de decisão do neocapitalismo, sobreposto ao centro de consumo, Lefebvre (2008) propõe uma outra centralidade, própria à sociedade urbana. Insuficiente denominá-la centralidade da cultura – pois a cultura se deixa facilmente burocratizar e institucionalizar: centralidade lúdica, reunião do educativo, do formativo, do informativo. Criação de espaços qualificados, complexos e apropriados à festa e à invenção, ao encontro, ao jogo, ao esporte, ao teatro. Reencontro do lugar do habitar sobre o habitat. Lefebvre fala da construção de uma nova cidade, sobre novas bases, numa outra escala. Cidade voltada à apropriação,  

por meio, sobretudo, da arte, que reconstitui o sentido da obra e da fruição. Em oposição à cidade eterna e aos centros estáveis, a cidade efêmera, as centralidades móveis. A criação de novos lugares qualificados, lugares de simultaneidade e de encontro, onde a troca não esteja subordinada ao comércio e ao lucro. Trata-se da necessidade de uma atividade criadora, de obra (e não apenas de produtos e de bens materiais consumíveis), necessidades de informação, de simbolismo, de imaginário, de atividades lúdicas (Lefebvre, 2008, p. 105). Necessária como a ciência, não suficiente, a arte traz para a realização da sociedade urbana sua longa meditação sobre a vida como drama e fruição. Além do mais, e sobretudo, a arte restitui o sentido da obra; ela oferece múltiplas figuras de tempos e de espaços apropriados: não impostos, não aceitos por uma resignação passiva, mas metamorfoseados em obra (Lefebvre, 2008, p. 116, grifos do autor).

Uma leitura apressada e descuidada pode sugerir que Lefebvre está propondo uma nostalgia romântica, um retorno ao paraíso perdido anterior à modernização capitalista, quando tudo seria integrado, artesanal e autêntico. Mas no seu pensamento não há idealização do passado, tampouco regresso possível à cidade tradicional ante o inevitável processo de completa urbanização da sociedade. Atualmente, Lewis Mumford, G. Bardet, entre outros, imaginam ainda uma cidade composta não por citadinos, mas por cidadãos livres, libertados da divisão do trabalho, das classes sociais e da luta dessas classes, constituindo uma comunidade, associados livremente para a gestão dessa comunidade. Compõem assim, como filósofos, o modelo da cidade ideal. Imaginam a liberdade no século XX como a liberdade da cidade grega (singularmente travestida por uma ideologia: apenas a cidade como tal possuía a liberdade, e não os indivíduos e os grupos). Portanto, pensam na cidade moderna segundo o modelo da cidade antiga, identificada com a cidade ideal e simultaneamente racional. A ágora, lugar e símbolo de uma democracia limitada aos cidadãos e que exclui as mulheres, os escravos, os estrangeiros, continua a ser, para uma certa filosofia da cidade, o símbolo da sociedade urbana em geral. Extrapolação tipicamente ideológica (Lefebvre, 2008, p. 47-48). Impossível considerar a hipótese da reconstituição da cidade antiga; possível apenas encarar a construção de uma nova cidade, sobre novas bases, numa outra escala, em outras condições, numa outra sociedade. Nem retorno (para a cidade tradicional), nem fuga para a frente, para a aglomeração colossal e informe – esta é a prescrição (Lefebvre, 2008, p. 106).

Mas quem pode se encarregar dessa tarefa? “Apenas grupos, classes ou frações de classes sociais capazes de iniciativas revolucionárias podem se encarregar das, e levar

 

até a sua plena realização, soluções para os problemas urbanos (...)” (Lefebvre, 2008, p. 113). Para a classe operária, vítima da segregação, expulsa da cidade tradicional, privada da vida urbana atual ou possível, apresenta-se um problema prático, portanto político. Isso ainda que esse problema não tenha sido levantado de forma política e que a questão da moradia tenha ocultado até aqui, para essa classe e seus representantes, a problemática da cidade e do urbano (Lefebvre, 2008, p. 104, grifos do autor).

Lefebvre vai considerar então a necessidade da classe operária levar adiante, simultaneamente, duas classes de proposições, ou uma estratégia urbana: a) Um programa político de reforma urbana, estratégia reformista, mas que se torna “necessariamente” revolucionária ao enfrentar as estruturas da sociedade existente, das questões da propriedade da terra aos problemas da segregação; b) Projetos urbanísticos compreendendo “modelos” e formas experimentais de espaço e de tempos urbanos, independentemente de serem realizáveis ou utópicos. Só o proletariado pode investir sua atividade social e política na realização da sociedade urbana. Só ele também pode renovar o sentido da atividade produtora e criadora ao destruir a ideologia do consumo. Ele tem, portanto, a capacidade de produzir um novo humanismo, diferente do velho humanismo liberal que está terminando sua existência: o humanismo do homem urbano para o qual e pelo qual a cidade e sua própria vida cotidiana na cidade se tornam obra, apropriação, valor de uso (...) (Lefebvre, 2008, p. 140, grifos do autor).

O autor defende que “o socialismo só pode ser concebido como produção orientada (...) para as necessidades da sociedade urbana. Os objetivos emprestados apenas à industrialização estão em vias de serem superados e transformados” (Lefebvre, 2008, p. 126, grifo do autor). E mais: “O duplo processo de industrialização e de urbanização perde todo o seu sentido se não se concebe a sociedade urbana como objetivo e finalidade da industrialização, se se subordina a vida urbana ao crescimento industrial” (Lefebvre, 2008, p. 137). O que Lefebvre (2008, p. 140) propõe é, “ao lado da revolução econômica (planificação orientada para as necessidades sociais) e da revolução política (controle democrático do aparelho estatal, autogestão generalizada) uma revolução cultural permanente”: transformar o mundo (Marx) e indissociavelmente mudar a vida (Rimbaud). Sem perder essa perspectiva revolucionária, ainda em 1968, Lefebvre (2008) já situava o direito à cidade entre outros direitos do homem e do cidadão:  

Surgem direitos; estes entram para os costumes ou em prescrições mais ou menos seguidas por atos, e sabe-se bem como esses “direitos” concretos vêm completar os direitos abstratos do homem e do cidadão inscritos no frontão dos edifícios pela democracia quando de seus primórdios revolucionários: direitos das idades e dos sexos (a mulher, a criança, o velho), direitos das condições (o proletário, o camponês), direitos à instrução e à educação, direito ao trabalho, à cultura, ao repouso, à saúde, à habitação. (...) A pressão da classe operária foi e continua a ser necessária (mas não suficiente) para o reconhecimento desses direitos, para a sua entrada para os costumes, para a sua inscrição nos códigos, ainda bem incompletos (Lefebvre, 2008, p. 117, grifo do autor).

Cidadão, citadino: por uma nova cidadania na urbanização planetária Na “Introdução” à proposta urbanística apresentada por Henri Lefebvre e pelos arquitetos franceses Pierre Guilbaud e Serge Renaudie, em julho de 1986, para a International Competition for the New Belgrade Urban Structure Improvement (Lefebvre; Guilbaud; Renaudie, 2009) promovida pelo então Estado da Iugoslávia, o filósofo nos lembra que a ruptura da cidade ameaça seu papel como lugar da civilização: ou o urbano será o espaço da dissociação caótica da sociedade, ou um espaço de reapropriação da vida cotidiana. O “direito à cidade”? (...) Isto significa (...): não permitir a perda do patrimônio histórico, não permitir que o espaço desmorone, restaurar o centro como um lugar de criação, civilização. O direito à cidade vem como um complemento, não tanto aos direitos do homem (como o direito à educação, à saúde, segurança etc.), mas aos direitos do cidadão: aquele que não é apenas um membro de uma “comunidade política” cuja concepção permanece indecisa e conflituosa, mas de um agrupamento mais preciso que coloca várias questões: a cidade moderna, o urbano. Este direito leva à participação ativa do cidadãocitadino no controle do território, e na sua gestão, cujas modalidades ainda precisam ser especificadas. Ele leva também à participação do cidadão-citadino na vida social ligada ao urbano; ele propõe que se proíba o deslocamento dessa cultura urbana, que se proíba a dispersão, não empilhando os “habitantes” e “usuários” um em cima do outro, mas inventando, nos domínios e níveis do arquitetônico, do urbanístico e do territorial. Este direito pressupõe uma transformação da sociedade (...) Por conta da autogestão, um lugar é esboçado entre o cidadão e o citadino (Lefebvre; Guilbaud; Renaudie, 2009, p. 1-2, tradução nossa).

No artigo “Dissolving city, planetary metamorphosis”, originalmente publicado no Le Monde Diplomatique (maio, 1989) sob o título “Quand la ville se perd dans une métamorphose planétaire”, Henri Lefebvre (2014) constata, já ao final de sua vida e com certa melancolia, o desvanecimento, no decorrer das últimas ilusões da

 

modernidade, da esperança de que o urbano – enquanto soma de práticas produtivas e experiências históricas – pudesse ser o caminho para novos valores, para uma civilização alternativa. Para ele, paradoxalmente, quanto mais a cidade é estendida, mais as relações sociais se deterioram, mais a condição dos citadinos se degrada. A urbanização pode ter alterado ligeiramente a cotidianidade, mas seus conteúdos não foram transformados: ela serviu mais para preservar e proteger as relações de dependência, dominação, exclusão e exploração. Desse modo, o fenômeno urbano é profundamente transformado. O centro histórico desapareceu como tal. Tudo o que resta são, por um lado, o centro de poder e de tomada de decisão e, por outro, espaços falsos e artificiais. É verdade, é claro, que a cidade permanece, mas apenas como museu e como espetáculo. O urbano, concebido e vivido como uma prática social, está em processo de deterioração e, talvez, de desaparecimento (Lefebvre, 2014, p. 567, tradução nossa).

Um segundo paradoxo é identificado por Lefebvre (2014): centros e periferias se pressupõem e se opõem, englobando todo o planeta nesse período histórico de mutação em que o urbano e o global se cruzam e se perturbam mutuamente. A planetarização do urbano, que tanto estende quanto ameaça a vida urbana, deverá abarcar todo o espaço no terceiro milênio, se não controlada. Não sem consequências nefastas: homogeneização, fragmentação e hierarquização do espaço, que produzem simultaneamente a aniquilação das diferenças, a mercantilização do espaço, a segregação. No processo de submissão das cidades às instituições – tecnocracias e burocracias inimigas da vida urbana –, o citadino (citadin) vê reduzidos seus direitos formais como cidadão (citoyen), assim como as oportunidades de exercer esses direitos: cidadão e citadino foram dissociados. Enquanto ser um cidadão significava permanecer por um longo período de tempo em um território, na cidade moderna o citadino está em movimento perpétuo, e as relações sociais tendem a se tornar internacionais. Lefebvre se questiona, ao fechar o texto: Dadas estas tendências, não é necessário reformular o arcabouço para a cidadania (la citoyenneté)? O morador da cidade e o cidadão precisam ser ligados, mas não confundidos. O direito à cidade implica nada menos do que um conceito revolucionário de cidadania (Lefebvre, 2014, p. 569-570, tradução nossa, grifo do autor).

Já no texto “From the social pact to the contract of citizenship” (Lefebvre, 2003), extraído do livro Du Contract de citoyenneté, originalmente publicado em 1990, o pensador vai refletir sobre a passagem do “contrato social” rousseauniano – fundado

 

no princípio da “vontade geral” da sociedade civil – a uma Nova Cidadania: horizonte de extensão da democracia, desvanecimento do Estado e generalização da autogestão. Quando nos nossos escritos afirmamos a verdade da proposição, “entre o Estado e o mercado não há nada”, nós colocamos um falso dilema, porque entre os dois já existe burocracia; amanhã poderá haver autogestão (...) (Lefebvre, 2003, p. 243, tradução nossa).

Para Lefebvre (2003), na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, as noções de “homem” – enquanto membro da raça humana – e de “cidadão” – enquanto membro de uma determinada sociedade civil – tinham o mesmo status: suas demandas e afirmações tinham a mesma fonte e envolviam a mesma recusa ao despotismo, à tiraria e à violação da Liberdade. Como, para os iluministas, a razão era baseada na natureza, os direitos humanos baseados na razão seriam também direitos naturais. Pela influência dos filósofos, o “homem” em geral, sujeito a uma razão universal, ganhou proeminência. Mas para ser “homem” era necessário, além da óbvia exclusão do sexo feminino, ser também proprietário. Todavia, Lefebvre considera que, a despeito da sua restrita formulação original, os Direitos do Homem foram progressivamente, no curso de muitas lutas, estendidos, diversificados. Aos poucos, o direito à propriedade – que não é extinto – deixa de definir exclusivamente o que é ser “homem”. Vê-se a introdução dos direitos à educação, à saúde, à aposentadoria, de direitos às mulheres, às crianças, aos idosos. Assim, durante dois séculos, enquanto os direitos do homem encontraram seu caminho no pensamento de sua época, os direitos do cidadão foram deixados no limbo, ainda que estivessem originalmente definidos nas primeiras declarações: direito de livre locomoção dentro das fronteiras nacionais, direito à liberdade de opinião, direito à votação (representação). Assim continua Lefebvre: Ao longo da história do chamado mundo “moderno” (...), o fosso entre direitos humanos e direitos do cidadão se ampliou. Os primeiros são implementados, se diversificam, dão origem a conferências internacionais, a épicas, titânicas, às vezes tragicômicas lutas. E o que dizer dos outros, os direitos do cidadão? Congelados, reduzidos ao mínimo para a sobrevivência, à sua definição inicial, que parece ser definitiva (Lefebvre, 2003, p. 249, tradução nossa).

Lefebvre se pergunta se não teria sido um erro do Marxismo haver subestimado ou mesmo ignorado tanto os direitos humanos quanto as lutas universais pela sua conquista, expansão e aprofundamento, pelas suas origens “burguesas”. E responde que provavelmente sim, ainda que os marxistas não tenham deixado de afirmar a sua aliança  

à Revolução Francesa. Destarte, e como efeito da restrição dos fins da luta de classes, o conceito de cidadania foi ignorado, não analisado ou desenvolvido. Para o autor, se o homem é definido em termos da raça humana, da racionalidade e da sociedade em geral, a cidadania é definida pela filiação a uma sociedade específica, e então pela nação e nacionalidade: isso inclui algo diferente e acima do contrato social. Porém, Lefebvre (2003) ressalta que o pertencimento não pode mais ser simplesmente definido por família e nome (nascimento) ou por lugar (residência): ele se multiplicou, na medida em que nós pertencemos à nossa família, à cidade, a uma região, a uma ocupação, a um país de origem, a um Estado, a um continente, a uma ou mais culturas etc. Por conseguinte, a relação entre os membros de uma sociedade com o seu Estado e nação – a cidadania – precisam ser redefinidos, estipulados em condições específicas que vão além dos direitos de representação da democracia liberal. (...) a formulação “moderna” da cidadania tem de assumir a forma de um contrato. Entre quem e quem? Entre o Estado e os cidadãos. E isso diminui (a ponto de, eventualmente, remover), a distância entre o Estado, o governo, o poder estabelecido, por um lado, e os cidadãos – a sociedade civil –, por outro. Consagrar a relação em um contrato não dá ao Estado maior peso. A formulação política da relação, ao contrário, reduz a tendência para a autonomia da esfera do político e do Estado, sua exterioridade vis-à-vis a sociedade civil e sua autoridade soberana. A contradição que vai para o coração do político, acima da “política”, oferece o caminho para uma solução (Lefebvre, 2003, p. 250, tradução nossa).

É então que Lefebvre (2003), aproveitando-se da comemoração do bicentenário da Revolução Francesa, e em oposição à cidadania fundada numa noção universal e abstrata do homem incapaz de reconhecer a complexidade e diversidade de suas filiações sociais, e que em troca de uma série de obrigações (impostos, serviço militar, declaração de propriedade etc.) oferece apenas o direito ao voto, vai propor um conjunto de Novos Direitos do Cidadão. Direitos ligados à vida cotidiana no mundo moderno, muitos dos quais já apareceram e desapareceram, alguns previamente formulados, outros antecipados na prática social. Lefebvre (2003, p. 250-254) enumera – e discute brevemente – os seguintes direitos: “direito à informação”, “direito à livre expressão”, “direito à cultura”, “direito à identidade dentro da diferença (e igualdade)”, “direito à autogestão”, “direito à cidade” e “direito a serviços”. Enquanto em 1968 Lefebvre (2008, p. 134) afirmava que o “direito à cidade se manifesta como forma superior dos direitos (...)”, é curiosa a sua breve menção em 1990:  

O direito à vida urbana, com todos os seus serviços e vantagens (...). Com as suas implicações e consequências, que ainda não estão firmemente ligados à nova cidadania. A ligação entre “ser um morador da cidade” e cidadania é inevitável nas sociedades que estão se tornando urbanizadas (Lefebvre, 2003, p. 253, tradução nossa).

Ademais, é importante frisar a distinção que Lefebvre estabelece entre o “direito à cidade” em relação ao “direito a serviços”, que incluem notavelmente serviços urbanos (públicos e privados) e uma ligação com os direitos costumeiros, calcados não na formalidade da lei instituída, mas na prática da vida cotidiana: Este é talvez o mais importante, e todavia o mais implícito dos direitos, aquele que tira o cidadão do isolamento e dá sentido a todas as suas obrigações. Ele tem o direito de utilizar serviços, em primeiro lugar, os serviços públicos: limpeza das ruas, recolhimento de lixo, transporte etc. (...) Este direito aos serviços públicos nem sempre precisa ser formulado. Isso nem sempre é verdadeiro no caso de serviços não públicos. Mas regras práticas continuam implicitamente a governá-los. Um lojista normalmente não se recusa a vender ao cliente (solvente!) o que ele quer. Aqui passamos de uma prática que está consagrada na lei, estipulada, estabelecida, à prática social: a vida cotidiana ordinária, regida por acordos tácitos que são mais fortes do que as leis e criam a sociedade civil. (...) Desta forma, a cidadania se apresenta, mas sem força legal ou jurídica, no comportamento habitual, isto é, no cotidiano (Lefebvre, 2003, p. 253, tradução nossa).

A sua definição de “direito à autogestão” inclui uma explícita dimensão espacial (assim como econômica) na realização da democracia: A autogestão é definida como os saberes e o controle (no limite) por um grupo – uma empresa, uma localidade, uma área ou uma região – sobre as condições da sua existência e da sua sobrevivência em meio à mudança. Por meio da autogestão, esses grupos sociais são capazes de influenciar a sua própria realidade. (...) O crescimento da democracia é assim: ou a democracia entra em declínio – ou o direito à autogestão é trazido à definição da cidadania (Lefebvre, 2003, p. 252, tradução nossa).

Para Lefebvre (2003), esses direitos (não dogmáticos), a serem organizados e colocados em prática, completariam, democraticamente, o projeto abandonado da ditadura do proletariado: sem brutalidade, fariam o Estado desvanecer.

Do direito à cidade à cidadania urbana: aberturas do político Neste texto, procurei investigar como se deu originalmente a delimitação teórica e política da noção do direito à cidade para Henri Lefebvre, e como posteriormente essa ideia foi pelo autor associada a outras problemáticas, particularmente às suas reflexões  

sobre direitos e cidadania e sobre o desvanecimento do Estado num mundo já urbano. Essa leitura transversal da sua obra me permite aqui explorar, ainda que introdutoriamente, uma série de questões que, a meu ver, contribuem para reposicionar Lefebvre como um pensador crítico do político ainda potente para enfrentamento dos impasses da nossa contemporaneidade. Lefebvre se alinha radicalmente a um marxismo radical para o qual a superação da propriedade privada e do trabalho alienado capitalistas só é possível mediante o desvanecimento do Estado moderno: daí suas profundas críticas ao socialismo real e seus embates com o Partido Comunista Francês. A despeito dessa inegável dimensão antiestatista do pensamento político de Lefebvre, a reconstituição aqui esboçada de algumas tramas de sua obra coloca em relevo um aspecto geralmente ignorado ou mesmo rechaçado entre os marxistas mais ortodoxos: a ideia de que mesmo lutas por direitos e por cidadania – no e contra o Estado – possam ter um alcance revolucionário. Ao articular dialeticamente a tese de que a inscrição de direitos dos cidadãos no âmbito do Estado pode apontar caminhos para a própria superação desse Estado, Lefebvre se aproxima dos movimentos da nova esquerda que emergiram no pós-1968, e de certo modo ainda da posição de certos autores pós-estruturalistas – como Foucault e Deleuze –, pelo menos quanto à importância conferida às lutas táticas, às conquistas incrementais e a uma política posicional não apenas programática e estratégica, mas aberta à festa, ao momento espontâneo e à diferença. Entretanto, para Lefebvre, essas aberturas do político não deveriam perder de vista o projeto revolucionário de supressão do capitalismo e desvanecimento da formaEstado, ainda que tal projeto não deva ser estritamente confiado ao proletariado industrial como sujeito predestinado à tomada do poder. Em termos organizativos do político, trata-se da superação da tecnoburocracia pela autogestão generalizada: o que implicaria ainda na passagem do direito formal moderno, associado à ordem distante do Estado, ao direito consuetudinário tecido na prática social da vida cotidiana, no universo da ordem próxima da comunidade. Lefebvre se aproxima aqui dos debates mais contemporâneos da teoria crítica, em que a superação do capitalismo – e a passagem da política ao político – se vislumbra nos processos de radicalização democrática e na constituição do comum como cerne do comunismo (Douzinas; Zizek, 2010). Ademais, a perspectiva aberta por Lefebvre sobre uma nova cidadania urbana dispersa em múltiplas escalas e calcada na vida cotidiana também poderia ser posta a dialogar com produções mais recentes, como os estudos sobre as cidadanias insurgentes  

dos pobres urbanos nas metrópoles do Sul global investigadas por Holston (2008), ou as genealogias urbanas da cidadania moderna empreendidas por Isin (2002), na qual o forasteiro, o estranho e o estrangeiro são alçados a um primeiro plano como sujeitos sociais contestatórios, desestabilizando formulações abstratas e estáveis da cidadania associada exclusivamente ao Estado. A ligação entre o cidadão e o citadino na urbanização planetária tal qual entrevista por Lefebvre, ao permitir repensar a cidadania (e seus direitos) a partir da vida cotidiana, aponta para a superação de um dos fundamentos da cidadania moderna ocidental: a dissociação aristotélica entre o oikos (o mundo privado da não política) e a polis (o mundo público da política). Mesmo que o direito à cidade tenha se deslocado para as margens na démarche do pensamento lefebvriano – não devemos perder de vista o calor do momento político de 1968 e o apelo que o slogan carregava então –, o autor não o abandonou até o final de sua vida, como se pôde ver nos textos aqui explorados. Por quê? Talvez pela sua percepção de que o direito à cidade funcionasse como uma metonímia do direito à vida urbana, direito ao urbano que se debate para nascer nos rastros da produção de um espaço urbano planetário. Ainda, como negar que, independentemente dos nossos mais eloquentes debates intelectuais, o direito à cidade continue a movimentar e a inspirar movimentos sociais urbanos em todo mundo? Que ele, não reduzido a um direito juridicamente constituído, afirma-se como bandeira de luta contra as múltiplas segregações que se impõem pelas vias da tecnocracia estatal e do urbanismo neoliberal, contra a mercantilização brutal do espaço urbano em curso? O direito à cidade, mesmo que redefinido em meio a um irreversível processo de urbanização planetária detonado pela implosão/explosão da cidade, parece constituir ainda um chamado político potente, contrariando o entendimento de Merrifield (2006): via a luta por outra cidadania radical centrada na vida cotidiana, e contra a subordinação do urbano ao domínio do mundo da mercadoria, da racionalidade industrial homogeneizante e do sufocamento da sociedade civil pelo Estado. Enfim, pela liberação das potencialidades desse urbano apenas entrevisto: um espaço de encontro, de reunião do que é segregado, de expressão de diferenças – de abertura do político.

 

REFERÊNCIAS DOUZINAS, Costas; ZIZEK, Slavoj (Ed.). The idea of communism. London/New York: Verso, 2010. HOLSTON, James. Insurgent citizenship: disjunctions of democracy and modernity in Brazil. Princeton: Princeton University Press, 2008. ISIN, Engin F. Being political: genealogies of citizenship. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2002. LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999. LEFEBVRE, Henri. From the social pact to the contract of citizenship. In: ELDEN, S.; LEBAS, E.; KOFMAN, E. (Ed.). Henri Lefebvre – Key writings. London/New York: Continuum, 2003. LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2008. LEFEBVRE, Henri. Dissolving city, planetary metamorphosis. In: BRENNER, Neil. (Ed.). Implosions/explosions: towards a study of planetary urbanization. Berlin: JOVIS, 2014. LEFEBVRE, Henri; GUILBAUD, Pierre; RENAUDIE, Serge. International competition for the New Belgrade urban structure improvement. In: BITTER, Sabine; WEBER, Helmut (Ed.). Autogestion, or Henri Lefebvre in New Belgrade. Vancouver/Berlin: Fillip Editions and Sternberg Press, 2009. MERRIFIELD, Andy. Henri Lefebvre: a critical introduction. New York: Routledge, 2006.

 

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