O Escritório das Nações Unidas dobre Drogas e Crime e o Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas: Uma Abordagem Voltada para o Direito Internacional dos Direitos Humanos

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Tráfico de Pessoas UMA ABORDAGEM PARA OS DIREITOS HUMANOS SNJ

Secretaria Nacional de Justiça

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Tráfico de Pessoas UMA ABORDAGEM PARA OS DIREITOS HUMANOS

MINISTéRIO JUSTIÇA MINISTÉRIO DA DA JUSTIÇA SECRETARIA DE REFORMA DOJUSTIÇA JUDICIáRIO SECRETARIA NACIONAL DE CENTRO DE ESTUDOS SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA

TRÁFICO DELGBTTT PESSOAS DIREITOS SEXUAIS DE NO BRASIL: JURISPRUDÊNCIA, PROPOSTAS LEGISLATIVAS E NORMATIZAÇÃO FEDERAL UMA ABORDAGEM PARA OS DIREITOS HUMANOS 1ª EDIÇÃO

BRASÍLIA 2013 EDIÇÃO DO AUTOR BRASÍLIA 2013

Direitos Sexuais de LGBTTT no Brasil_2308.indd 3

17/10/13 19:09

FICHA TÉCNICA: MINISTÉRIO DA JUSTIÇA SECRETARIA NACIONAL DE JUSTIÇA DEPARTAMENTO DE JUSTIÇA, CLASSIFICAÇÃO, TÍTULOS E QUALIFICAÇÃO COORDENAÇÃO DE ENFRENTAMENTO OO TRÁFICO DE PESSOAS Esplanada dos Ministérios, Bloco T, Ministério da Justiça, 4º andar, sala 429 Brasília – DF CEP: 70064-900 www.mj.gov.br/traficodepessoas Copyright É permitida a reprodução total ou parcial desta publicação, desde que citada a fonte. Organizadores: Daniela Muscari Scacchetti, Fernanda Alves dos Anjos, Gustavo Seferian Scheffer Machado e Inês Virginia Prado Soares Revisão: João Carlos Rocha Campos Diagramação: Ministério da Justiça Edição 1ª edição Tiragem: 2.000 exemplares 341.27 B823t

Brasil. Secretaria Nacional de Justiça. Tráfico de pessoas : uma abordagem para os direitos humanos / Secretaria Nacional de Justiça, Departamento de Justiça , Classificação, Títulos e Qualificação ; organização de Fernanda Alves dos Anjos ... [et al.]. – 1.ed. Brasília : Ministério da Justiça, 2013. 576 p. ISBN : 978-85-85820-56-5 1.Direitos humanos. 2. Crime contra a pessoa. 3. Tráfico de pessoa – prevenção. 4.Violência contra a mulher. 5. Direito internacional público. I. Brasil. Ministério da Justiça. II. Anjos, Fernanda Alves dos, org. CDD

Ficha catalográfica produzida pela Biblioteca do Ministério da Justiça

EXPEDIENTE: Presidenta da República Dilma Rousseff Ministro de Estado da Justiça José Eduardo Cardozo Secretária-Executiva do Ministério da Justiça Márcia Pelegrini Secretário Nacional de Justiça Paulo Abrão Diretora do Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação Fernanda Alves dos Anjos Diretor Adjunto do Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação Davi Ulisses Brasil Simões Pires Coordenadora de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas Lucicléia Sousa e Silva Rollemberg Equipe de Enfrentamento do Tráfico de Pessoas Angela Regina Cavalheiro Ansilieiro; Franciele da Nóbrega Caeiro; Maria Angélica Santos Sousa; Priscilla Hoffmann Mercadante; Tatiana Tutida Ribeiro Correa.

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ALGUMAS PALAVRAS DOS ORGANIZADORES

13 PREFÁCIO 17 APRESENTAÇÃO 21

PARTE I – TRÁFICO DE PESSOAS E JUSTIÇA GLOBAL

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1. Tráfico de Pessoas: Comércio Infamante num Mundo Globalizado – Priscila Siqueira

43

2. O Escritório das Nações Unidas Sobre Drogas e Crime e o Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas: uma Abordagem Voltada para o Direito Internacional dos Direitos Humanos – Bo Stenfeldt Mathiasen, Elisa de Sousa Ribeiro e Rodrigo Flávio de Ávila Vitória

75

3. Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas sob a Ótica dos Direitos Humanos no Brasil – Inês Virgínia Prado Soares

105

4. Tráfico de Pessoas sob a Perspectiva de Direitos Humanos: Prevenção, Combate, Proteção às Vítimas e Cooperação Internacional – Flávia Piovesan e Akemi Kamimura

133

5. Problematizando o Conceito de Vulnerabilidade para o Tráfico Internacional de Pessoas – Ela Wiecko V. de Castilho

155

6. Por Que é Importante Compreender o Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas Como uma Política de Estado? – Anália Belisa Ribeiro

177

7. Escravo, Nem Pensar!: Uma Experiência da Sociedade Civil para a Prevenção ao Tráfico de Pessoas e ao Trabalho Escravo – Natália Suzuki

195

8. Análise Crítica do Projeto de Lei 2845/2003 – Fábio Ramazzini Bechara

207

9.Tráfico de Pessoas: Da Informação ao Aprendizado – Tatiana Félix

215

10. Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil: Perspectivas e Desafios – Fernanda Alves dos Anjos e Paulo Abrão

SUMÁRIO 235 PARTE II – ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS E SUAS MODALIDADES: O OLHAR PARA A PROTEÇÃO DAS VÍTIMAS 237

11. Tráfico de Pessoas para Fins de Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes – Dalila E. M. D. Figueiredo

247

12. Tráfico de Meninas e Mulheres para Fins de Exploração Sexual Comercial: Uma Problemática que Extrapola Divisas Nacionais – Tamara Amoroso Gonçalves

279

13. Tráfico Internacional de Seres Humanos, Prostituição e Vulnerabilidade: Análise Conceitual e Empírica – Daniel de Resende Salgado

313

14. Tráfico Internacional de Modelos Brasileiras para a Índia: Análise de Caso – Jefferson Aparecido Dias

345

15. Deslocamentos Contemporâneos e Tráfico de Pessoas em Cidades Globais: Dilemas, Ações e Solidariedade – Claudia Moraes de Souza

371

16. Políticas Migratórias e Tráfico de Pessoas: Quando a Árvore Esconde a Floresta – Camila Baraldi e Deisy Ventura

397

17. A Feminização da Migração e os Desafios das Bolivianas, Peruanas e Paraguaias que Migram para São Paulo – Marina M. Novaes

425

18. O Mergulho da Águia do Oceano: Afirmação Terminológica doTrabalho Escravo Como Meio de Enfrentamento – Gustavo Seferian Scheffer Machado

447

19. A Situação Jurídica do Estrangeiro Vítima de Tráfico de Pessoas no Brasil – Maurício Correali

475

20. O Trabalho Escravo no Contexto do Tráfico de Pessoas: Valor do Trabalho, Dignidade Humana e Remédios Jurídico-Administrativos – Renato Bignami

507

21. Compensação para as Vítimas de Tráfico de Pessoas: Modelos e Boas Práticas na Ordem Internacional  – Daniela Muscari Scacchetti

539

22. Tráfico de Pessoas Para Tráfico de Tecidos, Órgãos e Partes de Corpo Humano: Um Mal Social Real, não um Mito – Eliana Vendramini Carneiro

551

23. Panorama Conceitual Sobre o Tráfico de Pessoas para Remoção de Órgãos e Tráfico de Tecidos, Órgãos e Células Humanas: a Modernização Necessária – Daniela Alves Pereira de Andrade

ALGUMAS PALAVRAS DOS ORGANIZADORES O enfrentamento ao tráfico de pessoas é daqueles poucos temas que conseguem unanimidade no que diz respeito à indignação e à perplexidade: como podemos, em pleno século XXI, aceitar que seres humanos sejam escravizados e comercializados? Das diversas frentes de atuação para combater essa violência que afeta milhões de pessoas no mundo inteiro, uma das que proporciona avanços consistentes a médio e longo prazos é a produção de estudos e a disseminação de conhecimento sobre o tema. A publicação de pesquisas e dados sobre tráfico de pessoas — suas vítimas, as rotas, o modo de agir dos perpetradores, os desafios e perspectivas no enfrentamento — permite novas reflexões e encaminhamentos para a definição de políticas públicas e ao mesmo tempo fornece suportes para ação cotidiana dos diversos órgãos e profissionais que lidam com a matéria em nosso país, seja na prevenção e repressão ao tráfico humano, seja no acolhimento às vítimas. O livro Tráfico de Pessoas: uma Abordagem para os Direitos Humanos, fruto da parceria entre a Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça e o IEDC – Instituto de Estudos Direito e Cidadania, surge nesse cenário alinhado a diretrizes estabelecidas pela Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, aprovada pelo Decreto 5.948, de 26 de outubro de 2006. A finalidade da publicação apresentada é contribuir para a cultura de respeito aos direitos humanos, especialmente para a proteção da dignidade e integridade das pessoas em situação de tráfico ou os mais vulneráreis a esta situação. Dividido em duas partes: Parte I – Tráfico de Pessoas e Justiça Global; Parte II – Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e suas modalidades: o Olhar Para a Proteção das Vítimas, o livro busca fortalecer a compreensão de que a temática do tráfico de pessoas só pode ser percebida e enfrentada na perspectiva da proteção e da promoção dos direitos humanos. Esperamos com esta publicação colocar à disposição da sociedade brasileira mais uma ferramenta para despertar o conhecimento e as discussões sobre o tema no Brasil e prosseguir no objetivo almejado no II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, produzindo informações sobre o tráfico de pessoas e subsidiando ações concretas e capacitações. Daniela Muscari Scacchetti, Fernanda Alves dos Anjos, Gustavo Seferian Scheffer Machado e Inês Virginia Prado Soares Organizadores

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O Brasil é, ao mesmo, tempo exportador e importador de pessoas em situação de tráfico humano. Os desafios para superar essa chaga são inúmeros: desde a necessidade de mudanças legislativas que contemplem as peculiaridades do crime do tráfico, passando pelo fortalecimento institucional e pela necessidade de apoiar e assegurar a sustentabilidade de organizações da sociedade voltadas à proteção dos grupos mais vulneráveis da sociedade. Essa é a conclusão objetiva que se pode extrair do presente livro. Os artigos apresentam resultados de pesquisas sobre as três modalidades mais comuns de tráfico humano no Brasil: as que têm por finalidade a exploração sexual; a voltada à exploração do trabalho; e o tráfico destinado à remoção de órgãos e sua posterior comercialização. Além disso, trazem temas específicos da realidade brasileira, como os processos migratórios dos sul-americanos e a situação de vulnerabilidade em que se encontram. Esse não é um problema apenas brasileiro. O tráfico de pessoas afeta grupos vulneráveis nas diversas partes do mundo. Da mesma forma, as redes criminosas se organizam além das fronteiras dos Estados Nacionais. A reação, portanto, deve se dar tanto no âmbito dos Estados como no plano regional e internacional. Em abril de 2011, por exemplo, foi publicada uma nova Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à prevenção e luta contra o tráfico de seres humanos e à proteção das vítimas (Directiva 2011/36/UE). Esse documento deixa claro, desde o primeiro considerando do preâmbulo, que o tráfico de pessoas é considerado como uma grave violação aos direitos humanos. A preocupação central dessa diretiva é a proteção das vítimas do tráfico, seu acolhimento, bem como a adoção de medidas preventivas que contribuam efetivamente para acabar com esse tipo de crime. Sob a ótica dos direitos humanos e com a finalidade de acompanhar o fenômeno do tráfico de pessoas, a Diretiva Europeia de 2011 adota um conceito mais amplo de tráfico humano, que inclui novas formas de exploração, como a mendicância forçada, a adoção ilegal, o casamento forçado e a exploração de pessoas para atividades criminosas (pequenos furtos ou roubos, tráfico de drogas etc.). Por sua vez, no Protocolo de Palermo (2003), concebido no âmbito das Nações Unidas, o tráfico de pessoas (TP) se define como “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos”. Esse Protocolo se apresenta como um instrumento essencial para o combate ao tráfico de pessoas. É certo que a ratificação de tratados e a edição de leis não são suficientes para o enfrentamento ao comércio de pessoas, ou a qualquer outra modalidade criminosa, mas possibilita o cumprimento dos três eixos de atuação: prevenção, repressão e atendimento às vítimas.

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PREFÁCIO A leitura dos mencionados documentos demonstra a complexidade desse tipo de violação aos direitos humanos, bem como estabelece a principal característica do tráfico, que é a violência contra a pessoa. Nesse sentido, um caso de tráfico no Brasil é muitíssimo semelhante aos que acontecem em outras partes do mundo. Num contexto de evolução do direito internacional dos direitos humanos, como fica patente em Tráfico de Pessoas: uma Abordagem para os Direitos Humanos, o avanço no enfrentamento ao tráfico de pessoas exige uma ação coordenada do Estado e da sociedade. O trabalho de natureza acadêmico aqui apresentado nos auxilia a compreender a dramaticidade e complexidade do fenômeno por meio da apresentação de dados relevantes sobre esse tipo de crime, como rotas, exploração por gênero, por idade, por classe social, por atividade econômica etc. Nessa medida, é um instrumento fundamental para orientar o caminho a ser seguido pelas autoridades responsáveis pelo enfrentamento dessa questão. O combate ao crime organizado para explorar pessoas como mercadoria lucrativa apenas poderá funcionar se o foco central das diversas iniciativas for a proteção do ser humano que sofre a exploração. Essa é uma posição de princípio. Necessário, portanto, o estabelecimento de um amplo conjunto de estratégias coordenadas, que vão da reforma institucional a programas de educação, voltados à prevenção, à proteção da integridade e dignidade das pessoas vulneráveis a essa prática criminosa, assim como à responsabilização dos envolvidos. As experiências mais bem sucedidas no campo da promoção dos direitos humanos dependem do estabelecimento de estratégias multidimensionais, que não se limitam à reforma legislativa. Indispensável que diversos setores da sociedade e as diversas agências governamentais estejam articulados. Com o tráfico de pessoas não é diferente. Os coordenadores deste livro, bem como os diversos colaboradores, deixam claro que o tema do tráfico de pessoas não pode ser tratado apenas de uma perspectiva criminal. Há uma vítima por trás disso, que merece cuidados e o restabelecimento de sua dignidade. Destacam, ainda que, em algumas circunstâncias, o próprio traficante pode ter passado por uma situação de tráfico e ser uma espécie de vítima do sistema. Por isso, o enfrentamento ao tráfico não pode ser simplificado à questão da repressão e do processo criminal. A complexidade desse fenômeno vai muito além. Gostaria de destacar neste prefácio não apenas as virtudes deste livro, mas também o engajamento daqueles que o organizaram. A ação de Daniela Muscari Scacchetti, Fernanda Alves dos Anjos, Gustavo Seferian Scheffer Machado e Inês Virgínia Prado Soares não se limita à análise acadêmica deste ou de outros temas relevantes no campo dos direitos humanos. A militância e experiência profissional na promoção dos direitos humanos deste grupo é vasta e relevante. Cumpre destacar o trabalho desses profissionais junto ao IEDC – Instituto de Estudos Direito e Cidadania, ONG que tem abordado esse tema como prioritário, com projetos de caráter

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pedagógico, além de integrar o Comitê Estadual Interinstitucional de Prevenção e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Estado de São Paulo. E, ainda, destacar a relevante parceria da Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça para a concretização desta publicação, com especial menção à dedicação da Diretora do Departamento do Justiça, Fernanda Alves dos Anjos. Creio que não é por acaso que os organizadores assumiram o desafio de reunirem nesse oportuníssimo volume Tráfico de Pessoas um expressivo conjunto de juristas, jornalistas, psicólogos e outros profissionais que lidam com o tema para demarcarem as vias para o enfrentamento do problema do tráfico de pessoas sob a perspectiva de direitos humanos. Tratase de uma formidável contribuição para que o Brasil avance nesse campo. Cumpre dizer que a simples elucidação do tema e a reflexão sobre o problema já constituiriam, em si, uma forma de prevenção. Este livro, porém, vai além: pela qualidade das propostas que alinhava, trata-se de uma importante contribuição para que a sociedade brasileira possa enfrentar uma das formas de violação mais antigas e graves aos direitos da pessoa humana.

Oscar Vilhena Vieira Diretor da Faculdade de Direito da FGV-SP

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O TSH – Tráfico de Seres Humanos é um atentado contra a humanidade, consubstanciado em uma agressão inominável aos direitos humanos, porque explora a pessoa, limita sua liberdade, despreza sua honra, afronta sua dignidade, ameaça e subtrai a sua vida. Trata-se de atividade criminosa complexa, transnacional, de baixos riscos e altos lucros, que se manifesta de maneiras diferentes em diversos pontos do planeta, vitimizando milhões de pessoas em todo o mundo de forma bárbara e profunda, de modo a envergonhar a consciência humana. As práticas associadas ao tráfico de pessoas — como o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares, a servidão por dívida, a exploração sexual e a prostituição forçada, a remoção de órgãos, o casamento servil, a adoção ilegal, entre outras —, por constituírem graves violações aos direitos humanos, devem ser tratadas como crimes lesa-humanidade. Crime multifacetado, o TSH advém de uma multiplicidade de questões, realidades e desigualdades sociais. Quase sempre, a vítima se encontra fragilizada por sua condição social, tornando-se alvo fácil para a cadeia criminosa de traficantes que a ludibria com o imaginário de uma vida melhor. Aproveitando-se de sua situação de vulnerabilidade e da ilusão de um mundo menos cruel, transforma a vítima em verdadeira mercadoria. A crise mundial, causa do aprofundamento da pobreza e das desigualdades, cria espaços para o fomento das mais diversas formas de exploração mediante o comércio de seres humanos. Configura-se o delito com o recrutamento, transporte, transferência, abrigo ou recebimento de uma pessoa por coerção, força ou outra fraude, com a finalidade de exploração, que incluirá, no mínimo, a da prostituição ou outras formas de exploração sexual, trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravidão, servidão ou a remoção de órgãos, de acordo com Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional (Protocolo de Palermo, 2000). Pesquisas demonstram que as mulheres, as crianças, os adolescentes e as travestis são alvos preferenciais deste crime quando a prática tem por fim a exploração sexual. Porém, em todas as modalidades de TSH, as vítimas, em geral, são jovens, de baixa renda, pouca escolaridade, sem oportunidade nem perspectiva de melhoria de vida e provenientes de lugares e de regiões pobres. O problema deve ser tratado como Política de Estado, pois o enfrentamento ao TSH depende de uma grande mobilização da sociedade e das instituições. Está afeto e exige ações de cooperação, coordenadas e integradas, de diversas áreas como saúde, justiça, educação, trabalho, assistência social, turismo, entre outras. Nesse diapasão, a sociedade civil mundial e os governos democráticos devem promover o enfrentamento ao TSH, focando na prevenção, atenção às vítimas, repressão e responsabilização dos autores, em cumprimento ao que dispõe a Declaração Universal dos Direitos Humanos da Assembleia Geral das Nações Unidas, que tem em seu preâmbulo a consideração de que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família

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APRESENTAÇÃO humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”. Toda pessoa é sujeito dos direitos humanos fundamentais e inalienáveis, independentemente de sexo, gênero, raça, etnia, classe social ou nacionalidade. Compreendemse por “direitos humanos” aqueles inerentes aos indivíduos pela sua condição humana, independentemente da sua relação com determinado estado, sendo oponíveis inclusive contra este, quando concebidos e assegurados constitucionalmente. A Constituição Federal de 1988 consagrou a dignidade da pessoa humana como valor primordial, dando coesão ao texto constitucional a fim de direcionar a interpretação de todas as normas que o incorporam (art. 1º). Vários direitos e garantias individuais foram enumerados nos primeiros capítulos da Lei Maior, aos quais foi outorgado o status de cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, IV), com foco nos direitos humanos. De acordo com o § 1º do artigo 5º, “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. O § 2º do artigo 5º dispõe que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Nesse sentido deve ser interpretada a incorporação ao Sistema Jurídico Brasileiro da Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional e seus protocolos adicionais relativos ao combate ao tráfico de migrantes por via terrestre, marítima e aérea e à prevenção, repressão e punição do tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças, após a publicação dos decretos presidenciais 5.015, 5.016 e 5.017/2004, a partir do quais o Brasil passou a tratar a questão do TSH como Política de Estado. Há na Política Nacional e no I Plano Nacional de Enfrentamento um tríplice enfoque norteador de seus fins: a prevenção ao tráfico, com ênfase nos grupos vulneráveis e na inibição de ações dos aliciadores; a repressão, consistente no combate direto aos traficantes, com aplicação de sanções cabíveis e desarticulação das redes criminosas; e ainda a atenção às vítimas, com amparo psicológico, jurídico e assistencial, de forma geral, aos que se livram da exploração e encontram dificuldades para regressar à sua origem e reinserir-se na sociedade. Muitos anos após ratificar a Convenção de Palermo, por meio da qual assumiu compromissos para o enfrentamento ao TSH, o Brasil, contudo, ainda não possui leis suficientes e adequadas ao cumprimento de sua obrigação, com medidas eficazes para a prevenção do crime, a proteção às vítimas e a responsabilização dos envolvidos. Há uma urgente necessidade de modificação e aperfeiçoamento da legislação penal para tratamento da questão, mediante a edição de lei especial, com a criação de tipos penais de conteúdo variado que contemplem todas as modalidades do crime de tráfico de pessoas, incluindo qualquer forma de exploração, com foco na proteção da dignidade da pessoa humana e adequada reprimenda, que abranja

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indenização, atenção e proteção às vítimas, desde o depoimento sem dano, perdimento de bens dos condenados e sua inclusão em cadastros negativos, dentre outras sanções. Tais medidas fortalecerão as ações de enfrentamento ao TSH no Brasil na perspectiva da promoção dos direitos humanos e dos direitos fundamentais, em face das recomendações dos organismos internacionais e das obrigações assumidas pelo país. A capacidade de articulação das organizações criminosas dificulta sobremaneira o enfrentamento a esse crime hediondo, tornando o comércio de humanos o terceiro negócio ilícito mais rentável no mundo, superado apenas pelo tráfico de drogas e contrabando de armas. Há dificuldades comuns a todos os países, algumas inerentes ao TSH — como a invisibilidade, o não reconhecimento da vítima a respeito desta sua condição e sua desconfiança quanto aos órgãos de repressão, complexidade do delito, superposição de redes de tráfico e redes de migração — e outras decorrentes do fato de se tratar de crime transnacional, que exigir a cooperação policial e jurídica, nacional e internacional. Importante que todos os envolvidos no combate ao TSH, não somente o Poder Executivo Federal, mas também os poderes Legislativo e Judiciário, Ministério Público, polícias, estados, municípios, sociedade civil, organismos internacionais e outros países potencializem as ações executadas afetas à questão. Resiliência e tenacidade são fundamentais nessa verdadeira guerra em favor dos direitos humanos. Algumas medidas, internas e externas, são imprescindíveis para redução dos casos de TSH: a continuidade da Política Nacional como Política de Estado; a implementação do Plano de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas em todos os estados brasileiros; o aperfeiçoamento da legislação penal; o fortalecimento da rede de atenção às vítimas; a inserção de conteúdos de direitos humanos nas escolas, de preferência no Ensino Fundamental, incluindo formação dos educadores para tratamento de crimes contra a dignidade da pessoa humana; oferta de educação em tempo integral e profissional para as pessoas em condição de vulnerabilidade social e econômica; a realização de campanhas informativas e preventivas; o estabelecimento de parcerias entre o estado e a sociedade civil para formação e capacitação sobre tráfico humano de conselheiros tutelares, policiais, membros do Judiciário e do Ministério Público, das lideranças comunitárias, profissionais da área de saúde e assistência social, dentre outros; combate às causas do crime, como a má distribuição de renda, o desenvolvimento assimétrico entre os países, a desigualdade de gênero e de raça e a consequente falta de oportunidades; a redução da demanda por produtos e serviços produzidos por pessoas escravizadas; o fomento da cooperação policial e jurídica nacional e internacional. Tratando-se de uma questão complexa, sua compreensão demanda uma série de estudos e pesquisas. Em tal contexto e no atual cenário brasileiro, em que o tema passa a fazer parte da agenda da sociedade, o lançamento deste livro, composto de uma coletânea de artigos sobre TSH, numa abordagem para os Direitos Humanos com foco na Justiça Global e um olhar para a Vítima, e com a participação de importantes autoridades no assunto, das mais diversas áreas de

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atuação, mostra-se alvissareiro, como instrumento de disseminação e discussão do tema no meio acadêmico, de conscientização e sensibilização dos componentes da rede de enfrentamento, especialmente os de atendimento às vítimas e membros das instituições de repressão e responsabilização dos agentes; como ferramenta para a cadeia de prevenção, composta de educadores, conselheiros tutelares, assistentes sociais, psicólogos etc., além de servir de alerta para potenciais vítimas, constituindo-se em especial subsídio para os que lidam com o tema no dia a dia. A iniciativa merece o reconhecimento e o aplauso de todos que temos compromisso com a causa dos direitos humanos! Rinaldo Aparecido Barros

Magistrado do Tribunal de Justiça de Goiás. MBA em Poder Judiciário pela FGV – Direito/RJ. Coordenador do

Acordo de Cooperação Técnica entre CNJ e TJGO e membro do Grupo de Trabalho do CNJ – Conselho Nacional de Justiça para o Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Membro do Comitê Executivo do Estado de Goiás da Rede Nacional de Cooperação Judiciária idealizador do site
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