O doppelganger e o Duplo Pós-moderno

September 13, 2017 | Autor: Anabela Duarte | Categoria: American Literature, Postmodernism, Romantism, Doppelgänger
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O doppelgänger e o duplo pós-moderno
No primeiro capítulo desta dissertação vimos como o doppelgänger ou duplo romântico sofreu variadas metamorfoses até atingir uma forma que, embora não apresentando características definitivas, apresentava, todavia, uma série de traços comuns que haveriam de constituir uma ferramenta indispensável à análise da temática do duplo. Tal forma do duplo estava ligada, como se viu, ao universo moral e religioso e ao carácter psicológico de grande parte da ficção e da literatura do duplo no séc. XIX.
A estética do duplo oitocentista foi plenamente revisitada em The New York Trilogy de Auster e perpassa todo a obra em cada uma das suas histórias: City of Glass, Ghosts e The Locked Room. O duplo romântico sofre, no entanto, importantes modificações, deixando de poder representar as duas facetas opostas (ou complementares) da vida moral, psicológica, etc, e dando lugar à multiplicidade do duplo em Auster. Não se trata apenas de representar um personagem em conflito interior, mas de representar uma série de personagens em cisão que se projectam, simultaneamente, em vários duplos. A dicotomia prevalecente no espírito literário romântico dá assim lugar à multiplicidade pós-moderna, cuja auto-reflexividade apela constantemente ao questionamento da identidade e das verdades instituídas. Já não é a unidade o fim último a alcançar de modo a realizar a integração do sujeito, mas o próprio questionamento dessa unidade que leva o indivíduo a procurar mais longe o conhecimento de si próprio e dos outros. De facto, Auster parodia a figura do duplo romântico, no sentido em que Linda Hutcheon define o conceito de paródia: "To parody is not to destroy the past; in fact to parody is both to enshrine the past and to question it." Nesta dualidade reside o paradoxo pós-moderno, isto é, a aparente contradição que consiste em utilizar o passado histórico-literário e, simultaneamente, proceder à sua revisão, subversão e instauração.
Auster usa este paradoxo ou linguagem crítica, se quisermos, subvertendo a literatura do duplo do séc. XIX e instaurando o mesmo duplo numa visão pluricontextual e ilimitada do universo literário e humano. Serve-se da tradição para a articular num novo contexto em que o indivíduo em cisão se multiplica numa complexidade identitária sem precedentes. Ao mesmo tempo que instala o motivo do duplo, Auster subverte-o, parodiando-o de modo a criticar o seu contexto original e a inseri-lo no ritmo dos tempos modernos: na sua trepidação e na indeterminação humanas.
O duplo pós-moderno permite-nos, deste modo, reflectir sobre a identidade, tomá-la como uma demanda e não como um dado adquirido e faculta-nos ainda a possibilidade de questionar a noção de sentido como totalidade. Como exemplo deste tipo de paródia ao motivo do duplo oitocentista poderíamos citar o episódio de City of Glass que tem lugar na Grand Central Station, onde Quinn ansiosamente aguardava a chegada do velho Stillman. Para seu espanto aparecem dois Stillmans e, por momentos, Quinn não sabe qual deles seguir:
Quinn froze. There was nothing he could do now that would not be a mistake. Whatever choice he made – and he had to make a choice – would be arbitrary, a submission to chance.

Trata-se então de uma escolha, mas de uma escolha que põe em evidência a sua arbitrariedade, que coloca em questão a capacidade de selecção do indivíduo perante realidades tão extraordinárias. Simultaneamente, constata-se que o fim último já não é a unidade da concepção cartesiana do eu, mas sim o remeter do ser humano para as suas próprias contradições e divisões, que não são mais passíveis de uma fixação, de uma ordenação singular. O duplo é parodiado utilizando o insólito da situação e através de características bem conhecidas do duplo romântico, como é o caso da grande semelhança fisionómica ou o contraste entre um duplo rico e outro pobre, apontando para o binómio característico do duplo oitocentista de opostos complementares. A utilização do motivo do duplo sobressai no seguinte passo de City of Glass: " For two weeks he [Quinn] had been tied by an invisible thread to the old man. Whatever Stillman had done, he had done; wherever Stillman had gone, he had gone".
Se no primeiro exemplo acima citado é a aparição de dois Stillmans que causa o insólito da situação de modo a parodiar-se o duplo oitocentista, no exemplo agora apresentado foca-se sobretudo o recurso ou o regresso aos mecanismos tradicionais do duplo, concebendo-se a sua figura como o espelho ou a sombra do personagem principal. A extraordinária sintonia com o duplo faz com que o indivíduo se anule na ânsia de aderir ao outro, de tomar o seu lugar. O cordão umbilical que une os dois personagens evoca a situação exemplar de Roderick e Madeline da casa dos Usher, cujo mútuo fascínio, duplicidade fatal, se torna destruidora para ambos os personagens. Em City of Glass, porém, o desenlace não é fatal, sobretudo porque não existe o fechamento da acção. Aqui o sistema binário do duplo tradicional é subvertido, explorando-se ao invés a sua multiplicidade e atomização. Assim, Quinn projecta-se em William Wilson, Max Work e Paul Auster, revendo-se ainda em Peter Stillman, como vimos anteriormente. Esta multiplicação tem igualmente um carácter paródico, como quando Quinn encarna o Paul Auster/detective, conhece um Paul Auster escritor e pai de família e remete ironicamente para o próprio Paul Auster, autor do romance. O desregramento na nomeação dos personagens joga com o tradicional binómio do duplo formando, por sua vez, inúmeros múltiplos do duplo. O duplo de carácter moral e psicológico passa a revestir um carácter conceptual, de modo a questionar a centralização do sentido, da identidade e da linguagem.
Em Ghosts, o processo de composição do duplo é semelhante e Blue forma o seu duplo com Black, vigiando-se ambos reciprocamente. No final, Blue assassina Black e parece desaparecer sem deixar rasto, sugerindo o final de "William Wilson" de Poe, em que o narrador assassina Wilson e, por conseguinte, acaba consigo próprio, dado que Wilson nada mais é do que a sua sombra. Mas, de novo, o duplo austeriano ganha novos sentidos e as personagens multiplicam-se numa duplicidade e triplicidade sistemáticas: Blue é Jimmie Rose, Snow e Fuller; Black é White que, na realidade, é Blue. Neste jogo de duplicações e de máscaras sucessivas nada é certo e seguro, e a própria linguagem não garante nenhuma estabilidade como se poderá verificar neste passo de Ghosts:
For the first time in his experience of writing reports, he discovers that words do not necessarily work, that it is possible for them to obscure the things they are trying to say.


A perda da confiança na linguagem e da objectivação do eu provoca uma deriva nos personagens que se revêem na multiplicidade das suas projecções, com a consequência inevitável de um adiamento do desfecho da acção. Ao mesmo tempo esta estratégia suscita a ansiedade do fim. É o que nos diz Djelal Kadir com respeito à cultura e à conspiração e que ilustra perfeitamente este movimento replicativo do duplo pós-moderno:
È attraverso questo metodo [quiasmo espectral da cultura e da conspiração], e attraverso la sua corollaria frammentazione di tautologie culturali, che assicuriamo alla cultura e alla cospirazione l'elemento più vitale, necessario a entrambe: l'infinitezza, l'incessante differimento della piena rivelazione, l'impossibilità di una risoluzione, la perpetua proiezione nell'incertezza, e, attraverso queste, la perpetuazione della cultura e della cospirazione come prolessi illimitate, come auspicio di un risultato ancor più infausto la cui rivelazione è sempre posposta, sottoposta senza posa all'agguato dal doppio gioco del chiasmo che è allo stesso tempo cultura e cospirazione in specchi che si allontanano infinitamente, in fuga da e verso la loro stessa riflessione.

E neste paradoxo entre a diferição e o desejo do fim, percurso insólito duma fragmentação individual/histórica invisível (porque procura precisamente a revelação, o desvelamento), reside a essência do duplo pós-moderno em Auster e da conspiração, como acabámos de ver.
Ainda em The Locked Room, o fantasma de Fanshawe persegue o narrador que, na boa tradição do duplo, partilha semelhanças físicas, experiências de infância e de trabalho – ambos aspiram a ser escritores – e ainda a mesma mulher de Fanshawe, Sophie. Esta extraordinária semelhança é sublinhada pela mãe de Fanshawe a determinada altura do romance:
You even look like him, you know. You always did, the two of you – like brothers, almost like twins. I remember how when you were both small I would sometimes confuse you from a distance. I couldn't even tell which one of you was mine.

Do mesmo modo, o narrador vive obcecado com a presença de Fanshawe e, de perseguidor, passa a perseguido:
After all these months of trying to find him [Fanshawe], I felt as though I was the one who had been found. Instead of looking for Fanshawe, I had actually been running away from him.

Constituindo um verdadeiro par de duplos, o narrador e Fanshawe encontram-se de tal modo ligados desde a infância até à fase adulta que funcionam praticamente como espelho um do outro, acabando por não se distinguir com clareza quem de facto é o perseguido e o perseguidor. Esta situação aparece esboçada a meio da história quando o narrador reflecte sobre o poder de Fanshawe na sua vida e sobre a relação de amor-ódio que o leva a desejar a morte do amigo:
In the end, I don't think that I really intended to kill him. (...) There were times when little scenes would flash through my head – of strangling Fanshawe, of stabbing him, of shooting him in the heart (...) The strange thing was not that I might have wanted to kill Fanshawe, but that I sometimes imagined he wanted me to kill him. (...) Fanshawe was waiting for me. He had chosen me as his executioner, and he knew that he could trust me to carry out the job.

Vemos assim como o perseguidor/narrador se sente perseguido por Fanshawe e como chega até a imaginar executar os desejos suicidas do outro, num acto de total empatia com o desejado final da ansiedade do enigma, isto é, a morte de Fanshawe. Essa ansiedade não é, todavia, saciada e o narrador continua a prolongar a sua vontade de assassinar Fanshawe e, por consequência, de adiar o desfecho da acção.
No conto "The Black Cat" de Poe vimos como este tipo de situação também é recorrente: o narrador persegue e assassina o gato preferido mas, na realidade, parece ser o gato o perseguidor, mesmo depois da sua morte. Tal capacidade fantasmática do duplo, como em anterior capítulo fiz notar, é tipicamente romântico e remete sempre para uma ansiedade não resolvida entre um eu público e um eu privado, o que em Auster constitui apenas um meio para aprofundar a necessidade de indagar a identidade e o meio envolventes. Para isso, parodia o doppelgänger e o próprio duplo pós-moderno (exagerando ironicamente o próprio acto da multiplicação), desconstruindo o significado original do duplo e, simultaneamente, reconstruindo o seu significado na ficção como agente multiplicador de perspectivas literárias e de experiências de vida. Enfatiza, deste modo, não o duplo em si, mas o processo da duplicação – a auto-reflexividade processual do duplo, tal como Djelal Kadir no exemplo anterior afirmara: "in fuga da e verso la loro stessa riflessione". No próximo capítulo veremos esta questão da duplicidade em relação com a narrativa e a trilogia de Auster, e os mecanismos que fundamentam o seu exercício.

EXCERTO DA TESE DE MESTRADO EM LITERATURA COMPARADA "IDENTIDADE E CONSPIRAÇÃO PÓS-MODERNA EM THE NEW YORK TRILOGY, DE PAUL AUSTER."
CEC – FLUL, Universidade de Lisboa, 2006
II Parte, A Conspiração Pós - moderna: Auto-representação e linguagem

Anabela Duarte




Linda Hutcheon, A Poetics of Postmodernism, History, Theory, Fiction (London: Routledge, 1988) 126. Doravante usaremos o sub-título Poetics of Postmodernism da referida obra seguido das respectivas páginas em citações posteriores da mesma.
Escritores como Paul Bowles inscrevem no seu universo literário esta reflexão sobre a identidade, criando histórias de transferência do eu como, por exemplo, "You are not I" ou "Allal". No primeiro caso, uma mulher aparententemente louca transforma-se na sua irmã supostamente sã e, no segundo caso, um rapaz funde a sua personalidade com a de uma cobra. Nesta troca de identidades ninguém parece saber quem é quem, sugerindo o autor, deste modo, um constante questionamento sobre o ser e as suas múltiplas transformações e, por isso, a sua inscrição no real. Ver Paul Bowles, Collected Stories 1939-1976.
NYT 68.
NYT 110.
O mesmo acontece em outras obras do autor. Em Leviathan Benjamin Sachs multiplica-se em diferentes identidades e nomes. Ele é Ed Smith, Al Godwin, Jack White, Bill Foster, consoante vai mudando de cidade e de vida. Ver Leviathan 231. Em Moon Palace, o protagonista Marco Fogg é simultaneamente M.S.Fogg, Phileas, M.S., Foggy ou ainda Cyrano. Ver Moon Palace 8.
NYT 176.
"La cospirazione della cultura e la cultura della cospirazione", Cospirazioni, Trame, Quaderni di Synapsis II 23.
NYT 308.
NYT 344.
NYT 317.
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