O DIREITO ANTITRUSTE E A PROPRIEDADE INTELECTUAL: UM REGIME DE COORDENAÇÃO

June 1, 2017 | Autor: André Moreira | Categoria: Technology, Competition Law, Intellectual Property Law, Antitrust Law
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O DIREITO ANTITRUSTE E A PROPRIEDADE INTELECTUAL: UM REGIME DE COORDENAÇÃO André de O. S. Moreira1

SUMÁRIO: I – Introdução. II – A relação entre a propriedade intelectual e direito antitruste. 2.1 – A conflitante natureza ideológica dos direitos intelectuais e concorrenciais e a sua compatibilização. 2.2 - O mercado da inovação e os abusos da propriedade intelectual. III - O direito antitruste como ferramenta de controle no exercício de direitos de propriedade intelectual. 3.1 - A coordenação entre o direito antitruste e a propriedade intelectual: a experiência internacional. 3.2 – Casos. 3.2.1 – Caso Phillips VCR. 3.2.2 – Caso DVD. 3.2.3 – Caso Magill. 3.2.4 – Caso National Medical Care Inc. e Baxter Hospitalar Ltda. IV – Considerações finais.

I - Introdução

A tecnologia é sem dúvida um dos principais vetores da atual economia global, já que está presente em todas as etapas do corrente processo econômico: é o produto, é o meio de negociação, é a forma de pagamento, é a forma de interação entre cliente-vendedor, é o veículo da entrega, entre muitas outras. Contudo, quando analisamos a origem de bens tecnológicos sempre encontramos uma origem comum entre todos: eles sempre nasceram no imaginário de uma ou mais pessoas, antes que, com o emprego de diversos recursos, se tornassem algo palpável, útil e, por óbvio, valorizado. No entanto, esse berço comum dos bens tecnológicos mostrou-se, no passado, um grande problema àqueles que desejavam empregar seus esforços na materialização de suas idéias, pois no momento em que as externavam a terceiros corriam o grande risco de tê-las surrupiadas, copiadas, imitadas e até mesmo melhoradas, mas sem qualquer contraprestação pelo que já haviam desenvolvido até então. No entanto, há mais ou menos 200 anos essa falha 1

Mestrando pela Faculdade de Direito da UFRGS, advogado.

começou a ser corrigida pelos poderes nacionais de cada Estado, quando, então, nasceu a Propriedade Intelectual, garantindo assim aos criadores determinado direito exclusivo para exploração de suas obras. Ocorre que com o passar dos anos essa área do direito desenvolveu-se de forma exponencial, abarcando hoje uma série de institutos jurídicos que protegem os direitos de exploração de criações com variadas formas, procedimentos, prazos de vigência, mas sempre guardando em si um aspecto comum: a exclusividade temporária, ou seja, um quase monopólio como diz Petter Alberts2 ou mesmo Denis Borges Barbosa3. E por um quase monopólio ser, muitas vezes esses instrumentos legais se tornam uma arma de grande potencial (positivo e negativo) em um mercado onde cada vez mais a noção de liberdade concorrencial se concretiza como um dos outros vetores do desenvolvimento econômico. E é aqui, portanto, que o direito da concorrência faz sua entrada triunfal, apresentando-se, talvez, como uma ferramenta útil para temperar esses quasemonopólios intelectuais. Nesse sentido, o objeto deste estudo é analisar como e quando os direitos de propriedade intelectual (na verdade o exercício destes) afetam de forma negativa o mercado e a liberdade inerente à existência salutar do espaço concorrencial, analisando, outrossim, se cabe ao direito de concorrência interferir nesses abusos e, em caso positivo, como estas interferências poderão ocorrrer. Para alcançar esse objetivo, o presente trabalho foi dividido em duas partes, cada uma especificamente subdividida, findando em uma conclusão com o ponto de vista deste autor. Na primeira parte será apresentada a natureza ideológica muitas vezes conflitantes entre o direito da propriedade intelectual e o direito antitruste, buscando mostrar que, mesmo assim, existem pontos que os 2

ALBERTS, Petter. Intellectual property, competition and technical standards. Dissertação de mestrado apresentada na Lund University – Faculty of Law, Suécia, 2007. p. 7. Disponível em acesso em 10/10/2012. 3 BARBOSA, Denis Borges. Do princípio quantum vindicatum em propriedade intelectual. 2009, p. 1-5. Disponível em acesso em 10/10/2012.

fazem convergir em um regime de complementaridade com base em um objetivo final maior. Ainda nesta primeira parte serão apresentadas algumas condutas típicas oriundas do exercício de direitos de propriedade intelectual que podem, outrossim, afetar o mercado e a liberdade de concorrência de forma negativa, enquadrando-se, consequentemente, em algumas definições de práticas anticompetitivas nas legislações nacionais dos EUA, EU e Brasil. Já em um segundo momento será apresentada a forma como o direito antitruste atuará no controle do exercício de direitos de propriedade intelectual no mercado, analisando especialmente como os Estados Unidos, União Européia e o Brasil enfrentam esse tipo de questão. Por fim, serão apresentados casos onde os exercícios de referidos direitos foram relativizados ou ignorados pelo direito antitruste, tentando encontrar nestes casos entendimentos comuns entre órgãos de diferentes nações e legislações. Não será objetivo deste estudo analisar questões basilares do direito antitruste assim como da propriedade intelectual, pois serão abordadas pontualmente quando necessário para a devida compreensão dos demais temas. Da mesma forma, o presente trabalho concederá maior atenção aos direitos de propriedade industrial quando utilizados como ferramenta de concorrência. O marco teórico para este trabalho é sustentado, basilarmente, pelas idéias apresentadas por Petter Alberts, Luciano Timm e George Priest, além de outros doutrinadores que certamente contribuíram para esse estudo.

II – A relação entre a propriedade intelectual e direito antitruste

2.1 – A conflitante natureza ideológica dos direitos intelectuais e concorrenciais e a sua compatibilização

Cumpre, ainda que brevemente, conceituarmos a propriedade intelectual para que possamos, em um momento posterior, entender o porquê de sua essência. Para tanto, apoiamo-nos nos ensinamentos de Nuno Pires de

Carvalho, citado por Luiz Otávio Pimentel que, de uma forma simplória, porém completa, define a propriedade intelectual como “o conjunto de princípios e de regras que regulam a aquisição, o uso, o exercício e a perda de direitos e de interesses sobre ativos intangíveis diferenciadores que são suscetíveis de utilização no comércio”4. Esse ramo do direito é, pela maioria dos doutrinadores, dividido em duas grandes áreas5: o direito autoral (copyright) e a propriedade industrial (marcas, patentes, desenho industrial, etc.). Trata-se, em suma, da proteção das criações humanas, atividade inerente à mentalidade do homem. Ocorre, no entanto, que tanto o direito autoral como a propriedade intelectual, como forma de proteção ao criador de alguma inovação artística ou tecnológica, garantem a ele uma espécie de direito de exclusividade, ou como coloca Pimentel: “Os direitos de autor e os direitos conexos consistem no direito de proibir que terceiros copiem, ou que pratiquem, os diversos atos que constituem

modalidades

de

cópia,

como

reproduzir,

traduzir,

adaptar,

comunicar, transmitir e fixar as obras protegidas. Os direitos de propriedade industrial consistem no direito de proibir que terceiros utilizem os ativos protegidos.”6 As razões para concessão dessa exclusividade são inúmeras e indiscutivelmente legítimas, destacando dentre elas uma política de incentivo à atividade criativa e inventiva7. Ao conceder ao inventor um temporário direito exclusivo de uso de sua invenção o Estado permite que o mesmo recupere o

4

CARVALHO, Nuno Pires citado por PIMENTEL, Luiz Otávio. Propriedade intelectual e universidade: aspectos legais. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005, p. 18-19. 5 “A doutrina, na ciência jurídica, divide esses direitos em dois grandes ramos, os direitos autorais e a propriedade industrial. Podemos indicar entre os elementos comuns a todos eles a imaterialidade do seu objeto (incorpóreo, intangível) e a classificação para os efeitos do Código Civil brasileiro como bens móveis” PIMENTEL, op. cit., p. 19. 6 PIMENTEL, op. cit., p. 20. 7 O Comunicado 287 (2011) da Comissão Europeia destaca explicitamente que a proteção a inventos é crucial para o desenvolvimento de novos medicamentos, a das marcas é importante para o investimento das empresas na qualidade de seus produtos e serviços, devido à fidelidade marcária, e a proteção de direitos autorais estimula a criação de conteúdos criativos, como músicas, livros, obras científicas e filmes. (COM (2011) 287 - Communication from the commission to the european parliament, the council, the european economic and social committee and the committee of the regions, p. 5. Disponível em acesso em 12/05/2012).

tempo e investimentos despendidos8, podendo auferir lucros oriundos da exploração de sua obra no mercado, seja diretamente, seja por meio de licenciamento da tecnologia a terceiros, que lhe pagarão royalties9. Dessa maneira, a proteção da propriedade intelectual concentra tanto interesses privados (lucro, reconhecimento da obra, status) como públicos (incentivo à criação, incremento da tecnologia nacional, aumento da receita tributária), fazendo da mesma um instrumento importante no desenvolvimento econômico, social e tecnológico de uma nação. Retornando à análise da exclusividade discutida alhures, Dênis Borges Barbosa vai um pouco mais além, afirmando categoricamente que estamos diante de claros monopólios, previstos, no caso do Brasil, em nossa própria Lei maior10. Nesse sentido o Ministro Eros Grau, solidificando ainda mais o posicionamento de Barbosa, com o qual este autor concorda integralmente, identificou os direitos de propriedade industrial como monopólios legais privados, instituídos pelo próprio Estado por meio de seu poder discricionário orientado por interesses políticos e econômicos:

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Importante destacar que o Estado não garante o retorno dos investimentos feitos pelo inventor, mas apenas lhe concede uma vantagem dentro do âmbito de mercado, este sim que irá determinar se o inventor recuperará o que aplicou na atividade de criação. Sobre esse ponto bem falou Karin Grau-Kuntz: “A garantia da exclusividade de exploração de determinadas informações, ou seja, daquelas que preenchem determinados requisitos legais, não implica assim em garantia alguma de que o título exclusivo irá resultar em uma vantagem econômica ao seu titular. A propriedade intelectual garante apenas uma possibilidade de lucro, a depender dos ânimos do mercado.”. (GRAU-KUNTZ, Karin. A interface da propriedade intelectual com o direito antitruste. Exposição apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em 22 de agosto de 2011, p. 1. Disponível em acesso em 10/10/2012. 9 Dênis Borges Barbosa nos explica que o conceito de royalties, no sistema legal brasileiro, é melhor definido pela legislação tributária: “A noção de royalties, róialtis, ou regalias, é construída na legislação tributária interna pelo art. 22 da Lei 4.506/64. Segundo a lei, são royalties: “os rendimentos de qualquer espécie decorrentes do uso, fruição ou exploração de direitos, tais como: a) direitos de colher ou extrair recursos vegetais, inclusive florestais; b) direito de pesquisar e extrair recursos minerais; c) uso ou exploração de invenções, processos e fórmulas de fabricação e de marcas de indústria e comércio; d) exploração de direitos autorais, salvo quando percebidos pelo autor ou criador do bem ou obra”.” (BARBOSA, Denis Borges. Tributação da propriedade intelectual: dedutibilidade. 2006, p. 7. Disponível em acesso em 10/10/2012). 10 “Os direitos de propriedade industrial são monopólios constitucionalmente previstos (art. 5º, inciso XXIX da CF 88), assegurados por lei, que resultam na exclusividade do seu uso ou exploração pelo titular.” (BARBOSA, 2009, p. 5.)

“O monopólio (i) pode decorrer do lícito exercício de uma vantagem competitiva ou (ii) ser instituído mediante lei. (...) Já no segundo caso (instituição de monopólio mediante lei, monopólio legal), tem-se situação inversa: aí o Estado exerce uma opção política, em razão da qual o sistema jurídico atribui a determinado

agente

a

faculdade

do

exercício,

com

exclusividade, de uma certa atividade econômica em sentido estrito. Estabelece-se artificialmente (pela lei) um ambiente impermeável à livre iniciativa; a ausência de concorrência é total. Qualquer outro agente econômico que se disponha a explorar a atividade monopolizada estará impedido de fazê-lo --- a lei não admite essa exploração. Os monopólios legais dividem-se, por sua vez, em duas espécies: (i) os que visam a impelir o agente econômico ao investimento e (ii) os que instrumentam a atuação do Estado na economia. Transitamos, quando daquele primeiro tipo de monopólio, pela seara da chamada propriedade industrial: da e na proteção dos brevetos, marcas, know-how etc. emerge autêntico monopólio privado; ao detentor do direito de propriedade industrial é assegurada a exclusividade de sua exploração.”11 Nesse sentido, podemos perceber que existe um claro reconhecimento de que a propriedade industrial (e a intelectual) atua como um monopólio legal que, no entanto, segue um objetivo não exclusivamente privado, pois inegavelmente participa da política estratégica de crescimento e desenvolvimento tecnológico e econômico de um país. Porém, é impossível não questionarmos como se dá o funcionamento desse tipo de artificialidade exclusiva em um mercado onde o que se prega é a liberdade concorrencial, que, aliás, é o objeto de estudo do direito antitruste, segundo ponto de análise deste capítulo e bem conceituado por José Inácio Gonzaga Franceschini:

11

STF, ADI 3273/DF e ADI 3366/DF, Relator Ministro Eros Grau, DJ 02/03/07.

“O Direito da Concorrência pode ser entendido como o ramo do Direito Penal-Econômico que disciplina as relações de mercado entre os agentes econômicos e os consumidores, tutelando-lhes, sob sanção, o pleno exercício do direito à livre concorrência como instrumento da livre iniciativa, em prol da coletividade”12 Ainda neste sentido, o professor Augusto Jaeger Júnior explica, de maneira irretocável, que o direito da concorrência é “O conjunto de leis que têm por escopo a proteção do mercado contra restrições à concorrência, imputáveis a comportamentos isolados dos sujeitos econômicos ou coligados de grupos de empresas, independentemente de sua forma jurídica”13. Acrescenta-se a estes ensinamentos, também, os dizeres de Luciano Timm que, ao analisar o papel do direito antitruste em uma economia liberalizada, como é o caso da brasileira, diz ser o mesmo uma peça chave na supervisão das liberdades das partes atuantes neste, em tese, livre mercado14. Portanto, nos parece claro que o direito antitruste coloca a liberdade concorrencial como um dos valores máximos a serem protegidos, pois este está inegavelmente ligado à ideia de desenvolvimento e progresso salutar da economia e da sociedade que se aproveita desta. Florisbal Del’Olmo bem falou que: “O Estado deve primar por uma concorrência entre os agentes econômicos com base em preceitos éticos e leais, por uma atuação no mercado sem-fins espúrios ou monopolizadores. A concorrência deve ser preservada como meio de tutela do consumidor e como instrumento de concretização da eficiência econômica, permitindo que haja progresso e desenvolvimento da economia.”15. A partir desta afirmação do professor Del’Olmo, sustentada também por inúmeros outros doutrinadores, nos parece um tanto lógico alçar o seguinte 12

FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga. Introdução ao direito da concorrência. São Paulo: Malheiros Editores, 1996, p. 8. 13 JAEGER JUNIOR, Augusto. Liberdade de concorrência na União Européia e no Mercosul. São Paulo: LTr, 2006, p. 43. 14 “Em um sistema econômico voltado para o mercado, a lei antitruste constitui-se no ponto nevrálgico para garantir a eficiência do modelo e servir de supervisor da liberdade das partes, as quais operam, teoricamente, livre no mercado”. TIMM, Luciano Benetti. Contrato internacional de transferência de tecnologia no Brasil: intersecção da propriedade intelectual com o direito antitruste. Monografia apresentada no III Prêmio SEAE, 2008, p. 19. 15 DEL`OLMO, Florisbal de Souza. Curso de direito internacional privado. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 195.

questionamento: se o direito da concorrência busca eliminar o intuitos monopolizadores do mercado, visando assim o alcance da eficiência econômica e, consequentemente, o desenvolvimento da economia e das demais áreas dela dependentes, bem como a promoção do bem-estar do consumidor, não seriam os direitos da propriedade intelectual claras afrontas ao direito antitruste? Luciano Timm percebe esse conflito quando analisa as Leis Antitruste e de Propriedade Industrial brasileira em sua obra, dizendo que de fato elas são ideologicamente conflitantes, já que de um lado encontra-se a defesa da livre concorrência e de outro a garantia de um monopólio16, mas isso não quer dizer que elas sejam necessariamente excludentes, muito pelo contrário. É cediço na doutrina nacional e internacional defensora da liberdade de mercado que, apesar das diferenças de meio, tanto a propriedade intelectual como o direito antitruste suportam os mesmos fins: proteger e promover a inovação e, consequentemente, a concorrência17, o que indica que ambas devem, sim, ser compatíveis entre si, o que será melhor estudado na segunda parte deste estudo. Os direitos de propriedade intelectual são legítimos, e o monopólio oriundo dos mesmos também, pois, apesar de ideologicamente contrários à noção de livre concorrência, atuam em conformidade com esta, estimulando a superação pelos demais players do mercado, ocasionando uma corrida na otimização de produtos e processos, onde o consumidor será certamente beneficiado. Karin Grau-Kuntz cita uma frase de Lehman que sintetiza esses

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“A obra trata, assim, da particular sistematização e compatibilização de duas leis relativamente recentes na experiência jurídica brasileira e que, ideologicamente, estão em conflito: de um lado, garantir a concorrência no direito antitruste; e, de outro, garantir um “monopólio”3, no caso da legislação patentária”. TIMM, op. cit., p. 4. 17 “With respect to intellectual property laws in particular, it also reflects this administration’s view, and frankly, the view of all free-market scholars, that antitrust principles and intellectual property laws do not conflict but, instead, support the same goals of protecting and promoting both innovation and competition.” (DELRAHIM, Makan. International antitrust and intellectual property: challenges on the road to convergence. Trabalho apresentado na American Bar Association, Section of Antitrust Law, Conference on Antitrust & Intellectual Property: the Courts, the Enforcers, and the Business World, em São Francisco, EUA, 21/05/2004, p. 3. Disponível em acesso em 10/10/2012.)

institutos jurídicos dentro do direito da concorrência, dizendo ser a propriedade intelectual “limitações na concorrência voltadas a incentivar a concorrência.”18. Nesse sentido, nos parece claro que o monopólio legal da propriedade intelectual, em si, não é uma violação à liberdade de concorrência, diferente disso, esse “prêmio” serve como estímulo para que constantemente empresas procurem inovar e descobrir novos produtos ou serviços, seja para evitar o direito exclusivo de seu concorrente, seja para obter o seu próprio privilégio temporário no mercado e explorá-lo de forma lucrativa. Contudo, assim como outras práticas de mercado, considerando o potencial efeito concorrencial que direitos de propriedade intelectual possuem19, algumas vezes o exercício dessas prerrogativas podem gerar efeitos negativos à saúde do mercado, em especial quando consideramos o âmbito do mercado da inovação.

2.2 - O mercado da inovação e os abusos da propriedade intelectual

O primeiro ponto que merece destaque ao analisarmos as práticas consideradas anticompetitivas no exercício de direitos da propriedade intelectual é a noção de mercado relevante para este fim. A tradicional definição encontrada no direito antitruste nacional, da qual citamos os ensinamentos de Franceschini, ou seja, “O mercado relevante é o espaço da concorrência. Diz respeito aos diversos produtos ou serviços que concorrem entre si, em determinada área, em razão de sua substitutibilidade naquela área”20, deve ser alargada, visto que no que tange às novas tecnologias o mercado é um tanto diferenciado, chamado por alguns, como Sicsú e Melo, de mercado de inovação: “Neste quadro, não se considera que a definição da dimensão produto do mercado relevante, que vem sendo adotada pelos 18

LEHMAN citado por GRAU-KUNTZ, op. cit, p. 2. “Foi-se o tempo em que o direito da propriedade industrial era utilizado apenas como uma ferramenta de defesa de direitos. O cenário atual é outro. O direito da propriedade intelectual se transformou numa verdadeira ferramenta ostensiva de ataque, por meio da qual tem inibido ou, muitas vezes, aniquilado os avanços da concorrência.” (VIANNA, Cristiane Ruiz M. Novo paradigma da propriedade industrial. 2011, p. 1. Disponível em , aceso em 10/10/2012.) 20 FRANCESCHINI, op. cit. p. 33. 19

Sistemas de Defesa da Concorrência, o brasileiro em particular, a saber, enfocando o produto físico e concreto (como a produção de sementes modificadas de algodão ou soja, produção e venda de tênis esportivos), seja a mais adequada para a análise concorrencial dos mercados em inovação. Ainda, é contraproducente analisar e caracterizar os mercados baseados em tecnologias específicas. A própria dinâmica no setor, de sucateamento de tecnologias específicas, de disputas de rotas tecnológicas entre os fornecedores de equipamentos, faz com que seja necessária análise mais abrangente, na qual a substitutibilidade seja analisada, na qual o fundamental é entender as possíveis rotas e as escolhas nacionais, dadas as limitações específicas. É algo afeto a políticas nacionais em mercados de grande renovabilidade tecnológica. Agrega pouco ater-se à análise apenas dos movimentos conjunturais, principalmente de fornecedores de serviços ou de fabricantes, isoladamente, movimentos estes ditados pelos pesados

investimentos

necessários

para

acompanhar

a

dinâmica de renovação tecnológica, dinâmica essa que leva a decisões que podem fechar o mercado em determinada direção, definindo opções tecnológicas, muitas vezes não as melhores para sociedade”21 Conforme tratam os autores acima, quando consideramos os produtos protegidos por direitos de Propriedade intelectual, i.e., novas tecnologias, não podemos outorgar a eles, dentro de uma análise concorrencial, o tratamento de meros produtos de consumo, já que eles podem adquirir papel relevante na definição não apenas dos seu próprio mercado, mas também numa seqüência de outros mercados tecnológicos. Um exemplo claro disso é o desenvolvimento do Compact Disk (CD), uma tecnologia que ditou parâmetros não apenas ao 21

SICSÚ, Abraham Benzaquen e MELO, Murilo Otávio Lubambo de. Inovação e defesa da concorrência: análise de caso da tecnologia para soja transgênica. In: Revista de Direito da Concorrência. N. 17, jan. a mar. 2008, p. 33-34.

mercado de mídias para música, mas também para aparelhos de som, consoles para carros, mídias para gravação de dados, aparelhos de televisão, computadores, entre muitos outros itens. No entanto, ao mesmo tempo que o CD trouxe inúmeros benefícios, pois padronizou equipamentos que poderiam ter, cada um, tecnologias diversas, desestimulou o surgimento de tecnologias concorrentes, que poderiam até ser melhores que o próprio CD. Esse fenômeno foi chamado pela doutrina de stadarization, como nos falou Alberts: “Standardization generally refers to the establishing of one specific technical standard out of various competing possibilities, thus either making them uniform or deciding on using one for the whole relevant industry, or for the specific purpose.”22. Leeds reconhece que essa padronização pode gerar tantos efeitos positivos como negativos23 para a concorrência, mas não cumpre neste momento analisarmos cada um deles. A padronização em si não é um problema, porém, quando a tecnologia que se tornou tal padrão é objeto de um monopólio legal privado, concedido ao desenvolvedor original daquela inovação, problemas podem surgir no desenvolvimento salutar do mercado. Ademais, a adoção de uma tecnologia que padroniza um série de produtos pode, em determinado momento, tornar-se algo irreversível, efeito este chamado de excess inertia por Alberts24. Novamente Sicsú e Melo fazem esse alerta, dizendo que direitos de propriedade intelectual, quando recaem sobre tecnologias que podem ditar o rumo dos setores de P&D de cada empresa, devem ser analisados com muito cuidado, sendo este, então, uma das facetas que compõem o tal mercado da 22

ALBERTS, op. cit., p. 4. Leeds reconhece que a padronização pode gerar tanto efeitos pro-competitivos no mercado como uma clara ameaça à competição, dependendo da forma como forem explorados pelas partes, o que tem chamado a atenção das autoridades antitruste norte-americanas e europeias. (LEEDS, Douglas D. Raising the standard: antitrust scrutiny of standard-setting consortia in high technology industries. In: Fordham Intellectual Property, Media and Entertainment Law Journal. Volume 7, Livro 2, 1997, p. 641 a 671.) 24 “Costumers are often locked-in to a certain system through high switching-costs from one system to another. Even if a customer before the purchase is indifferent to the alternatives in, say software programs of a certain application, once he has made a choice and made investment in learning and file creation and so on, the cost of switching is high, and benefits are unlikely to occur unless a certain critical sum of other users switch as well. The excess inertia effect of this is amplified if the potential users initially reject the product.” Alberts, op. cit., p. 11. 23

inovação25.

Alberts

é

irretocável

em

seu

comentário,

afirmando

que

“Considerable market power is thus awarded to the winner of a standards race, who is liable to have a decisive influence on the nature or competition and technological advance for a long time.”26 Nesse sentido, necessário termos em mente que o mercado da inovação, espaço onde o direito da propriedade intelectual e o direito antitruste serão estudados, é consideravelmente mais complexo que um mercado relevante em um tradicional caso antitrustiano. O foco da análise antitruste será deslocada da capacidade dos participantes de mercado manipularem o preço para o incentivo do detentor dos direitos de propriedade intelectual de retardar o avanço tecnológico27. Como falaram Sicsú e Melo: “a avaliação antitruste, a partir dos mercados de inovação, mede o nível de competição por inovação que, de fato, ocorre, porém, vai mais além: busca reconhecer a possibilidade de que a competição futura possa ser prejudicada por fusões ou contratos que resultem em redução dos níveis de P&D.”28 A própria autoridade antitruste norte-americana, a Federal Trade Comission, já demonstrou sua preocupação com a concorrência nos mercados de inovação, tendo emitido as Antitrust Guidelines for Licensing of Intellectual Property Rights, onde reconheceu que quando os direitos de Propriedade Intelectual são comercializados separadamente dos produtos (i.e. licenças, cessões, acordos de atuação, exclusividade, licenciamento cruzado), as autoridades antitruste deverão analisar o mercado da tecnologia (mercado de

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“As análises antitrustes devem focar-se então no conceito de mercados de inovação (innovation markets), o qual foi desenvolvido para lidar com questões antitruste direcionadas a P&D, na qual a definição de produto concreto não era aplicável.” SICSÚ e MELO, op. cit., p. 33. 26 ALBERTS, op. cit., p. 17. 27 SICSÚ e MELO, op. cit., p. 35. 28 Ibidem.

inovações)29 para eventuais práticas abusivas. Essas diretrizes serão melhor analisadas na segunda parte deste estudo. Feitas estas considerações, passamos a analisar práticas comuns no âmbito da Propriedade Intelectual (e no chamado mercado da inovação) que podem,

dependendo

da

forma

que

forem

realizadas,

surtir

efeitos

anticompetitivos no mercado. A primeira é o licenciamento de direitos, em especial quando ligados às patentes de invenção. Trata-se de uma prática recorrente, prevista em praticamente todas legislações patentárias do mundo, sendo ela inclusive um direito do titular, como a lei brasileira prevê 30. O inventor pode criar alguma tecnologia, mas não é obrigado a explorá-la diretamente, podendo permitir que terceiros o façam mediante uma contraprestação (royalties). Essa licença é feita por meio de contratos, os quais podem prever cláusulas das mais variadas ordens. Ocorre, no entanto, que muitas vezes o detentor da tecnologia, por estar com “as cartas na mão” pode exigir contraprestações exageradas daquele que, sedento pela fonte tecnológica, as aceita pois sabe que ao explorar o mercado acabará lucrando, ignorando os efeitos negativos que tais acordos poderão gerar na concorrência e na própria estrutura tecnológica nacional. O problema, portanto, é esse abuso do direito, como diz Barbosa: 29

Technology markets consist of the intellectual property that is licensed (the "licensed technology") and its close substitutes--that is, the technologies or goods that are close enough substitutes significantly to constrain the exercise of market power with respect to the intellectual property that is licensed. When rights to intellectual property are marketed separately from the products in which they are used, the Agencies may rely on technology markets to analyze the competitive effects of a licensing arrangement. United Stares Department of Justice / Federal Trade Comission (1995) Antitrust guidelines for the licensing of intellectual property rights. (…) If a licensing arrangement may adversely affect competition to develop new or improved goods or processes, the Agencies will analyze such an impact either as a separate competitive effect in relevant goods or technology markets, or as a competitive effect in a separate innovation market. A licensing arrangement may have competitive effects on innovation that cannot be adequately addressed through the analysis of goods or technology markets. For example, the arrangement may affect the development of goods that do not yet exist Alternatively, the arrangement may affect the development of new or improved goods or processes in geographic markets where there is no actual or likely potential competition in the relevant goods. (Washington, DC: USDO/FTC. Antitrust guidelines for the licensing of intellectual property. Disponível em acesso em 10/10/2012.) 30 Art. 61. O titular de patente ou o depositante poderá celebrar contrato de licença para exploração.

“A doutrina do abuso de direitos de patente parte do princípio que a propriedade em geral, e especialmente a propriedade industrial, tem uma finalidade específica, que transcende o simples interesse egoístico do titular. À luz de tais distinções, identifica-se o abuso do sistema de patentes - quando o titular excede os limites de seu direito - do abuso do monopólio de patentes - quando o titular, sem exceder os limites legais, o opera em desvio de finalidade. De qualquer forma, em ambos casos há abuso. O abuso pode-se dar no plano funcional, e atinge a finalidade da instituição do privilégio: concedido para estimular o investimento industrial, passa a assegurar somente a importação, reduzindo a industrialização interna. Pode ocorrer no plano temporal: através de inúmeros mecanismos (vinculação do produto a uma marca) se estende a ação material da patente para além de sua expiração. Dar-se-á, enfim, uma expansão da capacidade ofensiva, do poder econômico-jurídico próprio a um privilégio, através das práticas restritivas e dos cartéis de patentes – neste caso já na fronteira do abuso de poder econômico.”31 Uma das cláusulas que podem ser consideradas abusivas, dependendo da análise in casu, é a exigência de que o licenciado não concentre esforços de P&D no desenvolvimento de uma tecnologia concorrente enquanto sua licença perdurar32. Uma conduta seria exigir que o licenciado não comercializasse tecnologia concorrente, mas investir no desenvolvimento de algo concorrente, sem colocá-lo no mercado, é algo aceitável? Deixamos essa resposta para o direito da concorrência. Outro exemplo de prática que pode tornar-se abusiva no exercício de direitos de propriedade intelectual é a própria negativa de concessão de uma 31

BARBOSA, Dênis Borges. TRIPS e as cláusulas abusivas em contratos de tecnologia e de propriedade industrial. 2002, p. 15. Disponível em acessado em 10/10/2012. 32 SICSÚ e MELO, op. cit., p. 39.

licença, como salienta Alberts33. À primeira vista pode parecer um absurdo tal afirmação, pois, se é um direito do titular da patente licenciar sua tecnologia, certamente não licenciá-la também é. Ocorre que, quando analisamos o mercado da inovação, assim como o fenômeno da padronização citado anteriormente, imaginemos que uma indústria toda se molda em torno de um padrão que, posteriormente, descobre-se ser o mesmo objeto de um monopólio patentário. Alguns chamam isso de patent ambush ou hidden IPRs34. O exemplo das tomadas de três furos, atual sistema adotado pelo Brasil, é um cenário perfeito para analisarmos essa possibilidade. Uma terceira prática que deve, dependendo do caso, ser objeto de análise para fins concorrenciais, é a criação de pools de patentes. Algumas tecnologias dependem de mais de uma patente para sua concretização, e algumas vezes elas pertencem a mais de uma empresa. O que ocorre, em alguns casos, é que essas empresas se juntam e criam uma malha de direitos exclusivos praticamente impenetrável, colocando aos interessados em explorar o mercado daquele produto (e de seus substitutos) as opções de (i) aceitar um contrato de licença oferecido pelos detentores daquelas tecnologias ou (ii) não explorar esse mercado35. Por fim, um último exemplo de ações embasadas em direitos de propriedade intelectual que podem causar danos ao mercado é a compra excessiva de patentes por uma única empresa, sem, no entanto, possuir qualquer interesse em explorá-las. Esse interesse no aumento da carteira de direitos imateriais claramente ultrapassa a noção de “proteção de direitos”, pois o que se verifica é uma corrida armamentista patentária, como disse Cristiane

33

ALBERTS, op. cit., p. 26-27. “If a standard is adopted which is later on found to infringe a certain companies IPR, then that firm suddenly has decisive market power (especially if there are considerable sunk costs and network effects and lock-in has made switching costs high). This has sometimes been referred to as the “patent ambush” problem (also “hidden IPRs”)”. Ibidem, p. 28. 35 Apesar de tais grupos poderem ser utilizados com propósitos pró-concorrenciais, eles também podem facilitar um conluio tácito em diversos mercados e permitir que seus membros imponham exigências abusivas a não membros que busquem acesso às tecnologias em questão. (CORREA, Carlos. Uma abordagem concorrencial à propriedade intelectual. In: Pontes entre o comércio e o desenvolvimento sustentável, vol. 4, n. 1, p. 7.) 34

Vianna36, para que o caminho dos concorrentes seja totalmente devastado. Dênis Borges Barbosa é categórico em sua afirmação de que as patentes (e os demais direitos de propriedade intelectual) “tem por fim imediato a retribuição do criador, e como fim mediato o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País.”37 Nesse sentido, o que observamos é que existem práticas plenamente embasadas em direitos de propriedade intelectual e, portanto, teoricamente legais, que possuem um potencial efeito anticompetitivo dependendo da forma como tais direitos são exercidos. Contudo, se o direito da propriedade intelectual não prevê, em si, um freio a esse tipo de abuso, deveremos nos socorrer do direito da concorrência para tal fim, sendo ele o salvador do mercado, conforme observaremos nas experiências internacionais a seguir.

III – O direito antitruste como ferramenta de controle no exercício de direitos de propriedade intelectual

3.1 - A coordenação entre o direito antitruste e a propriedade intelectual: a experiência internacional

Conforme observamos até este momento, ainda que ideologicamente conflitantes os meios da Propriedade Intelectual e do Direito Antitruste, ambos servem ao mesmo fim: o desenvolvimento social, econômico e tecnológico de uma nação. Por tal razão entende este autor, assim como demais outros doutrinadores que sustentaram o presente trabalho, que na verdade não há um conflito entre essas duas áreas do direito, mas sim um regime de complementariedade. Karin Grau-Kuntz chamou esta relação de interface entre direitos de PI e o direito antitruste38, já Makan Delrahim chamou tal relação de 36

“Agora o que se vê crescente é o número de empresas em busca da expansão de sua carteira de direitos imateriais com o objetivo de inibir os avanços tecnológicos de concorrentes para alcançar o “Olimpo” da exclusividade de um mercado relevante. Mecanismo de ataque!” VIANNA, op. cit., p. 2. 37 BARBOSA, 2002, p. 15. 38 GRAU-KUNTZ, op. cit., p. 4.

convergência39, enquanto Luciano Timm fala de intersecção40. O nome dado a tal fenômeno realmente não importa neste momento, o que conta, outrossim, é o reconhecimento

de

que

ambos

direitos

deve

agir

em

conjunto,

um

complementando o outro. Nesse sentido, quando estamos diante de abusos no exercício de direitos de propriedade intelectual, que, em tese, são práticas legalmente embasadas pelo sistema normativo local, o direito antitruste deve intervir, pois há um bem maior em jogo sendo ameaçado: o mercado (e todas as consequências oriundas da má exploração deste). Contudo, não há falar em sobreposição do direito antitruste, mas sim nesse regime de complementação, coordenação. Como disse Delrahim, o direito e a política antitruste devem ser cuidadosos para não restringir o legítimo exercício de direitos de propriedade intelectual, da mesma forma que, se o exercício do direito de PI ultrapassar esse legítimo exercício, é dever do direito antitruste intervir nessa situação quando ameaçada a liberdade concorrencial, o consumidor e desenvolvimento tecnológico nacional (mercado da inovação)41. Como a Suprema Corte Norte-Americana bem colocou no julgamento do caso Trinko42: “para garantir o incentivo à inovação, a posse de poder de monopólio não será considerada ilegal a não ser que acompanhada por um elemento de conduta anticoncorrencial”. Assim como Karin Grau-Kuntz disse que, por depender o direito de propriedade intelectual do mercado (pois é nele que ele é exercido em grande parte), deverá ele respeitar as condutas exigidas para atuação dentro do âmbito comercial43. Ainda que alguns digam ser inviável esse coordenação entre PI e direito antitruste, pois assim o legislador estaria concedendo algo com uma mão e retirando com outra, não é o que este autor entende, pois, retomando a frase de Lehman citada anteriormente, a

39

DELRAHIM, op. cit., p. 4. TIMM, op. cit., p. 5. 41 DELRAHIM, op. cit., p. 2. 42 Suprema Corte dos Estados Unidos da América, Verizon Communications Inc. v. Law Offices of Curtis V. Trinko, LLP, 2004. 43 GRAU-KUNTZ, op. cit., p. 3. 40

propriedade intelectual, como participante do mercado, deve ser vista como uma limitação à concorrência para incentivar a concorrência44. Importante destacar, neste ponto, a distinção feita por Karin Grau-Kuntz 45 quanto à concorrência onde o direito de propriedade intelectual é intocável, e onde ele passa a ser um obstáculo à liberdade concorrencial. Criou referida autora os termos Concorrência de Imitação e Concorrência de Superação, sendo a primeira onde o direito de PI é efetivamente usado como um escudo, evitando que concorrentes imitem o produto do titular, contudo, tal impedimento deve servir como incentivo para que esses competidores desenvolvam algo melhor, algo que supere o que já exista e está protegido, sendo esta a concorrência da superação que, em outras palavras, é o que chamamos de desenvolvimento tecnológico. Se o direito de PI passar a impedir também essa concorrência de superação, a qual é o objetivo maior tanto da PI quanto do Direito Antitruste, algo está errado. Vencido este ponto, é possível encontrar na experiência do direito comparado concretos indícios (que na verdade indícios já deixam de ser) de que há um regime de complementariedade entre a PI e o Direito Antitruste, como falaram Sicsú e Melo46. E o primeiro que merece destaque são as já citadas Antitrust Guidelines for the licensing of intellectual property, emitidas pela FTC, autoridade norte-americana encarregada pela defesa da concorrência. Essas diretrizes, colocadas em vigor em 1995, já demonstravam a preocupação dessa necessária coordenação entre PI e Direito Antiruste, reconhecendo que ambas áreas possuem um mesmo fim e, portanto, devem atuar de forma conjunta. Referidas diretrizes tem como foco a análise dos contratos envolvendo direitos de propriedade intelectual, tanto nacionais como internacionais (teoria

44

Vide nota 17. “Em miúdos, o direito de propriedade intelectual garante ao seu titular um “escudo” que o protege contra imitações. Dessa forma os concorrentes serão forçados a superarem o titular do direito de propriedade intelectual, oferecendo produtos “diferentes”. O dínamo que culmina com o avanço econômico e tecnológico está no esforço de superação dos concorrentes e não na vantagem garantida contra a imitação.” (GRAU-KUNTZ, Op. cit., p. 5.) 46 As preocupações com os mercados inovadores têm tido ressonância nas análises antitruste de várias autoridade internacionais. SISCSÚ e MELO, Op. Cit., p. 34. 45

dos efeitos), desde que possam surtir efeitos no território norte-americano. As guidelines foram emitidas com base em 3 importantes princípios: 1 – Para fins de análise antitruste, os direitos de propriedade intelectual são essencialmente considerados como qualquer outra forma de propriedade; 2 – As autoridades não consideram que os direitos de PI criam poder de mercado no âmbito antitruste; e 3 – As autoridades reconhecem que o licenciamento de direitos de

PI

permite

complementares

que de

as

empresas

produção

e

combinem

geralmente

fatores

são

pro-

competitivos;47 Como podemos ver, os direitos de propriedade intelectual (e as práticas de licenciamento deles) não são considerados como atentatórios à liberdade concorrencial, muito pelo contrário, as autoridades norte-americanas concedem a eles praticamente uma presunção de procompetitividade. Contudo, referidas diretrizes analisam, no seu ponto 4, quando práticas ligadas ao licenciamento de direitos de PI adquirem efeitos anticoncorrenciais, o que será determinado pela rule of reason, já bem estudada no certame do direito concorrencial48. Primeiramente, no entanto, a FTC desenvolve uma análise identificando quando essas práticas ocorrem em relações verticais e/ou horizontais, citando inúmeros exemplos para melhor concretizar suas diretrizes. Exemplos de acordos verticais, citados nas guidelines, ocorrem nos típicos contratos de licença quando o detentor da tecnologia possui a patente desta e, o licenciado, cria produtos que usam essa tecnologia juntamente com outros componentes (que podem ser objeto de outras patentes também). No tocante a uma relação horizontal, as autoridades considerarão, por exemplo, a relação entre todos os licenciados dessa tecnologia quando, na ausência deste e consequentemente das licenças, eles seriam potenciais concorrentes no 47

Estes são os princípios gerais citados no item 2.0 das Antitrust guidelines for the licensing of intellectual property. (Washington, op. cit.) 48 AREEDA, P. The rule of reason in antitrust analysis: general issues.Federal Judicial Center, 1981. Disponível em acesso em 10/10/2012.

mercado, cada um com sua tecnologia própria (lembramos aqui do mercado da inovação mais uma vez, também previsto nas guidelines49). Luciano Timm diz que são nos acordos horizontais onde reside o maior perigo no exercício abusivo de direitos de PI50. Nesse sentido, cláusula consideradas restritivas em contratos de licenciamento, conforme exemplo analisados no título anterior (e todos destacados e exemplificados nas guidelines), serão examinadas com base na rule of reason: “Se as autoridades concluírem, após a avaliação dos fatores de mercado descritos no item 4.1, que uma restrição em um acordo de

licenciamento

não

é

provável

de

causar

efeitos

anticompetitivos, tal restrição não será atacada. Se as autoridades

considerarem

que

a

restrição

possui,

ou

provavelmente possuirá um efeito anticompetitivo, elas irão considerar se tal restrição é razoavelmente necessária para alcançar

eficiência

procompetitivas.

Se

a

restrição

for

razoavelmente necessária, as autoridades irão balancear as eficiência procompetitivas e os efeitos anticoncorrenciais para determinar o provável efeito resultante na concorrência em cada mercado relevante.”51 A FTC é bem clara ao reconhecer, como tratado alhures, que determinadas práticas restritivas podem ter efeitos procompetitivos, como é o caso da padronização de determinadas tecnologias. Ao criar-se um padrão único, como o caso da tomada de 3 furos, as empresas que utilizam essa tecnologia poderão investir mais em outras áreas, e o consumidor também se 49

Vide nota 28. “A espécie mais perigosa de contratos de tecnologia, no que tange à Lei Antitruste, são as transferências horizontais, vez que a negociação envolve partes que, não fosse o contrato, estariam competindo no mercado relevante. Tais transferências requerem cuidados especiais, porquanto afetam preços, quantidades e qualidades dos bens e serviços objetos da negociação, sem, contudo, promover desenvolvimento econômico. Ainda, as transferências horizontais prejudicam a livre concorrência pelo desenvolvimento de novos produtos e serviços, ao afetarem os projetos de pesquisa e desenvolvimento das empresas envolvidas.” (TIMM, op. cit., p. 62-63) 51 Trecho constante no item 4.2 “Efficiencies and Justifications” das Antitrust guidelines for the licensing of intellectual property. (WASHINGTON, op. cit.) 50

beneficiará, pois não precisará ter uma tomada para cada aparelho adquirido. Contudo, efeitos anticoncorrencias também podem ocorrer, como já observado anteriormente. Essa primeira experiência estrangeira observada é, ao entender deste autor, uma das mais coerentes, pois não tratam ab initio de que o monopólio legal da

PI

e

as

práticas

existentes

no

licenciamento

destas

são,

obrigatoriamente, prejudiciais ao mercado. Ao mesmo tempo que, ao aplicar a rule of reason para análise dessas práticas, mostram que os monopólios da PI, ou mais especificamente o exercício dos direitos emanados por este, não são intocáveis na prática concorrencial. Também podemos buscar outras experiências do direito comparado no arcabouço legal da União Europeia, que em 1996 havia lançado o Regulamento da Comissão n. 240/96 tratando exatamente da aplicação do antigo art. 81 do Tratado da Comunidade Europeia (atual 101 do Tratado de Funcionamento da União Europeia52 (TFUE)) no âmbito de contratos de tecnologia. Referido regulamento foi substituído pelo Regulamento 772/2004, que adotou uma 52

Artigo 101. 1. São incompatíveis com o mercado interno e proibidos todos os acordos entre empresas, todas as decisões de associações de empresas e todas as práticas concertadas que sejam susceptíveis de afectar o comércio entre os Estados-Membros e que tenham por objectivo ou efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado interno, designadamente as que consistam em: a) Fixar, de forma directa ou indirecta, os preços de compra ou de venda, ou quaisquer outras condições de transacção; b) Limitar ou controlar a produção, a distribuição, o desenvolvimento técnico ou os investimentos; c) Repartir os mercados ou as fontes de abastecimento; d) Aplicar, relativamente a parceiros comerciais, condições desiguais no caso de prestações equivalentes colocando-os, por esse facto, em desvantagem na concorrência; e) Subordinar a celebração de contratos à aceitação, por parte dos outros contraentes, de prestações suplementares que, pela sua natureza ou de acordo com os usos comerciais, não têm ligação com o objecto desses contratos. 2. São nulos os acordos ou decisões proibidos pelo presente artigo. 3. As disposições no n.1 podem, todavia, ser declaradas inaplicáveis: — a qualquer acordo, ou categoria de acordos, entre empresas, — a qualquer decisão, ou categoria de decisões, de associações de empresas, e a qualquer prática concertada, ou categoria de práticas concertadas, que contribuam para melhorar a produção ou a distribuição dos produtos ou para promover o progresso técnico ou económico, contanto que aos utilizadores se reserve uma parte equitativa do lucro daí resultante, e que: a) Não imponham às empresas em causa quaisquer restrições que não sejam indispensáveis à consecução desses objectivos; b) Nem dêem a essas empresas a possibilidade de eliminar a concorrência relativamente a uma parte substancial dos produtos em causa.

posição mais próxima as guidelines norte-americanas, mas ainda assim diferentes em alguns aspectos. Tal regulamento buscou encontrar o equilíbrio adequado entre a proteção da concorrência e a proteção dos direitos de propriedade intelectual, criando um espaço de isenção para determinados contratos no âmbito da análise antitruste. As orientações do regulamento especificam como deve ser aplicado o artigo 101 do TFUE aos acordos não abrangidos por tal isenção. Em suma, referido regulamento estipula alguns parâmetros que devem ser observados para entender se o contrato firmado deve, ou não, passar pelo crivo concorrencial. Dentre tais parâmetros podemos citar a distinção entre contratos celebrados entre empresas concorrentes e não concorrentes (art. 1º), a participação de mercado dos contratantes (art. 3º) e o fato do contrato possuir cláusulas consideradas graves ao desenvolvimento tecnológico e à liberdade concorrencial (art. 4º). Este tipo de cláusulas, como a vedação de desenvolver atividades de P&D para tecnologias concorrentes, faz com que mesmo que os contratantes não estejam enquadrados nos demais parâmetros, o dever de informar as autoridades antitruste seja mantido. Aos demais acordos que fogem destas restrições, aplica-se a regra do art. 101 (3) do TFUE. Portanto, podemos observar que tanto as autoridades antitruste norteamericanas como as europeias reconhecem a importância dos efeitos que um contrato envolvendo o licenciamento de tecnologia pode causar, tanto ao mercado de produtos e serviços, como ao chamado mercado da inovação. Importante destacar que, por falarmos de contratos, estamos falando automaticamente das práticas previstas no art. 101 do TFUE, isto é, do acordo entre empresas. Contudo, o exercício abusivo de direitos de propriedade intelectual pode, também, violar o art. 102 do TFUE53, que trata das questões de abuso de poder 53

Artigo 102 É incompatível com o mercado interno e proibido, na medida em que tal seja susceptível de afectar o comércio entre os Estados-Membros, o facto de uma ou mais empresas explorarem de forma abusiva uma posição dominante no mercado interno ou numa parte substancial deste. Estas práticas abusivas podem, nomeadamente, consistir em: a) Impor, de forma directa ou indirecta, preços de compra ou de venda ou outras condições de transacção não equitativas;

dominante do mercado. Lembramos, dessa forma, que no momento em que uma empresa é detentora dos direitos de propriedade intelectual sobre uma tecnologia que tenha sofrido o fenômeno da padronização, e que ela tenha propositalmente aguardado sua invenção tornar determinado mercado dela dependente (ex.: tomada de três furos), passando depois a exigir a celebração de licenças a preços discricionários ou a negar a concessão de licença a determinadas empresas, nos parece que haverá um certo abuso ocorrendo, como bem falou Magdalena Brening, da Comissão Europeia54. Uma das soluções que as autoridades antitruste têm adotado, em especial nos casos de negativa de licenciamento ou quando valores extremamente discricionários são exigidos quando a tecnologia é indispensável para explorar determinado mercado é a concessão de licenças compulsórias, mediante o pagamento de royalties calculados também de acordo com critérios razoáveis. Esta solução é, no ponto de vista deste autor, uma das mais sábias e diplomáticas, pois não desconsidera os direitos de PI im totum, respeitando a existência do mesmo, enquadrando o seu exercício dentro de um parâmetro de concorrência leal. Como disse Alberts, o direito do titular deve ser balanceado com o direito de seus concorrentes e do consumidor55. Cumpre destacar também, dentro da experiência internacional, o art. 40 do acordo TRIPS (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights), que determina que: 1. Os Membros concordam que algumas práticas ou condições de licenciamento relativas a direitos de propriedade intelectual que restringem a concorrência podem afetar adversamente o b) Limitar a produção, a distribuição ou o desenvolvimento técnico em prejuízo dos consumidores; c) Aplicar, relativamente a parceiros comerciais, condições desiguais no caso de prestações equivalentes colocando-os, por esse facto, em desvantagem na concorrência; d) Subordinar a celebração de contratos à aceitação, por parte dos outros contraentes, de prestações suplementares que, pela sua natureza ou de acordo com os usos comerciais, não têm ligação com o objecto desses contratos. 54 BRENNING, Magdalena. Competition & intellectual property policy implications of late or no IPR disclosure in collective standard-setting. Exposição realizada na American Bar Association's International Roundtable on International Standards, Buxelas, Bélgica, em 17/06/2002. Disponível em acesso em 09/10/2012. 55 ALBERTS, op. cit., p. 24.

comércio e impedir a transferência e disseminação de tecnologia. No entanto, o item 2 deste artigo apenas determina que os membros do tratado podem, em sua legislação, determinar que práticas no licenciamento de direitos de PI podem ser consideradas como prejudiciais à saúde do mercado 56. Contudo, pelo caráter do TRIPS e por ser expresso nesse artigo que tal disposição é uma faculdade dos Estados membros, nem todos os signatários deste acordo internacional possuem disposições específicas a respeito. Em nossa nação, a única iniciativa observada até então para a criação de uma disposição legal específica para análise de contratos e abusos envolvendo direitos de PI foi uma proposta feita pela Associação Brasileira de Propriedade Intelectual, por meio da resolução 68 da ABPI 57. Essa sugestão contém dispositivos muito bem formulados para lidar com esse tipo de questão, em especial para considerarmos o mercado da inovação nesse tipo de análise antitruste. Quanto a atual lei brasileira antitruste, n. 12.529/11, podemos encontrar algumas disposições gerais: Art. 36. Constituem infração da

ordem econômica,

independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:

56

2. Nenhuma disposição deste Acordo impedirá que os Membros especifiquem em suas legislações condições ou práticas de licenciamento que possam, em determinados casos, constituir um abuso dos direitos de propriedade intelectual que tenha efeitos adversos sobre a concorrência no mercado relevante. Conforme estabelecido acima, um Membro pode adotar, de forma compatível com as outras disposições deste Acordo, medidas apropriadas para evitar ou controlar tais práticas, que podem incluir, por exemplo, condições de cessão exclusiva, condições que impeçam impugnações da validade e pacotes de licenças coercitivos, à luz das leis e regulamentos pertinentes desse Membro. 57 ABPI – Associação Brasileira de Propriedade Intelectual. Resolução n. 68. Diretrizes para Exame de Contratos de Transferência de Tecnologia e Licenciamento de Direitos da Propriedade Intelectual sob uma Perspectiva do Direito Antitruste. Disponível em < http://www.abpi.org.br/biblioteca2a.asp?Ativo=True&linguagem=Portugu %EAs&secao=Biblioteca&subsecao=Resolu%E7%F5es%20da%20ABPI&id=1> acesso em 25/11/2012.

§ 3o As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no caput deste artigo e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica: V - impedir o acesso de concorrente às fontes de insumo, matérias-primas, equipamentos ou tecnologia, bem como aos canais de distribuição; VIII - regular mercados de bens ou serviços, estabelecendo acordos para limitar ou controlar a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico, a produção de bens ou prestação de serviços, ou para dificultar investimentos destinados à produção de bens ou serviços ou à sua distribuição; XIV - açambarcar ou impedir a exploração de direitos de propriedade industrial ou intelectual ou de tecnologia; XIX - exercer ou explorar abusivamente direitos de propriedade industrial, intelectual, tecnologia ou marca. Portanto, a experiência brasileira é, nem tão completa, mas nem por isso despida de previsões legais que permitam esse tipo de intervenção, ainda que não possuam a clareza e, adicionalmente, a segurança jurídica observada nas experiências do direito comparado analisadas anteriormente.

3.2 - Casos

Alguns casos envolvendo práticas anticoncorrenciais com direitos de propriedade intelectual ganharam certa notoriedade no estudo do direito antitruste e, portanto, visando tornar o presente estudo mais rico, assim como corroborando com o entendimento deste autor, importante se mostrou a apresentação de alguns deles nesta última parte. Entender, outrossim, como o direito da concorrência intervém em casos como os que serão apresentados certamente nos auxiliará a perceber o quão fundamental é esse papel de coordenação entre as duas áreas do direito ora analisadas.

3.2.1 - Caso Philips VCR58

Em 1977 a empresa PHILIPS desenvolveu a tecnologia para VCR (Video Casette Recorder), e celebrou juntamente com outras 5 empresas alemãs consumidoras dessa tecnologia um contrato de licença onde foi definido que: 1 – As empresas adotariam o sistema VCR da PHILIPS, sem a necessidade de pagar royalties para tanto; 2 – Todas as tecnologias desenvolvidas por estas empresas seriam automaticamente licenciadas para as partes do contrato, também sem o pagamento de royalites; 3 – As empresas não poderiam desenvolver e muito menos explorar tecnologia concorrente ao sistema VCR da PHILIPS enquanto o contrato perdurasse; 4 – qualquer fabricante de produtos que utilizassem essa tecnologia poderiam aderir ao acordo; 5 – A saída de uma empresa do acordo faria com que ela automaticamente

tivesse

todas

licenças

canceladas,

enquanto as empresa que ficariam no acordo poderiam utilizar

as

tecnologias

criadas

pela

retirante

sem

necessidade de pagar royalties a ela; Na época apenas a Phillips e a Sony haviam desenvolvido sistemas de VCR, sendo ambos incompatíveis. O mercado da Phillips era consideravelmente maior que o da Sony, e ambas possuíam cerca de 70% do mercado de vendas da então Comunidade Europeia. Assim, frente a essa questão, a Comissão Europeia analisou o caso sob a égide do art. 81 do antigo TCE (hoje art. 101 do TFUE), tendo emitido a decisão 20 de Dezembro de 1977 onde entendeu que, ainda que contratos de licenciamento e de pools de tecnologia possam surtir efeitos positivos, em 58

Decisão da Comissão de 20/12/1977 relativa ao procedimento instaurando sob o art. 81 do TCE, publicada no OJ n. 47, em 8/02/1978, p 0042 – 0047. Disponível em acesso em 25/11/2012.

especial para o consumidor haja vista a compatibilidade imbuída nos produtos a eles ofertados, as cláusulas existentes no acordo de exclusão de outras tecnologias e de impedimento de desenvolver e comercializar produtos que contivessem outros sistemas que não o VCR da Philips eram potencialmente anticoncorrenciais, em especial porque impediam que outras tecnologias fossem desenvolvidas, que poderiam até ser melhores. 3.2.2 - Caso DVD59

Diferentemente do caso VCR, um outro contrato de licenciamento de tecnologia e de pool de patentes foi considerado procompetitivo pela Comissão Europeia, o chamado caso DVD conforme nos falou Leeds. Após o sucesso da digitalização do áudio por meio da plataforma do CD (Compact Disc), que tornou praticamente obsoleto o LP e a fita cassete, liderado principalmente pelas conhecidas Philips e Sony, prontamente as empresas investiram pesado na P&D para desenvolver uma tecnologia para digitalização do Audio e Vídeo. Foi assim que a Toshiba, portanto, desenvolveu uma tecnologia que lideraria a concepção dos primeiros DVDs (Digital Video Discs), utlizando parte da tecnologia dos CDs controlada por Sony e Philips (o que se resolveu mediante um acordo entre elas). No entanto, a Toshiba realizou um acordo de licenciamento e de pool de patentes com outras empresas, como a Mitsubishi, Hitachi e Time Warner, para fins de exploração de sua tecnologia da DVDs, tendo apresentado tal acordo à Comissão Europeia para análise em 1999. A Toshiba deixou claro que referido acordo seria acessível a qualquer empresa que tivesse interesse em adotar sua tecnologia de DVD, e que haveria uma cláusula da “licença mais favorável”. Assim, a Comissão Europeia aprovou referido acordo, emitindo uma confort letter em 2000 dizendo que tal contrato auxiliaria na promoção e desenvolvimento do mercado do parque tecnologico europeu com a rápida e 59

Caso n. IV/C-3/37.506, publicado no OJ 1999/C 242/04, p. 5. Disponível em < http://eurlex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:C:1999:242:0005:0006:EN:PDF> acesso em 25/11/2012.

eficiente introdução da tecnologia do DVD, conforme o press release IP/00/113560. 3.2.3 - Caso Magill61 Conforme nos falou Alberts62, o caso Magill foi quando pela primeira vez a Corte Europeia de Justiça concedeu uma licença compulsória de direitos de propriedade intelectual na história. Magill era uma produtora de um guia semanal para TV e solicitou a três emissoras de televisão do Reiino Unido e uma da Irlanda um material que era protegido por direitos autorais para que colocasse em seu guia televisivo. Com a recusa, Magill apresentou sua reclamação perante a ECJ e alegou que essas emissoras estavam agindo de forma abusiva, o que configuraria violação do art. 82 do TCE (atual 102 do TFUE). Frente a tal reivindicação, a Corte Europeia de Justiça disse que a negativa de conceder uma licença, mesmo que negada por alguém em uma posição dominante do mercado, não configura, per se, uma conduta de abuso de poder dominante. Contudo, o exercício de um direito exclusivo pode, em circunstâncias excepcionais, envolver conduta abusiva. Para identificar tais situações, a ECJ desenvolveu um teste com 3 critérios: 1 – A informação é indispensável para o desenvolvimento de um novo produto para o qual exista claramente uma demanda não atendida dos consumidores? (um guia de TV contendo todos os canais, como é o caso) 2 – Ao negar o fornecimento da informação, as emissoras de TV acabam com a competição no mercado de guias para TV? 3 – Há alguma justificativa objetiva para negar o fornecimento dessas informações?63 60

Disponível em acesso em 25/11/2012. 61 Julgamento da ECJ dos casos conjuntos ns. C-241/91 P e C-242/91 P. Disponível em acesso em 25/11/2012. 62 ALBERTS, op. cit., p. 41. 63 Ibidem.

Assim, ao analisar cada um desses critérios no caso em tela, a ECJ entendeu que as práticas das emissoras eram abusivas e, portanto, determinou a expedição de uma licença compulsória em favor de Magill.

3.2.4 - Caso National Medical Care Inc. e Baxter Hospitalar Ltda

O presente caso foi objeto de processo administrativo de averiguação preliminar perante o CADE, nº 08000.000518/96-06, tendo se tornado um caso emblemático, pois pela primeira vez o CADE reconheceu que contratos de transferência de tecnologia devem ser analisados sob a luz do art. 54 da antiga lei 8.884/9464. No caso narrado a empresa NMC realizou alguns contratos de franquia e de transferência de tecnologia com a empresa Baxter Hospitalar. Nestes contratos, que envolviam desde a aquisição e distribuição de aparelhos para hemodiálise, bem como a abertura de clínicas para prestação desses serviços, a NMC, franqueadora e detentora da tecnologia, teria a palavra final na escolha dos locais onde as clínicas (e os aparelhos) poderiam ser abertos e utilizados. Esse poder de restrição geográfica colocado nas mãos da NMC foi vista pela antiga SDE como uma prática anticompetitiva, pois ao seu entender poderia representar uma concentração do mercado relevante geográfico, já que pacientes desse tipo de clínica não possuem disposição para deslocamento e são considerados consumidores regionais. Assim, ao deixar nas mãos da detentora da tecnologia e do know how as decisões de onde abrir tais clínicas, bem como para quem transmitir os equipamentos necessários, poderia acarretar na dominação de um mercado regional. Todavia, o CADE não observou práticas anticompetitivas nesse caso, mas chancelou o entendimento de que contratos de tecnologia que contenham cláusulas que possam surtir algum dos efeitos previstos em sua Lei, devem ser submetidos para análise da autarquia.

64

Antiga lei antitruste brasileira, revogada parcialmente pela atual Lei 12.529/11.

IV – Considerações finais

Após todo o exposto, resta claro qual o posicionamento sustentado ao longo deste artigo, mas ainda assim mostra-se importante frisá-lo: o direito antitruste e a propriedade intelectual, ainda que ideologicamente diferentes em seus meios de concretização, atendem a um mesmo fim, sendo claro que devem, portanto, atuar de forma coordenada e complementar. Não há porque questionarmos os direitos de propriedade intelectual em si, eles devem existir e sua essência monopolística é uma peça chave para o desenvolvimento tecnológico, econômico e social das nações. Todavia, a liberdade concorrencial também exerce este papel e quando a mesma é ameaçada pelo exercício abusivo desses direitos exclusivos, aí sim o direito antitruste deve intervir e, em uma ação coordenada, encontrar a melhor solução para cada caso. E no específico caso da análise antitruste de exercício de direitos de propriedade intelectual, que invariavelmente tratam de novas tecnologias que podem, muitas vezes, moldar o mercado futuro para os mais diversos setores, impende termos em mente a figura do mercado da inovação e os efeitos que a determinação do caminho de desenvolvimento tecnológico podem ter na saúde do mercado.

Referências

ACCIOLY, Elizabeth. Mercosul e União Européia: estrutura jurídico-institucional. 4ª ed. Curitiba: Juruá, 2010.

ALBERTS, Petter. Intellectual property, competition and technical standards. Dissertação de mestrado apresentada na Lund University – Faculty of Law, Suécia,

2007.

Disponível

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10/10/2012.

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AREEDA, P. The rule of reason in antitrust analysis: general issues.Federal Judicial

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