O Encantamento da Tecnologia e o papel da publicidade (estudo de caso)

June 9, 2017 | Autor: P. Xavier Mendonça | Categoria: Sociology, Communication, Advertising, Tecnology
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Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

O Encantamento da Tecnologia e o papel da publicidade (estudo de caso)

Pedro Mendonça Dissertação submetida como requisito parcial para obtenção do grau de

Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação

Orientador: Prof. Doutor José Luís Garcia

Abril de 2007

Resumo

O presente trabalho reflecte sobre um possível encantamento da tecnologia, nomeadamente através da imagem técnica e dos objectos tecnológicos úteis. Parte-se do seu natural espaço de produção de encanto – a arte – para transpor os caracteres encontrados para a análise de um campo – o publicitário – onde se cruzam a imagem técnica e os objectos tecnológicos úteis, particularmente quando se publicitam através da televisão os automóveis da marca Citroën, nos anos 1980. Na arte e nestes anúncios descobrem-se novos encantos resultantes duma crescente complexidade da tecnologia, não só ao nível da inerente ao automóvel em si, mas também da presente na comunicação que o promove e transforma. Como pano de fundo coabitam duas utopias, a da comunicação e a da tecnologia. Ambas proliferam nas potencialidades encantatórias da tecnologia como artefacto onde se divulgam como visões do mundo frequentemente entrelaçadas. Consequentemente, geram-se tipos de relações com a tecnologia deslocados dos intuitos efectivos desta e bem mais centralizados em aspectos extra nela incrustados com o mero objectivo de a tornar encantadora, logo mais vendável. Da análise da publicidade emerge a conclusão que identifica o consumo como um motor fundamental deste processo.

Palavras-chave: Encantamento, Tecnologia, Objecto, Publicidade

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Abstract This work is a reflection on technology’s possibilities of enchantment bearing in mind its technical image and its useful objects. From the analysis of its natural source of enchantment – art – there are reference marks which emerge that are transferable to the analysis of another field of work – publicity. In publicity there is a connection between objects’ usefulness and technology’s technical image which is important in the context of the television advertisements to the Citroën automobiles in the 1980s. Art and these advertisements brought out new enchantments as they benefited from the increasing technological complexity which was part not only of the automobile itself but also of the communication which promoted it and transformed it. As a background to this process there are two utopias: that of communication and that of technology. Both take part in the potentialities of technological enchantment where they often present themselves as two intertwined visions of the world. As a result, several connections involving technology are established deviating it from its most immediate objectives and linking it to others created to make it more enchanting and therefore more sellable.

The analysis of publicity brings out the conclusion which

identifies consumerism as a fundamental engine to this process.

Key-words: Enchantment, Technology, Object, Publicity

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Agradecimentos

Agradeço a disponibilidade e o estímulo intelectual do Prof. Doutor José Luís Garcia e o espírito de debate dos colegas do mestrado. Ao Dr. Fernando Ramos, o ter permitido o acesso aos anúncios. Agradeço também à minha mãe, ao meu pai e aos meus avós o apoio e suporte. Por fim, por tudo, agradeço à Rita.

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“um arpão não decorado mata igualmente um salmão” Leroi-Gourhan

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ÌNDICE 1. INTRODUÇÃO

pág. 8

2. O ENCANTAMENTO DA TECNOLOGIA:

pág. 11

2.1. Noções base: encantamento, tecnologia (de comunicação), pág. 11 objecto (tecnológico) e publicidade Encantamento pág. 11 Tecnologia pág. 13 (comunicação) pág. 14 Objecto (tecnológico) pág. 16 Publicidade pág. 18 2.2. O reencantamento do mundo por via tecnológica e pág. 20 comunicacional A secularização pág. 20 O desencantamento e o vazio pág. 21 A barbárie como causa pág. 22 Utopia da comunicação – um vector de reencantamento pág. 23 Utopia da tecnologia – outro vector de reencantamento pág. 26 O poder dos media pág. 28 O caso da televisão pág. 32 O reencantamento do mundo como tema pág. 35 2.3. A Publicidade em particular História da publicidade Algumas características da publicidade Publicidade e televisão 2.4. Objectos encantadores por via tecnológica: da arte à publicidade O encanto da arte tradicional A aura e as transformações tecnológicas O encanto da técnica na arte O encanto da imagem tecnológica A técnica, a produção de objectos úteis e a sua valorização na contemporaneidade Automóvel e televisão Objectivos da análise Objectos de análise – Citroën na televisão dos anos 80 Análise Tipologia dos anúncios publicitários Utopia da tecnologia O encanto do objecto útil quando publicitado

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pág. 39 pág. 39 pág. 42 pág. 43

pág. 45 pág. 46 pág. 46 pág. 48 pág. 51 pág. 56 pág. 58 pág. 59 pág. 60 pág. 63 pág. 63 pág. 69 pág. 75

O encanto dos objectos tecnológicos úteis A influência do encanto icónico – redução da aura e aumento do mágico O meio como fim A impossibilidade do objecto ser neutro quando publicitado A desneutralização do objecto primitivamente neutro

pág. 85 pág. 89 pág. 90 pág. 93 pág. 96

3. CONCLUSÃO

pág. 101

4. BIBLIOGRAFIA

pág. 105

5. SÍTIOS NA INTERNET

pág. 109

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1. INTRODUÇÃO A tecnologia encanta. Quanto a isso, não parecem haver dúvidas. Basta caminhar por qualquer capital do mundo, observar os objectos que compõem o lar ou mesmo alguns que o indivíduo transporta diariamente para ser perceptível a razão desse encanto: aparentemente, o encanto acontece porque a tecnologia é útil à humanidade e a cada um dos seus membros, talvez porque lhes facilite a vida e abra perspectivas de modos de estar nunca antes imaginados possíveis, contudo imaginados. Mas será essa a verdadeira causa de encanto? O termo “encanto” não remeterá para um sentido que coloca a tecnologia num campo demasiado emocional e derradeiro? Encanto não será o que devem possuir os objectos artísticos? Estes também são produzidos pela tecnologia, é certo; mas os outros objectos tecnológicos – os úteis – que povoam o quotidiano, também detêm encanto? Que encanto? O mesmo? Outro? E quando são publicitados, o que é que lhes acontece? Quando são transmitidos televisivamente, que transformações sofrem na imagem e nas relações potenciadas? Continuam úteis? Este texto procura responder a estas e outras perguntas conexas dum modo que se pretende indicativo de tendências que se podem perfilar em certos fenómenos. Consequentemente, o interesse recai sobre os objectos tecnológicos publicitados televisivamente, nomeadamente a alguns modelos Citroën dos anos 1980, cuja escolha se deve à importância económica, cultural e social do objecto e da marca, além de se prender com a relevância, na história da publicidade, dos referidos anúncios. O objectivo é, então, verificar se estes produzem uma imagem do automóvel revestida de alguma espécie de encanto, o qual nos enviará necessariamente para aspectos que estão para lá da simples utilidade do objecto e entram no campo emocional e estético das relações. Para tal, recorre-se ao encanto na arte. Esta é a grande produtora de objectos possuidores de encanto. Contudo, ela própria sofreu metamorfoses causadas pela evolução tecnológica, principalmente com o cinema e a fotografia. Quem o detecta é o conhecido filósofo alemão Walter Benjamin, para quem as tecnologias de reprodução em grande escala exerceram uma autêntica revolução no campo da arte.

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É esta transformação que estabelece uma ponte com a televisão e a publicidade a automóveis. A televisão, como herdeira da tecnologia do cinema e da fotografia, traz com ela as mesmas configurações de encanto. O automóvel, por sua vez, como objecto publicitado, é alvo desses efeitos quando anunciado (sem esquecer que ele próprio é produto da tecnologia, podendo por isso constituir-se de algum tipo de encanto específico). O que acontece ao encanto nestas transposições é o que se procura saber. Portanto, busca-se na arte caracteres de análise para verificar na publicidade a existência do mesmo encanto ou de outro familiar. Para tal analisar-se-á um texto de Benjamin procurando pistas para detectar o velho e algum hipotético novo encanto resultante da evolução tecnológica. Para a ponte entre a dimensão artística e a utilitária ser mais consistente, estudar-se-á ainda um texto do antropólogo Alfred Gell acerca dum encanto na arte que decorre singularmente da técnica e que, considera-se, é fecundo na transposição para os objectos não-artísticos. O enquadramento teórico desta conceptualidade é a conjectura de que decorre na sociedade contemporânea um fenómeno que pode configurar em si elementos identificáveis com o termo “encantamento”, sustentado pela tecnologia e pela comunicação apresentadas como utopias que ocupam o lugar antes ocupado pela religião e por certas ideologias. Em articulação com o conceito de “desencantamento” que Max Weber utilizou para identificar algumas características da racionalização da vida moderna, propõe-se, com o apoio de alguns autores, o termo “reencantamento” como designação do fenómeno em geral. Em particular, observa-se o papel da publicidade neste processo, que aponta para a possibilidade do consumo ser um seu intensificador. Esta pesquisa move-se numa certa interdisciplinaridade, visto socorrer-se dum misto de estudos das Ciências da Comunicação, da Filosofia, da Sociologia e da Antropologia. O objecto e algumas análises de fundo são da primeira área, recorrendo-se à conceptualidade filosófica, às visões amplas da Sociologia e ao olhar muito particular da Antropologia. Sabendo-se que, nas Ciências Sociais e Humanas, nada se faz dum único ponto de vista – visto a complexidade do humano a isso obrigar – é possível afirmar uma certa riqueza nesta situação. Em termos metodológicos, as práticas são a análise de texto, que dedutiva e analiticamente estabelece premissas de investigação, e a análise de conteúdo, de raiz

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semiótica, que incidirá sobre os anúncios em causa. Esta última processa-se de modo hipotético-dedutivo, pois parte dum conjunto de hipóteses – a saber: o processo de encantamento pela tecnologia está patente na sociedade de consumo e no mecanismo comunicacional e publicitário que ela produz; portanto, o consumo ajuda a produzir um encantamento secular que vem substituir o desencantamento observado por Weber; a outra hipótese é a negação desta – que se verificam, posteriormente, nos anúncios escolhidos. Os caracteres de análise emergem do corpo teórico produzido na pesquisa de texto. Como consequência, procurar-se-á ainda fazer algumas notas históricas sobre o concluído na análise. Para começar, julga-se pertinente apresentar uma clarificação das noções que articulam o texto. Seguem-se a exploração de um corpo teórico que sustenta a ideia de “reencantamento” do mundo, a introdução do tema da publicidade, com uma história sucinta e algumas características, o estudo específico dos encantos produzidos pela tecnologia nos objectos, a análise dos anúncios, algumas consequências conceptuais e históricas daquilo que se analisou e, por fim, algumas conclusões gerais sobre a investigação.

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2. O ENCANTAMENTO DA TECNOLOGIA 2.1. NOÇÕES BASE: ENCANTAMENTO, TECNOLOGIA (DE COMUNICAÇÃO), OBJECTO (TECNOLÓGICO) E PUBLICIDADE

Porque pensamos com conceitos e para os designar utilizamos termos que, como tal, são polissémicos, remetendo para sentidos que variam com os contextos de leitura, é importante clarificar as noções centrais que orientam o texto de modo a valorizar a clareza e evitar mal-entendidos. Sendo assim, as noções que servem de lupa à investigação em causa são quatro: 1) encantamento; 2) tecnologia (de comunicação); 3) objecto (tecnológico); e 4) publicidade. A primeira, refere-se ao processo; a segunda, à causa; a terceira, ao suporte ou veículo; e, a quarta, à intenção. Portanto, conjectura-se que a tecnologia (utilizada como meio de comunicação) potencia encantos em objectos quando publicitados. Claro que outras intenções, além da publicitária, justificam este encanto; todavia, aqui a análise centra-se neste particular. Para entender isto, com maior precisão, avance-se para a clarificação de cada um dos termos. Comece-se pelo que acontece.

Encantamento Etimologicamente, segundo Voltaire1, encantamento (incantamentum – latim) deriva de uma palavra caldeia que os gregos terão traduzido por epôde gonoëia, isto é, canção produtora, que posteriormente aculturou os romanos. Deste ponto de vista, esta noção diz respeito a uma situação: uma canção que provoca um efeito – sabendo que a musicalidade de um canto tem, em princípio, um carácter sedutor, emocional, não necessariamente racional.

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Voltaire; http://www.voltaire-integral.com/Html/18/enchantement.htm

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Opinião confirmada pelo dicionário. Se olharmos para um consensual, verificamos que o termo em causa tanto é remetido para o pólo do que sofre: “grande prazer que se tem como reacção a alguma coisa boa”; como para o do que causa: “boa qualidade do que se vê, ouve, percebe”; ou mesmo para o do suporte: “palavra, frase ou qualquer outro recurso a que se atribui o poder mágico de enfeitiçar”2. Portanto, um encantamento é, ou pode ser, a um tempo, algo que se faz, algo que se sofre ou algo que alguma coisa transporta. Malinowski, referindo-se à magia, oferece um paralelismo com este percurso: “[a magia] tem sempre subjacente tanto o mago executante, como o objecto a encantar, como os meios de o fazer”3. Assim, temos um processo de sedução tripolar. Aqui, apesar das três dimensões serem analisadas, o interesse recai sobre o suporte e o seu encanto. Considerando o mencionado e a descrição que Voltaire faz, no seu Dicionário Filosófico, de alguns tipos de encanto, é possível concluir que, em termos gerais, o processo de encantamento ocorre do seguinte modo: um elemento “A” (encantador) provoca “E” (encanto) em “B” (encantado), através de “C” (suporte ou veículo) de modo a que “B” obedeça à vontade (ou intenção) de “A” independentemente da vontade que em si persistia antes do referido encantamento; “E” (encanto) reveste-se duma atracção assente em aspectos ocultos e detentores de algum poder, por isso atrai pelos pólos do desconhecido e do poder fora do alcance do encantado. É importante ainda acrescentar que, em princípio, aquilo que detém este tipo de qualidade faz com que aquele que é por ela atingido se fixe predominantemente no encanto em detrimento de qualquer outra coisa. Podendo-se associar a magia a este fenómeno, também a ele se juntam um certo ocultismo e irracionalidade. Dimensões opostas à ciência que construiu e dinamizou a modernidade desencantando-a dessas mundividências. O que nos leva directamente a Max Weber. Este, por oposição, confirma um pouco os sentidos associados a este conceito. Pois, se o desencantamento moderno por ele identificado se realiza por via de uma racionalização da sociedade através da ciência e da sua capacidade de prever e calcular, por encantamento pode-se entender algo aproximadamente contrário, como seja 2

VV.AA. (2003), Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Tomo III, Lisboa, Círculo de Leitores, pág. 1468 3 Malinowski, Bronislaw (1988), Magia, Ciência e Religião, Lisboa, Ed. 70, pág. 79 (o itálico foi colocado)

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o irracional, o incalculável ou o imprevisível, os quais alimentam magias, superstições e fetiches substituídos pelas clarividências da ciência, muito mais consciente e controladora do que a vontade do indivíduo B da composição apresentada. Portanto, para identificar o fenómeno de encanto, destacam-se dois conceitos: o de oculto e o de poder. O encanto existe quando, por via de algo que se oculta, se exerce um poder não esclarecedor, procurando-se, pois, neste trabalho, E (encanto) em C (suporte ou veículo). De resto, pode-se dizer que, se encantamento é um canto que produz, aquilo que produz não é necessariamente positivo, mas também não é negativo. Na mitologia grega, o canto de Orfeu produziu o encontro com a sua amada presa nas profundezas da terra, enquanto que o canto das sereias provocava o naufrágio de barcos e marinheiros. Assim, aquilo que o encantamento produz depende de quem canta e porque canta.

Tecnologia

Passando ao termo tecnologia, e seguindo de novo a etimologia, identificam-se nesta palavra dois termos gregos unidos pela História. O primeiro é téchnê, do qual deriva o termo técnica, e que, para os gregos, significava “perícia ou arte”4. Hoje, o termo técnica não anda muito longe desse sentido original – o dicionário diz significar “conjunto de procedimentos ligados a uma arte ou ciência”5, o que remete para uma prática sob a égide de um ofício, assim determinada por objectivos para os quais são exigidas certas acções e não outras. A esta palavra acopla-se outra, cuja origem se encontra no termo, também grego, logos. Este termo tinha para os gregos um duplo sentido: por um lado, razão, por outro, discurso6. Um ambienta-se no pensamento, outro na linguagem. Contudo, polémicas filosóficas à parte, é possível assimilá-lo à noção de conhecimento, visto este ser,

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Blackburn, Simon (1997), Dicionário de Filosofia, Lisboa, Gradiva, pág. 422 VV.AA. (2003), Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Tomo VI, Lisboa, Círculo de Leitores, pág. 3474 6 Idem (2003), Tomo III, pág. 475 5

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primeiro que tudo, um discurso sobre uma realidade, obedecendo às regras da racionalidade. Sendo assim, de um modo simplificado, pode dizer-se que tecnologia é o conhecimento sobre a técnica. O dicionário é concordante: tecnologia designa, pois, “teoria geral e/ou estudo sistemático sobre técnicas, processos, métodos, meios e instrumentos de um ou mais ofícios ou domínios de actividade humana”7, o que, por extensão, se pode aplicar à técnica em particular. No presente texto, quando se faz referência à tecnologia, não só se aplica o termo ao conhecimento sobre a técnica como também a esta mesma, isto é, não só à teoria sobre os procedimentos que visam obter um fim no âmbito de um ofício como ao próprios procedimentos em si e os objectos deles resultantes. De acrescentar que estes visam a transformação de algo natural ou artificial num resultado sempre artificial. A sua consequência tanto pode ser um objecto como uma estrutura ou um sistema. A tecnologia não só apresenta uma dimensão material como uma relacional. Uma acção integrada num sistema de outras acções e objectos pode pertencer ao âmbito de uma tecnologia na medida em que corresponda ao definido como tecnológico, não tendo necessariamente que resultar num artefacto. Neste contexto, o interesse recai sobre objectos tecnológicos e no que um sistema tecnológico em particular – o comunicacional – lhes faz. Daí ser importante pensar o conceito que se segue.

(comunicação)

Para identificar correctamente a etimologia desta palavra é importante dar atenção ao antepositivo comun(i) que a constitui e que desde a sua origem latina significa algo “que pertence a muitos ou a todos, (…) [algo] comum”8. Sendo assim, partindo da etimologia, comunicação é o acto que o possibilita.

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VV.AA. (2003), Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Tomo VI, Lisboa, Círculo de Leitores, pág. 3474 8 VV.AA. (2002), Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Tomo II, Lisboa, Círculo de Leitores, pág. 1013

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No seu significado actual, e resumindo o que o dicionário expõe, é possivel dizer que por comunicação entende-se o acto ou processo de troca de mensagens entre vários sujeitos através de diversos instrumentos ou faculdades humanas que exigem codificações e descodificações de diferentes signos ou símbolos9. Relacionando este significado actual com o antepositivo descobre-se no acto comunicativo a necessidade de tornar algo comum entre vários sujeitos. Não obstante, deve avançar-se: primeiro, considerando o desenvolvimento tecnológico, é necessário substituir a noção de sujeitos por a de elementos, que implicam os primeiros mas possibilitam a integração de comunicadores tecnológicos; segundo, é importante acrescentar que as referidas exigências de codificação e descodificação impõem uma transformação em todos os participantes, inclusive nas mensagens, durante todo o acto comunicativo. Este pode ser constituído tecnologicamente. Nele, Breton e Proulx, incluem três domínios: 1) os media; 2) as telecomunicações; e 3) a informática10. Neste texto abordase o primeiro, que, como o termo indica, diz respeito a mediadores e, nesse sentido, àqueles que constroem mensagens e modos de comunicação à distância. Diz-se constroem porque, como mediadores, são desnecessários quando a comunicação é directa, ainda que longínqua, como no caso das telecomunicações. Além de serem meios tecnológicos, têm mão subjectiva, elaboram mensagens a partir de si, com referência a outros, destinando-se a muitos: são de massa. Por isso, a edição, a imprensa, a rádio e a televisão são media, construções tecno-simbólicas que nos medeiam heteroreferencialmente. Aqui o enfoque recai apenas sobre a televisão.

Resumo de: “processo que envolve a transmissão e a recepção de mensagens entre uma fonte emissora e um destinatário receptor, no qual as informações, transmitidas por intermédio de recursos físicos (fala, audição, visão, etc.) ou de aparelhos e dispositivos técnicos, são codificadas na fonte e descodificadas no destino com o uso de sistemas convencionados de signos ou símbolos sonoros, escritos, iconográficos, gestuais etc.” (VV.AA. (2002), Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Tomo II, Lisboa, Círculo de Leitores, pág. 1013) 10 Breton, Philipe e Serge Proulx (1997), A Explosão da Comunicação, Lisboa, Ed. Bizâncio, pág. 113 9

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Objecto (tecnológico)

A qual, além de objecto, comunica objectos, transmitindo-os sob a forma de imagens. Enquanto objecto tecnológico, emite imagens tecnológicas de objectos tecnológicos: uma autêntica tautologia tecnológica. Mas, como objecto tecnológico, o que é? Começando pela noção de objecto, na senda da sua compreensão, a etimologia, mais uma vez, pode ajudar-nos. Assim, este termo deriva do latim objectum, que significa “o que está frente a, o que se opõe ao sujeito, (…) o que é, as coisas”11. Portanto, é algo que, enquanto sujeitos que somos, nos aparece opostamente como pertencente à categoria de coisa, a qual nos remete para o palpável que acompanha a definição actual. Esta diz-nos que objecto é uma “coisa material que pode ser percebida pelos sentidos”12. No dizer de Moles, uma “resistência material”13; isto é, algo que se opõe ao nosso movimento de um modo aparentemente maciço, compondo, tal como a definição nos diz, ao mesmo tempo, o nosso campo de percepção. De novo segundo Moles, há que distingui-lo do mundo natural. Neste sentido, por ser uma produção do ser humano, é um produto da cultura e não da natureza14. Cultura objectivada, mas também, de acordo com Flusser, intersubjectiva, na medida em que, para lá de obstáculo, o objecto estabelece linhas de contacto entre sujeitos, ramos de diálogo entre subjectividades15. Isto porque, além de tudo, é manipulável, o que permite constituir-lhe modos de relação e de fruição: sistematização e imbuição humanas. Em princípio, é possível considerar que todos os objectos são tecnológicos. Todos resultam de um conhecimento técnico e integram-se num sistema tecnológico. Contudo nem todos são meios para atingir um fim. Tradicionalmente considera-se que os objectos artísticos constituem-se como fins em si mesmos, o fruidor não os usa, não faz deles meros meios, não se apropria deles com outro fim que não eles próprios. Ao contrário dos 11

VV.AA. (2003), Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Tomo III, Lisboa, Círculo de Leitores, pág. 1210 12 VV.AA. (2002), Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Tomo V, Lisboa, Círculo de Leitores, pág. 2646 13 Moles, Abraham (1973), Rumos de Uma Cultura Tecnológica, S. Paulo, Ed. Perspectiva, pág. 201 14 Idem. 15 Flusser, Vilém (1999), A Forma das Coisas, trad. Dévbora Bergamasco do original inglês das edições Reaktion Books Ltda, do site http://www.cisc.org.br

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objectos úteis, que são por natureza meios para um fim com vista ao qual foram inventados. George Kubler, embora amplie esta concepção a todos os objectos, expansão que se julga abusiva, fornece uma caracterização deste modo de ser que parece fecunda. Segundo ele “podemos ter a certeza de que qualquer objecto feito pelo homem é uma solução para um problema, uma solução com uma finalidade determinada”16, ou seja, perante uma interrupção da fluida sequência de acontecimentos quotidiana ou mental, face a uma falha no envio funcional17 (problema) onde a nossa existência se move, projecta-se uma solução em forma de objecto. Quando responde a um problema utilitário ou concreto, resulta predominantemente num objecto útil18, quando replica a um problema estético ou abstracto, dá lugar a um objecto artístico19. Claro que se discorda desta última proposição. Parece redutora e demasiado aproximada do modo de ser do objecto útil. O objecto estético não nasce necessariamente dum problema ou duma problematização, e, quando nasce, o modo como se responde ao problema ou problematização não torna o objecto numa solução, mas antes num fim. A solução subentende uma continuidade depois dela. O objecto artístico é o término da linha de exploração da sua fruição. Contudo, esta terminologia aplica-se perfeitamente ao objecto útil, que nasce dum problema e aparece como solução, a qual, por natureza, deixa à sua frente o espaço de progressão que se constituiu como o objectivo prévio ao problema (é de referir que este binário problema/solução será importante quando se analisarem os anúncios publicitários a automóveis – objectos úteis, cerne de interesse deste texto; depois se perceberá porquê). Estes apresentam níveis de complexidade diferentes, que sustentam uma tipologia. Sugere-se, assim, a divisão dos objectos em duas categorias: 1) aqueles cuja sequência causal possibilitadora da sua função é evidente e 2) aqueles em que essa sequência é oculta e exige especialização para ser conhecida.

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Kubler, George (1998), A Forma do Tempo, Observações sobre a história dos objectos, Lisboa, Ed. Veja, pág. 21 17 Situação que Heidegger aborda no Ser e Tempo, vendo nela o impulso para a reflexão. 18 Kubler, George (1998), A Forma do Tempo, Observações sobre a história dos objectos, Lisboa, Ed. Veja, pág. 23 19 Idem., pág. 54

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Na primeira categoria incluem-se, por exemplo, os garfos, as facas ou as cadeiras; na segunda, podem inserir-se, por exemplo, os telemóveis, os automóveis ou as domésticas máquinas-de-lavar-roupa. Os primeiros são mais simples, têm uma História mais longa e a sua quantidade tende a diminuir; os segundos são mais complexos, possuem uma História recente e proliferam cada vez mais. Todos são tecnológicos, embora resultando de conhecimentos a profundidades diferentes e possuindo alcances de acção variados. Portanto, voltando à pergunta inicial, e considerando o que foi dito, um objecto tecnológico é, no fundo, todo o objecto, e todo o objecto caracteriza-se por resultar de um conhecimento técnico e, no caso do objecto útil, ter uma função. Ele é algo que se interpõe entre nós e tudo o resto, mas também que nos permite a relação com esse tudo. O útil, serve-nos, em princípio, para algo que não ele, mas sem o qual esse algo não se apresenta tão fácil ou mesmo possível. Como solução, parece ser apenas ponto de passagem, ora mais visível ora menos, ora mais simples ora mais complexa. Todavia, sempre no jogo de mãos, leigas ou especializadas. Depois de entendidas as noções que se podem designar de operacionais, é importante introduzir a clarificação da noção referente ao objecto de análise em si: a publicidade.

Publicidade Sendo assim, para clarificar esta noção socorre-se apenas20 da definição empregue por Adriano Duarte Rodrigues, segundo o qual a publicidade “é o processo de tornar conhecido publicamente um produto ou um serviço através de suportes ou dos meios de comunicação social (…) mediante o pagamento de uma determinada remuneração” 21. Portanto, sempre que alguma entidade torna algo público através da comunicação social, pagando para o efeito, pode-se considerar que tanto o acto como o suporte utilizado pertencem ao campo da publicidade ou cruzam-se com ele.

20 21

Não se considerou a origem etimológica suficientemente pertinente para ser referida. Rodrigues, A. D. (1988), O Campo dos Media, Lisboa, Vega, pág. 59

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Deste modo, incorporam este procedimento as dimensões da produção de um objecto ou serviço, da sua divulgação e da sua recepção. A publicidade pretende mediar este percurso não só a partir do meio (o que está entre o produtor e o consumidor – a divulgação) como contribuindo para um processo de produção detentor de um conhecimento técnico dos possíveis consumidores que lhe permita elaborar produtos que escoem convenientemente (dimensão destinada ao marketing). Aqui interessa a sua actuação nos media, particularmente na televisão; ou seja, a sua manifestação como – também ela – produto final, mas que se pretende suporte ou veículo de comunicação. Será, portanto, fundamental sujeitá-la, enquanto objecto de análise, aos conceitos anteriores, verificando a sua existência e cruzamento. Assim, a publicidade concatena o encantamento, a tecnologia (de comunicação) e o objecto. Primeiro, porque se pretende processo de sedução (potencialmente encantador). Segundo, porque utiliza tecnologias de comunicação, não só ao nível do suporte como do ponto de vista da sua substância: faz-se pela tecnologia e é tecnologia de comunicação. Terceiro e último, porque pode ser um objecto e, fundamental, procura vender objectos. O que ela faz a esses objectos é, como se sabe, a questão central desta análise. Contudo, esta far-se-á sobre um pano de fundo mais amplo.

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Por isso, conhecido o óculo conceptual que constitui a base da investigação, é tempo de avançar para a configuração do enquadramento teórico que subjaz ao questionamento que impulsionou este trabalho. Assim, tendo como base os conceitos atrás explicitados, conjectura-se um movimento de reencantamento do mundo por via tecnológica e comunicacional, no qual os objectos têm o seu papel. Esta é uma proposta onde se perfilam constitutivamente os conceitos analisados. De seguida começar-se-á por expor o dito processo analisando o momento que o fundou pela ausência, isto é, o que se pensa ser a causa do movimento de reencantamento do mundo: a secularização e o desencantamento a si associado.

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2.2. O REENCANTAMENTO DO MUNDO POR VIA TECNOLÓGICA E COMUNICACIONAL

A secularização

Se o moderno foi o novo, a secularização trouxe novidade suficiente para se designar moderna. A religião enfraqueceu, a tradição esmoreceu, e, por transferência ou ruptura, os valores mudaram de referência ou de essência e a temporalidade ocupou paulatinamente o lugar do sagrado. Para esse processo, entre outros factores, contribuíram a ciência e a globalização, uma porque remeteu o Homem para o mundo e a outra porque o fez caminhar por esse mesmo mundo ao encontro do seu outro e do assim reconhecido relativismo da sua própria cultura e religião. Como processo, não ocorreu repentinamente, dinamizando ainda hoje o movimento que cremos vislumbrar na História. A partir do século XVII, toda uma sequência de eventos contribuíram para que uma nova visão do mundo surgisse como pilar de valores e práticas que antes não eram aceites nem possíveis de tecnicamente experimentar. A ciência moderna, baseada no raciocínio matemático e na experiência, colaborou decisivamente nessa reconfiguração do mundo, construindo em torno do ser humano um ambiente cada vez mais técnico, transformado por procedimentos teórico-práticos, em que o meio por modelar (natural) deixou de se deixar ver pelo mais primitivo dos Homens. A chamada globalização – com os devidos desencontros e encontros com a ciência – fez igualmente parte desta modelação enquanto movimento de expansão do Homem pelo planeta e de cruzamento de Homens entre si – um verdadeiro conjunto de actos comunicativos que assim almejaram construir para o ser humano um reconhecimento de si próprio que lhe trouxe a abertura espiritual suficiente para que um dia os dogmas perdessem a sua autoridade hegemónica e a reflexividade e a problematização pudessem ter lugar. Assim, tanto a tecnologia, praticada no campo científico ou tecno-científico, como a comunicação, ajudaram a humanidade na progressiva tarefa de fazer descer à imanência

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– pelo menos aparente – a transcendência que desde sempre tinha sido a evidente inquisidora da vida mundana.

O desencantamento e o vazio

Uma das análises que pode trazer luz sobre este processo é a de Max Weber. O sociólogo chama-lhe «desencantamento», mas aponta a sua génese para o surgimento das primeiras profecias do judaísmo antigo, para o desenvolvimento do pensamento científico grego e para a mensagem cristã, particularmente para a sua facção puritana e protestante mais recente. Este «desencantamento» concretizou-se especificamente pela rejeição de todas as práticas mágicas e supersticiosas que denotavam uma forma de experienciar o mundo que lhe atribuía propriedades ocultas22 manipuláveis mediante a utilização de fórmulas que somente um mago dominava23. Portanto, para Weber, o «desencantamento» iniciou-se antes da secularização propriamente dita, o que é justificado com o facto das religiões monoteístas terem sido as grandes iniciadoras dessa desapropriação do mundo das suas dimensões ocultas, fazendo com que o Homem concedesse antes à transcendência absoluta as faculdades enigmáticas patentes na magia, embora com novas configurações. Contudo, com a secularização, nomeadamente com a ciência, este processo de «desencantamento» agudizou-se, colocando desta feita no lugar da magia as leis científicas da causalidade24, que, lógicomatematica e experimentalmente, desvendaram o mundo demonstrando a evidência do que antes não se deixava vislumbrar e fazia, com o seu véu, divagar a imaginação, alimentar a crença e fixar rituais. A ciência contribuiu para a ampla racionalização da vida moderna característica das sociedades ocidentais25, observando no mundo uma matriz de compreensão racional, vista à luz dum tipo ideal de conhecimento absoluto que tinha como meta a manipulação

22

Aron, Raymond (1991), As Etapas do Pensamento Sociológico, Lisboa, Publi. D. Quixote, pág. 511 Malinowski, Bronislaw (1988), Magia, Ciência e Religião, Lisboa, Ed. 70, pág. 77 24 Aron, Raymond (1991), As Etapas do Pensamento Sociológico, Lisboa, Publi. D. Quixote, pág. 521 25 Idem, pág. 480 23

21

total da natureza e do próprio Homem. Uma desocultação, um trazer à luz, a uma certa simplicidade matemática e a uma manipulação reversível, que pareceram assim desvendar todos os segredos da natureza e fazer desencantar o olhar de um Homem que passou a sentir-se digno de um conhecimento que o distinguia do primitivo ignorante e encantado. Todavia, apesar deste aparente progresso, Weber avisa que ele não nos trouxe resposta para uma das questões fundamentais do ponto de vista existencial: a questão do sentido. Conhecer e controlar para melhor sobreviver, sentir ou conquistar, não resolveu o problema teleológico do para quê último26. O que, provavelmente, terá contribuído para o que no cerne da própria ciência, através da tecno-ciência, e no campo da comunicação,

germinassem

impulsos

resultantes

da

necessidade

de

encanto

aparentemente perdida. Assim, seguindo as pistas de alguns autores e as convicções de outros27, traz-se a esta circunstância a tese de que assistimos desde os anos quarenta a uma progressiva inversão do «desencantamento» identificado por Weber, que resulta numa nova espécie de encantamento, o qual apresenta algumas características idênticas ao primitivo e que se realiza por meio da comunicação e da tecnologia – os mesmos dois campos que começaram por colaborar no «desencantamento» agudizado da secularização.

A barbárie como causa

Mas antes de se desenvolver esse duplo campo de encantamento, é necessário perceber porque é que ele surgiu. Tal como a religião perdeu influência, as ideologias utópicas, que, em parte, a substituíram, também foram recuando na sua ascendência. Segundo Breton, elas motivaram a descrença ao serem responsabilizadas pela barbárie que o século XX conheceu com as duas Grandes Guerras. Ao nacionalsocialismo apontou-se o extermínio industrial de seis milhões de judeus, ao comunismo dirigiu-se acusação idêntica apontando-se os gulag estalinistas, e – não escapando à

26 27

Idem. pág. 521 Pistas de Breton, Proulx e Flusser, convicções de Stivers e Ritzer

22

barbárie – a democracia foi acusada de ter perpetrado bombardeamentos estratégicos a populações civis durante a II Grande Guerra. Por isso Breton afirma que “no coração do século XX, o mais moderno e o mais civilizado que a Humanidade conheceu, vemos nascer por toda a parte uma concepção a que os bárbaros mais selvagens apenas recorriam com grande parcimónia: a destruição sistemática de populações civis”28. Visivelmente, um limite foi ultrapassado, e foi-o em grande medida porque eram características internas destas ideologias, por um lado, a ideia de que alguns indivíduos estariam de acordo com a pureza ideológica defendida, vivendo o correcto sentido da História (o que excluía outros, exteriores e contrários a esse sentido, logo susceptíveis de serem eliminados pelo destino representado nas mãos eleitas) e, por outro lado, a convicção de que esse ideal colectivo justificava a secundarização do individuo no seio das prioridades estipuladas para a construção do devir histórico planeado29. Como consequência desta barbárie – e já depois do anterior processo de substituição de conteúdos axiológicos que foi a secularização – assistiu-se à reocupação de um espaço, que se esvaziava, por novas crenças que possibilitaram ao ser humano alimentar a sua visão utópica. A comunicação e a tecnologia foram os dois grandes pilares dessa nova circunstância que apresenta indícios de se tratar de um novo encantamento. Utopias que pretendem fugir à barbárie vivificando numa economia baseada no consumo.

Utopia da comunicação – um vector de reencantamento

É Breton quem apelida de utopia da comunicação uma ideologia que considera imperante e que se foi impondo sub-repticiamente a partir do final da II Grande Guerra devido à barbárie inaudita que as antigas ideologias, remotamente ou não, provocaram. Assim sendo, perante o desalento causado pela visão de um reflexo do humano irreconhecível pelo mais pessimista dos Homens – apesar de toda a suposta evolução

28 29

Breton, Philipe (1994), A Utopia da Comunicação, Lisboa, Inst. Piaget, pág. 63 Idem., pág. 82

23

civilizacional –, uma nova ideologia emergiu como sua negação e recuperação de uma virtude perdida. O seu primeiro arauto foi Norbert Wiener, que fundou a cibernética, concebendo esta disciplina de um modo que possibilitou construir as bases conceptuais para uma suficiente sustentabilidade da comunicação como ideologia. Este autor propôs uma visão unificadora de todos os fenómenos suportada pela noção de que todos eles se regeriam de acordo com um elemento comum: as relações, no sentido matemático; ou seja, segundo ele, é possível reconhecer a essência da realidade nas relações entre os elementos que a constituem. Concomitante com o conceito de «relações», surge o conceito de «comunicação» como valor, opondo-se aos anti-valores da entropia e da desordem. Os grandes problemas da sociedade diagnosticar-se-iam à luz da análise dos seus processos comunicativos e resolver-se-iam com a intensificação e esclarecimento desses mesmos processos30. Por esta via, veiculou-se a expectativa de uma sociedade ideal e uma nova definição de Homem – o homo comunicans –, destituído de interior, exteriorizado por completo nas suas relações sociais, onde os segredos se desvaneceriam à luz de uma comunicação total e em que a transparência avançaria sem limites até à descorporalização do Homem e ao desaparecimento do conteúdo31. Esta visão abrangente vai medrar no terreno fértil do relativismo contemporâneo proporcionado pelas democracias laicas ocidentais, nas quais a discussão é uma necessidade comunicativa permanente e incentivada32, e dos meios técnicos exponenciais, facultados pelo desenvolvimento tecnológico. Neste contexto, a sociedade de consumo aparece como o éden prometido. A proliferação de objectos e serviços oferece os prodígios do conforto e da segurança, compromissos da utopia da comunicação que, ao contrário das velhas utopias que professavam um éden absoluto, propõe um éden relativo, aquele que apenas pode garantir que a barbárie não se repetirá e que a segurança límpida será sempre a prioridade 33. A ideologia da comunicação promete não excluir ninguém da sociedade da troca dinâmica e

30

Breton, Philipe (1994), A Utopia da Comunicação, Lisboa, Inst. Piaget, pág. 32/35 Idem., pág. 46/52 32 Idem., pág. 89 33 Idem., pág. 92 31

24

intensiva, do multiculturalismo, da globalização e do diálogo, livrando cada um de qualquer moralismo apertado34. Este universalismo radical e este movimento no vazio parecem medrar plenamente numa sociedade fascinada pela velocidade35, alimentada na troca comercial e aberta a uma circular relativização dos valores. Esta utopia é paralela àquilo que Breton e Proulx apelidam de explosão comunicacional, expressão que identifica a emergência dos processos comunicativos modernos como instrumentos determinantes na espectacularização mediática36 e na saturação imagética dos media. Esta deflagração insere-se predominantemente na designada «cultura da argumentação», que diz respeito à dimensão retórica de sedução e diálogo argumentativos e encontra na publicidade o seu melhor exemplo. Opõe-se à «cultura da evidência», que se origina com o ideal científico da demonstração e reconhece nas telecomunicações e na informática os seus maiores veículos 37. Paradoxalmente, o grande desenvolvimento da comunicação social ajudou na revalorização da «cultura argumentativa», depois da ciência dominar o espectro dos ideais de conhecimento, o que se deveu à necessidade de seduzir, inerente aos media, comunicando argumentos que atraíssem para uma determinada tese, facto ou produto. Ambas são culturas que divergem na relação que estabelecem com a técnica e no modo como tratam a informação. A «evidência» utiliza a técnica e organiza a informação no intuito de mostrar o indiscutível, factual e objectivo, enquanto que a «argumentação» enreda-se nas dimensões discutíveis, axiológicas e subjectivas do ser humano. O paradoxo reside na utilização que a argumentação faz de pseudo-evidências como argumentos, apoiando-se na sempre presente valorização da cultura científica característica da modernidade. É este véu que nutre a utopia da comunicação como ideal de transparência e os próprios processos comunicativos de sedução como demonstradores de verdades demonstrativas. Neste texto, esta cultura é a que interessa fundamentalmente como real impulsionadora do reencantamento do mundo. O seu contexto é o de uma sociedade deslumbrada pelos meios tecnológicos de comunicação, que permitem projectar a imagem de uma sociedade futura onde a 34

Breton, Philipe e Serge Proulx (1997), A Explosão da Comunicação, Lisboa, Ed. Bizâncio, pág. 22 Martins, Hermínio (2003), “Aceleração, progresso e ‘experimentum humanum’”, em Hermínio Martins e José Luís Garcia (org.), Dilemas da Civilização Tecnológica, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, pág. 19 36 Breton, Philipe e Serge Proulx (1997), A Explosão da Comunicação, Lisboa, Ed. Bizâncio, pág. 13 37 Idem., pág. 14 35

25

proeminência desses meios seja absoluta e os seus benefícios infinitos. Baudrillard, por exemplo, defende que a comunicação, actualmente, abrange tão amplamente a vida humana que se tornou impossível pensar fora dela, dificultando o distanciamento necessário à reflexão e ao desvelamento de possíveis poderes manipuladores que esse predomínio oculta38. Mas esta utopia não se deixa fazer sozinha, ela é não só suportada por uma outra como lhe dá motivo de expansão e sobrevivência. Sem a tecnologia, não é nada.

Utopia da tecnologia – outro vector de reencantamento

Segundo Proulx, as técnicas foram sempre acompanhadas por um projecto utópico39, as invenções tecnológicas trouxeram sempre consigo esperanças que alimentaram utopias de transformação social. Esta tendência terá contribuído para o desenvolvimento profundo da crença contemporânea na tecnologia e para um paralelo crescimento duma utopia a si associada ao lado da utopia da comunicação. Richard Stivers diagnostica a sua existência na actualidade. Começa por se apoiar na tese de Jacques Ellul de acordo com a qual vivemos num mundo onde o meio hegemónico é o «meio da tecnologia», isto depois de na pré-história termos vivido sob a égide do «meio da natureza» e de no período que vai de 3000 anos a.C. até ao fim da II Grande Guerra termos subsistido no «meio da sociedade». «Meio» designa, neste caso, o ambiente material e simbólico que rodeia o ser humano e onde ele problematiza e constrói a sua sobrevivência e sentido. Sendo assim, se no «meio da natureza» era a natureza que dominava o homem e a linguagem e a tecnologia eram subdesenvolvidas, se depois, no «meio da sociedade», o ser humano se libertou do predomínio da natureza por via da política, das leis e da construção de uma sociedade coesa e organizada, hoje o Homem vive no que o autor chama de período pós-

38 39

Baudrillard, J. (1991), Simulacros e Simulações, Lisboa, Relógio d’Água Proulx, Serge citado por Breton, Philipe (1994), A Utopia da Comunicação, Lisboa, Inst. Piaget, pág. 92

26

histórico, em que a simbolização como forma de recordar o passado e preparar o futuro se desvanece e onde se assiste à perda da autonomia humana frente à tecnologia40. Assim, a tecnologia tornou-se mais imediata do que a natureza e mais dominadora do que a sociedade, materializando-se em objectos e serviços estreita e complexamente relacionados entre si, constituindo um sistema que se sobrepôs à individualidade e liberdade humanas41. Partindo, pois, da tese de Ellul, Stivers defende, consequentemente, que vivemos numa civilização tecnológica que ritualiza nos seus media uma utopia, que consiste numa mistificação da tecnologia, resultando numa tendência geral para a imitação desta 42 como modelo último para a resolução de todos os problemas à luz do binómio eficiência/ineficiência43, associando-se o progresso tecnológico à felicidade última e, se possível, presente. O autor utiliza o conceito de «magia» para designar este efeito da tecnologia sobre a sociedade, modo pelo qual se apresentam objectos como soluções encantadoras para a dor e a decrepitude. A este conceito se voltará posteriormente. Há que referir ainda que os diversos tipos de ambiente identificados por Ellul serão transformados em categorias de análise que procurarão detectar nos anúncios o predomínio ou não de aspectos associáveis à utopia da tecnologia. Por agora, interessa salientar que este paradigma se integra na sociedade a dois níveis: a um nível abstracto, representado pelo método racional, eficiente e objectivado, e a um nível concreto, realizado nos objectos tecnológicos e nos bens de consumo44. Nisto, é importante destacar que o autor considera também tecnológico o que Weber apelidava de «racionalização da vida moderna» e vê nos objectos uma concretização material dessa mesma racionalização, desta feita com consequências irracionalmente utópicas. Esta utopia manifesta-se ainda em três dimensões daquilo que podemos intitular de circulação social: primeiro, na informação, neste caso especialmente técnica; segundo, no meio, visto serem os media o seu poder; e, terceiro, no objecto, que é o seu produto45. E aqui é possível encontrar uma evidente articulação com a utopia da comunicação: visto 40

Stivers, Richard (2001), A Tecnologia Como Magia, O Triunfo do Irracional, Lisboa, Inst. Piaget, pág. 27/34 41 Idem., pág. 36 42 Stivers, Richard (2001), A Tecnologia Como Magia, O Triunfo do Irracional, Lisboa, Inst. Piaget, pág. 18 43 Idem., pág. 41 44 Idem., pág. 52 45 Idem., pág. 92

27

ser o meio o seu poder, é na comunicação que a tecnologia encontra a sua primeira força. Stivers é claro: “os meios de comunicação ritualizam o mito da utopia tecnológica envolvendo a tecnologia (…) num campo mágico”46 – uma pista fundamental para esta investigação. Para terminar esta pequena abordagem da utopia da tecnologia, resta lembrar que, tal como a da comunicação, ela é tão evidente e envolvente que passa despercebida, a sua delimitação dilui-se na abrangência da sua existência, surgindo como uma inevitabilidade conducente a uma crença ainda maior, porque mais sub-reptícia, nos poderes encantadores dos seus instrumentos. Sem avaliar em grande alcance, para já, algumas consequências deste predomínio comunicacional e tecnológico, repete-se somente que se enquadram num movimento histórico, social e tecnológico de encantamento do mundo, desta feita, e paradoxalmente, por via da racionalização metodicamente aplicada na provocação de fascínio, por natureza irracional e emocional.

O poder dos media

No contexto do presente texto, ambas as utopias apresentadas, intencionalmente veículos de encantamento, concretizam o exposto também através dos media. Perceber o poder destes é, pois, fundamental, porquanto tal poder revela igualmente o alcance possível do encantamento. Assim, a questão que se coloca é: qual o poder dos media? A este respeito existem várias conjecturas. Se pensarmos que a actualidade é por si só uma actualização mediática, que o horizonte de reconhecimento da nossa identidade parece delinear-se também mediaticamente, que as trocas discursivas estabelecidas socialmente sugerem a hegemonia de temáticas de referência a elementos mediáticos e que a expressão «panmediatismo» já é utilizada como referência à cultura contemporânea47, então

46

Idem., pág. 24 Garcia, J.L. (2002), “O fogo e a cultura pan-mediática contemporânea”, Media & Jornalismo (nº1), pág. 129 47

28

intuitivamente concluímos que os media exercem uma grande influência sobre os indivíduos e que os sons, os discursos e as imagens que eles difundem acontecem em nós com grande penetração e as já referidas utopias neles veiculadas determinam invariavelmente os nossos comportamentos. Mas é possível conjecturar o oposto. Pode-se especular que os nossos valores não se formam só mediaticamente e que muitas vezes os media reflectem a sociedade em vez de serem primeiros causadores de atitudes, é possível colocar como hipótese que vivemos predominantemente

numa

dimensão

não

tecnologicamente

mediática,

mas

fundamentalmente constituída por gestos, movimentos, relações sensoriais e discursivas que não obedecem directamente a intervenções mediadoras mas antes a construções subjectivas, heranças culturais e condicionalismos físicos já existentes em épocas passadas e que ainda hoje formam o bolo maior da nossa existência, e se pensarmos ainda que não retemos cognitivamente tudo a que somos expostos é permitido desmistificar a ideia de que os media têm um tão grande poder na sociedade que não possamos, com algum espírito crítico, contornar os seus conteúdos obsidiantes. Porém, é provável que a realidade se configure sem a hegemonia absoluta de um destes radicalismos. Vejamos, sucintamente, algumas teses sobre o assunto. Segundo Breton e Proulx, nos anos 40, dominava a posição que afiançava que os media tinham um poder determinante sobre os indivíduos; todavia, nos anos 50 e 60, as posições dividiram-se entre duas alas opostas: por um lado, uma postura mais filosófica e especulativa defendia a efectiva influência dos media sobre os indivíduos recorrendo à noção de «cultura de massas», a qual designava uma sociedade onde o indivíduo se isola, mas, paradoxalmente, se despersonaliza na homogeneização dos comportamentos sob o poder duma superstrutura mediática de produção cultural, uma manta descendente que, segundo esta posição, domina espíritos manipuláveis; e, por outro lado, um ponto de vista empírico que procura desmistificar a omnipresença dos media por via de observações metódicas que se valem do estatuto científico atribuído ao empirismo, estudos que resultaram da necessidade de organismos radiofónicos e de agências de publicidade da época conhecerem as suas audiências48.

48

Breton, Philipe e Serge Proulx (1997), A Explosão da Comunicação, Lisboa, Ed. Bizâncio, pág. 158/172

29

Posteriormente, os primeiros começaram por ser acusados de não serem suficientemente científicos e rigorosos ao desvalorizarem a observação directa e de serem elitistas por se deixarem dirigir por a prioris axiológicos e ideológicos que à partida subvalorizavam a cultura massificada relativamente a uma cultura de elites destinada a poucos49. Contudo, aos segundos dirigiu-se acusação idêntica relativamente aos a prioris, pois foram tidos como condicionados ideologicamente, ou talvez até economicamente, por elaborarem os seus instrumentos de análise de um modo tendencialmente favorável às entidades que os encomendavam50, a esta acusação juntaram-se a de sofrerem da hipérbole científica do positivismo e a de esquecerem os efeitos de longo prazo a favor de uma excessiva atenção aos de curto prazo51. Todavia, segundo Breton, tanto a tese da omnipotência dos media como a da sua total impotência são mistificações52. Consequentemente, nos anos 60 e 70 surgiram teorias alternativas que formularam um novo paradigma que, contra a concepção unidireccional da mensagem, veicularam que, por vezes, nem mesmo o difusor controla por completo o emitido53, o que aparentemente desconstroi o modelo clássico simples de transmissão de um emissor para um receptor, revelando uma maior complexidade no processo. Neste âmbito incluem-se autores que apontaram a importância da dimensão formal e técnica dos media, independentemente dos seus conteúdos, como o caso de Baudrillard, inspirado em McLuhan; outros que salientaram a relevância dos aspectos simbólicos, como Barthes; e outros ainda que se centraram nas questões sociopolíticas, como Mattelart54. Todos procuraram sair do paradigma anterior, considerando mais as questões sociológicas e os contextos de difusão. Contudo, na realidade permaneceram nele, visto terem continuado a pensar à luz da existência de um emissor hierarquicamente superior que disseminava uma ideologia a um receptor predominantemente passivo. Desta feita, nos anos 80, desenvolveram-se então os intitulados cultural studies, reveladores de que a recepção nem sempre descodifica as mensagens como o emissor as codifica, fazendo reconhecer a importância do receptor e afastando os estudos do 49

Idem., pág. 165/167 e 172 Idem., pág. 177 51 Idem., pág. 180 52 Idem., pág. 179 53 Idem., pág. 193 54 Idem., pág. 210 50

30

excessivo enfoque no papel do emissor55. Aqui um novo paradigma emergiu de facto, mais conversacional e fluido do que o dirigismo do anterior. Deste ponto de vista, o texto mediático surgiu como uma polissemia aberta à interpretação do receptor e este como um ser autónomo, pelo menos mais dependente doutros condicionalismos que não os mediáticos. Se os autores como Baudrillard e Mattelart, na tentativa de rejeitarem o antigo paradigma, aparentemente continuaram a atribuir demasiado poder aos media devido a uma visão excessivamente hierarquizada do emissor e passiva do receptor, os cultural studies, apesar de realmente terem saído do velho paradigma, parece que relativizaram em demasia a mensagem mediática, empobrecendo as sua potencialidades em determinar simbolicamente os indivíduos. James Curran, referenciado por Breton, criticando a perspectiva culturalista, destaca a limitação da polissemia da mensagem mediática, a qual, deste modo, determina cenários de interpretação dos quais é impossível sair e que assim limitam a liberdade de leitura do receptor. Na sequência desta crítica, David Morley acrescenta que as conclusões dos cultural studies não resultam necessariamente numa independência total do receptor na interpretação das mensagens: o facto de alguns indivíduos descodificarem a mensagem diferentemente da sua codificação não deve ser generalizado, porque o predomínio continua a ser o inverso, o de uma relativa correspondência entre a codificação e a descodificação56. Portanto, não só a mensagem tem uma margem, uma figura, por mais ampla que seja, como os receptores são sensíveis a ela e à universalidade das suas significações. Assim sendo, o percurso apresentado revela quão problemática é a questão do poder dos media, parecendo, contudo, que algum poder existe na sua acção. E mesmo supondo que os efeitos de longo prazo não são acentuados, é impossível esconder que não só no longo prazo mas também em larga dimensão espacial os media existem em sequência e simultaneidade suficientes para, tal como nos avisa Baudrillard, dificilmente saírem do nosso universo, o que naturalmente (no sentido literal do termo)57 é um poder, visto terem-se tornado banalidades do hábito – o mais imanente e permanente dos efeitos sobre os indivíduos. 55

Idem., pág. 212 Breton, Philipe e Serge Proulx (1997), A Explosão da Comunicação, Lisboa, Ed. Bizâncio, pág. 217 57 Pode dizer-se que a presença dos media se naturalizou. 56

31

Desligar a televisão, por exemplo, poderia parecer uma opção; contudo, isso nos desligaria não somente do aparelho como do mundo ao qual associamos o nosso modo de ser configurado desde a nascença numa dada identidade e num determinado espaço existencial cuja abrangência não nos dá o seu limite ou exterior – beco sem saída que resulta de um sistema tecnológico que se impõe pela aceitação e incremento generalizados58. A hipótese de que vivemos o quotidiano sem grande interferência dos media parece, pois, pouco consistente, o que obriga a pensar o acontecimento mediático, independentemente dos seus efeitos verificados.

O caso da televisão Na sequência desta omnipresença relativa59, a televisão emerge como um media que importa em particular, em parte porque concretiza a dimensão técnicocomunicacional que interessa analisar, mas também devido à sua extensa e intensa integração na nossa sociedade e nos nossos hábitos, o que a torna, provavelmente, no melhor exemplo do tal «pan-mediatismo» já mencionado. De acordo com dados da UNESCO, no ano de 1992 existiam cerca de mil milhões de aparelhos televisivos por todo o mundo60, o que equivalia a um quinto da população mundial. Se considerarmos que cada televisão é vista em sua maioria por mais do que um indivíduo, percebemos pela força dos números que, pelo menos espacialmente, a televisão prolifera. Mas também do ponto de vista temporal ela parece ter uma presença abrangente. Segundo o Relatório Nielson, no final dos anos 80, cada americano via 4,5 horas de televisão por dia, o que é um número bastante relevante para quem quiser argumentar que a existência da televisão no quotidiano dos indivíduos é proeminente como hábito socialmente significativo. O que explica este sucesso da televisão como media, a partir da II Grande Guerra é, segundo Castells, não qualquer especificidade inerente à natureza humana que a levaria Garcia, J.L. (2002), “O fogo e a cultura pan-mediática contemporânea”, Media & Jornalismo (nº1), pág. 137 59 Relativismo do seu efeito, universalismo da sua presença. 60 Castells, Manuel (2002), A Sociedade em Rede, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, pág. 446 58

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a interessar-se especialmente pela televisão, mas às condições de vida contemporâneas, em que os indivíduos despendem muitas horas a trabalhar e em transportes públicos e privados, chegando a casa sem alternativas para o descanso além da televisão, a qual permite relaxar sujeitos imersos nas tensões urbanas, sem lhes fazer grandes exigências de ordem intelectual e muito menos física; por isso Castells afirma que “a televisão tornou-se o epicentro cultural das nossas sociedades; e a modalidade de comunicação da televisão é a de um medium fundamentalmente novo, caracterizado como sedutor, simulador sensorial da realidade e de fácil comunicabilidade, na linha do menor esforço possível”61. Portanto, parece que a televisão é um media da «cultura da argumentação», com grande poder ao nível da simulação da ausência da construção técnica do real, movendo-se num ambiente geral de facilitismo e leveza. Contudo, embora esta posição pudesse fazer conjecturar o contrário, Castells não corrobora inteiramente da tese segundo a qual a televisão representaria uma cultura de massas que agiria sobre sujeitos meramente passivos. O autor espanhol demarca-se da ala crítica já mencionada, que defende essa ideia, baseando-se num argumento que vai buscar sustentação aos estudos de recepção. Desse modo, ele advoga que não estamos perante uma cultura de massas veiculada televisivamente, porque os indivíduos interagem com as mensagens aí transmitidas, seleccionando-as e organizando-as de acordo com as suas preferências, em concorrência com outros modos culturais que não os exclusivamente mediáticos, como sejam os específicos de uma classe, os educacionais ou os de alta cultura, entre outros. Os sujeitos não recebem as mensagens de um modo absolutamente determinante, porque existe algum grau de autonomia na sua relação com as mensagens televisivas, devendo-se isso ao facto da sua exposição aos efeitos desses envios não ocupar a totalidade dos seus dias, influências, interesses e valores enraizados62. O que não quer dizer que não sejam apreendidas duma forma relativamente determinante. Isto porque, como diz Castells, “vivemos num ambiente de media, e a maior parte dos nossos estímulos simbólicos vem dos meios de comunicação”63, o que o leva a defender que quando se fala de um media de massas, como a televisão, faz-se referência não a uma 61

Idem., pág. 438 Idem., pág. 441 63 Idem., pág. 442 62

33

cultura de massas mas a um «sistema tecnológico»64, que, por isso, exerce um poder mediante a comunicação e a tecnologia. Assim sendo, o seu efeito existe em potência, visto que é uma tecnologia que desempenha um papel muito relevante no quotidiano dos sujeitos, à qual estes estão expostos com grandes probabilidades de assimilação. O que nos leva a Baudrillard, o qual, apoiando-se na proposição clássica de McLuhan, segundo a qual o meio é a mensagem, afirma que existe um poder do media televisivo que se exerce através da imposição de novos modos de percepção concretizados na ilusão que faz da televisão uma apresentação do mundo, condicionando a leitura que os espectadores fazem desse mesmo mundo às funções de coerência interna do sistema a descodificar e não às funções realistas da categoria de verdade. Segundo o autor francês, o acontecimento televisivo substitui a História e a cultura. A realidade fazse de acordo com os meios tecnológicos de produção de imagens e discursos e não segundo o princípio primário da realidade65. Quando Castells se refere à televisão como um “simulador sensorial da realidade”66 coincide com esta tese de Baudrillard, aproximando-se, contudo, de uma posição mais relativista quanto ao seu efeito. Traz-se aqui a posição de Baudrillard não tanto para corroborar de um certo radicalismo monolítico e redutor que é possível encontrar nalguns dos seus textos – como seja naqueles em que defende uma sociedade imersa na hiper-realidade do simulacro67, tese que se julga discutível se for colocada como implícita em todo o quotidiano e existência humanos, absolutizando a presença dos media –, mas porque se acha que é indispensável compreender que a televisão resulta também num efeito tecnológico de construção do real que não lhe obedece criando a ilusão de que lhe é fiel, quando na realidade apresenta-o limitada epistemologicamente pela sua condição de imagem técnica. Portanto, a televisão tem poder como possibilidade de produzir, constituindo-se como uma tecnologia de comunicação de massas com o poder de construir cenários potencialmente encantadores através da criação da ilusão do real que entretém pelo fascínio do seu realismo. Os indivíduos aderem ou não a ela.

64

Idem., pág. 441 Baudrillard, J. (1975), A Sociedade de Consumo, Lisboa, Ed. 70, pág. 149/152 66 Castells, Manuel (2002), A Sociedade em Rede, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, pág. 438 67 Como em Simulacros e Simulações. 65

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Deste modo, os media em geral e a televisão em particular parecem ser um modo privilegiado na veiculação das duas utopias já referidas. A «utopia da comunicação» tem nos media a sua divulgação e concretização, é neles que se dá a conhecer como ideal de transparência e de troca, sendo, ao mesmo tempo, onde se torna real, alargando os seus tentáculos de apresentação e iluminação do mundo; a televisão é, talvez, o seu maior instrumento, principalmente pela sua massificação e permanência no quotidiano humano. A «utopia da tecnologia», por sua vez, suporta a dimensão técnica essencial à multiplicação dos media e da utopia comunicacional neles transmitida, além de ser nesses media, como se referiu, que ela encontra o seu maior instrumento de disseminação; mais uma vez a televisão revela ser central neste domínio, não só como tecnologia em si, mas também como teatro de sedução.

O reencantamento do mundo como tema

Conjectura-se assim que o percurso apresentado revela no seu alinhamento histórico, social e conceptual a existência de um possível «encantamento» do mundo, o qual, no seguimento do «encantamento» primitivo e do «desencantamento»68 moderno identificados por Weber, se configura historicamente como «reencantamento». Uma espécie de reminiscência primitiva. Quem desenvolve esta tese, mas com enfoques diferentes, é Ritzer, baseando-se em Baudrillard e Campbell. Contudo, também Stivers, na obra analisada, sugere esse «reencantamento», afirmando que “a atribuição de magia à existência humana representa uma tentativa de «reencantar» o mundo na era da racionalidade técnica”69 – frase que expressa as potencialidades encantatórias da tecnologia altamente racionalizada. Todavia, foi Ritzer quem mais centrou as suas análises neste conceito, em articulação com Weber, contextualizando o seu estudo nas chamadas «catedrais do consumo» – os centros comerciais e zonas de grande diversão.

68

Já Schiller se referia ao conceito de «desencantamento» (Ritzer, G. (2000), El Encanto De Um Mundo Desencantado. Revolucion En Los Médios De Consumo, Barcelona, Ed. Ariel, pág. 74). 69 Stivers, Richard (2001), A Tecnologia Como Magia, O Triunfo do Irracional, Lisboa, Inst. Piaget, pág. 14

35

Aqui a análise centra-se nos media, em particular na televisão, à luz das utopias referidas e dos encantos específicos da técnica vivenciados em objectos, que posteriormente serão identificados, e na actividade, particularmente empenhada na sedução, que é a publicidade. Por agora, é importante apresentar algumas leituras sobre o assunto, particularmente a de Ritzer. Este autor observa nos espaços de consumo contemporâneos uma tendência recorrente para um exercício metódico de encantamento dos consumidores, afirmando que, “para continuar atraindo, controlando e explorando os consumidores,

as

catedrais

de

consumo

sofrem

um

contínuo

processo

de

reencatamento”70, querendo com isto dizer que, nos espaços mencionados, os geradores de encanto o produzem voluntariamente como garante da sua sobrevivência num sistema circular de produção-consumo-produção; isto é, estão obrigados a manter os consumidores satisfeitos – ou seja, encantados – de modo a que o círculo se feche e se sustente a produção e o comércio que, por sua vez, criam empregos para os mesmos consumidores que se encantam. O que é desconcertante é que, embora tenha sido por via da racionalização que o mundo se desencantou, com o mesmo meio ele se reencantou, o que é manifesto nos instrumentos de cálculo psico-social que se esforçam por provocar comportamentos desvinculados de uma racionalidade ampla e metódica, como seja o caso do consumo irreflectido em hiato com as necessidades e, pior ainda, com as possibilidades económicas de cada indivíduo. Contudo, segundo Ritzer, os consumidores só atingem o estado de encantados – e permanecem nele – se não desvelarem o manto que cobre a racionalidade controladora que o provoca por via externa e encapotada. O encantamento deve aparentar autonomia para ser encantador. Nota-se aqui a importância da ignorância no encantamento individual concomitante com o carácter “oculto” que se utilizou para caracterizar o encantamento, o qual resulta num poder que também captura o especialista, pois, embora este tenha uma relação menos ingenuamente encantada com os processos de

70

Ritzer, G. (2000), El Encanto De Um Mundo Desencantado. Revolucion En Los Médios De Consumo, Barcelona, Ed. Ariel, pág. 86

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encantamento por si desenvolvidos71, não o tem relativamente aos processos onde não participou. Esta ambiguidade reflecte um encantamento contemporâneo com pés tecnológicos e racionais. Duplicidade já compreendida por Stivers. Não só Stivers e Ritzer abordam esta questão. Este último, como já foi referido, assenta a sua análise noutras abordagens idênticas. A de Campbell é um delas. Este neoweberiano defende que o consumismo moderno conduz a um “capitalismo romântico e encantado”72, distinguindo-se de Weber na medida em que este atribui ao capitalismo uma frieza racionalista que Campbell recusa centrando-se na análise do consumo e não tanto na da produção, destacando a sua dimensão fantasista dinamizada como processo de sedução com vista à sua própria sobrevivência. Assim sendo, se for reconhecida a existência, nos meios de comunicação e na sociedade em geral, da vivência expectante duma mistificação da tecnologia e da comunicação, associando-se ao poder dos media em geral e da televisão em particular, é possível apreender um processo de reencantamento do mundo que revela algumas parecenças com o encantamento clássico, mas que, contudo, se concretiza sob condições diferentes. As causas, os instrumentos e as intenções variam de encanto para encanto, mas a relação que cada indivíduo estabelece com as construções encantadas revela cruzamentos com o encanto clássico, nomeadamente ao nível dos conceitos de oculto e de poder. Por um lado, este encanto oculta as suas raízes racionais, condição de encanto; por outro, exerce um poder que resulta do espanto perante as possibilidades que atinge fora do alcance de quem as percepciona. Ambos se relacionam: o que se oculta conduz, por isso, a méis poder. As especificidades estão no contexto e nos intervenientes Por isso, parece fundamental delinear alguns contornos determinantes nas duas utopias explanadas. Por um lado, a utopia da comunicação contribui para o reencantamento do mundo mediante a sua dimensão imagética; isto é, por se difundir como transparência e universalidade não só axiológica como geográfica, concretizandose grandemente através do poder da imagem, que se insinua como aparente apresentação 71

Poder-se-ia argumentar que o encanto que um cientista pode sentir por um sistema racional poderia contrariar o exposto, contudo, o cientista fascina-se por aquilo que constrói, integrado num processo de invenção e descoberta, vivendo por isso uma espécie de encantamento diferente, mais activo, construtivo e racional, logo mais livre e autónomo. 72 Campbell, C citado por Ritzer, G. (2000), El Encanto De Um Mundo Desencantado. Revolucion En Los Médios De Consumo, Barcelona, Ed. Ariel, pág. 81

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do mundo exibido em toda a sua clareza e extensão – realização da tão almejada exteriorização derradeiramente verdadeira. Por outro lado, a utopia da tecnologia, além de se divulgar na «explosão comunicacional», encontra nos objectos tecnológicos o seu maior suporte. Estes parecem confirmar que a tecnologia pode resolver todos os problemas da humanidade, visto que são criadas com esse fim, apresentando funcionalidades que se executam com uma facilidade tal que supera em muito os melhores instrumentos do passado e as mãos humanas mais audazes. Aqui também o encanto é possível. Ambas as utopias são elementos encantadores que utilizam encantos em variados veículos ou suportes. Os alvos são certamente os cidadãos-consumidores. As intenções, essas, são variadas, dependendo do campo que se cruze com as utopias em causa.

*

Terminada a exposição do enquadramento teórico e histórico que subjaz ao esquema conceptual apresentado no início, chega o momento de introduzir o objecto de análise propriamente dito. Para tal, há que fazer uma pequena propedêutica à publicidade de modo a estabelecer bases teóricas de suporte aos objectos analisados. A sua História, as suas características e a sua existência na televisão – suporte dos anúncios a observar – serão os tópicos a expor de seguida.

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2.3. A PUBLICIDADE EM PARTICULAR

História da Publicidade

Assim, perspectivando-a historicamente, é possível dizer que o vestígio mais remoto de um registo publicitário data de há mais de 5000 anos atrás, na Babilónia, através do qual se divulgavam os méritos de um artesão. Posteriormente, sabe-se que no século VI a.C. podia-se testemunhar nos mercados chineses publicidade realizada através de música, que na Roma antiga se redigiam slogans claramente publicitários e que era frequente na Idade Média apregoar-se nas ruas em favor de estabelecimentos comerciais73. No que se refere, particularmente, ao anúncio, os estudiosos indicam que remonta a 1630, em França, na sequência do nascimento de uma instituição idêntica às agências publicitárias actuais. Essa espécie de agência passava por ser um local onde se cruzavam registos de endereços e necessidades que desse modo se satisfaziam mutuamente. Contudo, esse regime, ao ser importado pelos ingleses, tornou-se muito mais mercantil e deixou a dimensão social que o distinguia, comercialização que os EUA radicalizaram por fim e que não deixou de ser acompanhada pela Europa74. Neste percurso, a publicidade, como a entendemos hoje, apenas se realizou com a imprensa, na França de 1836, no jornal Le Presse, onde os folhetins faziam sucesso, alimentados e sugeridos precisamente pelo campo publicitário. É neste período que se inicia o financiamento dos media por parte da publicidade e a relação umbilical que, desde então até hoje, se estabeleceu entre ambos75. Mas é somente nos EUA que se pode encontrar, pela primeira vez, com o nascimento da empresa moderna, uma publicidade que se incorpora no próprio processo de construção do produto. Inserção inerente ao nascimento do marketing, o qual emerge como sector da publicidade que se dedica a um domínio especialmente importante para Adam, Jean-Michel, e Marc Bonhomme (1997), L’Argumentation publicitaire: rhétorique de l’éloge et de la persuasion, Paris, Nathan, pág. 7-19 74 Mattelart, Armand (1996), A Invenção da Comunicação, Lisboa, Inst. Piaget, pág. 355 75 Idem., pág. 344 73

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este trabalho: a sedução e a persuasão dos consumidores. Pode-se remontar o nascimento desta disciplina ao final do século XIX, nos EUA, com a realização do primeiro estudo de mercado76. Um tipo de investigação que se enquadra nas técnicas de persuasão, análise e segmentação social com vista à determinação e consumação de um alvo de consumidores que, a partir dos anos 20, farão da publicidade um importante produto cultural, reflector e indutor de comportamentos – principalmente nos EUA, onde, para além do seu papel ortodoxo de apelador ao consumo, a sua colaboração para a elaboração de condutores culturais que contribuíssem para a coesão social foi importante, visto este ter sido um país onde a chamada alta-cultura teve pouca influência na configuração de uma cultura que nascia, assim, de baixo77. A publicidade foi buscar esta capacidade de intervenção social às experiências adquiridas com as duas Grandes Guerras, nas quais a propaganda desempenhou um papel muitas vezes decisivo, e às trazidas pelos investigadores especialistas em estudos de mercado e de media que se transferiram dos meios académicos para as agências de publicidade78, as quais, a partir dos EUA, ganharam uma grande preponderância do ponto de vista internacional79. Portanto, é possível observar que a publicidade começou por ser uma prática realizada por aqueles que ofereciam um produto mediante meios próprios e sem técnicas de persuasão desenvolvidas; no século XVII, emergiu com intuitos funcionais e sociais, isto é, com objectivos não estritamente comerciais; de seguida, ao ser adoptada nos países anglo-saxónicos, tornou-se progressivamente mais comercial; até resultar numa alta especialização em controlo social com grande influência em países ou culturas onde a tradição não tinha raízes ou começava a perdê-las, como é o caso das sociedades ocidentais. Segundo Stewart Ewen, este contexto americano (e hoje mundial) reflectia um deslocamento da racionalização fordista do trabalho para o consumo e divertimento, ao qual correspondia – e corresponde – uma segmentação social que encontra na sociologia,

76

Idem., pág. 361 Stivers, Richard (2001), A Tecnologia Como Magia, O Triunfo do Irracional, Lisboa, Inst. Piaget, pág. 142 78 Idem., pág. 366 79 Idem., pág. 358-360 77

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por exemplo, um dos seus maiores instrumentos80. A este processo é possível chamar racionalização do quotidiano por via mediática. A racionalização do trabalho, efectuada por Ford, permitiu um aumento da produção a baixo custo e uma consequente subida dos salários dos trabalhadores (aqueles que já podiam comprar o carro que produziam). Esta revolução atingiu, por sua própria tendência, a dimensão do consumo, que assim teve que ser intensificada para manter o escoamento dos produtos fabricados em grande escala. É a essa necessidade que a publicidade e o marketing vêm responder, começando por racionalizar o consumo daquilo que já se produzia sob a batuta da racionalização; isto é, atribuindo papéis aos consumidores e categorizando os seus hábitos e interesses de forma a poder apontá-los como alvos eficientes cujas respostas fossem previsíveis e com eles também previsíveis as produções, evitando-se assim o desperdício e o consequente prejuízo. Esta ampliação da racionalização até ao consumo respondeu igualmente à necessidade de criar novos modos de controlo social depois da crise dos anos 30, expansão acompanhada pelo emergir das tecnologias de comunicação, que viabilizaram os media de massas81. Portanto, o âmbito de actuação da publicidade – depois de estudados os mercados e em consequência das características encontradas – é o dos media. Âmbito mediático relativamente ao qual é possível encontrar um exemplo do seu alto nível de relação com a publicidade no facto de terem sido publicitários, nos EUA, a inventar a soap opera (conhecida, em Portugal, por novela) e a propor a sua difusão na rádio dos anos 30, tendo sido transferida para a televisão nos anos 50, na qual permanece até hoje 82. Género que encontra antecedentes no folhetim, cuja regularidade e segmentação narrativa prendiam o público o suficiente para aumentar as tiragens e assim o interesse dos anunciantes que alimentavam grande parte do orçamento do suporte. Relação que ainda hoje dura. Para explicitar esta ligação, deve-se salientar o que Breton e Proulx distinguem: primeiro, a publicidade é a grande financiadora dos media e, segundo, estes vendem audiências aos anunciantes que se querem publicitar, o que transforma as audiências em

80

Ewen, S. citado por Mattelart, Armand (1996), A Invenção da Comunicação, Lisboa, Inst. Piaget, pág. 364 81 Breton, Philipe e Serge Proulx (1997), A Explosão da Comunicação, Lisboa, Ed. Bizâncio, pág. 128 82 Mattelart, Armand (1996), A Invenção da Comunicação, Lisboa, Inst. Piaget, pág. 363

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autênticas mercadorias83. Esta circularidade entre media e publicidade é garante de sobrevivência de ambos: os media são assim financiados e a publicidade é assim mediatizada.

Algumas características da publicidade

Caracterizando a publicidade, Breton e Proulx sintetizam 3 tipos (sintetizando autores como Marcus Steff, Cadet e Cathelat): primeiro, é possível identificar uma publicidade informativa, a qual se limita a apresentar as características dos produtos, apelando à inteligência dos receptores; segundo, existe uma publicidade mecanicista, baseada em slogans e repetições que procuram criar automatismos mentais de assimilação das mensagens; terceiro, e mais importante neste contexto, os autores distinguem a publicidade sugestiva, que remete para o inconsciente mediante o tácito ou insinuante. A primeira aparenta ser relativamente neutra, não condicionando largamente a subjectividade dos indivíduos, a segunda já parece poder despoletar novas necessidade e comportamentos e a terceira induzir autênticos estilos de vida84. É nestas duas últimas dimensões que se colocam todos os problemas e donde resultam as posições que consideram a publicidade como verdadeira dimensão cultural, um veículo de divulgação comercial que parece ser muito mais do que isso. Estes três tipos de publicidade servirão como categorias de análise a identificar nos anúncios a investigar, no sentido em que quanto maior a dimensão sugestiva maior a o poder duma eventual mensagem encantatória. Portanto, a publicidade não se limita a ser um meio de propagar produtos, ela configura culturalmente esses produtos e a própria difusão com simbologias que se pretendem incorporar no tecido social. Em dialéctica com a sociedade, ela reflecte-a, mas também a influencia85. Assim sendo, a publicidade procura criar ou despertar necessidades e vender estilos de vida, que se adquirem através dos produtos que 83

Breton, Philipe e Serge Proulx (1997), A Explosão da Comunicação, Lisboa, Ed. Bizâncio, pág.137 Idem., pág. 133-134 85 Idem., pág. 135 84

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publicita, consequentemente ela associa a esses produtos a felicidade última e a satisfação derradeira, apresentando o consumo como o caminho para um éden terrestre onde a abundância e a variedade permitem a livre escolha não só de utensílios que resolvem todos os problemas funcionais como de identidades que cobrem os indivíduos de uma aparência construída exogenamente. Por isso, segundo Stivers, os anúncios obedecem, em geral, a uma dupla sequência: a do problema para a solução e a do descontentamento para o contentamento86; isto é, os produtos e serviços anunciados resolvem determinadas problemáticas colocadas no quotidiano, as quais, depois de resolvidas, só podem trazer uma satisfação permanente e de grande alcance existencial. Processo que acompanha e incentiva uma visão utópica da tecnologia. Por isso, estas reflexões de Stivers também servirão para formular categorias de análise que procurarão detectar elementos associáveis à utopia da tecnologia. Fundamentalmente, percebendo se os anúncios em causa apresentam narrativas que mostram a tecnologia como solução que traz felicidade (contentamento) e se essa solução tem mais aspectos existenciais do que funcionais. Por fim, é pertinente afirmar que se veicula mediaticamente um sistema geral de solucionamento de todo o tipo de problemas práticos a que se acrescentam as soluções de alcance existencial. Aparentemente, tudo se vende e compra. Principalmente, na televisão.

Publicidade e televisão Nas palavras de Breton e Proulx, “o destino da publicidade, do consumo e da televisão está interligado”87; a televisão e a publicidade impuseram-se de tal modo às nossas sociedades, principalmente a partir dos anos 60, que, aliadas, constituem uma das centralidades de uma sociedade que parece cada vez mais de consumo – um consumismo vivido e mediatizado. Assim, a televisão transformou-se num palco de estímulos em que 86

Stivers, Richard (2001), A Tecnologia Como Magia, O Triunfo do Irracional, Lisboa, Inst. Piaget, pág. 152 87 Breton, Philipe e Serge Proulx (1997), A Explosão da Comunicação, Lisboa, Ed. Bizâncio, pág.127

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a publicidade não é propriamente marginal – está no cerne económico e simbólico das estruturas e conteúdos televisivos. Sugere-se também a relevância das seguintes palavras de Baudrillard: “a dosagem cuidadosa do discurso de «informação» e do discurso de «consumo» em proveito emocional exclusivo do segundo tende a atribuir à publicidade a função de pano de fundo, de cadeia de signos litânica e, portanto, tranquilizante, onde vêm entremear-se as vicissitudes do mundo”88. Portanto, televisivamente, a publicidade mistura-se com a construção do real elaborada, confundindo-se com o espelho aparente e mercantilizando a programação informativa. A sua permanente associação à felicidade e à perpétua solução colidem com as rupturas mundanas, vencendo-as, contudo, por via da ladainha “tranquilizante” e do seu canto anestesiante. Talvez se possa dizer que, assim, a publicidade acrescenta a uma simulação de mundo com aparência de real (na linha de Baudrillard), produzida pela televisão, uma felicidade artificializada pela hipérbole do consumo como solução existencial É neste contexto que se vendem objectos, entre eles os tecnológicos. Que são, como os outros, sujeitos às estruturas de intensa indução de comportamentos que a priori determinam os caracteres de produção e a cosmetização do que se procura vender. Estabelece-se então uma relação entre tecnologia, encanto e objectos que pode alterar a imagem destes e o modo como os indivíduos paulatinamente se vão relacionando com eles: o encanto torna-se num programa. É neste sentido que este texto prossegue, relacionando a tecnologia e a produção de objectos e desdobrando uma análise que parte da dimensão artística para desembocar na publicidade no intuito de procurar nesta as mesmas ou novas formas de encanto, concentrando no fim as conclusões possíveis.

88

Baudrillard, J. (1975), A Sociedade de Consumo, Lisboa, Ed. 70, pág. 147

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2.4. OBJECTOS ENCANTADORES POR VIA TECNOLÓGICA: DA ARTE À PUBLICIDADE

Como se sabe, destacando, para já, o nível da produção, consideram-se como campos de produção técnica a dimensão artística e a dimensão da tecnociência. Ambas produzem, através da técnica, objectos que, de modos diferentes, encantam. Recordando que o termo arte deriva do latim ars, artis, que significa “maneira de ser ou agir, habilidade natural ou adquirida, conhecimento técnico”89, e de que para os gregos technê significava perícia ou arte90, fácil será perceber por que se considera a arte, antes de mais, uma técnica, um conhecimento de como fazer e produzir coisas. Quanto ao segundo campo referido, o da tecnociência, diz respeito a um estado evolutivo da ciência, de cariz comercial e industrial, que visa sobretudo produzir objectos que correspondam ao tipo de objectos úteis de grande complexidade tecnológica. O outro campo já referido é o comercial, que não parece ser suficientemente autónomo, mas transversal aos outros dois e, possivelmente, aquele que os dinamiza: daí a publicidade como objecto. Este texto move-se no segundo campo referido. Contudo, justifica-se uma abordagem do primeiro por ser necessário de momento particularizar o encanto da tecnologia nos objectos. O que se justifica por esta ser a actividade por excelência onde persiste o objectivo de produzir objectos que provoquem encanto. É a análise deste encanto gerado pelos objectos artísticos que oferece o mote que permite observar a mesma relação “tecnologia-objecto-encanto” noutro tipo de objectos e contextos.

89

VV. AA. (2002), Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Tomo I, Lisboa, Círculo de Leitores, pág. 398 90 Blackburn, Simon (1997), Dicionário de Filosofia, Lisboa, Gradiva, pág. 422

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O encanto da arte tradicional

A aura e as transformações tecnológicas

Começando por analisar a relação entre tecnologia, encanto e objecto no campo artístico tradicional, elege-se o olhar de Walter Benjamin como destaque compreensivo desta temática. Mas antes de avançar, há que salientar que este tipo de encanto – o artístico – difere do encanto clássico no que respeita ao processo de encanto onde se insere. Aqui o encantador não tem intenções persuasivas, mas apenas artísticas. De qualquer maneira, há um encanto constituído de um modo que parece fecundo para as transposições que se ensaiam. A este respeito o dedicou o ensaio “A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica”. Este pequeno texto diz-nos que o aparecimento dos meios técnicos de reprodução em grande escala fez o objecto artístico perder aquilo a que o autor chama de aura. Os meios que ele refere são a fotografia e o cinema. A aura designa a autenticidade do objecto artístico, o seu «aqui e agora», a sua singularidade espacial e temporal absolutas, “a sua existência única no lugar em que se encontra”91 e “a manifestação única de uma lonjura”92; ou seja, a subsistência de um original primordial relativamente a qualquer cópia e a sua presença única como marca de um passado comunicante com o presente de forma unidireccional: vinda de um só tempo e de uma só sequência de lugares. Segundo o autor, a autenticidade que emana duma coisa “é a soma de tudo o que desde a sua origem nela é transmissível, desde a sua duração material ao seu testemunho histórico”93; assim, o objecto apresenta singularidades, tais como modificações ocorridas na sua estrutura física ou as relações de propriedade exclusivas realizadas ao longo da sua história, que formam a referida aura, oferecendo-lhe atributos que provocam encanto, devido a uma certa ausência relativa, um desconhecido que vem de longe e que, sem se revelar por completo, provoca a atracção das coisas que se insinuam, como uma porta Benjamin, Walter (1992), “A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica”, em Benjamin, Walter, Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Lisboa, Relógio d’Água, pág. 77 92 Idem., pp. 81 93 Idem., pp. 79 91

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entreaberta, sustentando por isso numa certa tensão que faz gravitar o humano em seu torno. Ora, a fotografia e o cinema quebram esta ligação do objecto a uma tradição, a um só tempo e a uma só sequência de lugares. Ambos não só reproduzem como tornam inexistente o original. Principalmente o cinema, onde a reprodução não acontece por vias externas à sua natureza, mas sim por vias internas – ela é sua condição. Através desta e da massificação consequente, a obra dilui a sua autenticidade por fragmentos espaciais, onde o que manifesta de único já não se deve a ser única, em que as marcas que produzem a aura benjaminiana já não são específicas da obra mas apenas de uma das suas cópias ou constituintes. Além deste factor, também contribui para a quebra da aura o equipamento que envolve a produção cinematográfica. Ao contrário do teatro, em que o público tem uma relação directa com os actores, no cinema existe um meio que se entrepõe entre ambos. Mas não é simplesmente um meio, uma via de comunicação, ele enforma e condiciona de raiz o trabalho dos actores, que vêem a sua imagem ser roubada e montada muito para além do seu poder e da sua carne. Assim a aura do actor perde-se porque perde-se a sua presença, o seu ser autêntico, a sua manifestação imanente. A aparelhagem adquire uma primazia nunca antes vista. Isto explica, segundo Benjamin, a existência e a alimentação permanente da personalidade estrelar do actor fora do filme. Deste pondo de vista, o star sistem não é mais que a produção de um encanto que visa substituir a quebra de um outro. Por fim, o autor afirma que, ainda em oposição ao teatro, o cinema se realiza de um modo que possibilita a ocultação total dos sinais que permitem detectar a evidência da ilusão montada. No teatro é patente que tudo constrói uma ilusão, esta é denunciada permanentemente. No cinema não. A aparelhagem, além de produzir a ilusão inerente à arte ficcional, ou simplesmente à arte, cria a ilusão da sua ausência. Isto não quer dizer que isso engane, mas de algum modo faz desaparecer a autenticidade que provoca o esforço de simbolização que se pede a um espectador de teatro ao sugerir-se-lhe que imagine que o palco é um campo de batalha ou uma divisão doméstica. Essa presença inalienável do real perde-se. Projecta-se um novo real. Estas transformações correspondem a uma determinada condição social característica da época de Benjamin e da nossa. Aliás, mais da nossa que da dele.

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Segundo o autor, ela reside no desejo de “aproximar as coisas espacial e humanamente”94; ou seja, trazer a imagem do mundo até aos sujeitos, representar os objectos e os indivíduos e distribuir em massa as suas imagens, como que representando o mundo espalhando-o por si mesmo, o que denota na arte a substituição do valor de culto pelo de exposição. O valor como que se transfere do “ser” para o “ser visto”. Entra-se na dimensão comunicacional e na ponderação da importância que as tecnologias mais complexas na sua vertente comunicacional tiveram no fomento de novos tipos de encanto. Deste ponto de vista, os meios de comunicação em massa e a mediatização proporcionada mais uma vez pela tecnologia constroem uma nova realidade que vem alterar as categorias usadas para pensar a realidade primeira. Mas antes disso há que observar outro ponto de vista sobre a arte que será fecundo para conjecturar a transversalidade do encanto.

O encanto da técnica na arte

Portanto, a visão de Banjamin não é única. É importante acrescentar ao seu ponto de vista o olhar do antropólogo Alfred Gell. Este tem uma visão mais ampla do poder encantatório da técnica na arte, visto ser possível, a partir da sua leitura, aliar a arte tradicional e a que surge com as novas tecnologias numa só visão integradora e distinta da visão estritamente focalizada no que as novas tecnologias fazem o objecto artístico perder em relação às tradicionais. Gell, com o seu olhar antropológico, chama a atenção para o facto de a arte, enquanto tecnologia de encantamento, enfeitiçar os receptores devido às propriedades encantatórias inerentes à tecnologia e não propriamente ao objecto isolado do processo que o precede. De um modo notável, ele assinala que o encanto que o receptor sente pelo objecto artístico advém da tomada de consciência da assimetria existente entre as capacidades técnicas do artistas e as suas, o que faz com que o objecto, enquanto

Benjamin, Walter (1992), “A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica”, em Benjamin, Walter, Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Lisboa, Relógio d’Água, pág. 81 94

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resultado acabado da uma técnica complexa e ignorada e de um trabalho que o próprio não teve, apareça como encantador, aparição de um esforço desconhecido95. Esta perspectiva revela um encanto diferente daquele que é apontado por Benjamin. Contudo, é uma perspectiva muito mais alargada e que será necessária para a análise de outras dimensões encantatórias da técnica. Ela apresenta a técnica enquanto produtora de encanto em grande medida pelo simples facto de ser técnica conhecida e trabalhada opondo-se a técnica desconhecida e não trabalhada. Benjamin, diferentemente, encontra o encanto da aura não no processo técnico que antecede um quadro ou uma escultura mas na obra em si mesma enquanto objecto acabado. Neste caso, também a fotografia e o cinema detêm encanto, mas um encanto específico e diferente do encanto da aura.

*

Portanto, recolhe-se em Benjamin e Gell a conceptualidade que constituirá o olhar sobre o objecto de análise, sabendo que o ponto de partida, a arte, permite uma flexibilidade suficiente para que os conceitos em causa se apliquem a outras dimensões onde a relação tecnologia-objecto-encanto também se verifica e se transmuta em novos aspectos já anunciados nas mudanças tecnológicas ocorridas no campo artístico.

Antes de avançar no sentido proposto, julga-se útil fazer um ponto de situação quanto às reflexões dos autores referidos, visto o núcleo das mesmas, tal como outros autores atrás indicados, vir a servir de intuito analítico sobre os anúncios publicitários.

Assim sendo, Benjamin observou na arte tradicional um efeito encantado da tecnologia sobre o objecto designado por aura, que se caracteriza por salientar a dimensão única dum original, a sua singularidade espacial e temporal e a autenticidade que se manifesta na sua presença efectiva. Isto do ponto de vista explícito. Implicitamente, julga-se possível relacionar a aura com a noção de encanto devido a dois

Gell, Alfred (1999), “The Technology of Enchantment and the Enchantment of Technology”, em Gell, Alfred, The Art of Anthropology, essays and diagrams, Londres, The Athlone Press, pág. 159 95

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conceitos: o de oculto e o de poder. A aura possui ambos. Senão vejamos: possui oculto na medida em que a lonjura que emana é um dos factores de atracção, o que de longe se transmite cria em seu torno uma sombra enigmática correspondente àquele imenso que ficou por revelar e que atrai; e detém poder porque, embora a lonjura esconda, algo se revela de longínquo no objecto – a tal presença da História – que, como possibilidade, está fora do alcance do fruidor, só o objecto acede verdadeiramente a esse passado. O poder é isso mesmo, uma possibilidade. E é maior que o fruidor quando este não possui essa possibilidade. A aura, assim, vive nesta dicotomia: por um lado vela, por outro desvela, por uma lado é oculta, por outro é poder fora do alcance do fruidor. E é certo que o oculto (o passado que se esconde em torno da revelação) participa como poder da possibilidade (o que se revela como clareira no meio do oculto). Ora, sucintamente, o desenvolvimento tecnológico representado pela fotografia e pelo cinema provocou: 1) a eliminação da singularidade do original (que lhe permitia aceder a um lugar e a um tempo passado) pela reprodução que o multiplicou no espaço; 2) a eliminação da autenticidade (que trazia gestos próprios e por isso mais verdadeiros) pela presença aparente do objecto; e 3) a diminuição dos aspectos simbólicos (que davam maior liberdade interpretativa ao fruidor) pela diluição da aparelhagem por trás da imagem.

Quanto a Gell, destaca-se o seguinte: segundo ele, a tecnologia provoca encanto através do objecto pelo vestígio que deixa de si mesma, isto é, valoriza-se o processo que subjaz ao resultado e a disparidade entre o conhecimento do artista e o do leigo que faz este admirar, encantado, o objecto tão longe do seu poder. Assim, também ele salientou um encanto participante da noção já apresentada no que diz respeito aos conceitos de oculto e de poder. Há oculto porque o desconhecimento relativamente ao processo técnico causa encanto no fruidor devido à assimetria do seu conhecimento com o do artista. Há poder porque existe a afirmação da superioridade do conhecimento do artista em relação ao do fruidor – tudo o que o artista consegue são possibilidades estranhas àquele que apenas frui.

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Terminadas estas referências de apoio, há que voltar ao caminho que levava o texto no sentido das tecnologias complexas de comunicação. Pois, considerando que o objecto de análise do presente texto é a publicidade televisiva, e que este se faz pelos meios tecnológicos de comunicação herdeiros das tecnologias que Benjamin diz transformarem a arte tradicional, há que perceber que outro encanto nasce dessa metamorfose, sabendo que o mesmo participará e determinará os anúncios a analisar.

O encanto da imagem tecnológica

Continuando no campo artístico, mas na tentativa de sair dele, é possível constatar emergir do texto de Benjamin um encanto específico de tecnologias que se integram no campo comunicacional. Vinculando aura a um sentido mais lato, designado como encanto, a categoria englobante, segue-se a sugestão de António Cerveira Pinto quando afirma, contra a irremediável queda de toda a aura, que “também o autor, na sua qualidade de estrela, e a obra, enquanto êxito de vendas e êxito de críticas, determinam um lugar novo para a manifestação da aura”96, o que significa que o encanto pelas obras, pelos objectos criados pelas novas técnicas artísticas, nomeadamente pelo cinema e pela fotografia, não desapareceu, apenas se reconstruiu sob novas condições: as de uma sociedade muito mais mediatizada e tecnológica. Estas tecnologias produzem a aparição, que resulta, no caso do artista, em ser conhecido e desse modo estar em todo o lado, desenvolvendo-se uma espécie de ubiquidade, valorizando-se muito mais o indivíduo, a sua personalidade reificada e a assinatura – potência tão intensamente explorada pela arte pop. Quanto ao objecto, a sua aparição também é produzida pela imagem divulgada (muitas vezes uma imagem de uma imagem) acontecendo com ele o que também pode acontecer com o artista (tal como Benjamin observou): a sua substituição – como nota Baudrillard, o objecto deixa de preceder veridicamente a imagem97.

96 97

Pinto, António Cerveira (1989), O Lugar da Arte, Lisboa, Quetzal Baudrillard, J., (1975), A Sociedade de Consumo, Lisboa, Ed. 70, pág. 138

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E a tecnologia, como construtora e integradora deste sistema, está mais presente, configurando todo o processo na forma de comunicação e fazendo da imagem (aquela que escapa à presença autêntica da aura de Benjamin) o corpo de um novo encanto mais envolvente do que presente. O que é inerente ao processo comunicativo ganha aqui outra relevância, jogandose muito mais com as noções de actualidade, por um lado, e de ícone, por outro: o artista actualiza o quadro icónico da sociedade obedecendo aos processos mediáticos. A partir daqui, a produção artística vive sob as leis inerentes a uma sociedade organizada em redes de comunicação como se delas não existisse um exterior98. Opta-se por chamar icónico a este encanto, por uma dupla razão inerente ao próprio significado do termo ícone. De entre os vários sentidos atribuídos a este termo, dois são fecundos analiticamente: um, no sentido figurado, é “pessoa ou coisa emblemática do seu tempo, do seu grupo, de um modo de agir ou pensar”, outro, do ponto de vista semiótico, diz respeito a “signo que apresenta uma relação de semelhança ou analogia com o objecto que representa (como uma fotografia, uma estátua ou um desenho figurativo) ”99. O sentido sagrado que também lhe é atribuído não será tido em conta. Contudo, muitas vezes, esse sentido aplicar-se-ia convenientemente, mesmo a dimensões seculares. De qualquer modo, os sentidos referidos captam uma dupla referência: a de valor e a de representação100. Ambas caminham de mãos dadas como encantos da tecnologia, a qual produz representações axiológicas que nos circundam, procurando representar os objectos e as pessoas, reificando as imagens e apresentando-as como exemplos indutores de práticas. Dito isto, como se prometeu, convém voltar a Benjamin de modo a perceber um pouco melhor esta iconização. Como foi mencionado, o autor alemão deixa em aberto, no seu texto, possibilidades para a consideração deste novo encanto comunicacional. Tal está latente na referência ao cinema como compensador da queda da aura original, processo que se concretiza, nas suas palavras, “com uma construção artística da personality fora do estúdio. O culto da estrela, promovido pelo capital cinematográfico, Cauquelin, Anne (1997), A Arte Contemporânea, Porto, RÉS – Editora AA.VV. (2003), Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Tomo IV, Lisboa, Círculo de Leitores, pág. 2026 100 Representação também assinalada por Peirce. 98 99

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conserva a magia da personalidade que, há muito, se reduz à magia pútrida do seu carácter mercantil”101. Embora com um juízo negativo, devido à também encantadora dimensão mercantil de todo este novo processo técnico de produção de imagem, Benjamin reconhece a existência de um poder mediático, embora veja nele mais um esforço de presentificação do autêntico do que um encanto provocado pelo ícone. Contudo, o ícone também pretende ser isso, valendo-se da ilusão de que o consegue. Assim, aquilo que Benjamin diz que o cinema e a fotografia furtam à aura detém em si potenciais de encanto: 1) a eliminação da singularidade do original detém o poder de aparecer simultaneamente em vários locais – o poder da ubiquidade; 2) a eliminação da autenticidade consegue a presentificação do objecto; e 3) a diminuição dos aspectos simbólicos permite um grande poder de simulação. Nisto, há, sem dúvida, um novo encanto. Estas reflexões de Benjamin são articuláveis com as de Vilém Flusser. Este autor denuncia a centralidade da imagem técnica (em oposição à tradicional) na actualidade e a consequente idolatria que em seu torno se desenvolve. Sendo a imagem algo que se interpõe entre o Homem e o mundo e exigindo uma interpretação circular – ao contrário da linearidade da interpretação de um texto –, aparece com efeitos mágicos por via da reversibilidade e da representação realista que permite102. Quanto à reversibilidade, o autor exemplifica: “no tempo linear, o nascer do sol é a causa do canto do galo, no circular, o canto do galo dá significado ao nascer do sol, e este dá significado ao canto do galo”103; isto é, o olhar do interpretador pode vaguear pela imagem obedecendo à ordem que quiser, estabelecendo conexões aleatórias e livres, mobilidade interpretativa que dilui a rigidez da linearidade num encanto capaz de recompor o real. No que se refere à representatividade, é possível dizer que, se a imagem tradicional era uma representação do mundo cujo teor simbólico era evidente – à semelhança da evidência da ilusão montada no teatro, referida por Benjamin – com a Benjamin, Walter (1992), “A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica”, em Benjamin, Walter, Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Lisboa, Relógio d’Água, pág. 95 102 Embora Flusser se refira ao encanto da imagem como mágico, aqui prefere-se atribuir-lhe a designação de icónico deixando para outra dimensão a designação de mágico por parecer mais próxima da definição tradicional de magia. 103 Flusser, Vilém (1985), Filosofia da Caixa Preta, Ensaios para uma futura filosofia da fotografia, S. Paulo, Ed. Hucitec, pág. 7 101

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imagem técnica – aquela que é produzida por aparelhos – essa ilusão deixa de ser evidente, o que também encontra concordância no texto de Benjamin quando ele menciona o poder que o cinema revela na simulação da ausência da aparelhagem, poder também presente na televisão. O autor refere mesmo que a imagem técnica tem a capacidade de parecer uma janela para o mundo em lugar de uma imagem ou representação dele, enfoque que aproxima o autor das análises que vêem na televisão um simulador do real. Em termos de transversalidade com o encanto anterior, podem-se encontrar dois elementos comuns, também comuns à noção clássica de encanto: o oculto e o poder. Oculto, porque, tal como já Benjamin adivinhava e Flusser confirma, o modo como a aparelhagem desaparece por trás da imagem inibe a evidência da ilusão, fazendo com que a aparelhagem que produz a imagem (a câmara de filmar ou de fotografar, não o projector ou a televisão) não acompanhe essa mesma imagem, ocultada que está na aparente manifestação espontânea. Poder, porque essa pseudo-presença concretiza-se num campo de possibilidades impossíveis para o comum dos espectadores, a presença sugerida é claramente veiculada por tecnologias superlativas relativamente ao humano, exercendo assim um poder sobre este e para lá deste. Todavia, a estes caracteres acrescenta-se a ubiquidade da imagem e a tal circularidade da interpretação identificada por Flusser. Ambas criam a presença da distância num lugar aberto à interpretação e, sem dúvida, encantador. Na sequência desta ampliação do encanto da tecnologia, pretende-se, claro, deslocar a análise do campo artístico para o comercial (onde se encontra a publicidade), ponte também para a tecnociência (lugar dos objectos tecnológicos úteis). Este encanto icónico, como é notório, não acontece unicamente na arte; como elemento da rede comunicacional ele cristaliza-se em todos os locais-globais, ou sectores-globais, da sociedade onde a referida rede cruza os seus tentáculos. Assim, do campo artístico para o campo comercial o passo é curto, verificando-se um cruzamento entre ambos em Andy Warhol, embora sob uma hegemonia artística. Transgredindo um pouco mais para o campo comercial, temos o design, e, acentuando o campo comercial por completo, temos a publicidade – o campo central deste trabalho. A comunicação determina estas dimensões transversalmente.

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Com o emergir das imagens das tecnologias da comunicação, a sôfrega necessidade de trazer todos os objectos do mundo ao olhar do sujeito torna a experiência deste predominantemente imagética, envolvendo-o numa “imagoesfera audiovisual”104 que, como se disse, substitui o objecto pela imagem, retirando àquele o que se pode apelidar de consistência ontológica, transformando a sua imanência numa projecção de luz ou numa sombra – tal o efeito da representação como valor, substituta da origem como valor: uma construção mediática que aparenta ser equivalente à experiência directa105, idêntica à rugosidade do real. A televisão representa este sistema e é herdeira dos encantos do cinema e da fotografia. Em termos das características da imagem técnica a experiência é muito idêntica. Uma delas é, inclusive, referida por autores tão dispares como Castells e Baudrillard: o poder de simulação do real que a televisão detém é o mesmo que presentifica o objecto e dilui as exigências de simbolização. Portanto, hoje em dia, em comparação com o cinema, a diferença talvez seja maioritariamente ao nível do tamanho e pouco mais. Daí que se considere viável a aplicação à televisão dos conceitos nascentes das análise de Benjamin sobre a fotografia e o cinema.

Assim, o encanto icónico não é mais do que o produto da tecnologia que sustenta a utopia da comunicação, pois ele apresenta-se como ideal de transparência, mercador da realidade, imagem da pseudo-verdade que ilumina um Homem que tudo resolve pela força da comunicação. Como tal, é possível dizer que este encanto faz parte da publicidade. Pois, sendo esta um campo da comunicação que utiliza as tecnologias em causa, procurando particularmente seduzir, fácil será perceber que os encantos inerentes são um instrumento que, a priori, só a podem beneficiar. Para vender produtos, a publicidade recorre a todos os meios. Resta saber se a este encanto lhe acrescenta mais algum. Por agora, julga-se adequando introduzir alguns dados que servem de compreensão contextual da publicidade a analisar. Para tal, há que considerar a importância na sociedade contemporânea do tipo de objecto publicitado e a sua divulgação televisiva. Garcia, J.L. (2002), “O fogo e a cultura pan-mediática contemporânea”, Media & Jornalismo (nº1), pág. 129 105 Breton, Philipe (1994), A Utopia da Comunicação, Lisboa, Inst. Piaget, pág. 131/132 104

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Assim, tal como o objecto artístico e a imagem técnica, o objecto útil tem o seu papel na sociedade contemporânea. Contudo, tem as suas especificidades. Embora menos valorizado pelas elites, é, quantitativamente, mais presente que o objecto artístico. E, talvez, massivamente mais valorizado. Mas não se pode dizer o mesmo quando o comparamos com a imagem técnica. Esta multiplica-se a seu par. Aliás, multiplica-o em termos imagéticos e incentiva a sua presença em termos materiais. Quem o faz? A publicidade, claro. Para já, particularmente, tomemos algumas notas acerca do seu estatuto.

A técnica, a produção de objectos úteis e o seu valor na contemporaneidade

Em termos recentes, é no século XIX que se assiste à grande proliferação de objectos úteis, impulsionada por uma avaliação do status quo burguês em função do número de objectos possuídos. Todavia, é a partir dos anos 20 do século XX que se determina a curta durabilidade dos mesmos e o seu consentâneo aumento, consequência da necessidade de alimentar uma sociedade de consumo sempre faminta de substituir e acumular os ditos106. Daí a sua seriação e profusão107, as quais possibilitam a variedade que obriga à variação e a quantidade que impõe o amontoamento, ambas causas de mais consumo. Processo dirigido pelo desejo108 de status quo e diferenciação social que se alcançam com a sua aquisição, os quais são rodeados de um conjunto de significações imanentes a um sistema de vários – uma rede dinamizadora do consumo que assim reproduz as hierarquias sociais, situação tão bem salientada por Baudrillard109. Estes objectos tecnológicos resultam de processos tecnológicos de produção, redundância (a já referida tautologia tecnológica) que faz recordar a tese de Ellul segundo a qual vivemos num «meio» tecnológico mais imediato do que a natureza ou do que a organização social. Estes objectos incorporam a utopia da tecnologia ao veicularem nas suas funcionalidades o sucesso e a capacidade infinita desta para solucionar todos os 106

Moles, Abraham (1973), Rumos de Uma Cultura Tecnológica, S. Paulo, Ed. Perspectiva, pág. 207 Baudrillard, J. (1975), A Sociedade de Consumo, Lisboa, Ed. 70, pág. 15 108 Kubler, George (1998), A Forma do Tempo, Observações sobre a história dos objectos, Lisboa, Ed. Veja, pág. 13 109 Baudrillard, J. (1975), A Sociedade de Consumo, Lisboa, Ed. 70, pág. 17 e 62 107

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problemas. Objectos que também existem na comunicação. Como afirma Baudrillard, a maquinaria material da comunicação também se integra na categoria de objecto110, um objecto que comunica, reflectindo na sua função a comunicação como valor (o telemóvel é o melhor exemplo). Ora, um objecto deste tipo pode sofrer vários tipos de valorização, os quais correspondem a diferentes perspectivas sobre os mesmos que vão no sentido de outros tantos objectivos. A publicidade, tendo como objectivo específico vender, provavelmente atribui uma panorâmica larga da valorização do objecto, dependendo do mesmo e do público-alvo. Quem desenvolve este tema é Floch, inspirado em Greimas. Floch sugere a existência de quatro tipos de valorização do objecto: a prática, a crítica, a lúdica e a utópica. A primeira valoriza-o pela sua utilidade, a segunda pela informação, a terceira pelo divertimento que proporciona e a última por conseguir transportar o humano para o lugar impossível de todas as suas realizações111. Quanto a Greimas, divide a valorização do objecto em valorizações de uso e de base, ambas se dão no mesmo objecto como contrários relacionais. A primeira atribui-lhe um valor funcional, como utensílio; a segunda dá-lhe um valor que concerne à identidade do seu proprietário, ao seu estatuto social, ao seu estilo de vida; enfim, um valor que integra o objecto na personalidade e na plenitude existencial do seu possuidor (algo que inspirou Baudrillard). Floch introduz esta distinção nos quatro tipos de valorização por si referidos: a) a prática, na qual o valor de uso se sobrepõe ao de base; b) a crítica, que nega completamente os valores de base em prol de uma visão informativa do objecto; c) a lúdica, que nega totalmente os valores utilitários; e d) a utópica, onde os valores de base se sobrepõem aos de uso.112 Portanto, a prática e a crítica valorizam o uso, a lúdica e a utópica a personalidade e a existência daquele que usa. Estas diferentes valorizações aplicam-se ao relacionamento dos indivíduos com cada objecto útil. Resta saber as valorizações que a publicidade atribui a cada objecto publicitado.

110

Idem, pág. 15 Floch, Jean-Marie (1993), Semiótica, marketing y comunicación, Bajo los signos, las estratégias, Barcelona, Ed. Paidos, pág. 145/148 112 Idem. 111

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Automóvel e televisão

Escolheram-se para análise anúncios televisivos a automóveis. Porquê? Porque o automóvel é, sem dúvida, um dos objectos principais do nosso quotidiano. Para apoiar esta ideia, julga-se oportuno citar um trecho de Barthes que parece, por si só, revelador da pertinência do objecto de estudo escolhido: “creio – diz o autor francês – que o automóvel é hoje o equivalente bastante exacto das grandes catedrais góticas: quero dizer, uma criação que faz época, concebida com paixão por artistas desconhecidos, consumida na sua imagem, senão no seu uso, por um povo inteiro, que através dela se apropria de um objecto perfeitamente mágico”113. Isto é, o automóvel ocupa um lugar central na nossa cultura, sendo não só um utensílio mas também uma imagem construída por especialistas que visam criar um produto que seja consumido e povoador do espaço humano. É também um produto cultural, portanto. Embora a sua imagem seja bastante visível, a sua preponderância pode passar despercebida. Provavelmente, isso acontece porque tudo aquilo que se torna natural nos parece indiferente. O automóvel tornou-se tão vulgar que se mistura no nosso quotidiano sem destaque aparente, mas com importância cultural, e até ideológica, vectorial. Serve, inclusive, de metáfora para a modernidade114. O alcance da sua relevância está não só na sua dimensão cultural como também na funcional. Segundo Daniel Miller, o automóvel é, hoje em dia, o grande mediador do Homem com o mundo; ou seja, a forma privilegiada pela qual o ser humano contacta com o mundo, deslocando-se caracteristicamente moldado por determinadas condições, é através deste objecto tecnológico e da sua principal função: a locomoção. A acrescentar a estas saliências do automóvel contemporâneo, temos a importância económica e histórica que a produção do modelo T de Ford teve para o século XX, algo que nos moldou a níveis que ultrapassam a simples consideração do automóvel como objecto funcional. Por estas razões, sendo necessário eleger um objecto relevante do ponto de vista cultural, funcional e económico, pareceu que esta seria uma escolha pertinente.

113

Barthes, Roland (1978), Mitologias, Lisboa, Ed. 70, pág. 139 Thoms, David, Len Holden e Tim Claydon (1998), “Introdução”, em Thoms, David, Len Holden e Tim Claydon, (org.), The Motor Car and Popular Culture in the 20th Century, Aldershot, Ashgate, pág. 1 114

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Além destes aspectos, o automóvel, sendo um objecto, é uma tecnologia particularmente complexa. Portanto, a sequência causal que possibilita a sua função é estranha a um olhar externo e leigo e para ser produzido exige um grau de conhecimento específico de grande complexidade. Tendo sido estas as características delimitadoras do tipo de objecto que interessa estipuladas anteriormente, o automóvel parece ser uma escolha rigorosa. Ora, interessa o automóvel na TV. Segundo Jean-Marie Floch, é na televisão que o automóvel encontra o seu meio de divulgação privilegiado, a qual, em alguns casos, foi, de um modo verificado, decisiva para o aumento das vendas. O autor defende ainda que “o carro e a televisão são os dois grandes objectos do século XX”115. O que, julga-se, não parece muito polémico. Como já foi visto, a televisão é o media predominante e aquele que mais influência exerce. O automóvel, por sua vez, aparenta ser tão presente e naturalizado como a televisão.

Objectivos da análise

Concomitantemente, pretende-se observar anúncios televisivos a automóveis com vista a verificar a existência ou não dos velhos encantos identificados por Benjamin e Gell, agora num olhar sobre um campo não artístico, atendendo-se à possibilidade da emergência de novas categorias de encantos, procurando descobrir uma ambiência que veicule uma utopia da tecnologia e investigando a existência de outros tipos de encanto relacionáveis com outros autores. Procurar-se-á ainda classificar os anúncios observados dentro das categorias temáticas publicitárias que se podem encontrar na literatura sobre o tema. Julga-se que esta análise será útil porque essa tipologia poderá aliar-se a formas encantatórias incrustadas no objecto anunciado, incentivando estruturalmente os seus poderes e efeitos. Não se categorizará a utopia da comunicação por ela, em parte, já estar implícita no objecto de análise escolhido. A imagem como revelação, ou presentificação, é, por si só,

115

Floch, Jean-Marie (1993), Semiótica, marketing y comunicación, Bajo los signos, las estratégias, Barcelona, Ed. Paidos, pág. 159

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um dos vectores comunicacionais que podem alimentar uma utopia, sustentada neste caso por um encanto icónico. Este acontece mais ao nível da estrutura tecnológica do que dos conteúdos mediados. Neste sentido, analisados os vectores dessa estrutura que provocam potencialmente o encanto icónico adivinhado por Benjamin, resta subentende-los nos conteúdos analisados e considerá-los determinantes destes.

Objectos de análise – Citroën na televisão dos anos 80

Os anúncios que se decidiu expor ao quadro analítico desenvolvido são alguns dos que fizeram a publicidade televisiva aos automóveis da marca Citroën no fim da segunda metade do século XX; mais precisamente, nos anos 80. Esta escolha não se deveu somente à relevância histórica e comercial da Citroën, mas efectivamente à importância que algumas das suas campanhas alcançaram nesses anos, não só pelos resultados comerciais comprovados, como pela inovadora forma de publicitar introduzida, comandada, nomeadamente, por R. Raynal116 e outros. A Citroën, criada em 1906 pelo francês André Citroën (1878-1935), soube sempre publicitar-se com originalidade suficiente para vincar na memória colectiva muitas das imagens que criou. Naturalmente, nem sempre utilizou a televisão como meio de se publicitar. Antes do surgimento deste media, já em 1919, André Citroën, “um fervoroso crente na publicidade”117, utilizava páginas dos jornais para divulgar o Torpedo como o primeiro carro francês produzido em massa, isto é, inspirado no modelo de Taylor, aplicado por Ford. Contudo, foi a partir de 1921 que se assistiu a um incremento do investimento na publicidade, pela mão da agência Wallace and Draeger, que comprou páginas publicitárias em todos os diários, imprimindo brochuras e livros para distribuir por potenciais clientes, o que resultou, inclusive, na criação de uma editora particular da empresa. Na sequência deste empenho, ao longo do século XX, esta foi uma empresa que produziu alguma da publicidade que haveria de povoar o espectro de clássicos da área.

116

Floch, Jean-Marie (1993), Semiótica, marketing y comunicación, Bajo los signos, las estratégias, Barcelona, Ed. Paidos, pág. 157 117 www.museedelapub.org; Citroën – the company’s history

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Passam-se a expor alguns deles: em 1922, um avião desenhou a fumo no céu o nome da marca; em 1925, inventando um novo suporte publicitário, e empresa colocou na Torre Eiffel o nome “Citroën” em letras luminosas gigantes; e, depois de 60 anos de publicidade talvez menos relevante, nos anos 80, a marca surgiu com uma série de anúncios televisivos que se inscreveram originalmente no mundo da publicidade: o que promovia o modelo Visa GTI, em 1982, lançando-o de um porta-aviões; aquele em que um conjunto de cavalos forma, em corrida alinhada, o símbolo da marca, no ano de 1985; o que publicita o CX2 através de uma Grance Jone’s “selvaticamente” sedutora; sem esquecer aquele, de 1987, em que um AX circula pela muralha da China. Enfim, existe uma série de anúncios desta época, de estilo variado, cujo conteúdo marcou a História da publicidade, e que, por isso, mereceram atenção118. Portanto, devido à importância histórica da marca Citroën dos pontos de vista económico (uma das maiores empresas de França e do mundo), social (tem uma efectiva influência no carácter da sociedade francesa e europeia), cultural (é um símbolo cultural dos nossos dias, pertencendo ao imaginário colectivo a diversos níveis, sendo, inclusive, uma das imagens de França) e publicitário (é uma marca cujos conceitos publicitários desenvolvidos fizeram história e escola na área), parece uma escolha acertada com vista a avaliar anúncios com relevância e efeito. Para terminar, resta indicar os anúncios televisivos realizados pela marca no período já mencionado e que serão alvo dos estudos propostos:

ANO

MODE LOS

1982

Visa GTI

118

DESCRIÇÃO Automóvel a catapultar-se de um porta-aviões: o modelo Visa GTI arranca num cenário fechado e pára movendo-se em pião, segue-se um diálogo entre o que aparentam ser três pilotos de avião e o dono do automóvel; a conversa mostra que o dono do automóvel prepara-se para uma proeza, revelada imediatamente quando se percebe que o cenário é um porta-aviões e a façanha o lançamento em velocidade – seguindo um avião a jacto – do automóvel na direcção do mar; antes de mergulhar neste, o condutor ainda tem tempo de se mostrar vitorioso ao planar algum tempo paralelamente ao avião; seguidamente, claro, a queda é inevitável, e com algum aparato; todavia, o automóvel é emergido por um submarino, terminando o anúncio com esta imagem,

Idem.

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1983

BX 16 válvul as

1985

A marca

1986

CX2

1987

AX

o símbolo da marca, do carro e uma voz dizendo “VISA GTI, o GTI selvagem!”. Automóvel atravessa o deserto: o cenário é um deserto que aparece de início em vários planos; na cena seguinte visualiza-se o mesmo deserto a partir do interior dum automóvel (sem que se veja qualquer elemento do mesmo) que nele se desloca a grande velocidade; então, uma voz alude superlativamente ao veículo, além de fazer algumas referências técnicas; ao mesmo tempo que irrompe a voz, a perspectiva muda para o exterior do automóvel e para as marcas de pneus que este deixa no chão sem que a sua materialidade seja visível; à medida que a música aumenta de tom e as marcas revelam velocidade e caminho percorrido, eis que aparece uma jovem condutora loira gritando “Amo” e o carro em toda a sua fisionomia visível avançando pelo deserto ao som de um refrão com a mesma palavra e de novas referência técnicas por parte da mesma voz feminina anterior; o anúncio termina com um novo desaparecimento do automóvel ao passar por cima de uma palmeira deixando apenas as marcas dos pneus em torno desta; a este final juntase o símbolo da marca e a referência do veículo. A marca em si - cavalos formando o símbolo da marca no deserto: os primeiros planos apresentam uma cidade deserta, seguidos dum que mostra uma garagem de prédio a abrir de onde sai uma manada de cavalos que em conjunto percorrem as ruas vazias, atravessam uma ponte e abandonam a cidade ao som de uma música onde desponta uma voz dizendo o mesmo “Amo!” do anúncio anterior; penetrando em campo aberto e de terra batida, os cavalos formam, vistos aereamente, os dois V’s invertidos que simbolizam a marca; o anúncio termina com esta imagem e uma voz que diz “1985, Os Cavalos Selvagens, Força Citrën!” CX2 - participação de Grace Jones: uma réplica gigante e mecânica da cabeça de Grace Jones emerge da superfície de um deserto, a sua boca abre-se e o CX2 sai do seu interior a grande velocidade; dentro dele, a verdadeira Grace Jones, faz com ele um pião antes de parar, não sem antes deixar um rasto círculo na terra desértica, abre o vidro e vê-se o seu rosto no espelho retrovisor lateral, arrancando de novo em rapidez e intensidade; em andamento, um plano transversal mostra a actriz e modelo olhando para a câmara cantando o mesmo refrão dos anúncios anteriores; por fim, volta a entrar na cabeça de onde havia saído, a qual recolhe às profundezas da terra. Automóvel na muralha da China: algumas imagens mostram diferentes perspectivas sobre a muralha da China; duma das torres desponta o modelo AX ao som de um relinchar e avança ao longo da muralha a uma velocidade razoável; dentro do automóvel uma chinesa ri, divertida, conduzindo com mestria pelas curvas apertadas e pelo chão solto que caracterizam o monumento; ao mesmo tempo, uma voz diz em tom de palavra de ordem: “abaixo o desperdício! Abaixo a dependência das oficinas! Abaixo todos os limites de mobilidade!

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Abaixo o tédio!”; de seguida, a imagem do automóvel é fixada no ar, depois do mesmo avançar em velocidade sobre uma lomba, voltando ao movimento acompanhada das letras “A” e “X” e da voz que diz: “AX, o novo Citroën!”; o automóvel pára no que aparenta ser um limite da muralha, onde dois chineses recebem a condutora que sai do carro dirigindo-se-lhes dizendo “Então, o que acham do novo Citroën AX?”, os dois homens respondem-lhe com o sinal V feito pelas mãos e a expressão “Revolucionário!”. Como já foi mencionado, procurar-se-á identificar nestes anúncios: 1) a tipologia de anúncio publicitário, 2) manifestações da utopia da tecnologia e 3) alguns tipos de encanto. Este último ponto é o mais importante, pois corresponde às intenções do trabalho. Os outros dois, como se disse, podem reforçá-lo ou não, daí a sua inclusão. Opta-se por uma sequência de análise que segue os três temas referidos (transversal, portanto), recusando uma que obedeceria à cronologia dos anúncios (recta), por parecer mais escorreita e menos sujeita a redundâncias.

Análise

Tipologia dos anúncios publicitários

Para categorizar os anúncios do ponto de vista estritamente publicitário, bebe-se da categorização, já exposta, proposta por Breton e Proulx e que resulta em três tipos de publicidade identificados (síntese de outros autores): informativa, mecanicista e sugestiva. Recordando: por informativa, entende-se uma publicidade que se centra na transmissão das características do produto; por mecanicista, uma que recorre a slogans e repetições que criam automatismos mentais altamente memorizáveis; e por sugestiva, uma que se insurge no inconsciente através de associações explicitas, tácitas ou insinuantes. Qualquer uma delas pode inculcar encantos no objecto, mas é claro que a primeira pouco contribuirá para isso, enquanto que as outras duas possuem muito mais poder para revestir o objecto de algum tipo de encanto.

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É possível, desde já, afirmar que qualquer dos anúncios apresentados é predominantemente sugestivo. Aparecem alguns, mas raros, momentos informativos, outros mecanicistas, mas não o suficiente para que os anúncios visionados possam ser classificados como informativos ou mecanicistas.

Seguindo a ordem cronológica, o anúncio ao Citroën Visa GTI num porta-aviões é, tal como os outros, sugestivo. O único momento informativo é, no final, a indicação da marca e do tipo de automóvel, que não deixa de ser seguido de um dito vocal bem sugestivo: “Visa GTI – o GTI selvagem!”. Quanto à mecanicidade, está ausente. A sugestão perpassa o anúncio. Senão vejamos: a ambiência altamente tecnológica de um porta-aviões e de um conjunto de aviões-a-jacto é desafiada por uma pequeno automóvel que se atreve a competir lançando-se da pista ladeado por um avião; apesar de cair no mar, consegue acompanhar por alguns segundos o avião em pleno ar e, como se não bastasse a provocação, ao cair no mar é salvo por um submarino que o emerge. Tudo termina com a frase, já citada, que o anuncia “selvagem”.

1. O VISA GTI salvo pelo submarino

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Assim, sugere-se um veículo detentor de um poder relativo, mas pouco, esforçando-se alegremente por mais: embora muito mais pequeno que a tecnologia envolvente, faz-lhe frente, desafiando a sua própria natureza (o seu carácter tecnológico) e a outra natureza (a do mundo natural), o seu poder e o poder natural; os seus pares, a tecnologia, salvamno no minuto derradeiro, sendo a vitória de todos, da tecnologia, sobre a outra natureza. Uma vitória sustentada pelo desenvolvimento permanente das tecnologias em competição entre si, mas solidárias (o avião e o automóvel em competição e o salvamento do submarino). Portanto, neste anúncio, como noutros, a tecnologia aparece claramente associada ao poder e à superação dos limites da natureza, havendo também, neste caso, uma superação de si mesma no sentido superlativo: o mar e o voo impossível.

No anúncio seguinte (BX 16v) a sugestão também domina. Apesar disso, alguns elementos informativos, relativos à potência e quilometragem, pulverizam levemente, através da voz e da grafia, algumas partes do anúncio. Em termos mecanicistas também temos alguma coisa, nomeadamente através da repetição, pela voz da condutora e dum refrão musical de fundo, da expressão “Amo!”, criando-se uma ambiência sonora de atracção amorosa pelo carro aparentemente excitante e empolgante. Mas claro, o resto vive da sugestão, da associação com elementos implícitos e altamente simbólicos. A superação da natureza, sugerida no anúncio anterior, repete-se. Este automóvel atravessa o deserto de modo invisível, apenas deixando o rasto dos pneus, perpassa uma palmeira e aparece entretanto apenas para que se possa exibir, no seu interior, uma bela condutora eufórica e apaixonada pelo veículo que conduz. Sugere-se, assim, poder, velocidade e resistência – nada mais resistente do que a tecnologia que despreza os males do deserto. Tudo o que este tem de negativo, o Citroën tem de positivo. Tudo o que nele nos faz temer, o Citroën, com a sua tecnologia acima do natural, faz diluir-se na facilidade de um poder leve e fácil. Mais uma vez, a tecnologia.

Para não fugir à regra, pelos vistos, notoriamente pré-determinada, quando publicitada apenas a marca, temos mais um anúncio sugestivo. Sem dúvida aquele que o é mais. Aqui não há qualquer elemento informativo. O que se deve em grande medida ao

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facto de neste caso não se publicitar um modelo em particular mas a marca em geral, havendo, por isso, menos precisões a informar. Há um elemento mecanicista, também presente no spot anterior: a expressão “Amo!” volta a criar a ambiência amorosa, apaixonada, desta vez em torno da marca. Contudo, apesar da música que acompanha a expressão em causa subir cadenciadamente de tom até se impor com alguma preponderância no final do anúncio, este não é o aspecto mais saliente. O mais saliente é o que se sugere por todo o anúncio: uma marca cujos produtos possuem o poder que se compara a uma manada de cavalos, tão organizada que se mantém junta formando o símbolo da marca e tão hábil na cidade como no campo que invade. O cavalo, como um símbolo de poder, elegância e nobreza, empresta a sua identidade à marca, ao mesmo tempo que se associa, no seu movimento de dentro da cidade (quase o seu âmago: o interior de uma garagem) para o seu exterior, ao carácter selvagem já presente nos anúncios anteriores. A cidade, essa, mantém-se vazia à passagem da Citroën como que se curvando perante uma superioridade.

2. Os Cavalos Selvagens saindo da garagem

No anúncio onde participa Grace Jones, a tecnologia concretizada no automóvel Citroën CX2 continua a mostrar-se superior, desta vez de um modo provocador, sensual e, claro, sugestivo.

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Em termos informativos as indicações reduzem-se ao mínimo: os símbolos da marca e do modelo surgidos numa imagem final. Mecanicamente, o mesmo refrão de sempre, “Amo!”, que sai da boca da conhecida actriz e modelo, dirigido já sugestivamente à máquina conduzida. Sempre em sugestão segue o resto do anúncio. Das profundezas da terra emerge uma cabeça, a um tempo humana e máquina, mas gigante, donde sai o veículo publicitado. Este avança pelo deserto, à semelhança do anúncio ao modelo BX 16v, parecendo exibir-se a uma natureza inóspita, mas que para ele não apresenta desafios. Este objecto tecnológico, vindo do cerne natural, o fundo da terra, e a ele voltando, surge em unidade com a natureza, mas também como um seu passo em frente, um braço que se liberta e, em vanguarda, despreza o que de hostil e não controlado por humanos subsiste em seu redor. Paradoxalmente, associa-se a este controlo tão pós-social e tecnológico uma ambiência selvagem. É talvez a tecnologia tão confundida no natural que lhe furta o adjectivo e o reformula nos seus próprios termos, o do controlo humano.

3. Citroën CX2 – a cabeça mecânica de Grace Jones emergindo do chão desértico

Neste caso, este está nas mãos duma bela humana, também selvagem – caracteres emprestados ao automóvel sugestivamente, e, depois, explicitamente, quando a frase “CX2, a beleza selvagem!” termina o anúncio. Assim, a beleza da tecnologia é expressa na elegância com que exibe o seu domínio selvagem sobre a natureza (uma nova

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selvajaria), numa parada que alia a estética ao poder tecnológico, desta vez no âmbito do consumo em vez do político.

Por fim, optou-se por analisar um spot publicitário não menos sugestivo que os anteriores. O modelo é o Citroën AX; o local, a muralha da China. Os únicos elementos estritamente informativos são as letras A e X que aparecem quando o automóvel salta uma lomba da muralha. Em termos mecânicos: apenas a cadência das frases mas não o seu conteúdo. Este é sugestivamente revolucionário. O automóvel avança sobre as muralhas milenares ao som dum relinchar. Uma evidente associação à nobreza, destreza e poder dos cavalos. Tudo mais vai no sentido duma associação à revolução: uma, todas, esta – a comunista, as de todos os tempos, a tecnológica. A China, palco da revolução comunista e da subsequente revolução cultural, serve perfeitamente como contexto que anuncia uma nova revolução, a tecnológica, assente numa muralha construída pela tecnologia antiga, à qual se acrescenta, superando, a tecnologia contemporânea. Este sentido é sublinhado pelas frases de fundo, que, falando dos benefícios do automóvel, são exclamadas e estruturadas como palavras de ordem sugestivas da simbologia revolucionária de esquerda (abaixo o desperdício de gasolina! abaixo a dependência das oficinas! abaixo todos os limites de mobilidade! abaixo o tédio!).

4. O Citroën AX percorrendo a Muralha da China

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Movendo-se com facilidade por entre espaços não previstos para esse efeito, o AX revela também flexibilidade, mobilidade e, naturalmente, uma certa ascendência sobre uma das maravilhas do mundo, tal como noutros anúncios se fez em relação à natureza. Assim, a Citroën invade a China, rompe as suas muralhas e revela ao povo a revolução tecnológica, o grande passo em frente, reconhecido pelos chineses que recebem o veículo com a frase “revolucionário!”.

Portanto, resumindo, todos os anúncios veiculam uma imagem do automóvel altamente sugestiva. A sugestão é a de uma tecnologia que ora subjuga ora supera a natureza, chegando mesmo a confundir-se com ela. Aparece também como revolucionária, bela, nobre e – sempre – poderosa. Resta saber em que medida estes elementos se associam às categorias de análise que se seguem, compondo-as ou não. Uma coisa é certa: a sugestão inculcada dá à tecnologia um poder que parece colaborar com eventuais utopias da tecnologia ou encantos provocados.

A Utopia da tecnologia

Encontrar uma veiculação da utopia da tecnologia nestes anúncios é um propósito que não parece difícil considerando o que foi descoberto ao nível da sugestão publicitária. A importância deste tópico prende-se com o facto da dimensão prometaica da tecnologia relacionar-se com a sua propensão para o encanto, tal como as sugestões publicitárias anteriores. De facto, o que se sugere é, de certo modo, utópico. Ao nível das categorias de análise buscou-se inspiração nas teorias de Stivers e Ellul apresentadas anteriormente. Do primeiro recolheu-se a concepção segundo a qual a utopia da tecnologia apresenta a tecnologia como uma solução que traz felicidade, exibindo-a ainda como solução existencial. Procurar-se-á então determinar se o percurso que vai do problema à solução (caso exista como percurso) é acompanhado por um movimento iniciado no descontentamento e terminado no contentamento do humano. Quanto ao plano existencial, ele verificar-se-á caso no anúncio a tecnologia seja

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ostentada como solução absoluta, isto é, detentora do poder de satisfazer a nível total, como eliminadora de todos as dores humanas e não como mera funcionalidade. Mas a análise não fica por aqui. Acrescenta-se a decifração do ambiente. É Ellul quem reflecte sobre este assunto. O autor distingue três tipos de ambiente: o natural, o da sociedade e o tecnológico. Temática já exposta anteriormente. O objectivo é o de perceber qual dos ambientes predomina em cada um dos anúncios e – se vários – saber que relação entre eles e qual deles é favorecido nessa relação. Por fim, interessa compreender se o anúncio apresenta o objecto tecnológico como detentor de um poder ilimitado, sugerindo o infinito e o inultrapassável. Claro que a utopia da tecnologia subentende este poder superlativo.

Continuando na mesma ordem seguida anteriormente, comecemos pelo spot ao Visa GTI. Um anúncio possuidor duma construção imagética e narrativa que transmite, à luz das categorias de análise propostas, uma utopia da tecnologia. Esta começa por se revelar no problema: é utópico. O desafio não é realizável, o veículo jamais poderá voar; contudo, não deixa de o tentar, procurando o não-lugar, o impossível.

5. O VISA GTI na sua tentativa de voo

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O contentamento aparece, porque, no fim, a tecnologia supera todos os limites. A solução não surge efectivamente, mas o amparo tecnológico do submarino manifesta o poder envolvente da tecnologia. Há uma existencialidade nesta solução. No que diz respeito ao ambiente, o início é tecnológico, o porta-aviões é um equipamento de alta complexidade tecnológica; todavia, está rodeado de um limite natural: o mar. Este, do ponto de vista da tecnologia como sistema, não é um verdadeiro limite, visto um elemento tecnológico salvar outro da submersão. Neste sentido, não parece haver limite para o poder desta tecnologia. Ainda que limitado, é arrojado (no caso do automóvel); quando capaz, é solidário (no caso do submarino). Assim, há uma dialéctica do insuperável dentro do corpo tecnológico que lhe permite dominar a natureza.

No anúncio ao modelo BX 16v, a utopia da tecnologia também existe. Embora nem o problema nem o descontentamento estejam presentes explicitamente, estão-no implicitamente, na medida em que a facilidade com que se realizam as potencialidades do veículo e a satisfação manifestada nessa concretização subentendem um problema solucionado e um descontentamento tornado contentamento. Daí que o que se passa neste anúncio seja uma espécie de orgasmo resultante da potência do produto. A tecnologia traz, sem dúvida, felicidade, também uma felicidade existencial, visto o problema e o descontentamento subtraírem-se à história, restando apenas o estado final, utópico, de contentamento. O ambiente, por sua vez, é o natural. O único elemento tecnológico é o próprio automóvel. Todavia, superando os limites do deserto, ultrapassando-o facilmente e trespassando um palmeira de modo invisível. Um ambiente natural transposto pela tecnologia. Estes elementos de excesso sobre a natureza não revelam limites no tecnológico, antes o cobrem do ilimitado poder dum automóvel imparável e desmaterializável.

No spot que promove a marca em geral através da manada de cavalos que percorrem a cidade volta-se a assistir a uma diluição do problema e do descontentamento, desta vez não por trás duma solução e dum contentamento, mas antes duma eficácia

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simbólica que é potencialmente fundadora de todas as soluções e contentamentos: o poder nobre e organizado da manada como representação da marca. Nesta simbologia há uma existencialidade sugerida. A não funcionalidade dos elementos anunciados quando essa é a razão de ser do automóvel remete o sentido para uma pura existência que se basta a si mesma como contemplável. Claro que é uma metáfora do automóvel que se desloca, mas para onde, metaforicamente porquê? Para nenhum lugar e para encher a vida, talvez.

6. A manada formando o símbolo da marca

Quanto ao ambiente, desloca-se dum predomínio do social vazio (a cidade não tem pessoas) preenchido tecnologicamente (o betão, as estradas, os semáforos, a ponte), para uma fuga para a natureza. Este movimento não atribui, aparentemente, qualquer papel relevante à tecnologia. Contudo, não deixa de haver alguma ausência de limite no cavalgar para uma natureza marginal à cidade que aparenta ser um horizonte interminável. Portanto, neste anúncio continua a estar presente a utopia da tecnologia. O único aspecto que escapa a esta categorização é o ambiente.

No anúncio onde participa a Grace Jones volta-se a verificar uma diluição do problema e do descontentamento por baixo duma solução e dum contentamento plenos. A existencialidade contemplável volta a expandir-se num movimento de saída e retorno a

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uma origem – o automóvel que sai da cabeça e a ela volta inserindo-se na terra. Não há uma funcionalidade, há apenas o si próprio contente consigo mesmo.

7. O CX2 volta a entrar na cabeça de Grace Jones

Em termos de ambiente, acontece o mesmo que no anúncio ao modelo BX 16v. O predomínio dum ambiente natural mas com um elemento tecnológico que o atravessa como vector aglutinador. Como já se referiu na análise que toca à tipologia, este anúncio faz confluir o natural e o tecnológico ao fazer emergir este daquele numa cabeça humana mecânica. Indirectamente, a tecnologia, ainda que em menor número, sobrepõe-se ao natural. O poder da tecnologia é, em certa medida, não limitado por qualquer obstáculo. Tal como noutros anúncios, o espaço aberto e a facilidade com que se vencem barreiras naturais acoplam ao automóvel o sentido do poder hipoteticamente ilimitado. Assim, também neste caso a utopia da tecnologia parece existir. Por fim, resta saber se o mesmo acontece no último anúncio, aquele que se passa na muralha da China.

Mais uma vez, o problema e o descontentamento estão ausentes, presentes que estão, e em contínuo, os seus opostos. Em termos existenciais, a funcionalidade da viagem efectuada pelo modelo AX não é muita, manifesta-se muito pouca utilidade

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naquele seu movimento, antes, em maioria, uma exibição de poder e destreza com pouca posterioridade além dessa. Daí existir alguma existencialidade contemplável. Contudo, não tanto como noutros anúncios, onde esta se revela de um modo mais absoluto. Neste caso, há um certo humor que enleva a profundidade do efeito. O ambiente, esse, é em parte social; mas também atravessado por tecnologia, a antiga (muralha) e a contemporânea (automóvel). O modo como termina é claramente social, além de toda a simbologia revolucionária que atravessa o anúncio. Contudo, é um revolucionário centrado sobre o tecnológico, visto como revolucionário, precisamente, do social. No que diz respeito ao limite do poder do objecto, parece não ser explorado, tal como o ilimitado não o é. Neste anúncio esta questão não está presente. O que não chega para se negar que este anúncio veicula uma mensagem que colabora com a utopia da tecnologia. Portanto, porque a tecnologia surge como uma solução que efectivamente trás felicidade, uma felicidade que satisfaz muito para além daquilo que a eficácia consegue, isto é, num plano existencial, totalizador das satisfações, eufórico até; porque a tecnologia aparece sempre superior à natureza, mesmo quando os ambientes são naturais; e porque muitas vezes sugere-se um poder ilimitado, superlativo de todas as capacidades do humano e do natural; julga-se que os anúncios em causa transmitem uma mensagem onde a tecnologia é vista de modo utópico, como poder consumador dos desejos humanos e basilar dum certo futuro.

8. O sorriso da condutora do Citroën AX

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Nisto, se algum encanto se verificar de seguida, encontra um apoio no que previamente se analisou.

O encanto do objecto útil quando publicitado

Assim, resta analisar os aspectos encantatórios do objecto tecnológico publicitado nos anúncios em causa. Repetindo, esta é a análise, de certo modo, mais importante do presente trabalho, na medida em que as anteriores (a da tipologia dos anúncios e da utopia da tecnologia) foram efectuadas com o objectivo de acrescentar a esta concordâncias ou discordâncias publicitárias e prometaicas. Estas corroboram, ou não, com o que se segue, contribuindo, ou não, com a sua ambiência. Sendo assim, para perceber o grau de encanto de um objecto tecnológico, socorrese de diversas fontes. A principal é a noção, já apresentada, que designa o processo de encantamento: um elemento “A” (encantador) provoca “E” (encanto) em “B” (encantado), através de “C” (suporte ou veículo) de modo a que B obedeça à vontade (ou intenção) de A independentemente da vontade que em si persistia antes do referido encantamento; “E” (encanto) reveste-se dum poder de atracção assente em aspectos ocultos e detentores de algum poder que, por isso, atraem pelos pólos do desconhecido e do poder fora do alcance do encantado. Neste contexto, “A” é a produtora dos automóveis aliada à produtora dos anúncios, “E” é a materialização das estratégias de sedução, “B” são os telespectadores e potenciais consumidores e “C” é o automóvel publicitado em unidade com a publicidade em si. Neste caso, ao contrário do campo artístico, o encanto integra-se num processo de encantamento. Julga-se que, neste caso, em certa medida, a mensagem (o automóvel) confunde-se com o meio (a publicidade), um pouco ao jeito de Mcluhan, contudo, acentuando não tanto o meio tecnológico mas o meio contextual e intencional – a publicidade como actividade onde se integram determinados objectivos. Ora, o que interessa aqui é “C”, o objecto em forma publicitária, que é o suporte (suporte do encantamento), e os aspectos que nele são potencialmente encantadores por participarem no carácter daquilo que encanta ao nível do proposto – “E”, encanto que se incrusta no

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objecto. Estes caracteres de encanto tanto podem nascer com a produção do objecto como com a do anúncio. Correspondem a efeitos, voluntários ou não, da acção dos encantadores. As categorias de análise apresentadas de seguida procuram identificar este encanto no objecto tecnológico. Para que o encanto esteja presente têm que existir aspectos ocultos. Assim, a primeira categoria a ser procurada é a que corresponde à manifestação de um processo oculto (o que se manifesta não é o processo mas a sua ocultação), isto é, àqueles caracteres que designam um processo que se esconde entre o antes e o depois, o accionar e o efeito119, e que, por não ser dado a conhecer, encanta, tal como a lonjura revela um oculto do passado e a aparelhagem esconde-se por trás da imagem, de acordo com Benjamin, o desconhecimento da técnica do artista provoca encanto no fruidor quando a adivinha na obra acabada, segundo Gell, e a representação esconde a sua natureza representativa e não natural, do ponto de vista de Flusser. Como se mencionou, este é, sem dúvida, um objecto que se enquadra no tipo de objectos tecnológicos úteis mais complexos e cujo processo que possibilita a sua função é oculto e precisa de especialização para ser conhecido. É evidente que não se espera esta especialização por parte do consumidor, mas a ausência de qualquer informação relativamente a esse processo contribui para a persistência de um certo encanto. Outro aspecto a reconhecer é a existência de elementos no objecto que o apresentem como possuidor de um poder superlativo, isto é, com funcionalidades que efectivamente não detém. Como se disse anteriormente, o encanto, além de se revestir de oculto, detém um poder que o encantado não alcança. Claro que o automóvel já é em si mesmo superlativo, mas não se deve deixar de contemplar como possível uma intensificação desse poder ou mesmo o seu aparecimento sobre outras formas funcionais diferentes da original. Mesmo que essa intensificação não se verifique, há que ter em atenção o modo como os indivíduos se relacionam com o poder dito normal do automóvel, pois caso esse poder provoque reacções hiperbólicas pode-se considerar que o poder apresentado tem um efeito encantador. 119

Blumenberg, Hans citado por Garcia, J.L (2003), A crítica política da tecnologia como tarefa da sociologia contemporânea, Trajectos, Revista de Comunicação, Cultura e Educação (nº2), Notícias Editorial

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De qualquer modo, este poder irmana-se ao da arte (por via da visão de um passado inacessível e da técnica reveladora de campos impossíveis para o fruidor) e ao da imagem técnica (a aparente presença da distância). A estas dimensões, que parecem não chegar, acrescentam-se outras que podem contribuir para o encanto. Visto o objecto artístico ser o objecto encantador por excelência e ser um fim e não um meio como o útil, considera-se pertinente verificar se este permanece meio ou se é transformado em fim, ou ainda se ambos convivem com o predomínio de um. Para tal, recorre-se ao binómio problema/solução à luz do qual Kubler perspectivou os objectos, procurando-se perceber em que medida o automóvel é apresentado como uma solução, isto é, instrumento que serve para outra coisa que não ele próprio, ou se surge como solução absoluta, fim em si mesmo, omitindo a sua real funcionalidade por trás dum encanto fixador. Outros elementos, que trarão alguma luz sobre o dito anteriormente, são as valorizações do objecto mencionadas por Floch: prática, crítica, lúdica e utópica. As duas primeiras, como se disse, valorizam o uso, as outras, a personalidade e existência do utilizador. Assim, umas tomam o objecto como meio, as outras como fim. Neste sentido, evitar-se-á avaliar a presença da valorização crítica por estar, em parte, contemplada na análise da tipologia dos anúncios quando se procura identificar caracteres informativos. Para este também contribuirá uma ambiência regida pelo princípio da fantasia, que não obedeça, portanto, ao princípio da realidade; isto é, ao normal modo como as leis da natureza se manifestam no quotidiano. Contornar esta naturalidade com poderes e ambiências paranormais é colaborar no encanto pelo lado do que se pode e, em certa medida, também se desconhece.

Portanto, para que um objecto possa ser considerado portador de encanto deverá ocultar a sua complexidade tecnológica, apresentar-se como possuidor de um poder ilimitado ou despoletar reacções hiperbólicas ao seu poder normal, contornar o propósito da sua função enredando-se sobre si mesmo e ser alvo dum tipo de valorização maioritariamente lúdico ou utópico. As características fantasistas serão somatórios a ter em conta.

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Um objecto assim estará capacitado para, com o seu encanto, atrair o consumidor, fazendo com que este obedeça à vontade (ou intenção) de “A” independentemente da vontade que em si persistia antes do referido encantamento. Tal movimento não se deve maioritariamente à utilidade do objecto mas a aspectos extra essa utilidade.

Feita a devida explanação do propósito, resta avançar para a análise. Comecemos pelo anúncio ao Citroën Visa GTI no porta-aviões. Neste, nada do processo interno e tecnológico que lhe permite exibir o seu poder aparece revelado, é claramente um caso de um aparelho cujo processo que lhe dá poder é incógnito. Quanto ao alcance desse poder, não se pode dizer que o automóvel apareça com um maior do que aquele que realmente detém, mas o intento que atravessa o anúncio e a tentativa nele vivida vão no sentido de mostrá-lo como possuidor de um desejo que vai para lá dele mesmo, que pode falhar, mas quando falha é, apesar de tudo, sem malefícios, pois o par tecnológico submarino ampara o seu propósito.

9. O VISA GTI ladeado pelo jacto em pleno ar

Vivido assim, não se vê nenhuma actividade proporcionada pela sua funcionalidade, nada depois dele aparece, a não ser ele mesmo salvo de si próprio. O

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condutor não chegou a lado nenhum onde quisesse chegar indiferente ao veículo que o havia transportado. Ao contrário, o veículo é o centro e o fim de toda a narrativa. Nada além dele se gerou ou existia antes. Neste sentido, a valorização do objecto não é prática (não tem valor por ser útil) nem crítica (não tem valor pela informação que proporciona ou permite explorar), é antes lúdica (o veículo diverte) e utópica (exibe-se o automóvel no campo do impossível, ainda que na forma tentada e humorística). Por fim, apesar do intento de voar, o anúncio não se mostra fantasista, o princípio que rege o cenário é o da realidade, os elementos são concretos, existentes e obedecem às leis da natureza; o desejo é que não. Assim, este objecto tecnológico é potencialmente encantador por ser um aparelho que oculta a sua tecnologia interna, detém um poder ilimitado na forma tentada mas protegida por um par, é fim em si mesmo, utópico e vivido num ambiente real, mas com intuitos fantasistas (o voo). Estando no campo do tentado, é-lhe retirada força encantatória a favor da leveza humorística. Contudo, acha-se que, ainda assim, com menos intensidade é certo, há o encanto proposto.

No anúncio ao Citroën BX 16v a forma tentada desvanece-se dando lugar ao concretizado destituído da relativização do humor. Quanto aos mecanismos internos, há uma referência aos cavalos, aos gastos e à velocidade atingida. Contudo, não há uma efectiva explicação sobre a articulação entre estes dados e, mais importante, sobre o funcionamento dos mecanismos mais determinantes. A informação é demasiado prática e superficial. O poder, esse, é superlativo em relação aos seus poderes efectivos. Ser invisível ou atravessar uma árvore incólume não são poderes do automóvel. Vão para além da sua utilidade. Esta também não é anunciada. O objecto não deixa existir depois de si algo por si permitido enquanto meio. Ele próprio, num movimento entusiástico de festa permanente, emerge como fim em si mesmo, como divertimento e possibilidade de todas as possibilidades: um todo que se dilui em nada – ele próprio.

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10. Citroën BX 16v – uma das raras referências aos mecanismos internos do automóvel

Neste sentido, mais uma vez, o que se valoriza nele são as dimensões lúdica e utópica, não há funcionalidade e pouca informação há. O que se obtém com o seu uso é divertimento (repare-se no riso da condutora) e uma plenitude quase orgásmica (uma felicidade hiperbólica em relação à realidade), onde tudo parece ser possível (nada limita o poder do automóvel, nem o deserto nem a palmeira). Neste caso, o princípio dominante é o fantasista. A invisibilidade e o atravessar da palmeira não correspondem a acontecimentos realizáveis, mas apenas plausíveis no campo ficcional. Mas não em termos ambientais, somente de acção. Por estas razões, este anúncio, mais do que o anterior, pois sem falhas impostas pelo real (a queda na água do anterior), constrói uma imagem encantadora do objecto tecnológico. É suficientemente oculto, poderoso para além dos seus poderes reais, fim em si mesmo, utópico e aparece em momentos fantasistas. Sem dúvida, pode encantar, no sentido em que qualquer coisa se acrescenta a ele com o objectivo de o tornar mais do que si próprio, aumentando as vendas à custa de um certo desvio não utilitário.

O mesmo parece acontecer no spot seguinte, o dos cavalos selvagens. Neste a máquina está ausente, mas é todo o referente. Na aparição dos cavalos está plasmado todo

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o poder e invisível toda a mecânica. Mais do que qualquer outro, o poder aqui é incógnito. Quanto ao alcance desse poder, não aparenta ser superlativo, a representação do automóvel (os cavalos) não se manifesta maior que ela própria. Todavia, a comparação entre os cavalos e o automóvel, por sua vez, é superlativa a favor deste último. Nenhum modelo Citroën tem em si poder maior ou igual ao daqueles cavalos em conjunto. No máximo, talvez a marca. Mas em termos individuais, que é o que interessa para o caso, essa superioridade não existe. Apesar da ausência do objecto, poder-se-ia subentender a sua função através dos movimentos da sua representação. Mas tal não acontece. Assiste-se unicamente a uma deslocação do centro da cidade para as suas margens. Esse movimento não termina, o “depois” não aparece. Sempre ele próprio e sem fim. Não há solução para algo, esse algo não existe. Como consequência, a valorização recai sobre o campo do utópico. Todas as outras dimensões estão ausentes. A comparação é utópica, tal como a organização dos cavalos figurando o símbolo da marca. Contudo, não a um nível tão elevado como no anúncio anterior.

11. Os Cavalos em fuga da cidade – para onde?

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Por fim, há uma certa fantasia, não no cenário, mas na disciplina da manada formando o símbolo da marca. Portanto, há um certo nível de encantamento. A tecnologia é oculta – totalmente, aliás; o poder, comparativamente, é superlativo; a funcionalidade é ausente; alguma utopia e fantasia. Portanto, a máquina como referência tem o encanto que uma manada simbólica pode ter.

E, agora, a Grace Jones. Um anúncio semelhante ao do BX 16v, mas com a presença da modelo e da sua cabeça robot. Desde que sai do fundo da terra até que a ele retorna nenhuma informação sobre o funcionamento interno da tecnologia do automóvel aparece.

12.O Citroën BX 16v exibindo-se entre a saída e a reentrada nas profundezas da terra

O seu poder não avança para lá daquilo que a realidade permite. Mas a saída e a entrada nas profundezas da terra não deixam de o fazer participar em algo um pouco maior do que si próprio. Por outro lado, aquilo para o qual ele hipoteticamente pode servir não é mostrado. A sua função é mover-se, é certo; mas para onde, para quê? Para se exibir, para si, si como fim.

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Nisto, nesta corrida exibicionista, a actriz diverte-se, há um prazer lúdico, logo uma valorização desse tipo. Mas também utópica. A sua mistura com o natural, a sua emergência dos fundos da terra e o desprezo pelo deserto são factores que apontam para o não-lugar do impossível mas realizado pelo encanto exuberante e extraordinário do Citrën CX. Neste contexto, a fantasia aparece com a cabeça-máquina já referida e a sua junção com a natureza. O real, esse, talvez persista no fundo do deserto só filmado como horizonte. Sintetizando, este automóvel aparece sob a capa que oculta os seus mecanismos internos, com um poder igual a si próprio mas participante num maior, como fim em si mesmo, utópico e, em certa medida, fantasioso. O suficiente para ser encantador? Decerto.

Por fim, resta analisar o anúncio cuja acção se passa na muralha de China. Como em todos os outros anúncios, também neste o poder do objecto não é acompanhado pela explicação do mesmo. Tem-no sem que se saiba porquê nem como. No que toca às possibilidades desse poder, não parecem ir para lá daquilo que na realidade o automóvel é capaz – o percurso é feito sobre a muralha até parar junto de dois indivíduos. Tudo normal, digamos. Quanto à sua função ou utilidade, já não se pode dizer o mesmo. Apesar de tudo, é o anúncio que apresenta o automóvel numa prática mais próxima da sua utilidade. Mas não o suficiente. Ele desloca-se de um ponto ao outro, é certo, onde pára e onde a condutora sai como se tivesse chegado a um destino. Mas repare-se: o destino é o comentário ao próprio veículo, que se deslocou somente para se mostrar e por fim observar-se a uma espécie de espelho, aquele que lhe retribui a imagem positiva que certamente, se pudesse, teria de si mesmo. Em termos de valorização, embora baixo, é o único em que existe um tom de valorização prática. Valorização permitida somente pelo final que parece revelar um certo fim do automóvel: a acção de sair dele mostra um “depois” do meio. De resto, há uma valorização lúdica (a condutora diverte-se) e utópica (só um veículo utópico passeia-se

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por cima da muralha da China promovendo-se como revolução que se sobrepõe à já de si utópica revolução socialista). De fantástico só o inusitado do passeio, mas não propriamente impossível. Por isso, pode-se dizer que o princípio dominante é o da realidade. Ainda que numa perspectiva invulgar, obediente às leis da natureza.

13. Citroën AX – o diálogo final sobre o veículo

Concluindo, embora não sendo dos mais acentuados, julga-se que também aqui existe um encanto incrustado no objecto tecnológico. O oculto mantém-se. O poder não é maior que si próprio (uma atenuante). Mas o anúncio centra-se quase completamente no automóvel e não no que ele possibilita. Além disso, apesar do já mencionado tom prático, é valorizado predominantemente lúdica e utopicamente, apesar de não acontecer num campo totalmente fantasista. Aspectos potencialmente suficientes para o revestir de poderes encantatórios.

Resumindo, observemos os caracteres confirmados pela análise dos anúncios: 1) quase todos ocultam o funcionamento interno da tecnologia exibida (menos o anúncio ao BX 16v, que não deixa de ser suficientemente oculto); 2) apenas dois (Visa GTI, no qual crê-se possível esse superlativo, e CX, que, contudo, provoca expressões como “revolucionário!”) não são mostrados como possuidores dum poder superlativo; 3) todos

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aparecem como fins em si mesmos; 4) também todos surgem sob valorizações lúdicas e utópicas (ambas valores de base); e 5) somente dois anúncios (Visa GTI e AX) não se desenrolam com elementos fantasistas. Claramente, há um encanto nestes objectos.

Assim, à luz dos critérios aqui estipulados para identificar a existência de caracteres encantadores nos automóveis publicitados, pode-se dizer que se confirmou a presença desse encanto, logo desse potencial de encantamento. Embora com menos um factor ou outro em alguns dos anúncios, em geral as características encantatórias aparecem sob um tal domínio que se julga incorrecto destitui-las dessa possível influência. Resta desenvolver algumas reflexões sobre o que se analisou, comparando com outras formas de encanto e identificando o que de novo aqui se perfila.

O encanto dos objectos tecnológicos úteis A este novo encanto já não se atribui o nome de “aura”, porque a não tem, nem de “ícone”, porque é bem mais que isso; é “mágico”. Do encanto da aura do objecto artístico traz qualquer coisa que se esconde; do encanto do processo técnico que se adivinha na obra de arte traz ele próprio essa precedência que se sugere enquanto objecto final. Ao encanto icónico pede emprestada a dissimulação da aparelhagem. Relativamente a todos, irmana-se num determinado poder. Contudo, desloca-os a todos: a dimensão oculta passa a existir, não no passado, não no conhecimento do artista aliado à concretização técnica e não na sobreposição da imagem à tecnologia, mas antes na complexidade tecnológica do funcionamento interno do objecto (só acontece em objectos tecnológicos complexos), que exige especialização para ser conhecida; quanto ao poder, desloca-se das possibilidades fora do alcance do fruidor (plasmadas nos vestígios do passado e na habilidade do artista presentes no objecto artístico tradicional) e do poder de presentificação da representação (dimensão comunicacional), para o poder do especialista, da sua técnica e – o mais importante – da função prática que o objecto apresenta. Esta está para lá das possibilidades do utilizador.

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Contudo, esse poder, em vez de fazer o indivíduo centrar-se no que é possibilitado pelo objecto (no caso do automóvel, chegar a um determinado sítio, esse sim, importante), faz com que ele se fixe no objecto em si como se de um fim se tratasse. Caracteres identificados nos casos analisados. O oculto está sempre presente e o poder também, grande parte das vezes para lá das efectivas potencialidades do objecto. Além disso, verificou-se também uma centralidade excessiva das narrativas no objecto tecnológico, apresentado que foi como se de um fim se tratasse – próximo do encanto do objecto artístico. Disto resultaram visões utópicas do objecto: consumação dos desejos e lugar imediato para o impossível – intensificação do seu poder superlativo. A fantasia contribuiu para este estado utópico. E quando o não fez, o contraste do encanto com a realidade pôde, julga-se, ter-lhe dado mais força, visto as suas impossibilidades parecerem mais próximas do possível – mais eficácia no encanto. Visto isto, como justificar a utilização do termo “mágico”? Recuando na História, a magia primitiva surgia no âmbito de uma actividade prática da qual emergia um problema relativamente ao qual os indivíduos se mostravam impotentes. Contudo, a vontade de o resolver era intensa e persistia. Nisto, a magia aparentava solucionar o problema concretizando-se mediante uma fórmula, preenchendo o espaço onde a tecnologia estava ausente120: entre o que se deseja e o que acontece. Para os primitivos, essa fórmula era executada pelo mago. Hoje, é possível dizer que ela é posta em prática pelos inventores dos objectos tecnológicos (cientistas da tecnociência), que solucionam problemas de um modo tão enigmático para os leigos como o eram as fórmulas mágicas antigas. Além disso, a tecnologia veio ligar o desejo ao acontecimento desejado, mas permanecendo oculta. Assim, os objectos também podem revelar-se mágicos. O nosso quotidiano está repleto deles: desde a televisão ao computador, passando pelo microondas e o automóvel, em todos os lados somos ajudados a viver por uma autêntica rede funcional onde o tradicional esforço de sobrevivência humano é reduzido ao mero «carregar num botão»121, para usar uma expressão que Garcia utiliza a partir dum texto de Blumenberg.

120

Malinowski, Bronislaw (1988), Magia, Ciência e Religião, Lisboa, Ed. 70, pág. 77 Blumenberg, Hans, citado por Garcia, J.L (2003), “A crítica política da tecnologia como tarefa da sociologia contemporâneo”, Trajectos, Revista de Comunicação, Cultura e Educação (nº2), Notícias Editorial 121

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A especificidade deste encanto reside precisamente na sua funcionalidade. Um objecto artístico não pretende ser útil, aliás – designe à parte –, sempre se serviu dessa ausência para se distinguir e valorizar. Mas os objectos tecnológicos de que se fala pretendem isso predominantemente, e é precisamente nessa tónica que adquirem a sua magia.

O

seu

encanto

reside

nas

facilidades

que

proporcionam.

Contudo,

paradoxalmente, o modo como estas aparecem para lá da naturalidade humana faz com que possa acontecer um desvio na direcção do objecto em lugar do seu fim. O deslumbramento que provoca fixa o olhar em si, fazendo esquecer os seus resultados e o seu carácter de meio. Sendo a magia, em parte, o que acontece de desconhecido entre o desejado e a satisfação122, momento onde estanca a relação, aqui este conceito aplica-se com maior precisão, visto algo acontecer que se considera enigmático. No mesmo sentido vai Vilém Flusser quando salienta que, na fotografia, uma caixa preta (aparelho e fotógrafo – para o caso interessa o aparelho) interpõe-se entre a imagem técnica e o seu significado, isto é, entre o accionar e o resultado, ligando-os, mas de um modo oculto. Para Flusser há que esclarecer o que se passa dentro dessa caixa123. Neste sentido, Blumenberg é ainda mais preciso. Para o autor alemão, a tecnologia produz um misto de «poder» e «indiferença»124. Ele exemplifica esta ideia mediante a acção de «carregar no botão»: ao carregar nos botões dos muitos aparelhos ao seu dispor, o sujeito desencadeia efeitos já não produzidos por si, mas que apenas esperam ser accionados, cristalizados que estão nos aparelhos prontificados tecnologicamente. Entre o acto humano e o efeito da máquina todo um abismo possibilitador (poder, com consequências ontológicas, no sentido em que permitem fazer coisas que as capacidades humanas naturais não possibilitam) e desconhecido (indiferença, com consequências epistemológicas, visto o ser humano desconhecer o porquê desse poder, quais as sequências causais que subjazem por trás da superfície do objecto) se desenrola de uma forma que se apelida de mágica. A um não especialista (ou seja, a maioria da população), carregar num botão e acender-se uma luz ou entrar num 122

Stivers, Richard (2001), A Tecnologia Como Magia, O Triunfo do Irracional, Lisboa, Inst. Piaget, pág.

12 123

Flusser, Vilém (1985), Filosofia da Caixa Preta, Ensaios para uma futura filosofia da fotografia, S. Paulo, Ed. Hucitec, pág. 11 124 Blumenberg, Hans citado por Garcia, J.L (2003), “A crítica política da tecnologia como tarefa da sociologia contemporânea”, Trajectos, Revista de Comunicação, Cultura e Educação (nº2), Notícias Editorial

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avião e voar são actos que parecem mágicos, quase paranormais. Acontecimentos que não possuem as mesmas propriedades para o perito; o qual, todavia, apenas conhece uma pequena parte do sistema no qual é especialista, sendo portanto também intersectado por este encanto no que se refere a grande parte do resto do sistema tecnológico que o envolve dum modo enigmático. Mas o autor que melhor se adequa a esta perspectiva é Stivers. Para ele, a tecnologia contemporânea apresenta algumas características que a tornam, como ele diz, mágica125. No modo como encanta, controla e determina irracionalmente, com bases bem racionais, os indivíduos a ela expostos, a tecnologia determina a sociedade dum modo internamente oculto e exteriormente poderoso. Particularmente a publicidade. O autor afirma mesmo que “a publicidade contém rituais mágicos”126. Afirmação que confirma o analisado. Julga-se que um destes aspectos já se encontrava anunciado no texto de Benjamin. Particularmente aquele que designa a ocultação da complexidade interna do objecto tecnológico. Quando Benjamin defende a queda da aura no cinema por, em comparação com o teatro, a ilusão dissimular-se muito mais por fazer desaparecer a aparelhagem por trás da imagem que constrói, sugere a existência dum certo encanto nisso, o qual deriva, pensa-se, da perfeita ocultação dos mecanismos do aparelho de modo a deixar apenas à vista o resultado tecnológico e não, digamos, a tecnologia em si. Nisto há um encanto específico diferente do encanto da aura. Esta revestia-se duma dimensão oculta (a lonjura adivinhada) que divergia deste oculto do encanto mágico. Este, deslocando-se, diz respeito ao que se esconde na aparelhagem ou, em estado extremo, ao desaparecimento total da aparelhagem – caso já sugerido por Benjamin e expresso alegoricamente no anúncio onde os cavalos formam o símbolo da Citroën (o automóvel está ausente). Portanto, esta posição de Benjamin não parece muito longe da de Flusser e Blumenberg.

125

Stivers, Richard (2001), A Tecnologia Como Magia, O Triunfo do Irracional, Lisboa, Inst. Piaget, pág.

52 126

Idem, pág. 23

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A influência do encanto icónico – redução da aura e aumento do mágico

Portanto, Benjamin e Gell revelaram alguns dos encantos tecnológicos (ou resultante da tecnologia) da arte, principalmente da arte tradicional (embora a perspectiva de Gell seja mais ampla). Neste texto, faz-se uma transposição para os objectos úteis, no sentido em que, em certa medida, se descobrem nestes aspectos encontrados na arte. Como já foi referido, a transversalidade desta análise prende-se com o facto de o objecto artístico ser produzido tecnologicamente com o objectivo de provocar encanto, embora sem o objectivo de persuadir o fruidor para o consumo. Verificando-se também, por sua vez, que o objecto útil pode ser criado com essa mesma intenção de encantar, principalmente na divulgação e com fins comerciais. Isto se conclui da na análise realizada. Contudo, apesar destas correspondências, não se pode dizer que os objectos analisados sejam artísticos; são úteis, mas transformados. Julga-se, como se disse, que essas transformações correspondem a outras formas de encanto emergentes das novas tecnologias e que, embora sejam da mesma família dos encantos da arte (daí as ditas correspondências), apresentam características diferentes. Assim, como foi possível observar, percorreu-se um caminho que detectou três diferentes encantos produzidos pela tecnologia. Dois deles através de objectos – o da arte e o dos objectos úteis – e um de imagens tecnológicas reproduzidas em objectos (televisão) ou por objectos (projector de cinema). O mais importante neste texto é o encanto produzido através dos objectos. Daí que o segundo dos encantos analisados ganhe pertinência precisamente por influir sobre o encanto destes. Portanto, o que as novas tecnologias de produção de imagens técnicas fizeram à arte tradicional, destituindo-a do encanto da aura, fizeram-no ao automóvel mediante a sua publicitação em imagens técnica televisivas, suas herdeiras. Claro que o automóvel não perdeu o encanto da aura, porque o não tinha. Mas ganhou o mágico, que talvez já tivesse em potência ou em tradição social, mas que é altamente fomentado e construído nas publicidades visionadas.

89

A sua expansão pelo mundo, o seu poder representativo, a sua circularidade interpretativa e o modo magnífico com que a construção tecnológica e de edição desaparecem permitem ao encanto icónico não só incrustar no automóvel os caracteres mágicos identificados como narrar acções e configurar ambientes que para isso contribuem. O oculto na tecnologia do automóvel podia ser revelado por estas tecnologia de comunicação, mas não é. O poder superlativo com que por vezes surge só é possibilitado pela produção perspectivista, reversível e fantasista da imagem fílmica. A sua exibição como fim resulta igualmente da capacidade que a montagem do filme possui de centrar a narrativa no objecto apagando ou evitando o “depois” do seu solucionar. A dimensão utópica – como seja a alegria excessiva dos utilizadores, o êxtase que perpassa certas narrativas e ambiências ou as potencialidades superlativas com que se exibe o objecto – é também ela construída filmicamente: certos planos que intensificam expressões de prazer ou os efeitos especiais que designam novas realidades (a cabeça tecnológica da Grace Jones) ou novos poderes (o modelo invisível no deserto). Portanto, ainda que o encanto mágico possa pré-existir ao icónico na realidade social contemporânea, o que é certo é que estes anúncios contribuem para a sua construção e divulgação. E uma coisa é certa, as determinações imagéticas e narrativas destes anúncios são tudo menos inéditas. O que pode levar a dizer que não são únicas.

O meio como fim

Ora, julga-se que o cerne do encanto provocado pelas tecnologias de comunicação e, como trabalho de fundo, pelas tecnologias produtoras de objectos úteis encontra-se na permuta entre os vectores meio e fim; isto é, os utilizadores, em vez de tomarem os objectos tecnológicos como meios que visam determinados fins, enquanto objectos úteis que são, tomam-nos como fins em si mesmos, não necessariamente de um modo consciente, mas, pelo menos, sob o efeito dos encantos explicitados. Como se a arte invadisse os objectos úteis com o fim de os tornar vendáveis.

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Conjectura-se que o primeiro encanto analisado (o da arte tradicional) ainda preserva a natural relação entre meio e fim, na medida em que se refere a objectos artísticos, que, como tal, são fins em si mesmos (não considerando os objectos de design, que se enquadram noutro encanto que não estritamente o da aura, e os objectos úteis que adquirem aura por via histórica ou coleccionista). Em certo sentido, há uma estetização dos suportes de encanto que os torna mais fins do que meios. No que se refere aos objectos úteis, os encantos neles manifestados tendem a promover a transferência em causa por duas vias:

1)

Por via da tecnologia comunicacional produtora de imagens técnicas, e da inerente utopia da comunicação, introduz-se a experiência da representação como substituta do representado, como se a mesma dignidade ontológica revestisse os dois pólos, emergindo uma fixação no significante em prejuízo do significado127, resultante da ocultação relevante da tecnologia que desse modo ilude a sua existência e simula um aparecer espontâneo, em imanência, sem mediadores. Esta é uma experiência que se supera ou evita com espírito crítico e desconstrutor, mas que a recorrente letargia contemporânea favorece sobejamente alimentando-se da confiança que a comunicação conquistou com o expandir da utopia a si associada – resulta no encanto icónico.

2)

Por via da tecnologia produtora de objectos úteis, que fomenta a utopia da tecnologia, a dimensão oculta imersa nos objectos de alta tecnologia e o poder superlativo que deles emana provocam uma impressão mágica nas consciências mais encantadas que, assim, se fascinam pelo objecto em si em detrimento da concentração no seu fim, como seja deslocar-se, no caso do automóvel, ou comunicar, no caso do telemóvel. Exemplo da transversalidade desta realidade é o consumo de objectos considerandos topos-de-gama desvinculado das necessidades efectivas do consumidor como hábito recorrente e incentivado na sociedade actual – resulta no encanto mágico.

127

Rodrigues, A. D. (1988), O Campo dos Media, Lisboa, Vega, pág. 15

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Assim, o canto da tecnologia exerce-se de diferentes modos, mas parece produzir, como canção produtora, o mesmo efeito: a fixação num objecto nascido passagem mas tornado paragem, imobilizando o humano na desnecessidade ou na necessidade simulada sobreposta à original, assim desvalorizada. Na sequência disto, Baudrillard traz um contributo importante. Diz o sociólogo francês que “todo o objecto tem (…) duas funções: uma em que consiste em ser praticado, outra em ser possuído. A primeira procede do campo de totalização prática do mundo por meio do sujeito, a outra de uma empresa de totalização abstracta do sujeito por si mesmo e fora do mundo. Ambas as funções estão na razão inversa uma da outra. Ao limite, o objecto estritamente prático adquire um estatuto social: a máquina. De modo inverso, o objecto puro, despojado de função e fazendo abstracção do seu uso adquire um aspecto subjectivo: converte-se em objecto de colecção”128. Portanto, os objectos são vividos a duas dimensões, uma prática e outra abstraída do seu uso e centrada na sua posse. Quando a primeira é radical, o objecto é um absoluto instrumento, quando se extrema a segunda, o objecto é alvo da atracção que leva ao coleccionismo. Neste contexto, a primeira, obedece à sua razão de ser: objecto de uso; a segunda, resulta da transformação do objecto em relíquia, isto é, numa possível associação do objecto útil à aura benjaminiana (associação não analisada neste trabalho), na iconização ou na sua magicização. Em concordância, é importante ainda fazer referência às reflexões que Garcia desenvolve acerca de Georg Simmel129, destacando a abordagem deste autor à questão dos meios e dos fins presente nas relações entre os indivíduos e a tecnologia. Assim, Simmel chama a atenção para a já referida inversão destes vectores. Com o predomínio tecnológico, emerge, com uma certa autonomia, um sistema de produção de meios que se sobrepõem aos fins que os tornaram necessários. Estes passam a servir apenas de desculpa incentivadora de mais tecnologia que esfuma em irrelevância a utilidade efectiva dos objectos produzidos. Ilustrando, Garcia afirma que “mesmo quando 128

Baudrillard, J citado por Floch, Jean-Marie (1993), Semiótica, marketing y comunicación, Bajo los signos, las estratégias, Barcelona, Ed. Paidos, pág. 163 129 Garcia, J. L. (2003), “Sobre a origem da crítica da tecnologia na teoria social. A visão pioneira e negligenciada da autonomia da tecnologia de Georg Simmel”, em Martins, Hermínio e José Luís Garcia (org.), Dilemas da Civilização Tecnológica, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, pág 92

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o progresso tecnológico promove a procura de novos fins, estes fins destinam-se a tornarse meios desse progresso tecnológico (…) a tecnologia passa a ser a finalidade da vida”130 – fins muitas vezes forjados, portanto, pela imposição de mais tecnologia. Nisto, há um distanciamento do telos da acção humana primordial131 e uma fixação na espectacularidade com que os meios povoam o quotidiano ofuscante. Assim, “o homem tem hoje luz eléctrica, mas esquece que o essencial não é a luz em si, mas aquilo que torna visível”132, o mesmo se passando com os automóveis publicitados: as imagens assim divulgadas promovem mais a luz deste veículo (a sua magia) do que aquilo que ele permite ver (o transporte). Para terminar, é necessário salientar a proximidade desta posição com a de McLuhan, a qual, não sendo levada à letra, antecipa muitas destas considerações, embora de um modo que se pode julgar redutor. O meio, mais do que a mensagem, parece ser a grande causa deste encanto, mas sem ser uma irreversibilidade ou um estado percepcional, podendo ser, assim, mais um desvio do receptor do que uma condição de recepção.

Depois de tratada a temática dos encantos que colaboram tanto com a utopia da comunicação como da tecnologia, resta investigar o que na natureza da publicidade contribui para os fenómenos identificados e delinear algumas notas sobre as hipotéticas causas históricas para o sucedido, já a um nível geral.

A impossibilidade do objecto útil ser neutro quando publicitado Como é sabido, a publicidade pretende acima de tudo vender um produto ou serviço. Se é isso que a move, o seu objectivo é o de persuadir consumidores em potência a transformarem-se em consumidores em acto. Para tal, utiliza as mais variadas técnicas. Ora, quando se fala de persuasão fala-se de retórica, pois esta é o domínio por objecto do discurso persuasivo, daquele que pretende inculcar num receptor uma nova 130

Idem., pág. 123 Idem., pág. 121 132 Idem., pág. 125 131

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mensagem do interesse do emissor. Esta pode ser emitida com boas ou más intenções. Algo que não se encontra muito longe do processo de encantamento já mencionado, na qual também um emissor procura produzir num receptor um efeito do seu interesse. Contudo, no encantamento a mensagem e o efeito são do foro irracional e na retórica ambos podem tanto ser irracionais como racionais. A eficácia dos efeitos provocados por estas intenções depende principalmente das capacidades críticas dos receptores. Historicamente, a retórica nasceu na Grécia Antiga devido ao emergir de uma sociedade democrática onde o discurso se tornou instrumento e a persuasão uma vitória. Mesmo na Idade Média permaneceu valorizada como disciplina. Contudo, com o Iluminismo e o Romantismo, a sua importância decaiu por via da sobrevalorização do evidente, logo indiscutível, por parte do Iluminismo, e do autêntico e sincero, logo não programável, por parte do Romantismo. Como a retórica se exerce no diálogo do não evidente e se prepara como projecto de persuasão, foi excomungada. Todavia, os séculos XX e XXI vieram ressuscitá-la. Depois da queda das evidências políticas, das universalidades axiológicas e das meta-narrativas alicerçadas em fundamentos arraigados como tradição, o mundo tornou-se num lugar onde a relatividade que exige diálogo e a incerteza que condena à verosimilhança forçaram o ressurgir da retórica como instrumento que qualquer indivíduo ou organização necessitam dominar para fazer valer o seu ponto de vista num contexto de perspectivas. Isto acontece tanto a nível político, filosófico ou ideológico, como económico133 e corresponde à já mencionada «cultura da argumentação». Daí a publicidade fazer parte desta composição retórica contemporânea como instrumento de persuasão com vista à sobrevivência económica de produtores de bens e serviços. O seu domínio foi sempre o do discurso falado ou escrito constituído por um conjunto de argumentos (topos) manipulados por um estar (ethos) do emissor em função da previsão dos efeitos no receptor (pathos) com vista ao seu convencimento.134 Contudo, a imagem, além de ethos, também é topos.

VV. AA. (2000), Logos – Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, Tomo IV, Lisboa/S.Paulo, Verbo pág. 734/739 134 Idem. 133

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Ambos, imagem e discurso, constituem as formas de que a publicidade se reveste com vista a atingir os seus fins consumistas, configurando assim um emissor e mostrando argumentos com o objectivo de maximizar as possibilidades do receptor responder positivamente. Confrontando mais directamente esta questão com a temática deste trabalho, julga-se ser possível conjecturar uma relação entre os elementos extra-funcionalidade do objecto já identificados e o domínio retórico. Primeiro, há que reconhecer que a progressiva injunção de elementos extrafuncionalidade nos objectos úteis não resultou necessariamente de intenções retóricas; contudo, pensa-se ser possível dizer que a publicidade, por via da sua natureza persuasiva, transmite uma mensagem que tende a acentuar os ditos elementos na medida em que eles podem tornar o objecto útil mais atraente. Estes elementos podem ser entendidos como argumentos que visam equipar o objecto útil de aspectos sempre mais sedutores do que a sua simples função eventualmente útil. Podem ser introduzidos no objecto durante a sua produção, na pósprodução (quando se pretende publicitar o produto) ou em todo o processo de criação, produção e divulgação do produto. Isto releva para as dimensões extra-funcionalidade identificadas. A dimensão icónica parece ser transversal a todo o processo, na forma de design próprio ou de imagem acoplada; a mágica aparenta dominar a criação e a produção do produto, na medida em que é nessas etapas que se coloca em prática e em resultado o alto nível de desenvolvimento tecnológico que resulta na magicização fomentada, depois, pela dimensão icónica. Assim, escolhendo o termo “neutro” para designar um objecto útil cujo único valor destacado nas relações com ele estabelecidas é o prático, efeito da função que o fez nascer e destituído de qualquer elemento extra-funcionalidade, como seja icónico ou mágico, é possível afirmar que um objecto publicitado é determinado por elementos persuasivos que fomentam nele a existência de extra-funcionalidades que se lhe acrescentam com o intuito de torná-lo mais apelativo e vendável. Quando se trata de um objecto como um automóvel, o encanto verifica-se, como se viu, no sentido da sobreposição sobre a funcionalidade de caracteres mais enigmáticos

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e poderosos, que reduzem a funcionalidade ao mínimo. A cada um destes elementos é possível chamar de argumento imagético retórico (argumentos icónicos que fomentam o mágico), como seja à ocultação do funcionamento interno do objecto, aos efeitos especiais elaborados para o apresentar como possuidor dum poder superlativo, à ausência dum “depois” dos seus poderes, aos aspectos lúdicos e utópicos que se lhe acoplam e à fantasia com que se o apresentou certos momentos. Estes elementos não faziam falta ao automóvel neutro. Contudo, vieram enriquecê-lo com intuitos comerciais e transformarlhe o estatuto. A dimensão icónica, por sua vez, também age retoricamente, mas a priori e nos malabarismos de edição. A aparente presença e a diluição da aparelhagem permitem construir os efeitos identificados como se a construção não existisse. Os planos, os efeitos especiais já referidos e as opções de câmara e de edição são desneutralizadores do objecto útil. Portanto, estes são também argumentos imagéticos retóricos (apenas icónicos). Isto acontece num campo onde é decerto tentador inculcar estes argumentos cosméticos no objecto publicitado. Dificilmente um produto pode ser apresentado de modo neutro, a não ser que o produto e o público-alvo a isso obriguem. O carácter da publicidade é mesmo esse: fazer alguma coisa ao produto que o torne mais vendável, ao contrário das intenções do inventor primitivo, demasiado primitivo. Vejamos quão. Avance-se então para uma curta abordagem à História, procurando identificar momentos onde estes elementos extra-funcionalidade começaram a transformar o estatuto do objecto útil.

A desneutralização do objecto primitivamente neutro

Conjecturando-se uma metamorfose no objecto útil que progressivamente o transformou como ente e afectou o modo como os indivíduos com ele se relacionam, é necessário, neste contexto, começar por procurar o objecto em causa antes de sofrer a dita injunção, descobrindo depois as primeiras transformações que em si ocorreram. Isto porque a oposição plasmada nos dois extremos da linha evolutiva a perspectivar é constituída, no primeiro extremo cronológico, por um objecto útil isento de

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qualquer apêndice extra função primária, e, no último extremo cronológico, por um objecto útil iconizado e magicizado por dimensões que não concorrem directamente para a sua função primária e o revestem de camadas de encanto que fixam os indivíduos que com ele agem independentemente da real utilidade daquilo a que se prendem. Ora, encontrar o primeiro par da oposição em causa exige recuar no tempo mais do que à partida se poderia esperar. Recua-se à pré-história – única época onde parece ser possível reconhecer um objecto efectivamente neutro, isto é, estritamente utilitário. Esta espécie de arquétipo serve, bem ou mal, de modelo à luz do qual os outros objectos são analisados. Cronologicamente, os anais da História remetem para 2 000 000 a.C. a data da criação dos primeiros utensílios pelas mãos do homo habilis, com o intuito principal de cortar caça135. Do ponto de vista arqueológico, os objectos mais antigos deste tipo encontrados datam desta época. Eram essencialmente de dois tipos: os fragmentos clactonianos, pedaços retirados de uma pedra base, e o núcleo, o resto da pedra base, que depois de assim talhado também era utilizado136. É nestes objectos que é possível observar uma rudeza e simplicidade resultantes de uma funcionalidade simples, filha da necessidade premente. Nada neles, que evoluíram para o “chopper”, uma espécie de cutelo, e para o biface elementar, nos envia para dimensões estéticas, mágicas ou religiosas criadas voluntariamente pela mão humana. Quando acontece, então, a primeira injunção de extra-funcionalidades no objecto arquetipicamente neutro, reduzidamente orientado para o fim que o fez nascer? Quando se inicia o primeiro desvio? Encontramo-lo na dimensão estética – primeira reificação do meio e da forma incrustados no fim e no conteúdo. Julga-se possível perceber uma sua primeira insinuação, mas ainda sob o espectro dirigista da funcionalidade, numa evolução aerodinâmica dos objectos descritos. Atendase às seguintes palavras de Leroi-Gourhan acerca da produção de utensílios pelo homem primitivo de Arcy: “quando olhamos para os mais belos sílices talhados dessa época, sentimos que a arte começou a sua evolução. Não possuímos nenhuma obra plástica; se existia, perdeu-se. Mas já estamos perante o que se chama estética funcional, isto é, a

135 136

Leroi-Gourhan, André (1999), Os Caçadores da Pré-História, Lisboa, Ed. 70, pág. 11 Idem., pág. 71

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procura, no fabrico dos utensílios, das formas mais belas e mais eficazes, tal como actualmente as formas aerodinâmicas”137 , perspectiva com a qual Louis-Renés Nougier concorda, mas designando a tendência em causa por “arte técnica”.138 Ambos salientam a associação entre a necessidade de eficácia e a procura de beleza, a qual, à medida que se inculca no objecto, vai resgatando do mesmo a exclusividade da dimensão utilitária, pois não se destina a esta. Depois desta forma já estética, mas ainda delineada no objecto sob a prioridade e total hegemonia da forma utilitária, é possível reconhecer um avanço maior no sentido em causa mediante a observação duma acentuação do âmbito estético já identificado. Tal passa-se no modo decorativo. É na época que os estudiosos chamam de idade da rena que aparecem os primeiros objectos úteis decorados, nomeadamente zagaias, arpões, propulsores e bastões perfurados139. Pode, sem dúvida, colocar-se em causa o carácter decorativo dos adornos inculcados nos ditos objectos, atribuindo-se-lhes antes uma função mágico-religiosa. Contudo, existe uma dúvida razoável quanto à possibilidade de se formar uma certeza a esse respeito. Nas palavras de Leroi-Gourhan “é possível que uma intenção mágica140 tenha presidido a tais obras: uma zagaia ornada com renas podia ser considerada como mais capaz do que outra para atingir a caça. Mas também é admissível que o artista trabalhasse por prazer”141, que nele não existissem, portanto, outros motivos que os estéticos, dissociados da intenção final do objecto, permanecendo o artesão no registo mental que acredita que “um arpão não decorado mata igualmente um salmão”142. Portanto, não interessando analisar mais do que este primeiro momento (na medida em que, reconhecendo o arquétipo, clarifica-se o critério), não parece oportuno explorar posteriores desenvolvimentos e nuances. Todavia, é importante referir que este primeiro processo corresponde, em certa medida, a uma iconização do objecto útil, não no sentido em que este é projectado em imagem tradicional ou técnica, mas no sentido em que um ícone se incrusta na sua superfície e o declina de um novo modo: não já 137

Idem., pág. 38 Nougier, Louis-René (1993), L’Art de la Pré-Histoire, Paris, LGF – Livre de Poche, pág.16 139 Leroi-Gourhan, André (1999), Os Caçadores da Pré-História, Lisboa, Ed. 70, pág. 110 140 Uma magia funcional e não uma magia dirigida ao consumo contemporâneo. 141 Leroi-Gourhan, André (1999), Os Caçadores da Pré-História, Lisboa, Ed. 70, pág. 141 142 Idem., pág. 134 138

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estritamente útil. Esta nova dimensão jamais abandonará o objecto útil, fazendo-se sentir, ora de um modo mais acentuado, ora menos, ora como gravura, ora como forma.

Este não foi o único modo de transformação do estatuto do objecto útil. Como se viu anteriormente, além da dimensão icónica, existe a dimensão mágica. Como se viu, embora tardiamente, também ela causou a metamorfose referida. Tal começou a verificar-se com o surgimento do segundo tipo de objecto útil já mencionado – aquele cuja sequência causal que possibilita a sua função é oculta e exige especialização para ser conhecida. Este é um objecto exponencialmente mais tecnológico em si e cuja produção mobiliza um sistema tecnológico muito mais amplo. Portanto, um objecto mais complexo. Moles distingue dois tipos de complexidade nos objectos: a funcional, que diz respeito à “dimensão estatística dos seus usos”143, à diversidade de utilizações que um objecto possui – quantos mais usos, maior complexidade; e a estrutural, referente aos elementos que constituem o objecto – quantos mais elementos e relações entre eles, maior a complexidade. O segundo tipo de complexidade intersecta-se com esta reflexão na medida em que o segundo tipo de objecto é de um novo tipo de complexidade, a qual, por altamente elevada, alimenta o carácter enigmático que os objectos tecnológicos adquirem a determinado nível de elaboração e potência. Desse modo, a magia que os utilizadores denotam nos objectos, desviando-se da sua estrita finalidade, resulta, em grande medida, desta nova configuração. Além da complexidade dos objectos, o seu poder também encanta. Julga-se que este surge e desenvolve-se paralelamente àquela, pois os objectos tecnológicos úteis adquirem mais poderes, melhores e mais improváveis funcionalidades na mesma medida em que aumenta a complexidade tecnológica que os estrutura, visto ser esta a razão sine qua non do seu poder funcional. Sem uma complexidade estrutural tão elevada, um automóvel jamais apresentaria as funcionalidades que apresenta. O mais provável seria nem existir.

143

Moles, Abraham (1973), Rumos de Uma Cultura Tecnológica, S. Paulo, Ed. Perspectiva, pág. 204

99

Esta nova esfera de complexidade e poder inicia-se com o emergir da ciência moderna, da revolução industrial e da aliança entre ambas, que resulta na técno-ciência. Evitando pormenores prolixos, é importante, pelo menos, referir que a Revolução Industrial foi um processo iniciado no século XVIII e que se estendeu até ao século XX. Foi fundamentalmente um movimento de transformação tecnológica com amplas consequências sociais. Os progressos técnicos permitiram uma maior complexidade tecnológica e o aumento da produção, que se tornou assim industrial. Passou-se a produzir em massa e também para as massas se preparou paulatinamente o consumo. Os objectos altamente tecnológicos tornaram-se acessíveis a uma elevada maioria, naturalmente leiga relativamente ao funcionamento estrutural daquilo que consumia. Portanto, as portas abriram-se ao encanto das massas, tão desejosas de serem encantadas como os encantadores de encantar. Com o decorrer das décadas, o desenvolvimento tecnológico acelerou, os componentes tenderam a diminuir e, consequentemente, ocupando o mesmo volume, o objecto aumentou o alcance das suas funções e a complexidade das suas relações internas, portanto, o seu poder e o que oculta nesse mesmo poder. Daí que a magicização como possibilidade pareça ter tendência a aumentar. Até quando e por onde, não se sabe.

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3. CONCLUSÃO No seu término deste estudo, chega o momento de recapitular o percurso e destacar algumas conclusões de fundo relativamente ao estudado. O objectivo deste texto era o de identificar em alguns anúncios publicitários a automóveis elementos que se assemelhassem às características do que se designou como encanto. Este integra-se num sistema do qual a publicidade faz parte como fomento do consumo. Para orientar teoricamente a tese, recorreu-se ao encanto na arte. Neste descobriram-se os elementos que já antes tinham delineado o carácter do encanto: o oculto e o poder. O que encanta consegue-o à custa do exercício de um poder superior às naturais forças humanas ocultando os processos que o sustentam. Ora, verificou-se que as tecnologias altamente complexas da comunicação transformaram o encanto da arte mas sem elas próprias perderem o seu, agora na forma icónica. Com alguns deslocamentos, este encanto constituiu-se do mesmo modo oculto e poderoso, sustentando hereditariamente a produção publicitária televisiva, que, por sua vez, ajudou a intensificar um outro encanto, o mágico, também ele oculto e poderoso dum modo especificamente deslocado. Este não nasceu do icónico, mas foi por ele configurado sobre a forma de publicidade, que o usa como veículo de consumo. Portanto, o encanto artístico criado pela tecnologia revestiu-se de outras formas derivadas da nova complexidade tecnológica comunicacional e duma sociedade de consumo que incentiva a assimilação de elementos encantadores no objecto útil com vista a torná-lo mais vendável, intento concomitante com a já mencionada racionalização do consumo por via mediática – racional para quem a provoca, mas pouco para quem sofre os seus efeitos. Como enquadramento teórico deste fenómeno analisaram-se duas utopias, a da comunicação e a da tecnologia, as quais produzem um geral reencantamento do mundo. A primeira vale-se predominantemente do encanto icónico, a segunda, do mágico. Ambas, como dinâmicas tecnológicas, sociais e políticas, substituíram o que as ideologias ocuparam depois da religião e deixaram vazio após terem falhado os seus propósitos: o âmbito da crença e da emocionalidade. Configuram assim um processo de

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reencantamento do mundo com fins económicos, que se socorre da estética para, aliada à tecnologia, comunicar uma espécie de boa nova do técnico transparente. A publicidade tem um papel suficientemente relevante neste processo. Pelo seu carácter persuasivo, poder económico e suporte tecnológico, a publicidade é um agente por natureza de encanto que se vale dos instrumentos icónicos e mágicos para aumentar as vendas dos produtos. Estes, em geral úteis, são cercados e constituídos de elementos extra-funcionalidade com o objectivo de os tornar mais atraentes por via dos encantos possuídos por esses elementos. Portanto, a hipótese deste texto confirmou-se. Mas mais se pode dizer. Esta injunção de elementos extra-funcionalidade nos objectos úteis não se iniciou com a publicidade. Julga-se que o seu começo remonta à Pré-História com a introdução nos objectos úteis de componentes estéticos irmãos do encanto icónico (a imagem é por natureza estética). Por esta via, até hoje, há uma estetização do tecnológico que visa torná-lo encantador, a posteriori a sua origem. O encanto mágico nasce com a crescente complexidade (mais complexidade oculta e mais poder decorrente) da tecnologia desencadeada na Revolução Industrial e a profusão tecnológica daí consequente que acabou por se aliar ao encanto que já vinha da Pré-História. Assim, o encanto mágico decorre mais da constituição de base do objecto, elaborada em contexto de produção, do que o icónico, o qual parece ser colocado sobre o dito, predominantemente, em contexto de difusão. Contudo, detendo a capacidade de potenciar aquele. Portanto, deste estudo é possível afirmar que se assiste a uma estetização do tecnológico por via do encanto icónico, que acentua e divulga o mágico. Os elementos extra-funcionalidade são estimuladores sensoriais que, no consumo, desviam a racionalização do uso para a emocionalidade no ter e enquadram-se no espírito persuasivo – ou manipulador? – da «cultura da argumentação» que amiúde usa argumentos «evidentes». Estes aspectos fixam o objecto. Assim, ambos provocam uma inversão no seu carácter funcional, que, em vez de ser tratado como meio, passa a ser tratado como fim. O instrumento, que serve para alguma coisa, a razão de ser do objecto de uso, transforma-se ele mesmo a sua razão de ser, o indivíduo adquire-o e interessa-se por ele mais porque ele

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o encanta do que porque ele lhe serve para alguma outra coisa que não ele próprio. É talvez um modo de vender produtos a quem deles não necessita mas se sente atraído pelos já designados extras. Esta posição encontra concordância entre autores como Vilém Flusser, que diagnostica na sociedade actual uma inversão dentro da relação Homem/instrumentos. Os últimos passaram a centrar a vida social, determinando-se ontologicamente sobre a humanidade; isto é, o modo de ser dos indivíduos constituiu-se depois e sobre os instrumentos em lugar destes se delinearem em função das necessidades humanas. A causa deste fenómeno terá sido a transformação tecnológica realizada pelas teorias científicas a partir da Revolução Industrial e a consequente invasão da sociedade por parte duma tecnologia por natureza programada (por poucos) que, assim, programa (quase todos) mais do que se deixa programar144. Também Simmel, nas palavras de Garcia, vai de encontro a esta perspectiva, afirmando precisamente esta inversão de predominâncias: a humanidade passa a servir os fins da tecnologia em lugar desta servir os fins da humanidade145. Portanto, esta autêntica inversão teleológica parece continuar sem resolver o problema que já Weber colocava, quando afirmava a incapacidade da ciência e da racionalização para responderem à questão sobre o sentido, o para quê último146. O estado hipotético considerado neste texto sempre pronto a efectivar-se nas relações sociais, e que é possível verificar-se no dia-a-dia, confirma a impotência da tecnologia como sentido universal. O seu sentido particular – útil – subentende um sentido universal heterogéneo prévio à sua invenção. Quando o sentido se ausenta, como nos dias de hoje, ela não tem a capacidade efectiva de tomar o seu lugar. Posta nele, como sentido universal, transforma-se num círculo vicioso sobre si mesma sem outro futuro que o seu próprio presente. O paradoxo deste fenómeno reside no facto de a essência irracional do encantamento apoiar-se sobre estruturas tecnológicas altamente racionais, as quais, para 144

Flusser, Vilém (1985), Filosofia da Caixa Preta, Ensaios para uma futura filosofia da fotografia, S. Paulo, Ed. Hucitec, pág. 13/14 145 Garcia, J. L. (2003), “Sobre a origem da crítica da tecnologia na teoria social. A visão pioneira e negligenciada da autonomia da tecnologia de Georg Simmel”, em Martins, Hermínio e José Luís Garcia (org.), Dilemas da Civilização Tecnológica, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, pág. 131 146 Aron, Raymond (1991), As Etapas do Pensamento Sociológico, Lisboa, Publi. D. Quixote, pág. 521

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deterem poder sobre os potenciais encantados, precisam de se manter ocultas, enigmáticas, herméticas ou inacessíveis, tal como tão bem mencionou Ritzer147. O resultado são assimetrias entre especialistas e leigos, dum modo transversal e cruzado; ou seja, afecta todos, que ora são especialistas ora são leigos, dependendo do sistema tecnológico em causa. O que, de certo modo, já Simmel identifica ao salientar a desproporção entre a cultura subjectiva (aquela que é vivida psicológica e socialmente pelos indivíduos) e a cultura objectivada (aquela que é concretizada nas criações e organizações materiais, nomeadamente na tecnologia)148. Esta última, através de sistemas de produção altamente especializados e espartilhados, distancia-se complexamente da primeira deixando os indivíduos isolados numa espécie de simplicidade encurralada facilmente encantável. Abismo que fomenta manipulações. Esta visão, embora possa parecer pessimista, deve ser relativizada, no sentido em que se evita partir do princípio que este fenómeno é totalizador das relações humanas. Contudo, está altamente presente como hipótese vivencial. Nos media, nos produtos de consumo e nos modos de vida multiplicam-se agentes extra-funcionalidade destituídos de sentido futuro e imersos numa razão de ser consumista determinada por um presente estritamente económico. Por isso, o canto nem sempre é o de Orfeu, por trás de cada canto pode sempre haver uma sereia a produzi-lo. Para a sua descoberta, só a crítica e a cultura, que passam por uma educação para os media e, talvez se deva acrescentar, para a tecnologia, desmistificando utopias e constituindo outros sentidos visíveis no quotidiano.

147

Ritzer, G. (2000), El Encanto De Um Mundo Desencantado. Revolucion En Los Médios De Consumo, Barcelona, Ed. Ariel, pág. 86 148 Garcia, J. L. (2003), “Sobre a origem da crítica da tecnologia na teoria social. A visão pioneira e negligenciada da autonomia da tecnologia de Georg Simmel”, em Martins, Hermínio e José Luís Garcia (org.), Dilemas da Civilização Tecnológica, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, pág. 134

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