O direito humano à identidade cultural: um desafio

August 2, 2017 | Autor: Wilson Rocha | Categoria: Direitos Humanos, Identidades
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O DIREITO HUMANO À IDENTIDADE CULTURAL: UM DESAFIO Wilson Rocha Assis

O direito humano à identidade cultural apresenta uma natureza singular, porque é, ao mesmo tempo, direito e substrato pré-jurídico de direitos, uma vez que todos os direitos são culturalmente fundados. E fundados em culturas singulares, localizadas geográfica e historicamente, com pouca vocação para o diálogo externo, mas com grande habilidade para articular internamente categorias de pensamento, afeto e autoconsciência humanos. Assim, quando tratamos de identidades culturais, referimo-nos a um código anterior de linguagem que veicula as declarações de direitos e conforma as formas de sensibilidade individual e coletiva, os vínculos inter-humanos, as categorias de inteligibilidade do mundo e, inclusive, as fronteiras daquilo que chamamos humanidade. A linguagem constitui os homens e as mulheres, as instituições e as liberdades, limitando-os às suas possibilidades de enunciação. A assunção do caráter cultural dos direitos, de sua historicidade e limitação geográfica – não obstante a profundidade da questão e a pouca consciência que cobra a seu respeito os operadores do Direito – é o tema que subjaz ao presente trabalho.

A década de 1960 marca um encontro inédito de forças que foram capazes de cindir a aparente coerência da cultura ocidental moderna, pondo em cheque as instituições sociais e políticas que a conformam. Rompimento epistemológico feminista, emancipação política do mundo colonial afro-asiático, rebeliões anti-imperialistas de inspiração marxista na América Latina, emergência dos movimentos raciais, rebelião estudantil, todos esses movimentos sinalizam a crise das formas de pensamento engendradas ao longo de pelos menos cinco séculos, em avanços e recuos sucessivos, a partir do Renascimento Cultural europeu. Nesse contexto, o multiculturalismo emergiu das sendas obscuras do real para figurar no mundo luminoso das ideias.

O problema é de constitucionalismo1, porque trata de tutela jurídica de liberdades e deve ser enfrentado em duas vertentes: a afirmação conseqüente do direito subjetivo fundamental à identidade cultural por indivíduos e coletividades, com toda a carga de livre auto-determinação e livre auto-constituição que esse direito implica; e a necessidade de reengenharia das instituições plasmadas constitucional e internacionalmente, de modo a alcançar a tutela efetiva desse direito. O presente trabalho objetiva analisar as estruturas normativas de reconhecimento e tutela do direito humano à identidade cultural já positivado no âmbito de duas Constituições latino-americanas: a brasileira e a colombiana. O reconhecimento de um direito à identidade cultural é substancialmente novo no contexto do constitucionalismo moderno e ontologicamente distinto das outras modalidades de direito enunciadas pelos ordenamentos jurídicos estatais. Como bem ensina Bartolomé Claverno2, é direito constitutivo de direitos, por seu caráter constituinte do próprio sujeito, seja ele pessoa ou coletividade. O direito à identidade cultural constitui o indivíduo e ao mesmo tempo o situa em uma determinada ordem social, razão pela qual apresenta uma titularidade ontologicamente bivalente e incindível: individual e coletiva. É, portanto, direito individual e difuso. Ao mesmo tempo, direito à identidade cultural é também um direito de toda a humanidade à diversidade cultural, uma vez que, tal como o patrimônio genético, cuja variabilidade constitui a mais expressiva defesa biológica da espécie, o patrimônio cultural 1

“Desde unos orígenes propios, desde sus orígenes más inmediatos y específicos, si por algo se caracteriza el constitucionalismo es por construir no sólo un sistema político, sino también una cultura jurídica, una cultura y así un sistema de libertad antes que de poder, de garantía antes que de institución, de autonomía antes que de agrupación y de subjetividad y privacidad antes que de pautas de comportamiento y requerimientos de participación. [...] Desde sus orígenes más propios, los inmediatos y específicos, el constitucionalismo es ante todo cultura, una cultura en tres dimensiones: la jurídica de libertades, la judicial de garantías y adjucaciones y la política de mandatos, responsabilidades y controles, esto así en tercer lugar, todo lo importante que se quiera, pero en tal posición constitucionalmente postrera. [...] Sin derechos de libertad y garantías de justicia no hay poderes ni legislativos ni gubernativos, ni parlamentarios ni representativos, que se resulten verdad constitucionales”. (Bartolomé Clavero em apresentação à obra de MATTEUCCI, Nicola. Organización del Poder y Libertad. Historia del Constitucionalismo Moderno. Madrid, Editorial Trotta, 1998, p. 10-11). 2

Es derecho al derecho, derecho subjetivo a derecho objetivo, derecho de libertad a derecho de institución, derecho del individuo al derecho de la comunidad, a la existencia de derecho de la colectividad definida por la cultura particular. Por esto entiendo que es un derecho constituyente o, por decirlo mejor, el derecho constituyente, aquel que determina la comunidad primaria. (CLAVERO, Bartolomé. Multiculturalismo, Derechos Humanos y Constitución. Disponível em: . Acessado em 21/03/2011).

delimita o conjunto possível de soluções às crises cíclicas das civilizações, que ocorrem ora pelo colapso das suas formas de pensamento, ora pelas crises mais materiais e concretas de privação de bens essenciais ou de super-exploração dos recursos naturais, tal como ocorre nos nossos dias. Não há dúvida de que o pensamento humano funciona tendo como matéria prima a diversidade infinita dos conceitos e categorias que a espécie humana, em sua variedade, é capaz de conceber. Limitar o universo dos conceitos e categorias, das línguas, das culturas, ou limitá-lo às formas prescritas pelo ocidente, representa o mais expressivo e irreversível empobrecimento do humano. O direito deve, portanto, voltar-se ao problema da preservação da diversidade cultural humana, arcabouço das possibilidades filosóficas do homem, tomando-a como um bem jurídico, assegurando a sua reprodução livre e incontida, criando meios de inter-relação dessa diversidade.

O problema do direito humano à identidade cultural pode ser entendido de duas formas: i. como reconhecimento e regulação das diversas formas de manifestação do direito de livre expressão da individualidade, o que chamaremos aqui de multiculturalismo em sentido amplo, ou pluralismo cultural, e; ii. como reconhecimento e regulação de matrizes culturais ontológica e historicamente, distintas, mas que coexistem sob uma mesma ordem jurídica constitucional, mediante relações assimétricas de poder, o que denominamos doravante multiculturalismo em sentido estrito ou interculturalismo. A distinção tem sua razão de ser. Sem a pretensão de lançar teoria, mas com o fim de aclarar o pensamento e o caminho que iniciamos com essa introdução, aprofundemos a análise. Em ambos os casos, o Direito se depara com o desafio da normação da diversidade, ou em linguagem constitucionalista, com a necessidade de garantir as múltiplas formas de exercício das liberdades de expressão, criação e autoidentificação dos seres humanos em sociedade. No primeiro caso, do pluralismo cultural, trata-se de viabilizar o exercício coletivo ou individual da livre expressão humana, ainda circunscrita a um mesmo universo cultural, que estabelece signos comuns de comunicação entre o sujeito do direito (individual ou coletivo) e o ordenamento normativo a que ele está submetido. Em regra, nesses casos, a viabilização do valor liberdade, seja por meio da prestação jurisdicional ou através políticas públicas, demanda a reivindicação, perante os órgãos do estado, de direitos e garantias positivados nos textos constitucionais, mediante os quais a autoridade pública e/ou particulares devem adotar uma postura de ação, omissão ou ponderação em contextos de diálogo aberto e respeito

a regras previamente estabelecidas. Esse formato de solução de conflitos, não obstante sua recorrente complexidade, costuma alcançar níveis satisfatórios de legitimidade. Ainda que sem o recurso às categorias da tradição política liberal, tais como universalidade, bem comum e igualdade formal, sem as quais se torna imprescindível repensar os mecanismos tradicionais da democracia representativa, é possível alcançar, com bom manejo do direito positivado, níveis satisfatórios de legitimidade e realização de uma justiça substantiva. Isso porque as categorias de pensamento utilizadas são comuns à administração da res pública e aos indivíduos e/ou coletivos submetidos à sua jurisdição. São categorias previamente aceitas e conhecidas e passíveis de articulação, porque inscritas em um mesmo código cultural. Em geral, mas não de maneira uniforme, na doutrina especializada e jurisprudência, a expressão pluralismo cultural (multiculturalismo em sentido amplo) está vinculada aos processos de laicização ou secularização dos estados nacionais, delimitando um espaço público de tolerância garantido pela afirmação de direitos subjetivos e estruturas de poder reguladas constitucionalmente. O âmbito específico de debate do pluralismo são as formas de diversidade cultural surgidas como desviação do código cultural tradicional delimitado geograficamente no atlântico ocidental. Verdadeiramente, o pluralismo cultural aprofunda o caminho moderno da liberdade individual, sem impor um desafio insuperável aos ordenamentos constitucionais vigentes, uma vez que os fundamentos mesmos do pluralismo cultural se encerram nos marcos do constitucionalismo liberal. Trata-se de uma diversidade cultural de chegada, mas não de saída, formulada nos mesmos termos linguísticos e conceituais do padrão ocidental. O exercício de liberdades religiosas de matriz ocidental (variantes ocidentais do cristianismo, judaísmo, islamismo secularizado), ou as demandas pelo reconhecimento jurídico das formas de afeto homossexuais, ou ainda grande parte das demandas feministas, especialmente as de manifestação mais especificamente política ou sócio-econômica, são formas de reivindicação do pluralismo cultural. Como dito, são formas de manifestação de identidade cultural que, ao final, apenas cobram coerência do projeto cultural da modernidade, articulando e expressando suas demandas em parâmetros culturais eminentemente ocidentais. Em geral, são reivindicações dotadas de profunda legitimidade, que exploram as fronteiras internas do

projeto ocidental de civilização. E são questões que por sua natureza não exigem tradução antropológica. Insatisfações justificadas e limitações institucionais à parte, todas elas a exigir um constante aprimoramento das instituições constitucionais, os problemas até aqui expostos inserem-se no horizonte de desdobramentos do constitucionalismo moderno, que desenvolveu formas de argumentação sofisticadas para a garantia dessas liberdades. O multiculturalismo em sentido estrito, doravante chamado interculturalismo, corresponde a um nível distinto de problematização. Aqui, os estados nacionais, pensados segundo os moldes do constitucionalismo ocidental, deparam-se com homens e mulheres que não são indivíduos; ou sociedades que não são, ou não são reconhecidas, como nações e; direitos e liberdades que, não obstante humanos, não se realizam e se garantem através dos institutos plasmados pelas categorias jurídicas positivadas (propriedade privada, representatividade política ou divisão de poderes, por exemplo). São mulheres, homens, sociedades e direitos constituídos e constituintes de um sistema cultural distinto daquele que as Constituições cristalizam. São homens e mulheres que, embora não sendo indivíduos, permanecem humanos. São sociedades que, escapando a todos os esforços de captura mediante representatividade, permanecem a reivindicar direitos. Nesse contexto, não se discutem opiniões, mas conceitos. Não se discutem direitos ou instituições, mas valores e concepções de mundo. Antes de chegar no nível deontológico, no debate dos deveres e obrigações que reciprocamente assumimos em prol da boa convivência, o debate deve centrar-se nos níveis ontológico e axiológico, ou seja dos valores e concepções que conformam os sujeitos individual e coletivamente. Nessas circunstâncias, diante da ausência de códigos comuns de língua e comunicação, imperam o silêncio ou a negação. Por certo, trata-se de uma ordem de problemas muito distinta daquela apresentada pelo pluralismo cultural (ou multiculturalismo em sentido amplo), exposto a princípio. Para manter o paralelismo com o raciocínio anterior e marcar sua distinção fulcral com o que foi a princípio denominado pluralismo cultural, poderíamos afirmar que o multiculturalismo estrito informa uma diversidade cultural de saída, sobre a qual, para fins de reconhecimento e legitimação da ordem constitucional, não operam os efeitos pré-constituintes dos conceitos ou

categorias3. Neste ponto, as categorias do constitucionalismo plasmado no Atlântico norte, em sua função precípua de garante de liberdades, começam a expor suas frágeis e limitadas fronteiras. As liberdades políticas, o direito de propriedade, o princípio da divisão de poderes, o princípio da anterioridade da lei penal, a liberdade de expressão, o princípio da laicidade do estado, o princípio federativo, são expressões que cobram pouco ou nenhum sentido quando apresentadas a um guarani-kaiowá que vive às margens de uma rodovia federal no estado brasileiro de Mato Grosso do Sul, privado da terra que é sua fonte originária de vida, identidade e dignidade. Observe, privado não da terra enquanto ferramenta de produção e sustento em moldes capitalistas, mas do elemento primordial de constituição de sua cosmovisão e de seu ser4. Diante da necessidade de articular, para garantia dos direitos de liberdade, formas culturais distintas daquelas plasmadas pelas comunidades nacionais, a relação Constituição-Estado Nação, marco de afirmação e desenvolvimento do direito

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Bartolomé Clavero utiliza a expressão em um contexto distinto na obra El Orden de los Poderes (Madrid: Editorial Trotta, 2007, p. 39). Aqui, ao referir-me aos efeitos pré-constituintes dos conceitos, refiro-me a um fator de legitimação da ordem constitucional decorrente da participação do indivíduo ou da comunidade em conceitos e valores inscritos na Constituição. 4

ASSUNÇÃO, PARAGUAI, 15 a 19 de Novembro de 2010. Nós, representantes de diferentes organizações indígenas da Nação Guarani na Argentina, Bolívia, Brasil e Paraguai, nos reunimos na cidade de Assunção, Paraguai durante o III Encontro Continental do Povo Guarani dando continuidade ao I Encontro Continental realizado em São Gabriel/RS Brasil, em 2006 e do II Encontro Continental que aconteceu na cidade de Porto Alegre/RS Brasil em 2007. Hoje, sob o tema Terra-Território, Autonomia e Governabilidade, animando permanentemente nossos corações pelas palavras sábias de nossos anciões e anciãs, buscando compreender a partir das coincidências em longos debates e profundas reflexões realizadas sempre de acordo com os princípios de respeito e consensos, tradicionais em nossas culturas, queremos fazer chegar ao mais profundo do espírito das autoridades, nacionais e internacionais e a todos os cidadãos dos lugares que habitam nosso pensamento nestas palavras. CONSIDERANDO Que a Nação Guarani sempre teve um espaço territorial próprio o “Yvy maraê’y” ou Terra Sem Mal que extrapola fronteiras. Que desde a cosmovisão da Nação Guarani, parte de nossas milenárias culturas: o fogo, o ar, a terra e a água, constituem uma unidade e são elementos vitais para a vida; a terra sagrada é a vida para nossos povos. Que a Nação Guarani a partir da sua cosmovisão sempre buscou evitar confrontações com os que se apropriaram de seu território, de forma violenta na maioria das vezes. Que desde a demarcação das fronteiras nacionais a Nação Guarani ficou fragmentada e dividida geopoliticamente em etnias, comunidades, aldeias, famílias, condição esta que enfraqueceu significativamente seu projeto espiritual, cultural e linguístico como Nação. [...] RESOLVEMOS: PRIMEIRO – A terra e o território são direitos inalienáveis da Nação Guarani, são a vida de nossas cosmovisões; condição que nos permite ser livres e autônomos “IYAMBAE”. [...] (Documento Final do III Encontro Continental do Povo Guarani. Disponível em )

constitucional, pelo menos até meados da década de 1960, entra em colapso. Todavia, o desafio apresentado inicialmente pelos povos indígenas está posto e segue a desafiar as formas de pensamento e a ordem mundial fundada em nações soberanas e liberdades individuais. Apesar de todas as dificuldades decorrentes das exclusões operadas pelo projeto de modernidade ainda em curso, pode-se afirmar a existência de um direito fundamental à identidade cultural. Referidos direitos já montam guarda em diversas constituições e, de forma pioneira, em Pactos internacionais de força vinculativa para os estados nacionais. Portanto, mais que um desafio filosófico ou sociológico, o multiculturalismo é um problema de cunho eminentemente jurídico e constitucional, expresso na forma de assegurar o direito fundamental à identidade cultural dos povos e indivíduos que partilham códigos culturais não cobertos por estados nacionais de soberania reconhecida. Talvez estejamos ingressando na era do transconstitucionalismo, ou seja, no momento em que o operador do direito vê-se obrigado a transcender, sem transgredir, as constituições positivadas, de modo a alcançar a efetiva tutela das liberdades. Saímos do campo estrito das constituições para alcançarmos as paragens extensas do constitucionalismo. Há pouco tempo que o interculturalismo tornou-se um problema jurídico. Em épocas recentes, a Organização das Nações Unidas deu-se conta da existência de um contingente de cerca de 300 milhões de pessoas, esparramadas por todo o mundo, desde o Ártico até o Pacífico sul, ao qual se denominou povos indígenas ou aborígenes, que não contavam com a salvaguarda de estados nacionais e, portanto, estavam privadas de formas de interlocução com os organismos internacionais de defesa dos direitos humanos. Segundo a ONU "se han denominado pueblos indígenas o aborígenes porque estaban viviendo en sus tierras antes de que vinieran los colonizadores de otros lugares; según una definición, son los descendientes de las personas que habitaban un país o una región geográfica en el momento en que llegaron poblaciones de culturas u orígenes étnicos diferentes. Los recién llegados se convirtieron más tarde en el grupo dominante mediante la conquista, la ocupación, la colonización o por otros medios"5.

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Folleto informativo Nº 9/Rev.1 - Los derechos de los pueblos indígenas, da Oficina do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Disponível em . Acessado em 20/07/2011.

Todavia, uma ressalva é necessária. Não obstante a temática do interculturalismo refira-se comumente a povos indígenas, tal como descritos no folheto informativo da Organização das Nações Unidas (ONU), desde já, vale uma observação. A problemática do multiculturalismo em sentido estrito alcança também grupos humanos não indígenas que, por razões diversas, situam-se ou são obrigados a se situar, sob a égide de um ordenamento jurídico no qual não estão inscritos seus marcos culturais identitários constitutivos. Poderíamos citar, no Brasil, a situação dos povos e comunidades tradicionais, descritos pelo Decreto n. 6.040, de 07 de fevereiro de 20076, como "grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição" (artigo 3o, inciso I). Portanto, trata-se de grupos que, não obstante não descendam de grupos culturais presentes quando da chegada de agentes colonizadores, por razões diversas marcadas em geral por flagrantes injustiças sociais, foram situados à margem dos sistemas democráticos, cristalizando formas de socialidade e relação com o meio ambiente em quase tudo distintas da cultura inscrita nas Constituições vigentes. Tais grupos também deve ser objeto de problematização no âmbito do debate do interculturalismo, uma vez que, não obstante as claras distinções de raiz histórica, entendo que a situação dos povos tradicionais brasileiros e latino-americanos é idêntica à dos povos indígenas, no sentido de sua localização (ou deslocalização) em relação ao ordenamento constitucional a que estão submetidos. Portanto, inclusive para fins de aplicação de determinados diplomas internacionais de proteção, em especial a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho7, que traz menção expressa

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Disponível em Acessado em 20/07/2011. 7

“O Decreto nº 6.040 de 2007 [...] descreve os três elementos do conceito de povo tribal do artigo 1o da Convenção na definição de povos e comunidades tradicionais: a existência de condições sociais, culturais e econômicas diferentes de outros setores da sociedade nacional; a presença de uma organização social regida total ou parcialmente por regras e tradições próprias; e  a  auto-identificação, entendida como a consciência que tem o grupo social de sua identidade tribal. Isso indica que a Convenção 169 da OIT deve ser aplicada também aos povos e comunidades tradicionais, embora ainda não exista nenhum reconhecimento por parte do Estado brasileiro nesse sentido”. Disponível em http://www.socioambiental.org/ inst/esp/consulta_previa/?q=convencao-169-da-oit-no-brasil. Acessado em 22 de novembro de 2011.

aos povos tradicionais, sob a insígnia de povos tribais8, sustentamos que essas comunidades merecem o mesmo tratamento constitucional que os povos indígenas9. Uma breve narrativa para ilustrar os esforços feitos até aqui. Em um júri federal realizado na cidade de São Paulo, em maio de 2010, iniciava-se a instrução de polêmico processo penal cujo objeto era o assassinato de liderança indígena da etnia Guarani-Kaiowá, perpetrada por funcionários de fazenda situada em terras reivindicadas como terra indígena tradicional. Apesar da presença de intérpretes devidamente requerida e deferida pelo juízo no momento processual oportuno, e da ausência de fluência dos indígenas no manejo do português, a juíza que presidia a sessão sumariamente desautorizou a utilização da língua guarani pelas testemunhas indígenas, logo em seguida a requerimento realizado nesse sentido pela defesa dos réus. Proibiu-se a fala do língua guarani em meia a uma sessão pública de julgamento. A questão torna-se ainda mais emblemática quando se observa que a sessão do júri, em razão do forte preconceito que imperava na sociedade local contra os índios10, realizava-se a mais de mil quilômetros da localidade em que perpetrado o assassinato da liderança indígena.

Por detrás do direito, que justifica e fundamenta desde a mais elevada ordem constitucional até a mais deplorável decisão de um magistrado, permeia uma densa carga de cultura e história, escondidas por detrás de conceitos, axiomas, procedimentos e formas. Desconsiderado qualquer personalismo e analisando os fatos sob uma perspectiva estritamente objetiva, de que forma poderíamos compreender a 8

O Convenção n. 169 da OIT faz distinção expressa entre povos indígenas e tradicionais, nos seguintes termos: Artículo 1. 1. El presente Convenio se aplica: a) a los pueblos tribales en países independientes, cuyas condiciones sociales, culturales y económicas les distingan de otros sectores de la colectividad nacional, y que estén regidos total o parcialmente por sus propias costumbres o tradiciones o por una legislación especial; b) a los pueblos en países independientes, considerados indígenas por el hecho de descender de poblaciones que habitaban en el país o en una región geográfica a la que pertenece el país en la época de la conquista o la colonización o del establecimiento de las actuales fronteras estatales y que, cualquiera que sea su situación jurídica, conservan todas sus propias instituciones sociales, económicas, culturales y políticas, o parte de ellas. Optamos pela designação brasileira, povos e comunidades tradicionais, para não recobrar designações de antropologia e etnocentrismos ultrapassados. Basta-nos os etnocentrismos inconscientes, destes tempos em que (ainda) nos falta luz. 9

Também no contexto do multiculturalismo em sentido estrito, poderíamos situar determinados contingentes imigrantes presentes sobremaneira em países europeus, cujo deslocamento geográfico fundamenta profundas distinções culturais. O tema dos imigrantes, contudo, não é objeto do presente trabalho. 10

Código Penal Brasileiro. Art. 427. Se o interesse da ordem pública o reclamar ou houver dúvida sobre a imparcialidade do júri ou a segurança pessoal do acusado, o Tribunal, a requerimento do Ministério Público, do assistente, do querelante ou do acusado ou mediante representação do juiz competente, poderá determinar o desaforamento do julgamento para outra comarca da mesma região, onde não existam aqueles motivos, preferindo-se as mais próximas. (Redação dada pela Lei nº 11.689, de 2008).

decisão do magistrado? Se a prática comum dos tribunais brasileiros diuturnamente assegura o direito de falar em sua própria língua a qualquer nacional de outro país, sem indagar de questões de custo ou obstáculos de ordem processual, como suscitou o magistrado no caso narrado acima, porque se deu o ocorrido em uma sessão do júri, a mais democrática das instâncias jurídicas, à qual acorria a atenção de parcelas significativas da imprensa nacional e internacional?

Certamente, pesa ainda sob os tribunais brasileiros e de grande parte da América Latina um mandamento semelhante ao dos primeiros europeus que chegaram na América: o dever de colonizar, de ensinar a língua, os trejeitos, as formas de crer e de amar. Por detrás do mandato colonial, pesa ainda uma densa rede de significados que nos constituiu como indivíduos ocidentais. Em graus distintos, mas tal como os indígenas, os “nacionais” também são vítimas de uma cultura que nega a dignidade humana ao negar sua diversidade. Em dois séculos de constitucionalismo, a dignidade que nos rendem os textos constitucionais é a de cidadãos dotados de nacionalidade. Não é dignidade humana, que não admite adjetivações ou condicionantes.

Portanto, como visto, a nova ordem normativa instituída pelo reconhecimento do direito fundamental à identidade cultural em contextos multiculturais suscita diversas questões: i. Até que ponto é possível articular e acomodar dentro de um mesmo texto constitucional universos culturais diferentes? ii. É possível ou legítimo inserir em códigos jurídicos escritos formas de cultura com pouco ou nenhum manejo da cultura escrita? iii. É possível estabelecer zonas de exclusão da normatividade constitucional em decorrência do reconhecimento de um direito fundamental à identidade cultural? iv. É legítimo o exercício de soberanias culturalmente constituídas sobre povos e indivíduos que não partilham a mesma história e a mesma cultura expressas nas ordens constitucionais nacionais? v. Pode um juiz ou Tribunal reconhecer direitos ou restringi-los, bem como impor obrigações, seja a particulares ou a poderes públicos, em decorrência de valores culturais antropologicamente relevantes mas não positivados constitucionalmente? vi. Na condução de um processo judicial ou de uma política pública que afetem a povos indígenas ou tradicionais, sob a ótica constitucional ou de tratados internacionais de defesa de direitos humanos, como opera o direito fundamental à identidade cultural? vii. O direito de auto-determinação, corolário do direito fundamental à identidade cultural, opera sobre ou sob os poderes soberanos dos estados nacionais? viii.

É possível a cisão de um território em nome do direito de auto-determinação de um coletivo humano (povo, nação ou comunidade) culturalmente diferenciado? ix. É possível o reconhecimento de direitos em sentido amplo sem a constitucionalização da cultura que os constitui?

Algumas dessas perguntas não admitem respostas com carga de normatividade jurídica, não obstante demandem profundas reflexões de ordem jusfilosófica. A questão viii, atinente a direito de soberania sobre territórios ocupados por populações indígenas, é especialmente problemática, embora poucas vezes seja suscitada nas reivindicações mais recentes formuladas por povos indígenas. A questão da cisão territorial, extremo lógico do direito de auto-determinação, já que a ordem internacional é definida como comunidade de estados nacionais, cuja soberania decide em última instância os destinos dos povos e indivíduos, é especialmente problemática. Após a enumeração de um extenso e muito significativo rol de direitos, a Declaração da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas afirma expressamente em seu artigo 46.1 que “nada de lo señalado en la presente Declaración se interpretará en el sentido de que [...] autoriza o fomenta acción alguna encaminada a quebrantar o menoscabar, total o parcialmente, la integridad territorial o la unidad política de Estados soberanos e independientes”. Os artigos 3 e 4 referem-se a direitos de livre determinação, autogoverno e autonomia, com o cuidado de não utilizarem a palavra soberania, de especial significado em nossa ordem internacional. Todavia, no horizonte das disputas políticas, é certo que, em determinados momentos, a questão da livre-determinação será posta em termos de soberania. Trata-se de questão para a qual as constituições estatais e a ordem internacional, ambas fundadas em estados ditos nacionais e soberanos, pouco ou nada teriam a dizer.

Todas essas indagações remetem ao tratamento jurídico dispensado ao direito fundamental à identidade cultural, em sua articulação com o modelo ocidental de estado democrático de direito. A cada dia, são mais evidentes os limites de um sistema jurídico fundado na garantia de direitos individuais plasmados sobre uma noção de sujeito culturalmente homogêneo e universal, característica da democracia representantiva dos estados nacionais. Por ora, limitemo-nos a apresentar adequadamente as perguntas e vejamos de que forma ou até que ponto nossa cultura constitucional, cultura de liberdades, é capaz de acolhê-las, antes mesmo que de respondê-las.

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