O Direito Internacional contemporâneo no cenário globalizado: fatores de convergência entre o público e o privado. In: Ana Cristina Paulo Pereira; Wagner Menezes. (Org.). Direito e Relações Internacionais na América Latina. 1ed. Belo Horizonte: Editora Arraes, 2015, p. 346-358.

Share Embed


Descrição do Produto

O

DIREITO

INTERNACIONAL

CONTEMPORÂNEO

NO

CENÁRIO

GLOBALIZADO: FATORES DE CONVERGÊNCIA ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO * Conferencistas: Isabella Benevides1 e Raphael Rocha2

Resumo: Esse artigo pretende demonstrar como a globalização e seus fenômenos impactam no Direito Internacional contemporâneo de diversas formas. Para responder às particularidades da conjuntura atual e proteger o indivíduo, a disciplina passa por uma transformação significante, ampliando o domínio de seus ramos público e privado, e convergindo essas duas esferas. Busca-se aprofundar os mecanismos de superação da cisão entre os ramos do Direito Internacional, apresentando a possibilidade de inclusão da governança global no Direito Internacional Privado.

Palavras-chave: Direito Internacional Contemporâneo; Governança Global; Globalização.

Abstract: This article aims to demonstrate how globalization and its phenomena impact contemporary international law in several ways. To respond the particularities of the current situation and to protect the individual, the discipline is undergoing a significant transformation, expanding the domain of its private and public branches, and converging these two spheres. The paper attempts to deepen the mechanisms of overcoming the schism between the branches of international law, presenting the possibility of inclusion of global governance in the private international law.

Keywords: Contemporary International Law; Global Governance; Globalization.

* Os autores agradecem especialmente à Professora Marilda Rosado e à turma da disciplina “Direito Internacional Contemporâneo” de 2015.1 do Mestrado em Direito Internacional da UERJ pelas valiosas colaborações. 1 Mestranda em Direito Internacional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Advogada. 2 Mestrando em Direito Internacional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Advogado.

Sumário: 1. Introdução; 2. Impactos da globalização na transformação do Direito Internacional; 3. Diferentes concepções sobre os domínios dos ramos do Direito Internacional; 4. Convergência do Direito Internacional Público e Privado; a) A governança global no Direito Internacional Privado; b) Os direitos humanos e o Direito Internacional Privado; c) O pluralismo jurídico e a aferição da legitimidade das normas produzidas pelos atores privados transnacionais; 5. Conclusão; 6. Referências bibliográficas. 1.

Introdução No cenário hodierno, nota-se uma sociedade cada vez mais interligada pela

globalização. Em decorrência de sua importância e consequências, os seus fenômenos passaram a ser amplamente estudados por diversas áreas do saber. No Direito, não foi diferente. Sistemas jurídicos internos, regionais, supranacionais, internacionais e transnacionais buscam se adequar às necessidades contemporâneas. O presente artigo tem por escopo demonstrar como a globalização e seus fenômenos impactam o Direito Internacional contemporâneo de diversas formas, bem como analisar algumas das relevantes sugestões propostas pela doutrina para a proteção do indivíduo e de sua dignidade nesse novo contexto.

2.

Impactos da globalização na transformação do Direito Internacional O século XX foi marcado pelo alargamento da comunidade internacional, com

a expansão do número de Estados, indivíduos e organizações internacionais, ocorrido após os processos de descolonização asiático e africano. A aparição de novos sujeitos de Direito Internacional, tais como as organizações internacionais, cujo surgimento se iniciou já no século anterior,3 e o reconhecimento do indivíduo como sujeito de direitos no plano

“Durante o século XIX, as organizações internacionais se multiplicam. Isto é possível pelas novas formações que os Estados vão adquirindo: estabilidade interna, maior controle sobre a população, fronteiras bem definidas, ausência de um poder superior e maior especialização e eficiência dos governos. Com isso, os Estados passam a visar a determinados “fins” em função do bem-estar de sua população (ainda que este bemestar fosse em grande parte presumido, e muitas vezes identificado como o interesse do grupo governante)”. In: ALMEIDA, Paula Wojcikiewicz; BARRETO, Rafael Zelesco. Direito das organizações internacionais: casos e problemas.Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014, p. 28. 3

internacional, foram relevantes para a modificação do cenário estatista,4 no qual o interesse estatal prevalecia sobre o interesse do indivíduo. Conforme expõe Wagner Menezes, a globalização mundial se constitui das recentes transformações resultantes dos fatores transfronteiriços econômicos, tecnológicos, históricos, políticos e científicos, que desenvolveram um sentimento de cosmopolitismo nos povos.5 Entre suas características marcantes estão a integração econômica, a expansão do comércio sem fronteiras, o aparecimento de novos atores no cenário mundial, o surgimento de poderosas organizações internacionais, e a decomposição das fronteiras estatais

em

determinados

campos

da

atividade

humana,

especialmente

nas

telecomunicações.6 Na nova fase da globalização no século XXI, com novas tecnologias, movimentos de capital e intercâmbios comerciais, as autoridades estatais perderam grande parte de sua influência. Diego Arroyo dá destaque ao fenômeno real da globalização, no qual o crescimento da dimensão transnacional dos fluxos econômicos minimiza a dimensão nacional e evidencia a atuação dos atores transnacionais.7 Nesse contexto, os benefícios advindos do processo de globalização são incontáveis. À sociedade internacional se possibilita a melhoria do potencial de comunicação, produção e criação cultural,8 a cooperação internacional9 e um pensar mais 4

CASELLA, Paulo Borba. Fundamentos e perspectivas do direito internacional pós-moderno. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, vo. 101, jan./dez. 2006, p. 435. 5 MENEZES, Wagner. O direito internacional contemporâneo e a teoria da transnormatividade. Fortaleza, Revista Pensar, v. 12, mar. 2007, p. 135. Disponível em . Acesso em 29 de junho de 2015. Sobre as novas perspectivas do Direito Internacional na atualidade, ver: Carlos Alberto menezes Direito; Antonio Augusto Cançado trindade; Antonio Celso Pererira. (Org.). Novas perspectivas do direito internacional contemporâneo. 1ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. 6 BAPTISTA, Ferreira Patrícia; RIBEIRO, Leonardo Coelho. Direito administrativo global: uma nova ótica para a regulação financeira de investimentos, p. 802. In: RIBEIRO, Marilda Rosado de Sá (Org.). Direito Internacional dos Investimentos. Rio de Janeiro, Renovar, 2014, p. 801-820. Disponível em . Acesso em 28 de junho de 2015. 7 ARROYO, Diego P. Fernández. El Derecho Internacional Privado en el Inicio Del Siglo XXI. In MARQUES, Cláudia Lima; ARAÚJO, Nádia de. O Novo Direito Internacional – Estudos em Homenagem a Erik Jayme. Rio de Janeiro: Renovar, p. 89-109, 2005, p. 89, 90. 8 CASTELLS, Manuel. O poder da identidade – (A era da informação: economia, sociedade e cultura; v.2). São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 93. 9 A cooperação internacional, no cenário moderno, engloba a cooperação jurídica stricto sensu – que envolve normas emanadas de organismos de integração focadas na cooperação jurídica – e a cooperação jurídica lato sensu – com matérias de outras áreas da cooperação, como a política e a economia. Ainda, a cooperação jurídica internacional não se resume mais a obrigações mútuas e à assistência entre os países, mas também

aprofundado e global sobre questões de direitos humanos e meio ambiente – tratam-se de atuações que refletem um modo de pensar global em consonância com o modo de agir local.10 Contudo, a globalização também tem suscitado preocupações em decorrência de impactos negativos. Dentre esses, está o receio de afronta à dignidade da pessoa humana na esfera global e à identidade cultural do indivíduo face à mundialização do comércio. 11 Os fenômenos, tais como a abertura dos mercados e as correntes migratórias de cunho econômico, que expandiram as situações privadas internacionais, impõem, assim, uma nova compreensão do Direito Internacional Privado.12 A essa disciplina cabe a criação e aplicação de ferramentas que permitam a convivência pacífica de valores na sociedade multicultural e o respeito à identidade cultural, que deve ocorrer à luz dos direitos fundamentais e do reconhecimento do direito dos outros.13 A proteção da pessoa humana, portanto, é o objetivo do Direito Internacional Privado e seus princípios passaram a impregnar a metodologia interpretativa e operacional desse ramo do Direito Internacional em diversos Estados, com atenção às limitações da ordem pública à aplicação da lei estrangeira.14 Segundo Erik Jayme, se, por um lado, o indivíduo pode ir além da limitação de sua existência através da velocidade, ubiquidade, liberdade, e comunicação sem fronteiras, por outro, ele sente uma perda da segurança da proteção pelo Estado e por juízes estatais,

abrange a aferição de uma tutela judicial efetiva ao indivíduo, a fim de proteger seu interesse nas situações privadas internacionais. In: ARROYO, Diego P. Fernández. Op. Cit., p. 98, 99. 10 ARROYO, Diego P. Fernández. Op. Cit., p. 91, 92. 11 JAYME, Erik. O direito internacional privado do novo milênio: a proteção da pessoa humana face à globalização. In: O novo direito internacional – estudos em homenagem a Erik Jayme. Claudia Lima Marques; Nadia de Araújo. (Org.). Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 1. 12 ARAUJO, Nadia de. Direito internacional privado: teoria e prática brasileira. 5.ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p.14, 22. 13 ARROYO, Diego P. Fernández. Op. Cit..p. 104, 105. 14 JAYME, Erik. Identité Culturelle et integration: le Droit International Privé Postmoderne. Recueil de Cours. Academine de Droit International de la Haye, Leiden, Holanda, NL, v. 251, p. 21, 1995. Apud ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Comitê Jurídico Interamericano,Washington, DC. Curso de Direito Internacional, 28, 2001. Wasghington,DC: OEA/ Subsecretaria de Assuntos Juridicos, 2001, p. 461. Para uma análise mais aprofundada do papel dos princípios que informam o Direito Internacional Privado, ver: RIBEIRO, Marilda Rosado de Sá; ALMEIDA, Bruno Rodrigues de. A cinemática jurídica global: conteúdo do Direito Internacional Privado Contemporâneo. Revista da Faculdade de Direito da UERJ, v. 1 nº 20, 2011. Disponível em . Acesso em 28 de junho de 2015.

instituições tradicionais. Isso ocorre porque o Estado não figura mais como o centro detentor de poder, nem exerce um papel central no que se refere à proteção do indivíduo, tendo em vista a perda de seus poderes para o mercado.15 Para responder a tais particularidades do cenário internacional contemporâneo, o Direito Internacional sofreu uma transformação, ampliando seu direcionamento, e passando a abranger indivíduos, organizações e empresas que agem na ordem global. Desse modo, o Direito Internacional e o direito interno têm sofrido uma interpenetração gradativamente mais intensa.16 Diferentes autores citam fatores cruciais para a referida modificação: dentre esses, (i) o objetivo de proteger a pessoa humana;17 (ii) a internacionalização da vida e das atividades humanas;18 (iii) os riscos à segurança transnacional que transcendem o campo da soberania

estatal19;

(iv)

o

alargamento

da

comunidade

internacional;

(v)

o

redimensionamento das relações internacionais estatais determinado pela superação de obstáculos aos diálogos ideológicos e/ou políticos; (vi) a atuação de organizações internacionais e foros como legisladores universais; (vii) a compreensão dos direitos humanos como direitos universais, assim como sua divisão em gerações de direitos; (viii) o progresso sistemático da configuração da democracia horizontal (provocado, em grande parte, pela Organização das Nações Unidas) e a evolução do multilateralismo estatal de tomada de decisões; (ix) a expansão transnacional do comércio internacional e dos capitais por meio das regras intraestatais e supraestatais; e (x) a criação de uma agenda internacional composta de temas globais que precisam ser regulamentados.20

15

JAYME, Erik. Op. Cit., p. 2. MENEZES, Wagner. Op. Cit., p. 139. 17 ARAUJO, Nadia de. Op. Cit., p.14, 22. 18 DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado: parte geral. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p.19. 19 Destacam-se os seguintes riscos à segurança transnacional: exploração sem limites dos recursos energéticos e naturais, piora das desigualdades econômicas e sociais, violação dos direitos humanos, aumento da criminalidade transnacional, degradação do meio-ambiente mundial e crescimento do terrorismo internacional e dos riscos nucleares. COCKAYNE, John; MIKULASCHEK, Cristoph. Transnational Security Challenges and the United Nations: Overcoming Sovereignty Walls and Institutional Silos, 2008. Apud: RIBEIRO, Marilda Rosado de Sá; ALMEIDA, Bruno Rodrigues de. Op. Cit., p. 10, 11. 20 MENEZES, Wagner. Op. Cit., p. 139, 140. 16

3.

Diferentes concepções sobre os domínios dos ramos do Direito Internacional Observe-se que há distintas concepções a respeito do domínio do Direito

Internacional Privado. Para a doutrina francesa, o objeto de estudo dessa ciência jurídica é o conflito de leis, o conflito de jurisdições, a nacionalidade, e a condição jurídica do estrangeiro.21 Já a escola alemã cinge o objeto da disciplina ao conflito de leis, enquanto a doutrina dos países anglo-saxões, como Estados Unidos e Grã-Bretanha, abrangem em seu campo, além do conflito de leis, o conflito de jurisdições, contendo o reconhecimento de sentenças estrangeiras.22 Quanto ao Brasil, há divergências sobre o alcance da disciplina jurídica, sendo os autores brasileiros influenciados, cada um, por diferentes concepções. Entretanto, desde o século XIX, há a tendência no país de entender o objeto do Direito Internacional Privado de forma vasta, compreendendo, inclusive, temas que são hoje em dia considerados como pertencentes a outras disciplinas.23 Jacob Dolinger, vanguarda na concepção da abrangência do Direito Internacional Privado e da influência do direito público nessa disciplina, entende que, para a defesa dos direitos do homem e o estudo de suas relações jurídicas na dimensão internacional, é preciso que a disciplina estude “o exame de sua nacionalidade, o estudo de seus direitos como estrangeiro, as jurisdições a que poderá recorrer e às quais poderá ser chamado, o reconhecimento das sentenças proferidas no exterior, assim como as leis que lhe serão aplicadas”.24 Com ótica original que englobava conflito de jurisdição – reconhecimento de sentenças, cooperação internacional, processo penal internacional, imunidade de jurisdição, competência e outros temas –, conflito de leis, condição jurídica do estrangeiro e direitos 21

Para Antoine Pillet, o objeto do Direito Internacional Privado abrangeria, ainda, os direitos adquiridos na sua dimensão internacional. In: PILLET, Antoine. Principes de Droit International Privé. p. 27 e ss. Apud: DOLINGER, Jacob. Op. Cit, p. 19. “A teoria dos direitos adquiridos como objeto do Direito Internacional Privado trata da mobilidade das relações jurídicas, quando nascem em uma jurisdição, repercutindo seus efeitos em outra, sujeita a legislação diversa” In: DOLINGER, Jacob. Op. Cit, p. 20. 22 DOLINGER, Jacob. Op. Cit, p. 20 23 MARQUES, Cláudia Lima. Introdução: Ensaio para uma introdução ao Direito Internacional Privado. In: DIREITO, Carlos Alberto Menezes; TRINDADE, Antônio Augusto Cançado; PEREIRA, Antonio Celso Alves (coords.). Novas perspectivas do Direito Internacional Contemporâneo: Estudos em homenagem ao Professor Celso D. de Albuquerque Mello. Rio de Janeiro: Renovar, p. 319-350, 2008, p. 338, 339. 24 DOLINGER, Jacob. Op. Cit, p. 20

adquiridos na dimensão internacional, Haroldo Valladão também defendia a amplitude de objeto do Direito Internacional Privado.25 Para ele, a disciplina cuida de leis que abrangem conflitos de leis no espaço, sejam esses de qualquer natureza.26 Em posição divergente, Amílcar de Castro, Eduardo Espínola27, Beat Walter Rechsteiner28, entre outros autores, defendem a restrição ao objeto de estudo do Direito Internacional Privado. Amílcar de Castro, por exemplo, afirma que a disciplina possui tão somente como objeto a escolha do direito aplicável aos casos com conexão internacional, a partir da apreciação pelo juiz do foro.29 No que se refere ao Direito Internacional Público, a doutrina o definia como o conjunto de normas voltadas a regular as relações entre os Estados.30 Contudo, essa concepção, com enfoque apenas nos Estados como destinatários das normas, foi superada. Percebe-se que os demais atores do cenário internacional são ignorados nesse antigo conceito. O Professor Celso Duvivier de Albuquerque Mello procurou dar uma concepção ao Direito Internacional Público mais adequada à proteção do indivíduo diante

25

MARQUES, Cláudia Lima. Op. Cit, p. 343. VALLADÃO, Haroldo. Direito Internacional Privado, 5ªed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1980, v.1, p. 42. 27 Segundo Eduardo Espínola, o Direito Internacional Privado deve ter como objeto de estudo o conflito de jurisdições e o conflito de leis. In: ESPÍNOLA, Eduardo. Elementos de Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1925, p. 23. Apud: DOLINGER, Jacob. Op. Cit, p. 20. Conforme observa Claudia Lima Marques, os autores Nicolau Nazo e Balmaceda Cardoso também compreendiam a dimensão do Direito Internacional Privado como restrita ao conflito de leis. In: MARQUES, Cláudia Lima. Op. Cit, p. 342 28 Para melhor compreensão do objeto do Direito Internacional Privado para Rechsteiner: “De acordo com o nosso entendimento, o direito internacional privado resolve, essencialmente, conflitos de leis no espaço referentes ao direito privado, ou seja, determina o direito aplicável a uma relação jurídica de direito privado com conexão internacional. Não soluciona a questão jurídica propriamente dita, indicando, tão somente, qual direito, dentre aqueles que tenham conexão com a lide sub judice, deverá ser aplicado pelo juiz ao caso concreto (direito internacional privado stricto sensu). Como a aplicação desse tipo de norma jurídica depende de normas processuais específicas, isto é, das normas do direito processual civil internacional, considera-se que o direito internacional privado abrange também normas processuais correspectivas na sua disciplina (direito internacional privado lato sensu).” In: RECHSTEINER, Beat Walter. Direito internacional privado: teoria e prática. 15.ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 27. 29 CASTRO, Amílcar de. Direito internacional privado. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. 2008, p. 61. Apud: BOUCAULT, Carlos Eduardo de Abreu; POLIDO, Fabrício Bertini Pasquot. Amílcar de Castro e as lições do Direito Internacional Privado e Comparado: memória dos 120 anos da Faculdade de Direito da UFMG. Revista Brasileira de Estudos Políticos, n. 40, pp. 103-120, 2012, p. 105. 30 GUERRA, Sidney. Curso de Direito Internacional Público. 4ª. Ed.,Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 33. 26

das particularidades da realidade contemporânea. Para o autor, a disciplina compreende o conjunto das normas que regulam as relações externas dos atores que compõem a sociedade internacional e que objetivam a promoção do desenvolvimento, da justiça e da paz.31

4.

Convergência do Direito Internacional Público e Privado A ampliação do domínio do Direito Internacional Público e do Direito

Internacional Privado revela a crescente convergência entre o público e o privado no Direito Internacional Contemporâneo. O hiato epistemológico e hermenêutico de outrora32 não deve permanecer como obstáculo para a busca da proteção da pessoa humana na sociedade internacional contemporânea. De acordo com Dolinger, o Direito Internacional Privado não mais se limita às instituições do direito privado, como antes se alegava, mas sim abarca também o direito público em questões penais, administrativas, fiscais, financeiras e monetário-cambiais, que possuem aspectos internacionais e demandam que se recorra aos princípios e às regras jurídicas internacionais privadas.33 Embora a visão tradicional do Direito Internacional Privado estabeleça de forma diversa, na contemporaneidade pós-moderna, como afirma Cláudia Lima Marques, a disciplina configura um ramo misto, com pluralidade de métodos e normas,34 não se encontrando mais válidas as razões históricas que separaram as disciplinas do Direito Internacional.35 Philip Jessup observou a insuficiência da definição clássica das áreas de Direito Internacional e adotou a terminologia do “Direito Transnacional” para abranger todo o direito que regula eventos ou ações transfronteiriças. Assim, os ramos privado e público do 31

MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público. 12ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 67. 32 ROSADO, Marilda; ALMEIDA, Bruno. A cinemática jurídica global: conteúdo do direito internacional privado contemporâneo. Revista da Faculdade de Direito da UERJ – RFD, v.1, n.20, 2011, p. 7. Disponível em . Acesso em 28 de junho de 2015. 33 DOLINGER, Jacob. Op. Cit, p. 20 34 MARQUES, Cláudia Lima. Op. Cit, p. 346, 347. 35 LOWENFELD, Andreas F. Public Law in the International Arena: Conflict of Laws, International Law, and Some Suggestions for their Interaction, Recueil des Cours. Academie de Droit Internacional de la Haya, Leiden, Holanda, NL, v. 163, 1979. p. 321, 322.

Direito Internacional estão inclusos em tal conceito, assim como outras normas que não se enquadram totalmente em tal standard. Jessup aduz que as relações humanas transcendem os limites estatais e as situações transnacionais podem envolver indivíduos, Estados, organizações estatais, sociedades, ou outros grupos.36 Nessa seara, a relação do direito interno com o Direito Internacional deve considerar a perspectiva transnormativa. Como preconiza Wagner Menezes, a revitalização do conceito de transnormatividade nos dias de hoje expande os mecanismos de interação entre o Direito Internacional e o direito interno e estabelece uma relação transnormativa verdadeira de produção, efeitos e repercussão do Direito Internacional sobre os sistemas normativos:37 “Essa relação transnormativa se caracteriza por vários fatores de alocação de uma nova realidade internacional que, através de seus instrumentos normativos produzidos no plano internacional, dissolvem as fronteiras e possibilitam uma interpenetração das normas jurídicas entre o local e o global em um mesmo espaço de soberania e competência normativa”38

Como nota Andreas Lowenfeld, enquanto o Direito Internacional Público tem se apresentado abstrato e rígido demais, o Direito Internacional Privado permanece se escondendo atrás de slogans que refletem a hostilidade e o medo de lidar com ações governamentais – o que já contrastava com as características do século XX,39 e que, agora, opõe-se ainda mais aos fenômenos do século XXI. O jurista critica, por exemplo, a visão de que o reconhecimento da lei estrangeira pelo Direito Internacional Privado deve terminar quando sobre ela incidir um caráter público – visão que ele compreendeu como o tabu do direito público no Direito Internacional Privado.40 Para Horatia Muir Watt, a disciplina precisa ultrapassar a cisão criada entre as esferas pública e privada e disciplinar o exercício do poder privado além do Estado. Essa é

36

JESSUP, Philip C. Transnational Law. New Haven, CT: Yale University Press, 1956, p. 1-3. MENEZES, Wagner. Op. Cit, p. 141. Ibid, p. 141. 39 LOWENFELD, Andreas F. Op. Cit., p. 321, 322. 40 Ibid., p. 322, 325. 37 38

uma etapa necessária para que o Direito Internacional Privado realize o seu potencial e reequilibre a balança do poder informal na economia global.41 Em descompasso com o cenário contemporâneo, a referida disciplina se encontra incapaz de responder às necessidades do mundo globalizado. Ao resistir em revisar as premissas metodológicas e epistemológicas das categorias vestfalianas42, o Direito Internacional Privado deixa as áreas como mercado financeiro, meio ambiente, acesso a alimentos, entre outras, desassistidas, permanecendo, até mesmo, inerte frente às injustiças e crises dos tempos atuais. Conforme Watt, o paradoxo fundamental do Direito Internacional se configura no estabelecimento da supremacia da dimensão pública concomitante ao emponderamento do poder privado.43 O confronto do poder econômico privado com a soberania da autoridade pública ocorre, por exemplo, quando as entidades privadas, apesar de possuírem amplos direitos e poderes, não detêm deveres públicos. Sociedades multinacionais e agências de classificação de risco não estão sujeitas a um sistema efetivo de responsabilidade e prestação de contas, pois o Direito Internacional Público não as considera como sujeitos de Direito Internacional e o Direito Internacional Privado se abdicou de se pronunciar a respeito. O regime dos direitos humanos não possibilita a responsabilização estatal pela conduta de suas sociedades no exterior, embora possibilite pelos atos de seus agentes oficiais.44 Ademais, o regime de tratados de investimentos afeta fortemente o Direito Internacional. Muitos instrumentos do poder privado em matéria de investimento externo, 41

A globalização e seus efeitos contribuem para a consolidação do império informal que se desenvolve às margens das relações interestatais. In: WATT, Horatia Muir. Op. Cit., p. 347-353, 360. 42 No estudo do Direito Internacional, os dois tratados que formaram a Paz de Vestfália, em 1648, o Tratado de Münster e o Tratado de Osnabrück, tratam-se de um marco jurídico, por terem reunido potências com divergências religiosas (enquanto a Espanha e o Sacro Império eram tidos como guardiões tradicionais da fé católica, a Suécia, a Holanda e os Estados do norte e centro alemão eram adeptos das novas doutrinas protestantes) e por terem estabelecido princípios e conceitos que marcariam o sistema internacional clássico: basicamente, a soberania estatal, a não intervenção, a igualdade entre os Estados e o estatismo, no qual o interesse estatal prevalece sobre o interesse do indivíduo. Sabe-se que esta última característica teve sua crise após três séculos, com o crescimento infrene do poder dos Estados inerente ao totalitarismo, sendo superada com a perda do monopólio do Estado no direcionamento das relações internacionais. In: ALMEIDA, Paula Wojcikiewicz; BARRETO, Rafael Zelesco. Direito das organizações internacionais: casos e problemas.Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014, p. 13, 25-27. 43 WATT, Horatia Muir. Private International Law beyond the schism. Transnational Legal Theory. Oxford, vol. 2, n. 3 (2011), p. 362, 395, 396. 44 WATT, Horatia Muir. Op. Cit, p. 362, 364-368.

como tratados bilaterais de investimentos, garantem direitos aos atores privados, sem estipular deveres correspondentes. Logo, permite-se que o poder privado se desvie de eventuais limitações que a soberania do Estado pretenda impor.45 Até mesmo Estados que não são partes em tratados de investimento podem estar sujeitos a determinadas regras de investimento internacional que emergem nesse regime.46 Há aspectos dos tratados bilaterais de investimento que são lex specialis, ou seja, tem a intenção de excluir a aplicabilidade das regras gerais de direito em sentido contrário, porém, muitas garantias estipuladas nesses tratados fazem parte dos princípios gerais de direito ou dos princípios do Direito Internacional Costumeiro, não se configurando em lex specialis, já que não agem para excluir regras jurídicas ordinariamente aplicáveis, mas sim refletem a intenção de reafirmar proteções tradicionais do direito costumeiro oferecidas aos investidores estrangeiros e princípios tradicionais da responsabilidade estatal perante investidores estrangeiros.47 Diante do cenário exposto, Horatia Watt sugere, basicamente, três formas de atuação para que a disciplina atenda às reivindicações normativas: (i) a inclusão da governança global como vetor e operacionalizador do Direito Internacional Privado; (ii) a sua atuação em conjunto com os direitos humanos; e (iii) o reconhecimento do pluralismo jurídico e a aferição da legitimidade das normas produzidas pelos novos atores transnacionais.48

a) A governança global no Direito Internacional Privado Diante da migração da soberania para novas situações privadas transnacionais e das lacunas de regulação, insere-se o conceito da governança global em busca da mudança em prol do horizonte do bem global.49 Andrew Harding e Peter Layland elucidam que a esperança para enfrentar as novas demandas do século XXI está na boa governança e na

45 46

WATT, Horatia Muir. Op. Cit, p. 368-370. ALVAREZ, José E. Um pouco sobre os costumes. In: RIBEIRO, Marilda Rosado de Sá (Org.). Direito internacional dos investimentos. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 45. 47 ALVAREZ, José E. Op. Cit., p. 56-58. 48 WATT, Horatia Muir. Private International Law beyond the schism. Transnational Legal Theory. Oxford, vol. 2, n. 3 (2011), p. 395. 49 WATT, Horatia Muir. Op. Cit., p. 357, 358.

justiça global, que caminham para a correção de comportamentos opressivos dos governos.50 James Rosenau conceitua a governança como um fenômeno mais amplo do que o governo, que envolve as instituições governamentais e, também, os mecanismos não governamentais informais através dos quais os indivíduos e organizações de sua competência satisfazem suas necessidades e interesses.51 “At a time when hegemons are declining, when boundaries (and the walls that seal them) are disappearing, when the squares of the world’s cities are crowded with citizens challenging authorities, when military alliances are losing their viability – to mention but a few of the myriad changes that are transforming world politics – the prospects for global order and governance have become a transcendent issue.”52

As lições de Maurice Kamto revelam a boa governança como a gestão dos negócios públicos que permite considerar uma perspectiva de desenvolvimento social e econômico da sociedade.53 A governança está presente em diversas esferas – como governança ambiental, governança política, governança econômica da empresa, governança dos sistemas de informação (em especial, da internet) e governança global54 – e suas estruturas e qualidade são determinantes para as políticas de desenvolvimento econômico e social, da proteção do meio ambiente, da luta contra a pobreza, da luta contra a corrupção, e da proteção das liberdades e direitos fundamentais do homem.55 Pode-se discorrer, ainda, sobre o Direito Internacional da Governança, que Kamto compreende como o regime jurídico que se desenvolve progressivamente às normas de valor subjacentes à governança e que estuda os aspectos internacionais da governança e/ou situa as regras de direito interno com as normas internacionais. Diferentemente do

50

HARDING, Andrew; LEYLAND, Peter. Comparative Law in Constitutional Contexts. In: David Nelken e Esin Örücü, Comparative Law: a Handbook. Oxford: Hart, 2007, p. 313. 51 “a more encompassing phenomenon than government. It embraces governmental institutions, but also subsumes informal non-governmental mechanisms whereby those persons and organizations within its purview move ahead, satisfy their needs, and fulfill their wants.” In: ROSENAU, J; CZEMPIEL, E. Governance without government: Order and Chance in World Politics, Cambridge University Press, 1992. Apud: WATT, Horatia Muir. Op. Cit., p. 394. 52 ROSENAU, J; CZEMPIEL, E. Governance without government: Order and Chance in World Politics, Cambridge University Press, 1992, p. 1. 53 KAMTO, Maurice. Droit International de la Gouvernance. Paris: A. Pedone, 2013, p. 7. 54 KAMTO, Maurice. Droit International de la Gouvernance. Paris: A. Pedone, 2013, p. 18. 55 KAMTO, Maurice. Op. Cit., p. 7, 23-25.

Direito Internacional clássico56, o Direito Internacional da Governança se foca na conduta dos indivíduos ou de outros atores do direito nas suas relações com os outros e entre eles. Destaca-se a particularidade desse regime que se encontra na base ética sobre a qual as suas diversas normas repousam.57 Como nota Watt, o Direito Internacional Privado não articulou limites legais e morais para o funcionamento do mercado global, inibindo-se por conta da ordem pública internacional e de seus requerimentos. A atuação dos atores privados transnacionais não foi sujeita a um regime transnacional que as discipline, tampouco aos princípios da transparência e da responsabilidade. Não obstante haver um movimento recente de contestação do enfoque territorial do Direito Internacional Privado, o princípio da territorialidade ainda circunscreve a responsabilidade corporativa à lei local, através do lex loci delicti e do forum non conveniens, deixando que tais atores fujam da governança.58 A ideia de embutir o global no âmago do Direito Internacional Privado tem como objetivo protegê-lo, atuando contra o abuso do poder econômico privado. É preciso ir além da engessada divisão entre o Direito Internacional Privado e Público, ampliando as possibilidades para que tais disciplinas trabalhem em conjunto, e superar a domesticação do Direito Internacional Privado, isto é, a perda de sua função de governança, para que este atinja o aludido ideal por meio da limitação da autoridade privada e do alcance do poder econômico privado no mundo.59 Diego Arroyo observa a importância de adequar os sistemas de Direito Internacional Privado vigentes nos Estados ao ponto de vista global. Esse ajustamento é necessário por conta do desenvolvimento do processo de privatização do poder regulador que se dá na atual conjuntura. O poder de autorregulação dos atores particulares não se restringe mais à esfera tradicional contratual, abrindo-se para campos que antes eram vedados, como o do estatuto pessoal. Infere-se a expansão da autonomia da vontade na direção de um desenvolvimento material que vai muito além da determinação do direito 56

Kamto afirma que o foco do Direito Internacional clássico está nas normas, suas fontes e nas relações entre elas, como o direito dos tratados e os costumes, ou, então, o foco recai na relação de tais normas com os entes abstratos, ou com territórios, bens, espaços, entre outras coisas materiais. In: KAMTO, Maurice. Op. Cit., p. 8-10. 57 KAMTO, Maurice. Op. Cit., p. 9, 10, 13. 58 WATT, Horatia Muir. Op. Cit., p. 362, 385-386. 59 WATT, Horatia Muir. Op. Cit., p. 360, 427.

aplicável ou do juiz competente e que opera sobre as concepções das próprias relações jurídicas.60

b) Os direitos humanos e o Direito Internacional Privado Ao mesmo tempo em que se identifica uma zona cinzenta entre o público e o privado no âmbito internacional, denota-se a importância dos direitos humanos, da boa governança e do desenvolvimento sustentável na sociedade contemporânea.61 Flávia Piovesan aborda a proteção dos direitos humanos como tema de legítimo interesse internacional: “a efetiva consolidação do Direito Internacional dos Direitos Humanos surgiu em meados do século XX, em decorrência da Segunda Guerra Mundial. Seu desenvolvimento pode ser atribuído às monstruosas violações de direitos humanos da Era Hitler e à crença de que parte dessas violações poderiam ser prevenidas se um efetivo sistema de proteção internacional de direitos humanos existisse. Emerge a certeza de que a proteção dos direitos humanos não deve reduzir-se ao âmbito reservado de um Estado, pois revela tema de legítimo interesse internacional.”62

No entanto, enquanto os direitos humanos despontavam como protagonistas no cenário internacional, com normas de alcance extraterritorial, o Direito Internacional Privado acabou ficando em segundo plano, por sua domesticação, que obstaculizou o desenvolvimento de sua capacidade de adequação às demandas da globalização. Essa proeminência acabou levando a uma situação de contraste entre ambos: (i) do ponto de vista epistemológico, o regime dos direitos humanos não parte de qualquer divisão público/privada; (ii) no aspecto político, os direitos humanos, com caráter profundamente político, opõe-se à neutralidade técnica do Direito Internacional Privado; e (iii) quanto à metodologia, a ponderação de valores fundamentais que ocorre no regime dos direitos

60

ARROYO, Diego P. Fernández. El Derecho Internacional Privado en el Inicio Del Siglo XXI. In MARQUES, Cláudia Lima; ARAÚJO, Nádia de. O Novo Direito Internacional – Estudos em Homenagem a Erik Jayme. Rio de Janeiro: Renovar, p. 89-109, 2005, p. 105-109. 61 HARDING, Andrew; LEYLAND, Peter. Comparative Law in Constitutional Contexts. In: David Nelken e Esin Örücü, Comparative Law: a Handbook. Oxford: Hart, 2007, p. 325, 326. 62 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 479.

humanos se contrasta com o dedutivismo utilizado no conflito de leis no ramo privado do Direito Internacional.63 A competição entre os direitos humanos e os mecanismos do Direito Internacional Privado têm se dado de três formas: vertical, diagonal ou horizontal. A competição vertical ocorre em casos de efetivação vertical de direitos humanos por meio de uma Corte internacional, supranacional ou regional. A autora divide a competição vertical entre os direitos humanos e o Direito Internacional Privado em algumas categorias: (i) os direitos fundamentais podem ser invocados, a fim de contestar a legalidade, constitucionalidade ou convencionalidade de uma regra de conflito de leis, da mesma forma como eles podem invalidar uma norma substancial; (ii) o próprio conflito de leis é causa para a ausência de proteção dos direitos humanos; (iii) as violações indiretas aos direitos fundamentais que ocorrem quando o Estado confere eficácia à lei ou à decisão estrangeira que ofenda direito protegido; (iv) o Estado é responsável pela violação de direitos humanos por seus próprios agentes, seja dentro ou fora de seu território; e (v) o Estado é responsável por ato de suas sociedades que se situem dentro de sua esfera de influência.64 Os conflitos diagonais, por sua vez, referem-se ao confronto ou articulação entre normas de ordens legais diferentes, que interagem em uma relação distinta da vertical – como no caso em que o Direito Internacional fornece o conteúdo da norma de conduta violada, mas o ordenamento doméstico decide pela imputabilidade. Por fim, pelo mecanismo da horizontalidade, submetem-se os atores privados transnacionais às mesmas obrigações dos Estados, podendo os Estados serem responsabilizados por não terem cumprido com o dever de prevenção.65 Horatia Muir Watt atenta para a importância de se repensar alguns dos pressupostos do Direito Internacional Privado, a fim de que se possa garantir a confluência com a normatividade de direitos humanos. Ao redefinir o privado, passa-se a identificar elementos públicos nas atividades dos atores privados que atuam na esfera pública, e mesmo na ausência de um elemento público, se a situação envolver a proteção da dignidade, os direitos humanos também incidirão. Também é preciso realizar o 63

WATT, Horatia Muir. Op. Cit., p. 395, 396. Ibid., p. 395-399. 65 Ibid., p. 400, 402. 64

remapeamento da responsabilidade estatal e não estatal por violações de direitos humanos. Em violações extraterritoriais de direitos humanos, o julgamento se subdivide em duas partes: preliminarmente, perquire-se se há nexo público suficiente. Em caso positivo, passase a uma avaliação substantiva, baseada no princípio da proporcionalidade. A autora sugere a fusão de ambos os momentos e complementa que estender a responsabilidade dos atores privados com base nos critérios da influência e do impacto (affectedness) poderia consistir um novo fundamento axiológico do Direito Internacional Privado.66 O Direito Internacional Privado deve atentar à universalidade dos direitos humanos, consagrados em tratados internacionais e nos ordenamentos internos dos Estados67, seja pela incorporação de tais tratados ou pela estipulação de normas de direitos humanos em suas constituições, como ocorreu em inúmeros países da América Latina nos últimos vinte anos. Cabe destacar as reformas constitucionais ocorridas nessa região e a redemocratização em países do continente americano que sofreram com governos opressores e ditatoriais.68 No âmbito

interamericano,

a interpretação

jurisprudencial

da

Corte

Interamericana de Direitos Humanos e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos tem fortalecido o Estado Democrático de Direito e os princípios democráticos e da igualdade como critérios de boa governança. Ambas interpretam que a democracia deve ser protegida pelas garantias judiciais indispensáveis para a salvaguarda do Estado de Direito, ressaltando o princípio democrático, da separação dos poderes, da legalidade e o direito ao 66

Ibid, p. 402-405. Percebe-se, na segunda metade do século XX, o reconhecimento gradual de diversas normas de direitos humanos em escala internacional. Inúmeros países concederam aos tratados de direitos humanos elevados status. In: ARROYO, Diego P. Fernández. Op. Cit., p. 101, 102. 68 ARAUJO, Nadia de. Direito internacional privado: teoria e prática brasileira. 5.ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p.13. Sobre o tema, vale notar os ensinamentos de Flávia Piovesan a respeito da reorganização da agenda internacional do Brasil decorrente do processo de redemocratização: “Além das inovações constitucionais, como importante fator para a ratificação desses tratados internacionais, acrescente-se a necessidade do Estado brasileiro de reorganizar sua agenda internacional de modo mais condizente com as transformações internas decorrentes do processo de democratização. Esse esforço se conjuga com o objetivo de compor uma imagem mais positiva do Estado brasileiro no contexto internacional, como país respeitador e garantidor dos direitos humanos. Adicione-se que a adesão do Brasil aos tratados internacionais de direitos humanos simboliza ainda o seu aceite para com a ideia contemporânea de globalização dos direitos humanos, bem como para com a ideia da legitimidade das preocupações da comunidade internacional no tocante à matéria. Por fim, é de se acrescer o elevado grau de universalidade desses instrumentos, que contam com significativa adesão dos Estados integrantes da ordem internacional.” In: PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 14. ed., São Paulo: Saraiva, 2013. p. 388, 389. 67

recurso enunciados nos instrumentos jurídicos americanos, em especial na Convenção Americana de Direitos Humanos.69

c) O pluralismo jurídico e a aferição da legitimidade das normas produzidas pelos atores privados transnacionais A fim de identificar os fenômenos da criação de normas por atores não estatais – como códigos de conduta, usos e standards –, fala-se, na contemporaneidade, em produção normativa pós-nacional. As normatividades extraoficiais são, muitas vezes, bem vistas por sua consonância com as aspirações da sociedade, mas, em inúmeras ocasiões, também são criticadas por ausência de caráter democrático e fragmentação.70 Tendo em vista esse risco de fragmentação que afeta os ramos do Direito Internacional Público e Privado – em vários momentos, as múltiplas normatividades privadas além do Estado não apresentam coerência, consistência ou intersecção – deve-se objetivar, para a governança, uma visão integrada dos regimes privados transnacionais.71 Como a proliferação dos regimes jurídicos vem acompanhada de disjunções e inconsistências, ameaçando a coerência do Direito Internacional, os riscos da fragmentação só poderão ser reduzidos se o Direito Internacional for visto como um sistema legal, não como um conjunto de lex specialis auto-suficientes.72 As diversas e recentes mutações da pluralidade nos últimos tempos apontam para a visão pluralista do Direito Internacional na contemporaneidade.73 O reconhecimento da pluralidade jurídica e cultural da nova ordem internacional, na qual as normas estatais e não estatais coexistem, é uma mudança necessária, assim como a exploração do pluralismo legal a fim de que as reinvindicações normativas transnacionais além do Estado sejam resolvidas é imprescindível. O Direito Internacional Privado deve recepcionar e dar atenção

69 70 71 72

KAMTO, Maurice. Op. Cit., p. 23-25. WATT, Horatia Muir. Op. Cit., p. 390-393. Ibid. ALVAREZ, José E. Um pouco sobre os costumes. In: RIBEIRO, Marilda Rosado de Sá (Org.). Direito internacional dos investimentos. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 94-95. 73 ROSADO, Marilda; ALMEIDA, Bruno. Op. Cit., p. 2.

suficiente à produção normativa privada e às novas fontes de autoridade não estatais, ainda que a legitimidade dessas normas seja questionável.74 Moreno Rodríguez comenta que as normas não estatais são amplamente aplicadas na América Latina através de normas legais e convencionais. Mesmo assim, a comunidade jurídica da região ainda não é “adequadamente consciente” das poderosas consequências desses desenvolvimentos regulatórios.75 Entre os exemplos de instrumentos difundidos na América Latina que estão abertos às normas não estatais, destacam-se a Convenção do Panamá relativa à Arbitragem de 1975 e a Convenção Interamericana sobre Direito Aplicável aos Contratos Internacionais, também chamada de Convenção do México. Apesar de essa última ter sido ratificada até então apenas pelo México e pela Venezuela, Rodríguez esclarece a sua importância, uma vez que os Estados podem incorporar seus avanços em textos regionais sobre o Direito Internacional, como futuras leis do MERCOSUL, em contratos internacionais ou na própria lei estatal.76 Ainda, a Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda de Mercadorias (sigla em inglês, CISG), que abrange princípios e standards internacionais, foi ratificada por inúmeros países latinoamericanos.77 A verificação da legitimidade da norma não estatal precisa se afastar de uma metodologia lastreada tão somente no procedimento que deu origem a ela. O conjunto de normas produzidas pelos mais diversos atores privados demanda um questionamento sobre a sua legitimidade, anterior à sua aplicação no caso concreto. Questões como a transparência do processo de criação da norma e sua real observância pelos atores aos quais se destinam precisam ser verificadas. Segundo Horatia Watt, considerar a possibilidade que o Direito Internacional Privado oferece na superação de lacunas de governança é a forma mais indicada para lidar com a situação.78

74

WATT, Horatia Muir. Op. Cit., p. 408, 411. RODRÍGUEZ, José Antonio Moreno. Contracts and Non-State Law in Latin America. In: Uniform Law Review – Revue de droit uniforme. v. 16, Ed. 4, 2011, p. 877. Disponível em: . Acesso em 26 de maio de 2015. 76 Ibid., p. 879, 888-889. 77 Ibid., p. 883. 78 WATT, Horatia Muir. Op. Cit., p. 417. 75

5.

Conclusão Como visto, a ruptura entre o Direito Internacional Público e o Direito

Internacional Privado impede que esta seara jurídica se adeque às demandas de um mundo globalizado. Por mais que venha sofrendo mutações, o Direito Internacional Privado ainda não possui uma atuação enérgica no controle do poder privado informal, que se destaca no cenário atual. Para ser capaz de enfrentar o poder privado transnacional, a disciplina precisa retomar sua função política, reassumir seu viés global, incorporando a governança global. Desse modo, vale reiterar as sugestões de Horatia Muir Watt, que indica que o êxito nessa jornada depende do aumento da atuação conjunta dos direitos humanos com o Direito Internacional Privado e do reconhecimento das fontes privadas de produção normativa, sem desconsiderar a problemática da legitimidade dessas normas. Além disso, para a recepção do emergente modelo normativo, mostra-se essencial a evolução da governança global como vetor e operacionalizador do sistema.79 Seguindo esse rumo, a disciplina poderá atingir seu potencial, tornando-se um eficaz instrumento na contenção dos abusos e ilícitos cometidos pelo poder privado.

6.

Referências bibliográficas

ALVAREZ, José E. Um pouco sobre os costumes. In: RIBEIRO, Marilda Rosado de Sá (Org.). Direito Internacional dos Investimentos. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 45-98;

ARAUJO, Nadia de. Direito internacional privado: teoria e prática brasileira. 5.ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2011;

ARROYO, Diego P. Fernández. El Derecho Internacional Privado en el Inicio Del Siglo XXI. In MARQUES, Cláudia Lima; ARAÚJO, Nádia de. O Novo Direito Internacional – Estudos em Homenagem a Erik Jayme. Rio de Janeiro: Renovar, p. 89-109, 2005;

ARROYO, Diego P. Fernández. Un derecho comparado para el derecho internacional privado de nuestros días. Chía: Universidad de la Sabana, Grupo Editorial Ibáñez, 2012; 79

Ibid., p. 407.

BAPTISTA, Ferreira Patrícia; RIBEIRO, Leonardo Coelho. Direito administrativo global: uma nova ótica para a regulação financeira de investimentos, p. 802. In: RIBEIRO, Marilda Rosado de Sá (Org.). Direito Internacional dos Investimentos. Rio de Janeiro, Renovar, 2014, p. 801-820;

BOUCAULT, Carlos Eduardo de Abreu; POLIDO, Fabrício Bertini Pasquot. Amílcar de Castro e as lições do Direito Internacional Privado e Comparado: memória dos 120 anos da Faculdade de Direito da UFMG. Revista Brasileira de Estudos Políticos, n. 40, p. 103120, 2012;

CASELLA, Paulo Borba. Fundamentos e perspectivas do direito internacional pósmoderno. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 101, jan./dez. 2006; CASTELLS, Manuel. O poder da identidade – (A era da informação: economia, sociedade e cultura; v.2). São Paulo: Paz e Terra, 1999;

CASTRO, Amílcar de. Direito internacional privado. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. 2008;

COCKAYNE, John; MIKULASCHEK, Cristoph. Transnational Security Challenges and the United Nations: Overcoming Sovereignty Walls and Institutional Silos, 2008;

DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado: parte geral. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014;

ESPÍNOLA, Eduardo. Elementos de Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1925;

GUERRA, Sidney. Curso de Direito Internacional Público. 4ª. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009;

HARDING, Andrew; LEYLAND, Peter. Comparative Law in Constitutional Contexts. In: David Nelken e Esin Örücü, Comparative Law: a Handbook. Oxford: Hart, 2007

JAYME, Erik. Identité Culturelle et integration: le Droit International Privé Postmoderne. Recueil de Cours. Academine de Droit International de la Haye, Leiden, Holanda, NL, v. 251, p. 21, 1995;

JAYME, Erik. O direito internacional privado do novo milênio: a proteção da pessoa humana face à globalização. In: O novo direito internacional – estudos em homenagem a Erik Jayme. Claudia Lima Marques; Nadia de Araújo. (Org.). Rio de Janeiro: Renovar, 2005;

JESSUP, Philip C. Transnational Law. New Haven, CT: Yale University Press, 1956;

KANTO, Maurice. Droit International de la Gouvernance. Paris: A. Pedone, 2013;

LOWENFELD, Andreas F. Public Law in the International Arena: Conflict of Laws, International Law, and Some Suggestions for their Interaction, Recueil des Cours. Academie de Droit Internacional de la Haya, Leiden, Holanda, NL, v. 163, 1979;

MARQUES, Cláudia Lima. Introdução: Ensaio para uma introdução ao Direito Internacional Privado. In: DIREITO, Carlos Alberto Menezes; TRINDADE, Antônio Augusto Cançado; PEREIRA, Antonio Celso Alves (coords.). Novas perspectivas do Direito Internacional Contemporâneo: Estudos em homenagem ao Professor Celso D. de Albuquerque Mello. Rio de Janeiro: Renovar, p. 319-350, 200;

MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público. 12ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000;

MENEZES,

Wagner.

O

direito

internacional

contemporâneo

e

a

teoria

da

transnormatividade. Fortaleza, Revista Pensar, v. 12, mar. 2007, p. 135. Disponível em . Acesso em 29 de junho de 2015

ORGANIZAÇÃO

DOS

Interamericano,Washington,

ESTADOS DC.

Curso

AMERICANOS. de

Direito

Comitê

Internacional,

Jurídico 28,

2001.

Wasghington,DC: OEA/ Subsecretaria de Assuntos Juridicos, 2001;

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

RIBEIRO, Marilda Rosado de Sá (Org.). Direito Internacional dos Investimentos. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 801-820;

RODRÍGUEZ, José Antonio Moreno. Contracts and Non-State Law in Latin America. In: Uniform Law Review – Revue de droit uniforme. v. 16, ed. 4, p. 877-889, 2011. Disponível em: . Acesso em 26 de maio de 2015.

ROSADO, Marilda; ALMEIDA, Bruno. A cinemática jurídica global: conteúdo do direito internacional privado contemporâneo. Revista da Faculdade de Direito da UERJ – RFD, v.1,

n.20,

2011,

p.

2.

Disponível

em

. Acesso em 28 de junho de 2015;

ROSENAU, J; CZEMPIEL, E. Goernance without government: Order and Chance in World Politics, Cambridge University Press, 1992

VALLADÃO, Haroldo. Direito Internacional Privado, 5ªed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1980, v.1, p. 42;

WATT, Horatia Muir. Private International Law beyond the schism. Transnational Legal Theory. Oxford, vol. 2, n. 3 (2011), p. 395;

WOJCIKIEWICZ, Paula; BARRETO, Rafael Zelesco. Direito das organizações internacionais: casos e problemas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014;

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.