O Engenho dos Erasmos ou dos Esquetes em São Vicente

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parte 3 – relações econômicas: comércio e empresas

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O Engenho dos Erasmos ou dos Esquetes em São Vicente Eddy Stols e Silvio Cordeiro

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m dos primeiros engenhos de açúcar no Brasil, o Engenho do Governador em São Vicente, é também o mais antigo investimento de mercadores flamengos no Novo Mundo (Stols e Cordeiro). Construído nos anos de 1530 pelo donatário da capitania, Martim Afonso de Sousa, contava entre seus sócios Johan Van Hilst, aliás João Veniste, nativo de Hasselt, que representava em Lisboa os interesses de seu tio, Erasmo Schetz. Este, de origem alemã, mas nativo de Maastricht e casado com uma rica herdeira de Antuérpia, Ida van Rechtergem, controlava na região de Aachen a exploração de calamina e cobre e a produção de bacias e manilhas de latão, em parte destinadas ao comércio português na África ocidental. Assim, granjeava longa experiência comercial em Portugal, onde tratava também especiarias, açúcar, trigo, tapeçarias ou mesmo cerveja. Gozava da confiança de Dom Manuel e de Dom João III, provavelmente para empréstimos de dinheiro. Regressando a Flandres, desenvolveu, sem abandonar o comércio, sua atividade bancária na praça de Antuérpia, prestando serviços financeiros tanto ao humanista Erasmo de Roterdã como ao imperador Carlos V. Bem relacionado no meio mercantil e intelectual desta metrópole cosmopolita, transformou a casa de seu sogro, Huis van Aken, numa das melhores residências de Antuérpia, onde recebeu, em 1549, Carlos V e seu filho, Felipe II. Para assegurar o enobrecimento de sua estirpe, Erasmo adquiriu em 1545 a senhoria e o castelo de Grobbendonk. Seus filhos continuaram nesta senda senhorial, se bem que os descendentes de Gaspar, casado com Catarina van Ursel, adotaram este nome e conhecem-se ainda hoje como duque e condes d’Ursel. A compra por Erasmo, nestes anos de 1540, das outras partes do engenho em São Vicente podia corresponder ao anseio de inserir-se socialmente entre os outros grandes banqueiros, Fugger e Welser, que também lançaram empresas coloniais na América. Tinha sobretudo a ver com a fulgurante expansão do negócio açucareiro, do qual Antuérpia, com grandes refinarias e numerosos confeiteiros, projetava-se como o maior centro da Europa setentrional. Se na entrada do Rio Escalda a tabela do pedágio de Iersekeroord mencionou o açúcar ‘Bresilli’ já em 1519, três anos

depois da introdução de seu plantio no Brasil por Dom Manuel, sua produção provinha, na época, principalmente da Madeira e das Canárias, onde outros mercadores flamengos tinham instalado engenhos. No intuito de ampliar o abastecimento com a produção brasileira e preocupado em rentabilizar sua nova propriedade, Erasmo enviou um servidor flamengo de sua filial de Lisboa a São Vicente para fiscalizar a gestão do feitor Pedro Rouzée. Pode ter sido um outro sobrinho seu, Sydrach Schetz, filho bastardo do irmão cônego em Maastricht, Willem Schetz, que no seu testamento de 1527 lhe confiou sua tutoria e uma pensão. O mesmo Sydrach Esquete apareceu, em 1557, na Inquisição de Lisboa como capitão do navio São Jorge, vindo do Brasil e acusado de luteranismo. O relatório deste agente, escrito em flamengo e enviado de São Vicente em 13 de maio de 1548 – um dos mais antigos deste tipo no novo mundo –, prefigura um raro exemplo de auditoria moderna e surpreende por sua fria capacidade de análise capitalista. Encontra o engenho como uma pequena fortaleza, elevada e munida com baluartes para sua defesa contra os índios ou outros invasores. Consta de uma casa grande, bem construída, espaçosa, com senzala e ferraria e mais duas casas cobertas de telhas. Apenas a roda d’água do engenho precisa de consertos e deveria ser remontada para cima, a fim de evitar as inundações da maré. Produz 900 arrobas de açúcar, mas apenas 400 exportam-se a Portugal, porque, por falta de moeda circulante, os serviços e as mercadorias pagam-se com açúcar. O próprio agente deve no pagamento de suas mercadorias contentar-se com uma letra de câmbio sobre Antonio Becudo em Lisboa. Outro problema sério numa terra de muitos degredados e malandros é a ausência de um aparato judiciário eficiente. Para aumentar a produção, julga indispensável recuperar as terras cedidas ou ocupadas pelos moradores e comprar novas roças. Rouzée já conseguiu incorporar 32 tarefas a mais. Com mais cana própria, dispensar-se-ia de moer aquela dos moradores a custo maior. Para alcançar esta autarquia e ao mesmo tempo suprimir os salários da mão de obra livre, dispõe-se de uma numerosa escravaria, se bem que destes 130 escravos da terra, somente a metade

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Um dos primeiros engenhos de açúcar no Brasil, o Engenho do Governador em São Vicente, de 1530, é também o mais antigo investimento de mercadores flamengos no Novo Mundo.

trabalha, o resto sendo velhos ou crianças. O relator aprecia muito mais os oficiais africanos, sete ou oito escravos negros da Guiné: o mestre de açúcar, que fornece um produto de excelente qualidade e vale bem o salário de trinta mil réis, que na Madeira pagaria-se para um semelhante; e mais um purgador e dois caldeireiros, que também dispensam as quatro arrobas de açúcar, pagas normalmente por mês a cada oficial livre. A compra de mais escravos para fazer carvão e cinzas e plantar mantimentos economizaria o dinheiro gasto nas compras aos moradores. Aconselha por fim de reforçar sua dieta de produtos da terra, como a ‘panqueca de mandioca’, que vale cem réis e alimenta uma pessoa por três ou quatro dias, com carne, bacalhau ou outros peixes salgados e queijos flamengos e holandeses. Desconhece-se a sequência dada às suas propostas, mas quando Erasmo faleceu pouco depois, em 1550, seus filhos e herdeiros – Gaspar, Baltasar, Melchior e Conrart – formaram uma companhia, que devia também gerenciar o engenho. Este, no período conturbado das investidas francesas nas costas brasileiras, tornouse um ponto de encontro e refúgio, conhecido como Engenho de São Jorge dos Erasmos ou dos Esquetes. Por lá deviam ecoar as controvérsias religiosas entre protestantes e católicos como também a curiosidade humanística pela natureza e pela cultura dos índios. Dois soldados alemães, que passaram pelo engenho, vieram na sua volta por Antuérpia contar aos Schetz suas aventuras, Ulrich Schmidl em 1554 e Hans Staden em 1555. O livro deste último sobre sua catividade entre os canibais foi traduzido para o flamengo e publicado, em 1558, em Antuérpia por Christophe Plantin, que lançou simultâneamente uma edição barata do livro de André Thevet sobre as singularidades brasileiras. Este interesse podia relacionar-se com a propriedade brasileira dos irmãos Schetz. Estes, muito envolvidos na vida financeira, política e cultural de sua cidade e dos Países Baixos,

sofreram pouco depois dramáticas perdas de vida, de fortuna e de prestígio durante a tormentosa guerra civil subsequente à revolta contra Felipe II. Nem por isso deixaram seu engenho num abandono completo e enviaram para lá, por várias vezes, navios com abastecimentos e novos empregados, como Jean-Baptiste Maglio, Paulo Wernaerts, um jovem cunhado de Van Hilst, e Geronimo Maya. Em 1565, Conrart Schetz e seu parente Jehan Vlemincx investiram pouco mais de 1.300 libras em mercadorias, equipamentos, ferros e até canhões, despachados num navio português. Em 1579, o navio Licorno levou seis fardos pelo valor de mais de mil florins (Laga). Seu conteúdo reflete o cotidiano no engenho, que misturava uma vida senhorial escravocrata com requinte burguês flamengo. Trazia, ao lado de quatro dúzias de camisas e outras tantas de pratos de madeira destinados aos escravos, também tecidos mais finos, lençóis de cama, guardanapos, utensílios de cozinha, panelas para peixe, pratos de estanho, canecas para vinho e até uma batedeira de manteiga. Se vinham caldeirões, tachos de ferro e de cobre e material de ferraria, não faltavam uma escrivaninha, papel e pena, e para o auxiliar Paulo Wernaerts um clavicórdio. Tocava-se música renascentista no engenho dos Erasmos! Seguia também uma quantidade surpreendente de pinturas e imagens, uma parte talvez para ornar a capela do engenho, mas sobretudo destinadas à catequese dos índios pelos jesuítas. Estes padres, inclusive o famoso Anchieta, mantinham contatos com Gaspar Schetz, que em Antuérpia lhes tinha vendido a Huis van Aken. Vigiavam particularmente o comportamento moral do feitor e de seus auxiliares em São Vicente. Estes subalternos apropriaram-se provavelmente de uma boa parte dos bens e o rendimento do engenho entrou em crise, ainda mais durante as incursões em Santos de piratas ingleses e holandeses no final do século. Mesmo assim, os netos de Erasmo,

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já completamente integrados na vida nobiliária e militar, não esqueceram seus direitos sobre suas posses brasileiras. Desde 1603 tentaram enviar, sempre por intermédio dos jesuítas, um procurador para investigar estas malversações. Finalmente, em 1612, o mercador flamengo Manuel van Dale conseguiu chegar até lá e lavrou em Santos, junto com os jesuítas, um protesto para obstruir a venda, pelo provedor de ausentes, dos bens dos Schetz, dos escravos e equipamentos de cobre. De pouco adiantou porque, em 1615, na sua volta ao mundo, o pirata Joris Van Spilbergen – por sinal um antuerpiense passado para o lado dos rebeldes holandeses – passou por São Vicente e, não obtendo ajuda nem abastecimento entre os habitantes, mandou por vingança incendiar o engenho dos seus conterrâneos. Se este desapareceu do horizonte dos Schetz, continuou a produzir açúcar, beneficiado em marmeladas e outras conservas apreciadas na economia regional. Finalmente, o terreno com as ruínas do engenho, localizado no atual município de Santos e tombado pelo patrimônio histórico, foi doado em 1958 à Universidade de São Paulo (USP). Esta o valorizou desde 2005 com pesquisas arqueólogicas e projetos educacionais e construiu ao lado um centro de estudos com biblioteca e auditório. Do lado belga ou flamengo não percebeuse ainda o significado e o potencial comemorativo deste monumento como elo tanto econômico como cultural entre Flandres, Portugal e o Brasil. Se os investimentos brasileiros dos Schetz resultaram onerosos pela distância e pelo controle difícil e lhes renderam finalmente poucos lucros, foram ao mesmo tempo estimulantes e corretivos para o desenvolvimento da produção açucareira no Brasil e para a sua concentração nas capitanias do Nordeste, mais próximas da Europa. Lá, em Pernambuco ou na Bahia, outros mercadores seguiram o exemplo dos Schetz e construíram engenhos, como os Lins e os Hoelscher, alemães conectados com Antuérpia. Mais jovens flamengos ousaram aventurar-se na compra de açúcares nas costas brasileiras e um deles, Gaspar de Mere, ergueu até seu próprio engenho no Cabo de Santo Agostinho, perto de Recife. Sobretudo os cristãos novos portugueses, católicos ou judaizantes,

souberam aproveitar a dinâmica e ganhar um notável predomínio desta rota açucareira. No mercado de Antuérpia o produto brasileiro aumentou sua cota de aproximadamente 15% por volta de 1570 para mais de 85% no último decênio do século XVI. Sua nova abundância abriu o consumo do açúcar, antes reservado à medicina e à aristocracia, a uma clientela mais larga, mesmo popular e infantil. Nas pinturas dos Breughel até o camponês rendeiro é presenteado por seu patrão com um pão de açúcar. Com a reconquista católica de Antuérpia, em 1585, e o subsequente bloqueio do Rio Escalda pelos holandeses, Antuérpia viu partir muitos refinadores para Amsterdã e teve que lhe ceder sua supremacia. Mesmo assim, recebia através de Lisboa suficientes caixas de açúcar brasileiro – em média duas mil no período de 1609-1621 – para manter uma requintada cultura da doçaria. O que Antuérpia perdia em quantidade compensou em boa parte pela qualidade de seu açúcar mais fino e pela diversidade de seus confeitos, um luxo representado e celebrado nas naturezas mortas de Osias Beert, Clara Peeters e outros pintores deste estilo antuerpiense, como o alemão Georg Flegel. Silvo Luiz Cordeiro, arquiteto pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), Doutor em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (MAE -USP) e documentarista, desenvolve projetos relacionados ao patrimônio histórico e arqueológico, como um filme sobre o Engenho dos Erasmos; em 2011 criou a Mostra Audiovisual Internacional em Arqueologia (MAIA).

Referências Carl Laga. ‘O Engenho dos Erasmos em São Vicente; Resultado de pesquisas em arquivos belgas’. Estudos Históricos, Marília, n. 1, 1963, p. 13-43. Eddy Stols. ‘Um dos primeiros documentos sobre o Engenho dos Schetz em São Vicente’. Revista de História, São Paulo, n. 76, 1968, p. 407-419. Eddy Stols. ‘The Expansion of the Sugar Market in Western Europe’. Ed. Stuart B. Schwartz, Tropical Babylons, Sugar and the Making of the Atlantic World, 1450-1680, University of North Carolina Press, 2004, p. 237288. Daniel Strum. O Comércio do Açúcar. Brasil, Portugal e Países Baixos (15951630). Rio de Janeiro, 2012.

A Companhia de Ostende e os portos brasileiros Eddy Stols

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ovas perspectivas de contatos marítimos com o Brasil apareceram quando os Países Baixos meridionais passaram, em 1713, do domínio espanhol para o austríaco sob o Imperador Carlos VI, um soberano benevolente. Já que o Rio Escalda e o porto de Antuérpia continuaram bloqueados pelos holandeses, os negociantes flamengos lançaram-se logo no comércio asiático a partir do porto de Ostende e armaram seus primeiros navios para Mocha, na Arábia, Surate, Malabar e Bengala, na Índia, e Cantão, na China.

Seus bons lucros com produtos em voga, como o chá, levaram, no final de 1722, à fundação, com patente do imperador, da Compagnie Générale Impériale et Royale des Indes, mais conhecida como Companhia de Ostende. Sua concorrência ameaçou o quase monopólio das poderosas Companhias das Índias orientais existentes, principalmente a holandesa e a inglesa. Estas hostilizaram os navios de Ostende, que na rota do regresso fizeram escala na colônia do Cabo ou na ilha de Santa Helena à procura de assistência e refrescos.

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