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! Anais do ! V Seminário Nacional Sociologia & Política !
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14, 15 e 16 de maio de 2014, Curitiba - PR!
ISSN: 2175-6880
O DUPLO MOVIMENTO NA REESTRUTURAÇÃO DA ATIVIDADE LEITEIRA NACIONAL E AS CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS DE KARL POLANYI Sócrates de São Paulo Vasconcelos de Souza1 Bruno Jacobson da Silva2 Ana Paula Lazzaretti Marostega3
RESUMO Em seu processo histórico e de maneira mais significativa nas últimas duas décadas, o cenário da atividade leiteira brasileira experimentou diversas transformações em toda extensão da sua cadeia produtiva, desencadeando em uma reestruturação social, política e econômica dos diversos setores da atividade. Porém tais transformações principalmente acerca dos processos de especialização resultaram em divergências de interesses tanto na esfera política, quanto social devido a ambiguidade dos processos de desenvolvimento da atividade. As reestruturações institucionais, industriais, sanitárias e tecnológicas culminaram em o que Karl Polanyi atribuiu como um duplo movimento, ou em síntese uma expansão capitalista a partir da concentração industrial através de uma dinâmica mercadológica de escala cada vez mais global e menos local, viabilizando assim um movimento dominante de caráter puramente econômico. O reflexo disto está na concentração, concorrência e a exclusão nos diversos segmentos da atividade. Em contrapartida a esta pressão capitalista, coexistem movimentos de caráter social, que vão de encontro a toda esta pressão hegemônica de maneira não menos significativa através de uma reprodução social, expandindo a sua produção e comercialização de leite proveniente de localidades onde há o predomínio de pequenas propriedades rurais através da agricultura familiar e seus arranjos institucionais. Assim sendo, o presente artigo, buscou incorporar em sua discussão as contribuições teóricas de Karl Polanyi, para uma melhor compreensão acerca dos processos de desenvolvimento dentro de um contexto rural tendo como questão norteadora a noção de duplo movimento na discussão referente as principais transformações ocorridas no processo de especialização na atividade leiteira em âmbito nacional. Considera-se aqui que as pistas deixadas pelo mesmo se fazem coerentes e bastante atuais frente a discussão do desenvolvimento rural e não menos oportuno no cenário da atividade do leite. Palavras Chave: Desenvolvimento Rural; Leite, Karl Polanyi; Socioeconomia
1.
INTRODUÇÃO
O espaço rural é constantemente modificado devido a dinâmica econômica global, suas complexas interações entre atores e instituições e também pelos avanços no meio técnico e científico (CANDIOTTO, 2009). Intrínseco a estas constantes transformações que o paradigma de um desenvolvimento territorial com bases mais sustentáveis está inserido, onde se tem como premissas básicas a equidade social, a sustentabilidade ecológica do sistema e qualidade nos processos produtivos onde haja participação de atores sociais marginalizados (TESTA et al, 1996; 1
Mestrando no Programa de Pós Graduação em Agroecossistemas pela Universidade Federal de Santa Catarina
[email protected] 2 Mestrando no Programa de Pós Graduação em Agroecossistemas pela Universidade Federal de Santa Catarina 3 Mestrando no Programa de Pós Graduação em Agroecossistemas pela Universidade Federal de Santa Catarina
GUANZIROLI e CARAM, 2000;
LEITE, 2002). Neste contexto, a discussão no âmbito da
expansão, especialização e concentração da cadeia produtiva do leite atualmente é objeto de diversos estudos, devido à sua importância socioeconômica para o meio rural particularmente para uma categoria social que é a agricultura familiar tanto quanto para as indústrias e empresas inseridas neste mercado (SOUZA, 2007).
Em seu processo histórico e de maneira mais significativa nas últimas duas décadas, o cenário da atividade leiteira brasileira experimentou diversas transformações em toda extensão da sua cadeia produtiva, havendo assim uma reestruturação social, política e econômica dos diversos setores da atividade (ESCHER 2011). A auto-regulação do mercado, juntamente com a abertura comercial à multinacionais, liberação dos preços, concentração e oligopólio das indústrias, padronizações mercantis e sanitárias somada a insuficiência de políticas públicas, impulsionaram a construção de mercados leiteiros cada vez mais exigentes em padrões impostos e regulamentados por interesses restritos (FARINA et al., 2005; SOUZA, 2007; CHADDAD, 2007; SCHUBERT & NIERDELE, 2009; ESCHER, 2011).
De acordo com PLOEG (2008), estes novos mercados globalizados orientados e regulamentados unicamente pelo capital, constituíram o que o mesmo denominou em seus estudos de "Impérios Alimentares" ou em síntese a dominação social através de uma institucionalização, apropriação e expansão das indústrias e empresas no controle econômico. Tais impérios alimentares visando a lucratividades e expansão acabam por controlar toda extensão dos mercados, definindo regras e fluxos em todos os elos da cadeia produtiva a partir de interesses particulares indo além das agroindústrias, dos hipermercados e empresas, ou seja, transformam-se em grandes redes monolíticas oligopolizadas (MARTINELLO, 2009).
Segundo BOURDIEU (2001), a dinâmica na expansão das empresas e agroindústrias no controle do mercado criam espaços de conflitos e concorrência entre os atores envolvidos havendo disputas de posições e lucros específicos, devido a existência de leis particulares e regras estabelecidas. Ou seja para BOURDIEU, (2001) o campo (em analogia ao mercado) consiste no espaço em que ocorrem as relações entre os indivíduos, grupos e estruturas sociais de forma hierarquizada. Assim sendo o mercado leiteiro tem sido configurado historicamente a partir de interesses econômicos e relações sociais que se estabelecem de diferentes formas a depender da sua estrutura e posição frente a lógica mercadológica global (SWEDBERG, 2003).
A ideia destes campos de disputas através dos novos mercados globalizados apontadas por BOURDIEU (2001) é bastante pertinente no cenário das transformações ocorridas na atividade leiteira, como as ideias mobilizadas por POLANYI (1977) em seus estudos
sobre o
desenvolvimento das economias e sociedades de mercado, ao abordar o desajuste da sociedade através de um sistema mercadológico globalizado como vem acontecendo em tempos atuais (ESCHER, 2011).
Em meio a este campo competitivo e em contrapartida a todo este avanço mercantil, de alguma maneira, coexistem movimentos que de alguma maneira contrariam esta expansão capitalista, ganhando notoriedade conforme visto por estudos recentes em territórios ainda que específicos no país (MAGALHÃES 2007; DAVID, 2009; ESCHER, 2010; SCHUBERT & NIEDERLE 2011) demonstrando que é consideravelmente significativo o crescimento da produção e comercialização de leite proveniente de localidades onde há o predomínio de pequenas propriedades rurais através da agricultura familiar indo de encontro assim aos avanços capitalistas das indústrias e laticínios (TESTA et al. 2003; SCHUBERT & NIEDERLE 2011).
De acordo com ESCHER, (2011), tal fenômeno reflete o crescimento da cadeia produtiva do leite alavancada por uma reorganização socioeconômica sejam através de associações ou pequenas cooperativas onde os agricultores familiares e outros atores sociais envolvidos organizados adquirem uma maior capacidade de intervir e transformar a dinâmica do seu território. Segundo SCHNEIDER, (2009), é a partir das interações e relações estabelecidas entre os atores e o seu território, que se dá a promoção, transformação da atividade como um todo, adaptando seus meios de produção e tecnologias atribuindo assim novos sentidos aos processos de desenvolvimento socioeconômico. Ainda de acordo com SCHNEIDER (2007), o desenvolvimento do território e da atividade devem ser compreendidos como um fenômeno de natureza social, onde através da percepção dos atores sociais envolvidos por meio de ações e interações coletivas busca-se uma construção assim política e ideológica.
Assim sendo, o presente artigo, buscou incorporar em sua discussão as contribuições teóricas de Karl Polanyi4 para uma melhor compreensão dos processos de desenvolvimento dentro de um contexto rural, tendo como questão norteadora a noção de duplo movimento na discussão referente as principais transformações ocorridas no processo de especialização na atividade leiteira
4
Karl Paul Polanyi, filósofo e historiador da economia e antropólogo conhecido por sua oposição ao pensamento econômico tradicional. Sua principal obra é A Grande Transformação, de 1944.
em âmbito nacional, visto que as pistas deixadas pelo mesmo se fazem oportunas em tempos atuais frente a discussão do desenvolvimento rural e pertinente no cenário da atividade do leite.
2.
A ESPECIALIZAÇÃO DA CADEIA PRODUTIVA DO LEITE - UM LADO DO
MOVIMENTO.
As transformações ocorridas na atividade leiteira nas últimas duas décadas, deram início a uma série de consequências ambíguas nos diversos setores da atividade, através dos processos de reestruturação socioeconômica e dos novos rearranjos políticos (SOUZA, 2007, ESCHER 2010). Dentre estes processos podemos elencar a grosso modo alguns fatores que impulsionaram de forma mais significativa essas transformações da atividade tanto no âmbito institucional, industrial quanto em nível tecnológico:
1) A liberação dos preços em todos os elos da cadeia produtiva. De 1945 a 1991, o principal instrumento de regulação do mercado era o tabelamento de preços, desde então, a intervenção estatal passou a intervir no mercado do leite;
2) abertura comercial, permitiu que as empresas se tornassem responsáveis pela decisão de importação de derivados lácteos, acarretando em uma maior inserção e concentração das empresas no mercado;
3) implantação do Mercosul (Mercado Comum do Sul), reduzindo drasticamente as tarifas de importação dos produtos lácteos, permitindo países como a Argentina e o Uruguai, exportar lácteos para o Brasil à preços significativamente inferiores aumentando assim a competitividade do mercado. Atentando-se a desvantagem das empresas privadas nacionais quando comparadas com as empresas privadas transnacionais devido à dependência do sistema financeiro nacional, que apresenta taxas mais elevadas de juros (GALAN & JANK, 1998);
4) expansão e concentração industrial a fim de diminuir os custos da cadeia produtiva, ampliando assim a escala comercial (GALAN & JANK, 1998);
5) implantação do Plano Real através de mudanças políticas de governo.
Neste novo ambiente competitivo e cada vez mais especializado, iniciou-se ainda a discussão referente a melhoria da qualidade da matéria-prima ofertada, a fim de padronizar a
mesma para atender as exigências do Mercosul, e as demandas industriais de lácteos que alavancada pela lucratividade visava o desenvolvimento de novos produtos (MARTINS, 2005). Um bom exemplo disto foi a estratégia de internacionalização e desenvolvimento de novos produtos adotada pela Nestlé, onde ampliou sua captação de leite, matéria prima fundamental para viabilizar o crescimento da produção de produtos alimentares chegando em 1999 a comercializar mais de 8.500 tipos de produtos alimentares em mais de 100 países, principalmente de derivados lácteos, cafés e chocolates (FIGUEIRA & BELIK, 1999).
Para atender a demanda que agora era orientada também pela melhoria da qualidade do leite, foram necessárias mudanças de ordem sanitária, culminando assim na elaboração da Portaria 56, publicada em diário oficial da União para consulta pública em 1999. Essa portaria ficou dois anos sob consulta, posteriormente substituída pela Instrução Normativa 51 do Ministério da Agricultura e da Produção Animal (MAPA), que passou a exigir do setor produtivo novos padrões de qualidade, implicando em adequações da matéria-prima, maior controle sanitário dos rebanhos, acarretando em investimentos em todos os elos da cadeia principalmente em aportes tecnológicos. Atualmente o MAPA atualizou a legislação para Instrução Normativa Nº 62, DE 29 DE DEZEMBRO DE 2011 que prevê novas mudanças para os estabelecimentos de leite (MARTINS, 2005, SOUZA, 2007; BRASIL, 2011).
Diante disto, tanto o setor primário quanto as indústrias foram forçados a adequar-se aos novos padrões de produção, através de inovações tecnológicas, com introdução de novos equipamentos promovendo uma maior especialização da atividade. Dentre as inúmeras inovações tecnológicas: cinco inovações foram cruciais na perspectiva industrial segundo ESCHER, (2011): 1) Ampliação da coleta de leite a granel previamente refrigerado o que reduziu custos drasticamente além de favorecer a qualidade do leite que chegavam as plataformas industriais; 2) Introdução de novos equipamentos e maquinários, inovando nos métodos de ordenha, esterilização, homogeneização e resfriamento do leite; 3) o uso da embalagem do tipo Tetra Pak (longa vida) possibilitando a comercialização do leite à longas distâncias, permitindo ainda o armazenamento da matéria prima por maior tempo 4) Aprimoramento das técnicas de manejo de pastagens e na alimentação do rebanho, através da introdução de concentrados e ração; 5) Melhoramento genético dos animais e maior frequência de inseminação dos animais. Tais inovações transformaram o leite definitivamente em mais uma commodites agrícola5
5
Commodities é o termo utilizado para se referir aos produtos de origem primária que são transacionados nas bolsas de mercadorias (BRANCO, 2008)
As consequências dos processos supracitados conforme salientado por WILKINSON; BORTOLETO (1999) foram de uma integração e intensificação dos mercados devido a reestruturação das empresas, indústrias e produtores envolvidos, direcionando a distribuição para à concentração, seleção e especialização aumentando ainda mais a competitividade (SOUZA, 2007).
Tais mudanças redefiniram os padrões de mercado interferindo diretamente na cadeia produtiva, vitimando uma série de produtores de leite e
favorecendo algumas empresas de
laticínios. Apesar da especialização na atividade ter contribuído para o aumento da produção, o número de produtores caiu consideravelmente como visto nos censos agropecuários IBGE, (1998; 2009), onde em 1996 no Brasil haviam cerca de 1,8 milhões de produtores de leite após uma década o número de produtores diminuiu para 1,34 milhões, uma redução relativa de 25% no número de produtores de leite. Mais drasticamente essa redução atingiu a esfera dos produtores com até 50 L/dia, onde a redução relativa foi 68% (IBGE, 1998; IBGE, 2009a).
De acordo com POLANYI (2000), o reflexo dessa exclusão está vinculada ao que ele considerou como transformação dos mercados locais (o qual englobava a grande parte desses produtores de pequena escala) numa economia de mercado auto-regulável dando origem ao mercado moderno que mantém escalas globais, atrelado a dinâmica da oferta-demanda, regulado unicamente por preços e orientada pela realidade do valor fictício visando o acúmulo de riqueza. Assim, a reestruturação da atividade leiteira se baseou, principalmente, no fim da intervenção do estado no setor, seja regulando preços, estoques ou importações modificando assim as relações entre indústrias, produtores e por fim os consumidores (SOUZA, 2007)
A partir da reestruturação do setor de lácteos e dos processo de especialização ocorridos na atividade, destacam-se duas esferas distintas de pensamento, onde por um lado há quem defenda a especialização da atividade como uma maneira de ampliar a escala de produção e competitividade agropecuária no âmbito nacional, podendo assim alcançar outros mercados (JANK e GALAN 1998). Divergente a esta linha de pensamento há autores que criticam esta perspectiva puramente econômica, considerando que a atividade leiteira no país é um alicerce de reprodução social de uma classe abrangente, que é da agricultura familiar e que por isso ela deve ser incentivada e apoiada pois os mesmos seriam capazes de produzir um leite de qualidade a um baixo custo, sendo tão competitivos quanto as agroindústrias (WILKINSON, 1997; FERRARI et al.,2005; GUILHOTO et al. 2006, ESCHER, 2010).
Neste sentido a noção de duplo movimento6 proposta por POLANYI (1977) se faz pertinente devido a existência de um paradigma central que envolve uma sociedade cuja economia é regulada por um sistema mercantil de cunho capitalista no qual se há uma movimento de expansão e pressão contínua. Por outro lado um movimento contrário que o mesmo denominou de "contramovimentos" a margem dessa opressão econômica a fim de assegurar e proteger seus atores envolvidos. Polanyi ainda complementa que o avanço do capitalismo gera o que o mesmo chama de alienação dos atores sociais devido a subordinação a uma racionalidade individualista, criando valores fictícios causando uma desumanização da vida social (ESCHER, 2011).
Em resposta a toda esta subordinação ao capital, há novos rearranjos socioeconômicos sejam eles através grupos, classes, organizações e governos que se institucionalizam em sistemas de regras e dispositivos de ação coletiva proposto pelos atores sociais para regular a atividade econômica, o acesso as condições sociais de existência e a reprodução material e simbólica de seus meios de vida ativando os “contramovimentos” (ESCHER, 2011). Assim, estes “contramovimentos” podem ser compreendidos como práticas e inovações desencadeadas em oposição a mercantilização das relações sociais e meios de vida oriundas do capitalismo possibilitando os atores sociais envolvidos o desenvolvimento de um “processo institucionalizado” de mudança (SCNHEIDER 2009).
3.
O CONTRA-MOVIMENTO HEGEMÔNICO NO MERCADO DO LEITE - O
OUTRO LADO.
A agricultura familiar está, simultaneamente, envolvida em processos de adaptação aos padrões dominantes e em mobilizações para impor um novo conjunto de padrões mais compatíveis com as suas condições técnicas e econômicas.
Os
gricultores familiares contemplam uma
parcela significativa da riqueza nacional, mesmo enfrentando algumas dificuldades como a insuficiência de terras, assistência técnica, créditos e aportes tecnológicos.Embora a agricultura familiar tenha como ponto relevante sua capacidade de adaptação para suprir grande parte de bens e serviços requeridos para sua reprodução e atendimento da demanda mercantil, com foco em sistemas integrados, seus atores enfrentam muitas adversidades para a inserção de seus produtos em sistemas agroindustriais de maior complexidade (GUILHOTO et al. 2006).
Intrínsecos ao sistema capitalista, a produção primária tem se tornado crescentemente dependente da indústria, perdendo autonomia sobre seus processos produtivos e escala de produção, 6
O Duplo Movimento - Para Polanyi, em uma sociedade capitalista há como característica um movimento que busca cegamente progresso econômico e por um lado contrário, outro movimento que busca proteger o tecido social fragilizado pelo capitalismo.
sendo o segmento mais frágil da cadeia (WILKINSON; BORTOLETO, 1999; WILKINSON 2008). Segundo VILELA, et al. (2002), a produção de leite tornou-se uma estratégia na composição da renda dos agricultores, devido a alguns fatores como a frequência de pagamento por parte dos laticínios, seja quinzenal ou mensal propiciando um fluxo de receitas na atividade, a capacidade de liquidar o capital investido em função do baixo risco da exploração, dependendo somente das relações com o mercado. Como salientado por WILKINSON (1997), a atividade leiteira tornou-se alicerce para muitos agricultores familiares que vinham passando por transformações nos seus sistemas produtivos.
Assim sendo a atividade leiteira se consolidou como importante setor econômico em âmbito nacional, sendo uma das mais relevantes atividades para a inserção econômica da agricultura familiar ao mercado (FERRARI et al., 2005). No Brasil e em especial na região sul do país, a atividade leiteira proveniente da agricultura familiar vem constituindo uma base econômica, além de uma estratégia sociopolítica fundamental para permanência do agricultor de pequena escala na atividade frente às exigências cada vez mais excludentes do mercado competitivo do leite (MAGALHÃES,2007; DAVID, 2009; ESCHER, 2011).
De alguma maneira, as tendências macroestruturais da industrialização, estão sendo contrapostas através da expansão de produção de leite ainda nos territórios onde há o predomínio de pequenos estabelecimentos rurais, baseada em unidades familiares. Aproximadamente 60% da produção de leite no Brasil é oriunda da agricultura familiar (FERRARI et al, 2005; IBGE, 2009b). A literatura sugere que tal fenômeno nacional de aumento de produção esteja vinculado a organização de produtores em pequenas cooperativas com objetivo de comercialização conjunta, tornando a produção em pequena escala competitiva fundamentalmente por buscar nichos de alta qualidade (WILKINSON, 1999). De acordo com o último censo realizado pela Confederação Brasileira de Cooperativas de Laticínios (CBCL) em 2003, as cooperativas de leite captam ao redor de 5,25 bilhões de litros por ano no Brasil (CHADAD, 2011).
Estes
dados
são
verificado
principalmente no sul do país nos trabalhos de MAGALHÃES (2007) e SCHUBERT & NIEDERLE (2011) na região Sul do Brasil e no Sudoeste do Paraná, como mostrou DAVID (2009), através do Sistema de Cooperativas de Leite da Agricultura Familiar com Interação Solidária (SISCLAF) onde em 2009 o faturamento das cooperativas de leite associadas ao SISCLAF, que comercializam o produto através da Cooperativa Central, chegou a quase 30 milhões de reais.
De acordo com ESCHER, (2011), tal fenômeno reflete o crescimento da cadeia produtiva do leite alavancada por uma reorganização socioeconômica, através de associações e pequenas
cooperativas onde os agricultores familiares e outros atores sociais envolvidos organizados adquirem uma maior capacidade de intervir e transformar a dinâmica do seu território. A partir das experiências dos atores envolvidos, suas perspectivas, valores, interesses e procedimentos, podem resistir às tendências globais mercadológicas, tecnológicas quanto institucionais, atuando e modificando diretamente os processos de trabalho e produção e, assim, os próprios espaços de produção e vida (SCHUBERT,. & NIEDERLE, 2011). Para PLOEG (2006) e JESSOP, (2007), essa resistência por parte dos agricultores familiares e seus arranjos socioeconômicos são “mais comuns do que nós normalmente assumimos, percebemos, ou estamos dispostos a admitir”, estando imersas nas diversas práticas e atividades desempenhadas por estes grupos sociais criando assim respostas locais para problemas globais. na regulação dos mercados e do próprio Estado.
4.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No bojo da discussão, referente a reestruturação da atividade e mercado leiteiro em tempos atuais, que os "contramovimentos" oriundos da agricultura familiar parecem de alguma forma enfrentar toda essa pressão hegemônica que persiste dentro da atividade do leite através dos seus rearranjos sociais (cooperativas e associações) obtendo êxitos em produção e comercialização, ganhando notoriedade em âmbito nacional em territórios ainda que específicos como demonstram os estudos de MAGALHÃES (2007) e SCHUBERT & NIEDERLE (2011), ESCHER (2011) na região Sul do Brasil e no Sudoeste do Paraná, como mostrou DAVID (2009), através do Sistema de Cooperativas de Leite da Agricultura Familiar com Interação Solidária (SISCLAF) tornando-se competitivo dentro da lógica mercadológica. contradizendo a maioria dos estudos de mercado, que preveem um processo inexorável de concentração de mercado e exclusão dos produtores de pequena escala. Entretanto, vale a ressalva que mesmo estando entre os maiores países produtores de leite, o Brasil ainda destaca-se por ter uma ínfima participação de cooperativas na captação e comercialização de leite como exposto por CHADAD (2011).
O reflexo desta baixa participação na captação do leite por parte das cooperativas fica evidente nos processo de desenvolvimento tanto territorial quanto da atividade, onde a insuficiência de conhecimentos metodológicos adequados ainda é um paradigma a ser estudado cuidadosamente, devido a complexidade existente nas relações entre os agentes, instituições envolvidas neste processo conforme apontado por ESCHER & SCHNEIDER (2010) em seu trabalho referente aos "contramovimentos" da agricultura familiar corroborando com a pesquisa de BASSO (2009), DESER (2009) e MDA (2007). Além do que tais arranjos sociais, como atentara BALDIN E SOUZA, (2005), sejam através de cooperativas e/ou associações ainda apresentam diversos
problemas de ordem tecnológica, de escala produtiva e de estrutura organizacional-administrativa que podem ser consideradas como gargalos à adequação ao novo cenário de competitividade no mercado do leite.
Mesmo com todos os entraves que cercam a atividade leiteira no país considera-se que há um certo despertar para que o
Polanyi atribuiu como uma alienação cultural, por parte da
sociedade. Onde através de modificações dos princípios e fundamentos econômicos que regem a economia em linhas gerais e aqui me refiro principalmente a cadeia produtiva do leite, limitadosnos apenas pelas condições materiais. que os atores sociais começam a estabelecer seus próprios mecanismos de regulação e controle do seu território e mercado, em prol a promoção de processos de mudança social, democratização econômica e transformação estrutural do território. Entende-se que é preciso problematizar a partir de reflexões e análises críticas, o cenário desses "novos dispositivos sociais", para uma melhor compreensão de como práticas e inovações desencadeadas frente à mercantilização da atividade tem conseguido permanecer e competir no mercado com toda pressão hegemônica existente.
Assim aprofundar estudos no âmbito destas instituições contribuirá no melhoramento das estratégias de gestão das cooperativas identificando os pontos de estrangulamento e as inovações necessárias para ampliar sua capacidade de obtenção de tecnologia, ganhos de escala além de novas capacidades administrativas e gerenciais no âmbito organizativo para competir em um mercado dinâmico. Isso porque estudos em estruturas sócio-administrativas, produtos, estratégias são ações que visam aumentar a eficácia e a competitividade dessas organizações. Por fim, fica perceptível que sociedade moderna continua a tentar proteger-se dos avanços do capital que distorcem e reconfiguram o território e seu ambiente natural. O surgimento destes contramovimentos é aquilo que Polanyi atentara para a Grande Transformação.
5. REFERENCIAS
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