O ESPAÇO DO PROCESSO: UM RETORNO AO OLHAR DA EXPERIÊNCIA

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Descrição do Produto

o espaço do processo: um retorno ao olhar da experiência

universidade federal de santa catarina - departamento de arquitetura e urbanismo trabalho de conclusão de curso - carolina reich corseuil orientador américo ishida

o processo 1 PERGUNTAR

4 QUESTIONAR

Afinal, o que significa o tcc (para mim)?

ENCANTAMENTOS E INQUIETAÇÕES

5 OBSERVAR OFICINAS DE ESPAÇOS

2 RELACIONAR CONSTRUÇÕES TRANSVERsais O PROJETO

6 CRIAR O RETORNO

3 DESCOBRIR A ESTÉTICA DA ESPONTANEIDADE? RELAÇÕES ABERTAs O ESPAÇO DO SENSÍVEL O OLHAR DA EXPERIÊNCIa

imagem da capa: Whole, Jason Craighead

7 REFLETIR Afinal, o que significa a arquitetura (para mim)?

Pablo Picasso, Touro 1945



AFINAL, o que significa o tcc (PARA MIM)?

“A educação se divide em duas partes: educação das habilidades e educação das sensibilidades. Sem a educação das sensibilidades, todas as habilidades são tolas e sem sentido” Rubem Alves Desenvolver um trabalho de conclusão de curso não poderia ser meramente um produto final

do que eu aprendi durante a faculdade, mas sim uma oportunidade para relacionar a arquitetura com meus interesses e projetos pessoais e aprofundar questões que permearam minha vida como estudante e indivíduo. Para mim, o tema escolhido deveria fazer sentido para que houvesse verdadeiro envolvimento e motivação, possibilitando que as descobertas e os questionamentos que surgissem ao longo do percurso pudessem ser levados adiante, em um processo que se estende à faculdade (e que iniciou antes dela). Acredito que um trabalho desenvolvido a partir do olhar, do contexto e das circunstâncias únicas de um indivíduo pode contribuir para despertar novas formas de pensar a arquitetura, não somente como uma área do conhecimento ou um conjunto de técnicas para projetar espaços, mas como abrigo, suporte e cenário para a vida e seus desdobramentos. Nunca tive uma proposta de projeto ou um tema inicial. Aos poucos fui descobrindo que a busca se tornou o próprio resultado, e o que apresento a seguir são algumas das reflexões, inquietações e ideias que surgiram durante meu processo de desenvolvimento do trabalho. O primeiro passo foi justamente pensar sobre o meu percurso dentro e fora do curso e as experiências acadêmicas e pessoais que contribuíram para a construção de minhas atuais perspectivas.

CONSTRUÇÕES TRANSVERSAIS Quando decidi cursar Arquitetura e Urbanismo, eu sabia que gostaria de permear também por outras áreas, como artes plásticas, moda, cinema e design. Acreditava que entre elas, a arquitetura seria a área mais abrangente e que de alguma forma estaria relacionada com todas as outras artes, imaginei que o curso abriria qualquer caminho que eu decidisse seguir profissionalmente. Não sabia ainda que estas relações se estenderiam a âmbitos muito mais significativos e definiriam tantos caminhos que percorri. Durante os anos de faculdade, busquei expandir meus conhecimentos através de outros cursos que despertavam meu interesse. Fiz algumas disciplinas optativas de cinema e design na UFSC, tranquei a faculdade por um semestre para estudar direção de arte na Escola São Paulo e em uma das férias de verão fiz um curso de moda em Londres. Durante meu intercâmbio em 2010 na NYU, em Nova Iorque, optei pelas disciplinas de Arte Contemporânea e Estudos de Cinema. Quando retornei do intercâmbio comecei a desenvolver um projeto que surgiu de questionamentos e experiências que vivi, e que buscava relacionar a arte, a moda e o design. A ideia não surgiu de forma linear, mas foi elaborada simultaneamente a partir de diversos pontos sob a influência de diferentes encontros, observações e conceitualizações. Reconheço claramente que todo conhecimento adquirido no curso de Arquitetura e Urbanismo possibilitou uma percepção diferente sobre as diversas áreas que estudei transversalmente ao curso, contribuindo para ampliar meu olhar e possibilitar diferentes conexões. Já não se tratava de interdisciplinaridade ( termo que eu usava com frequência quando tentava explicar porque eu permeava por tantas áreas diferentes), mas de transdisciplinaridade. O prefixo trans remete ao que está entre, através e além das disciplinas. Como definiu Jean Piaget, é aquela que faz emergir da confrontação e do contato entre as disciplinas dados novos que as articulam entre si, possibilitando uma nova visão da realidade. “A transdisciplinaridade não procura o domínio de várias disciplinas, mas a abertura de todas elas aquilo que as atravessa e as ultrapassa” - Artigo 3 da Carta da transdisciplinaridade

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3 1 - Disciplina de Estudos de Cinema, NYU 2010. Análise de planos. 2 - Curso de moda, Central Saint Martins, Londres 2011. 3 - Curso de direção de Arte, Escola São Paulo. Análise do filme Playtime de Jaques Tati 2010. 4 - Disciplina de Arte Contemporânea, NYU 2010.Visita ao MoMa: Laurie Simmons, Walking House. 5 - Disciplina de Projeto Arquitetônico II, 2009. Concepção Inicial, Residência Unifamiliar

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O PROJETO

Foi durante o intercâmbio em Nova Iorque, entre as aulas de arte contemporânea, as visitas ao MoMA e as galerias de arte do Bairro Chelsea, onde fiz uma das observações que desencadearam o desenvolvimento de um projeto que me acompanha até hoje. Meu olhar, atento e ávido por apreender e compreender melhor a arte, se interessou por uma estética curiosa, onde os traços e composições pareciam mais simples, livres e espontâneos. Quase, pensei, como os traços de uma criança. Paul Klee, Picasso, Christopher Wool, Matisse, Otto Zitko, David Shrigley, Joan Mitchell, Paul Mccarthy, Laurent Koller, Basquiat, Ethel Lebenkoff, e uma lista interminável de grandes artistas apresentavam em algumas de suas obras formas irregulares, abstrações e linguagens que remetiam ao universo artístico infantil. Me perguntei se havia de fato alguma relação, quando me deparei com uma das frases célebres de Picasso: “Levei 4 anos para pintar como Rafael, mas a vida inteira para pintar como uma criança”.

JEAN MICHEL BASQUIAT - GAGOSIAN GALLERY, NY

JEAN MICHEL BASQUIAT

CY TWOMBLY - CY TWOMBLY PAVILION, HOUSTON

JEAN MICHEL BASQUIAT - GAGOSIAN GALLERY, NY

Se existe beleza e valor nestas obras, porque a arte infantil – onde traços semelhantes são espontâneos e originais – é desvalorizada esteticamente? Despertou a minha curiosidade imaginar como seria desenvolver essa estética com as próprias crianças e criar uma maneira de valorizá-la. Quando retornei do intercâmbio, interliguei minhas observações, novos conhecimentos, minha paixão pela arte e a vontade de trabalhar com economia criativa dentro do modelo de negócios sociais, e comecei a desenvolver um projeto que mais tarde chamei de Original Kids.

DAVID SHRIGLEY

PAUL KLEE

PABLO PICASSO

JEAN MICHEL BASQUIAT - GAGOSIAN GALLERY, NY

PAUL KLEE

EXPOSIÇÃO OTTO ZITKO - CHEIM & RED GALLERY, NY

EXPOSIÇÃO OTTO ZITKO - CHEIM & RED GALLERY, NY

JOAN MITCHELL





Resumidamente, funciona assim: Levo artistas e estudantes voluntários em instituições de crianças carentes e realizamos oficinas de artes durante um mês, com encontros semanais. Seleciono alguns trabalhos artísticos desenvolvidos e os utilizo como fonte de inspiração para criar estampas e desenhar coleções de moda, produzidas em parceria com outras marcas. As roupas são vendidas nas lojas parceiras e os lucros são revertidos para as instituições investirem em recursos educativos e para a continuação das oficinas de artes. Este projeto me acompanhou durante toda a segunda metade do curso. Foi difícil conciliar os estudos acadêmicos com o seu desenvolvimento, e tive a necessidade de dar um tempo algumas vezes para repensar os caminhos que eu deveria seguir. Mesmo assim, realizei três coleções em parceria com uma marca estrangeira e uma nacional e pretendo continuar a desenvolver a ideia após a faculdade. Foi este projeto que eu quis, de alguma forma, relacionar com o TCC de arquitetura. O processo foi longo, surgiram muitos entendimentos e dúvidas, mas acredito que consegui criar um canal que conectou e trouxe sentido para toda minha experiência acadêmica.

primeira coleção de camisetas original kids & Aesthetic

fotos tiradas no Lar Recanto do Carinho, Florianópolis, 2012

Nathalia, 5 anos Lar Recanto do Carinho Florianópolis

A coleção completa pode ser vista na página do projeto: www.facebook.com/originalkidsok

Editorial Color Dipped for Cora Magazine fotos: Andréia Takeuchi roupas: ORIGINAL KIDS beleza:Jean Michel Battirola cenários e styling: Coletivo Volver

“As coisas são possibilidades realizadas contendo inúmeras possibilidades realizáveis.” Teixeira de Pascoaes

A ESTÉTICA DA ESPONTANEIDADE?

“Toda criança nasce artista, o problema é permanecer artista quando crescemos” Pablo Picasso.

Precisei então entender melhor sobre aquela estética que me lembrava a arte infantil. Acreditava inicialmente que ela tentava refletir a gestualidade e a espontaneidade das crianças. Ao me aprofundar nas reais intenções e motivações por trás das obras, descobri que não só pintores como também poetas, filósofos, sociólogos, designers e até mesmo arquitetos admiravam e refletiam sobre a infância em seus trabalhos. Em “A Arte do Ponto de Vista Sociológico”, Guyau reflete sobre a simplicidade do grande artista, aquele que rompe com as associações banais e comuns e experimenta a vida como se recomeçasse sempre a viver, com o encantamento e a sensação de novidade que uma criança tem diante do mundo. Henri Matisse no texto “Com Olhos de Criança”, reflete sobre como os hábitos adquiridos deformam nossa percepção, principalmente em uma época onde o cinema, a publicidade e a mídia impõem diariamente uma quantidade enorme de imagens e informações. “O esforço necessário para se libertar disso exige uma espécie de coragem; e essa coragem é indispensável ao artista, que deve ver todas as coisas como se as visse pela primeira vez: Há que ver toda a vida como quando se era criança; e a perda dessa possibilidade impede-vos de vos exprimir de maneira original, isto é, pessoal.” A cultura e a sociedade afetam as informações sensoriais e cognitivas que alteram nosso entendimento e nossa experiência da realidade. Nossas crenças influenciam diretamente nos conteúdos, eventos e detalhes em que prestamos atenção durante nossas vidas. Pode ser um processo longo e complexo conseguir retirar os filtros e padrões que limitam a nossa maneira de perceber o mundo. As crianças, por outro lado, não foram ainda expostas a tanto tempo de impressões culturais, interpretando a realidade de uma forma mais direta e aberta a inúmeras possibilidades de interpretação.

Em dezembro de 2013, entre o TCCI e o TCCII, encontrei coincidentemente em uma biblioteca de Lisboa um livro que iluminou muito meu processo de descoberta, chamado A infância da Arte, a Arte da Infância de Dalila D’alte Rodrigues. Nesse livro a autora faz comparações entre a arte infantil e a intenção de inúmeros artistas em recuperar aspectos do processo criativo da criança. Bad Painting, Neo Expressionismo, Arte Bruta, Arte Naif, Arte Primitiva, entre outros vários movimentos artísticos buscaram, cada um a sua maneira, um retorno ao imaginário e a relação da criança com a vida. A arte bruta, por exemplo, é aquela que desconhece as regras, padrões estéticos, composição de formas, cores e estilos artísticos e não é produzida para o mercado ou para o julgamento de críticos e curadores. É criada sem ambições, pelo puro prazer lúdico de criar. Jean Dubuffet, primeiro crítico da Arte Bruta, fascinava-se com as coisas simples, dizendo que com a devida atenção poderíamos nos surpreender com raridades debaixo de nossos pés. Sociedades primitivas, loucos e crianças, poderiam ser os autores da arte bruta, aquela que se recusa à “Cultura Asfixiante”, nome que deu ao seu manifesto publicado em 1968. Neste ensaio Dubuffet sustenta a ideia de uma arte que se alimenta e se renova a partir da desordem e da imperfeição, indo contra as sistemáticas rotulagens do aparelho cultural empobrecedor que pretende moldar tanto a sociedade quanto o campo da arte, com a constante necessidade de medir, enumerar, rotular, restringir e eliminar. A intenção por trás da estética que eu observava não era somente uma tentativa de espontaneidade (até porque, tentar ser anula imediatamente o gesto espontâneo), mas sim uma luta contra o olhar elaborado. Enxergar com olhos de criança seria redescobrir a beleza na simplicidade. Estar atento aos encantamentos da vida que se tornam banais para a maioria das pessoas. Suspeitar da mente, que altera a realidade, e dar atenção aos sentidos e experiências que estimulam a verdadeira percepção da existência, aquela que possibilita a expressão do que é inusitado e incomparável. Libertar-se de todos os filtros e conceitos que criam molduras fixas para a realidade e para a própria arte, seriam as motivações destes artistas.

Jean Michel Basquiat

Jean Dubuffet

Alexandra Huber

“Para as crianças, o mundo - e tudo o que há nele - é algo que desperta admiração. Nem todos os adultos vêem a coisa dessa forma. A maioria deles vivencia o mundo como uma coisa absolutamente normal” O Mundo de Sofia, Joistein Gaardein .

imagem de fundo: Josias Scharf

Jean Dubuffet

RELAÇÕES ABERTAS Muito antes de se iniciar o discurso da arte contemporânea sobre a importância da relação e da interação do espectador com a obra, que até então era só observada nas paredes, a arquitetura já era suporte para as mais diversas relações humanas. Em “Estética Relacional”, leitura fundamental para a concepção de meu projeto, Nicolas Bourriaud defende que as práticas artísticas contemporâneas deveriam considerar o intercâmbio humano como objeto estético em si. A arte somente ganharia vida ao criar interações sociais e relações humanas que possibilitam uma troca além daquela normal instituída pelo sistema. A estética relacional não está preocupada com a ideia do original e único e sim em como ressignificar elementos já existentes, buscando para eles novos sentidos. Pensar o meu projeto sob essa perspectiva me levou a observar que a estética que eu desenvolvia era criada através do intercâmbio humano entre crianças e adultos de diferentes contextos sociais nas oficinas de artes. Percebi também que eu ressignificava a arte infantil, tanto na sua valorização através das associações estabelecidas com as obras de grandes artistas, quanto no próprio processo de transformar os trabalhos artísticos das crianças em estampas para tecidos. Ao refletir sobre o espaço arquitetônico dentro destes conceitos, me pareceu óbvio que ele sempre foi relacional no sentido de possibilitar relações e vivências humanas e até mesmo de possibilitar a ressignificação através da apropriação de espaços inutilizados, por exemplo. A arquitetura também possibilita diferentes interpretações e trocas além daquelas instituídas pelo sistema. No entanto, a maioria dos projetos a tornam rígida ao pré-determinarem o seu significado e os tipos de relações que irão se estabelecer. Apesar de acreditar que o desenho arquitetônico não pode prever comportamentos e acontecimentos, temos a tendência de projetar nossas intenções através da arquitetura e determinamos certos tipos de interações e convivências que queremos que aconteçam nestes espaços.

Hélio Oiticica trabalha com todos estes conceitos aproximando a arte e a arquitetura. O artista considera o espaço arquitetônico como uma estrutura que possibilita transformar vivências através de uma dimensão estética que poderia modificar ações e percepções, mas, diferente do arquiteto, ele trabalha no campo das possibilidades abertas de comportamento nos espaços. Seus espaços são suportes para acontecimentos e comportamentos imprevisíveis que não são projetados. Os Parangolés, por exemplo, são uma espécie de capa que se veste e que serve, em suas palavras, como uma Obra-Ação-Multisensorial onde “o objetivo é dar ao público a chance de deixar de ser público espectador, de fora, para participante na atividade criadora”. Dissolvem-se assim as fronteiras entre a arte e o corpo, entre o artista e o espectador, entre a obra e o espectador. Tive a oportunidade de ver algumas exposições do artista em São Paulo (Itaú Cultural) e Nova Iorque (Galeria Lelong) em 2010, Belo Horizonte (Inhotim) em 2012 e Lisboa (CCB) em 2013. Observei que os Parangolés, pendurados na parede, despertavam a curiosidade de algumas crianças que tentavam tocar nos tecidos, mas logo eram conduzidas pelos pais que passeavam pela exposição sem interagir. Até mesmo os Penetráveis em Inhotim me pareciam mais esculturas, onde os estudantes observavam, as vezes tocavam, tiravam uma fotografia e passavam adiante. Me pergunto se hoje nas galerias e museus em diversas partes do mundo, o público percebe o seu papel participativo na concretização da obra deste artista que tinha, como principal intenção, fazer-nos despertar do condicionamento cotidiano. Porque só as crianças demonstravam verdadeira curiosidade em interagir com as obras?

Umberto Eco no livro “A Obra Aberta”, defende que a arte, mais do que a interpretação, possibilita a interação e a descoberta de muitos significados possíveis através dos sentidos, rompendo com qualquer barreira limitativa, rígida e imutável. Ele fala de artistas contemporâneos que se voltam para ideais de informalidade, casualidade, indeterminação de resultados e uma desordem fecunda para a criação. Assim, o artista só tem a sua arte final quando o fruidor da obra interage com ela, tanto no plano da interpretação quanto no plano da criação junto com o seu autor. Estas obras possibilitam inúmeras construções de sentidos que são singulares a cada indivíduo, dependendo de suas experiências, suas expectativas, interesses, culturas, contextos e olhares de mundo. Os caminhos estão abertos.

Parangolés, Hélio Oiticica, 1967.

Parangolés, Hélio Oiticica

Sambista da escola de samba Vai Vai (SP) usando parangolés

Neotropicália - Quando Vidas se Tornam Forma, MOT

ENCANTAMENTOS E INQUIETAÇÕES O que me encanta no processo de projetar a arquitetura é o momento em que estou completamente envolvida com a concepção inicial do projeto. As ideias que transbordam livremente para o papel, os croquis que apresentam inúmeras possibilidades de caminhos a seguir, as maquetes conceituais, que ainda longe de remeterem à formas finais, tentam transmitir a essência do que se busca. Até que, quando as exigências estruturais e as regras da disciplina surgem associadas à preocupação com os prazos e com o produto final, todo o prazer e a atenção para o processo são, então, substituídos pela ansiedade em finalizar e entregar o projeto. É evidente que a arquitetura exige prazos e necessita de um projeto final para poder existir. Entretanto, quando penso sobre os anos de faculdade e sobre o próprio processo de projetar, vejo que 99% foi processo, descobrimento, tentativa, erro, desenvolvimento e 1% foi produto final. Me parece que muitas vezes, determinados em projetar espaços que proporcionem experiências de lazer, convivência e aprendizado, nos esquecemos da nossa própria experiência como estudantes e arquitetos. Não pretendo por meio desta reflexão desmerecer a importância do produto final, nem discutir sobre metodologias de projeto. Somente coloco uma inquietação que me acompanhou durante todo o curso e somente agora, neste período de reflexão, consigo mais claramente reconhecer. O produto é valorizado em detrimento da atenção para o processo, e quando tudo se resume a atingir um fim, perdemos a consciência da totalidade da experiência e do prazer lúdico que envolve a criação. Outra preocupação associada às entregas é a necessidade de aprovação, fazendo com que propostas brilhantes pareçam arriscadas e sejam logo descartadas. Compartilho do mesmo pensamento e interesse do colega de nossa Universidade André Stahnke, ao refletir em sua banca final sobre as ideias de Ken Robinson, especialista em educação voltada para as artes, acerca de como a sociedade vai tolhendo nosso potencial criativo pela condenação do erro, construindo um medo que enrijece e bloqueia nossas posturas e capacidades criativas.

Adultos normalmente apresentam a tendência de se apegarem ao que já conhecem, buscando sempre categorizar e definir, enquanto as crianças costumam explorar diversas possibilidades, abertas a criar com qualquer objeto obsoleto, preferindo muitas vezes brincar com as caixas do que com os presentes dentro delas. Em muitos aspectos, o Designer defende que deveríamos relembrar essa postura que já fez parte de nós, para que possamos nos permitir a explorar possibilidades fora do senso comum. Adotar a postura do ‘brincar’, nos ajuda a criar melhores soluções criativas, e, principalmente, a aproveitarmos o processo de criação. A maneira com que as crianças se relacionam com a vida através da brincadeira tem muito a ver com a questão da atenção para o processo. Brincar, por si só, não exige um objetivo final. Existe em brincar uma presença total, uma entrega, onde não há espaço para a preocupação e o medo com os resultados. Brincar é um fim em si mesmo que possibilita uma experiência de reencantamento da dimensão lúdica na vida dos homens (dimensão que parece estar soterrada pela postura do ‘homem sério’ de que o capitalismo com suas exigências e prazos precisa para funcionar). É justamente pela ideia do jogo que Hans-Georg Gadamer busca explicar a experiência da arte. O jogo contém um “constante ir e vir, ou seja, um movimento que não está ligado a uma finalidade última” (Gadamer, 1985, pg. 38). Para ele, a experiência da arte é antes de tudo um encontro sem pré-determinação pois “todo encontro com a linguagem da arte é encontro com um acontecer inconcluso, e por sua vez, é parte deste acontecer”(Gadamer, 1996, pg. 141). Tentando colocar estas ideias em prática durante o desenvolvimento deste trabalho, comecei de fato a acreditar que se estivermos abertos a estas percepções e estabelecermos uma postura mais livre para explorar possibilidades e verdadeiramente atentos ao processo, a criação se torna muito mais prazerosa e soluções inesperadas começam a emergir.

Tim Brown, Designer e CEO da empresa IDEO – Inovação e Design, fala sobre a importância de adotarmos uma postura playfull, de brincar enquanto criamos. Observei nas oficinas de artes do meu projeto que as crianças mais novas não tem medo nem vergonha de mostrar e falar sobre suas ideias e criações, por mais absurdas que sejam. Mas, à medida que crescem, vão se tornando cada vez mais sensíveis à opinião dos outros, perdendo aquela liberdade de expressão que não teme segundas opiniões. imagem de fundo: Fabio Alessandro Fusco

O ESPAÇO DO SENSÍVEL Dar atenção ao processo significa estar consciente das experiências que envolvem todos os sentidos, percepções e sensações. Em alguns discursos filosóficos e artísticos é constante a preocupação com a privação da experiência sensorial que acontece em nosso mundo tecnológico. A cultura contemporânea supervaloriza a imagem e nos submete à hegemonia da visão. Tudo acontece na tela digital, de relações sociais e expressões da individualidade até o próprio ato de projetar e criar. Vivemos em uma sociedade que é seduzida e convencida pelas aparências e estimulada através da imagem.

“O meu olhar é nítido como um girassol. Tenho o costume de andar pelas estradas Olhando para a direita e para a esquerda, E de vez em quando olhando para trás... E o que vejo a cada momento É aquilo que nunca antes eu tinha visto, E eu sei dar por isso muito bem... Sei ter o pasmo essencial Que tem uma criança se, ao nascer, Reparasse que nascera deveras... Sinto-me nascido a cada momento Para a eterna novidade do Mundo... Creio no mundo como num malmequer, Porque o vejo. Mas não penso nele Porque pensar é não compreender... O Mundo não se fez para pensarmos nele (Pensar é estar doente dos olhos) Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo... Eu não tenho filosofia; tenho sentidos... Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é, Mas porque a amo, e amo-a por isso Porque quem ama nunca sabe o que ama Nem sabe por que ama, nem o que é amar... Amar é a eterna inocência, E a única inocência não pensar...

Nas disciplinas de projeto nos preocupamos muito com a aparência das imagens finais e desprendemos grande tempo em programas para transmitir nossa ideia de forma atrativa, o que acaba tirando a atenção para outros aspectos importantes da disciplina. Percebemos que muitos projetos construídos visam apenas o impacto visual instantâneo. A arquitetura, assim como a arte, precisa equilibrar-se entre o âmbito físico e sensorial, demonstrando a capacidade de ativar a nossa imaginação, sentidos e emoções.

Independente do espaço físico em que se encontra, a criança tem a capacidade de perceber o mundo fundamentalmente de uma maneira diferente do adulto, onde o olhar está ligado a todos os outros sentidos. Na sinestesia os sentidos se cruzam colorindo sons e aromatizando cores. A criança vive os fenômenos com todo o corpo. É deste olhar sensível de que fala Alberto Caeiro, Heterônimo de Fernando Pessoa, que revela uma grande admiração e identificação com a criança que experiencia o mundo através dos sentidos. “Pensar é estar doente dos olhos”.

A Hegemonia do produto e da imagem, em detrimento dos processos e sentidos, não busca estimular a visão como experiência sensorial, mas sim estimular o pensamento (muitas vezes de forma negativa), que é priorizado antes mesmo de qualquer sentido. O âmbito da ideia, do projeto, do cálculo, da categorização e da idealização é colocado em primeiro lugar, antes da experiência do corpo. Desta vez, não poderia afirmar que isso é uma tendência contemporânea. Com o nascimento da filosofia, especialmente a partir do séc. V a.C no pensamento socrático-platônico, temos uma divisão do mundo em corpo e alma, com uma supervalorização da alma, associada ao pensamento, contra o corpo, a matéria, a experiência. Para Platão, o corpo era a prisão da alma. Mesmo quase dois milênios depois, Descartes ainda declarava que para ser, independia do corpo. Sua natureza consistia apenas do pensar (penso, logo existo). Somente no fim do século XIX, Nietsche surge com uma nova consciência onde a existência está vinculada ao corpo antes do pensamento.



“Aos que desprezam o corpo quero dizer a minha opinião. “Eu sou corpo e alma” — assim fala a criança. — E porque sei não há de falar como as crianças? Mas o que está desperto e atento diz: — “Tudo é corpo, e nada mais; a alma é apenas nome de qualquer coisa do corpo”. Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria.”



Assim falou Zaratustra, Friedrich Nietsche





A primeira relação que temos com o espaço é de fato pelo corpo, não pelo pensamento. É só em um segundo momento que a cor quente da parede, os sons do assoalho antigo, o gosto e o cheiro da comida que está sendo preparada, o toque do sofá de couro e o calor e a luz do sol que entram pela janela são processados e surge uma conclusão: Gosto tanto deste lugar.

Alberto Caeiro, em “O Guardador de Rebanhos”, 8-3-1914

imagem de fundo: Whole, Jason Craighead

O OLHAR DA EXPERIência A perspectiva fenomenológica da arquitetura é um grande instrumento contra a hegemonia da imagem e da racionalidade do pensamento, possibilitando uma conscientização sobre os sentimentos, sensações, emoções e memórias que são provocadas pela experiência no espaço.

Janela indiscreta, Alfred Hitchcock

Pode-se dizer que a fenomenologia assume que assim que algo se revela frente à consciência humana, o homem inicialmente observa e percebe o fenômeno do ponto de vista da sua capacidade perceptiva (limitada e condicionada). Por isso, surge a necessidade de enfatizar as experiências antes do pensamento, sem a imposição de conceitos, crenças e significados prévios. Seria um contato mais ingênuo e primário com o mundo que possibilitaria um puro olhar para o fenômeno.

Summer evening 1947 Edward Hopper

No texto “A geometria do sentimento: Um Olhar Fenomenológico Sobre a Arquitetura” o arquiteto e pensador Juhani Pallasmaa faz uma interpretação da percepção do espaço arquitetônico considerando os sentimentos, experiências, memórias e emoções, e afirma que um material importante para a análise fenomenológica da experiência arquitetônica é a maneira como a arquitetura é representada em outros campos da arte. No cinema, na pintura e na fotografia, o artista cria e representa um cenário ou um lugar para o acontecimento humano, executando o projeto arquitetônico sem as preocupações funcionais e estruturais, sem o alvará de construção e as exigências de um cliente “A apresentação da arquitetura por outras artes é a ‘pura observação’ da criança que experimenta as coisas, porque as regras da disciplina não regulamentam a experiência ou o modo de apresentá-la.” Juhani Pallasmaa

Dois conceitos da fenomenologia desenvolvidos por Heidegger incentivaram minhas reflexões sobre a importância do processo e a compreensão do olhar da criança como inspiração na arte, sendo fundamentais para o meu entendimento da fenomenologia: Vir a ser e voltar as coisas mesmas. Vir a ser (ou Dasein, conceito original em alemão) significa que a identidade do homem está em constante construção, se modificando a cada experiência. Estamos em um movimento constante de significações e ressignificações que compõem a história singular de cada pessoa. As nossas memórias, principalmente de nossa infância, influenciam diretamente nas experiências que temos hoje. Isso significa que a nossa percepção da realidade está em processo e é singular tanto em relação aos outros, quanto em relação a nós mesmos em diferentes momentos da vida. Assim, precisamos voltar as coisas mesmas, que seria apreender o fenômeno a partir da experiência e dos sentidos, sem a ação de teorias, rótulos e conceitos do pensamento. Não podemos reduzir o mundo e a nossa existência à percepção limitada que temos do mesmo, pois o nosso olhar, além de ser alterado por nossas vivências individuais é contaminado pelo senso comum e pelos saberes sistematizados impostos na educação e na sociedade, que apresentam a realidade de uma forma tão evidente que passamos a classificar e generalizar situações, objetos e pessoas. É necessário acordarmos para as coisas despercebidas para que possamos nos admirar e romper com a familiaridade que temos perante ao mundo. A meu ver, não se trata de negar a razão e a inteligibilidade em favor do corpo e da sensibilidade, mas sim integra-los para que se tenha consciência das experiências e dos processos com atenção e intenção.

Rooms by the Sea, 1951 Edward Hopper

Nighthawks, 1942 Edward Hopper

imagem de fundo: Whole, Jason Craighead

OFICINA DE ESPAÇOS “É preciso viver, por vezes é muito bom viver com a criança que fomos. Os poetas nos ajudarão a reencontrar em nós essa infância viva, essa infância permanente, durável, móvel. A criança enxerga grande, a criança enxerga belo.” Gaston Bachelard Após todas essas reflexões teóricas, surgiu a ideia de fazer uma experiência, como um estudo de campo, para que todos estes pensamentos fossem observados, comprovados e questionados na prática. A ideia foi voltar a desenvolver oficinas com crianças, mas de uma forma diferente. Nestas oficinas eu queria observar a relação da criança com os espaços e seus processos criativos. Este não seria ainda o meu produto final de TCC, mas uma oportunidade para identificar aspectos de minhas reflexões e possibilitar o surgimento de novas soluções. “Uma das mais importantes matérias-primas da análise fenomenológica da arquitetura é a memória da infância [...] o fato de que certas lembranças remotas conservam para toda a vida sua identificabilidade pessoal e vigor emocional é uma prova convincente da importância e da autenticidade dessas experiências.” Juhani Pallasmaa Peter Zumthor também afirma que as raízes do nosso entendimento sobre a arquitetura estão em nossa infância, em nossa biografia e atmosferas de nosso passado. Assim, para desenvolver as oficinas, escolhi o local que guardava todas as memórias associadas a minha infância: A Escola Sarapiquá, na subida do Morro da Lagoa da Conceição, onde estudei dos 2 aos 12 anos. Conversei com a coordenadora pedagógica, que abraçou a ideia, e marcamos duas oficinas, com uma turma de crianças de 3 e 4 anos e outra turma de 6 e 7 anos. ruína

sala de artes

ENTRADA PRINCIPAL

No primeiro dia que retornei à escola, depois de 12 anos, ressurgiram muitas memórias. Emocionei-me ao lembrar de como adorávamos subir nas jabuticabeiras e goiabeiras e comer os seus frutos durante o recreio, dos macacos que apareciam lá de vez em quando, dos lanches coletivos onde cada dia da semana um aluno da turma trazia alimentos para compartilhar com os outros, do lago dos patos, dos banhos de cachoeira, da hora do conto, das aulas de circo, de música, de teatro, das oficinas de pintura... Reavivar estas memórias me fizeram entender um pouco sobre minhas buscas atuais. Percebi que o espaço da escola onde passei toda a minha infância transmitia e explicava por si só a beleza da simplicidade, aquela, também presente na estética dos artistas que me cativaram anos depois.

caminho da cachoeira

OFICINA I - o eSPAÇO ENQUANTO MOVIMENTO

“A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio. Falava que os vazios são maiores e até infinitos.” Manoel de Barros

Na primeira oficina, com a turma de crianças mais novas, a ideia era incentivar a construção de um espaço que não fosse estático, mas que pudesse se modificar a qualquer instante. A intenção era dar a maior liberdade possível, sem planejamentos e sem uma proposta pré-definida. Para isso, eu mesma tive que adotar uma postura mais livre e ausente de expectativas, sem tentar impor os caminhos da prática, o que não foi fácil no início. Afinal, durante toda a nossa formação, especialmente na Universidade, precisamos sempre obter resultados e chegar a produtos finais. Chamei meu amigo, Romullo Baratto, para filmar as oficinas, e desenvolvemos um vídeo a partir destes registros audiovisuais que fazem parte do presente trabalho. O vídeo pode ser visualizado no CD dentro do envelope em anexo. Levei materiais diversos como caixas, novelos de lã coloridos, canos, plástico bolha, tecidos, e os desorganizei em uma sala externa, buscando criar a desordem fecunda de que falava Umberto Eco, para que não houvesse resistência em transpor os objetos de acordo com a vontade de cada criança. Tentei me aproximar ao máximo das crianças me introduzindo como aluna que tinha estudado na escola, conversando sobre os espaços inusitados onde gostávamos de brincar (como corredores e esconderijos entre os bambus e atrás das salas) e desenhando as brincadeiras que aconteciam nesses espaços (como o mundo doce, brincadeira que Isabella, 4 anos, imaginava na ruína, onde a terra era chocolate, as árvores pirulitos e as nuvens de algodão doce). A Professora, tentando me ajudar, pedia a todo instante para que prestassem atenção, que não saíssem da roda, que desenhassem sentadas, enquanto eu replicava tentando dar liberdade: Podem falar! Podem desenhar onde quiserem! Podem deitar no chão!

Quando dei por mim, diversas situações aconteciam simultaneamente e a interação das crianças com os objetos transformava o significado das experiências no espaço a cada minuto. Os fios de lã começaram a se desfazer e conectar as mesas e cadeiras da sala interna e da sala externa formando armadilhas. Os tecidos coloridos transformavam-se em roupas e cabanas, onde as crianças pulavam, dançavam, se escondiam e se enrolavam. Os canos viravam espadas, canhões, telescópios, flautas, cajados e binóculos, e com eles surgiam guerreiros, cientistas, músicos e espiões. As caixas se tornavam esconderijos e palcos para brincadeiras e movimentos que as vezes eu não conseguia classificar.

Chamei-as e falei em segredo (técnica muito útil para despertar a curiosidade) que iríamos construir um espaço da maneira que imaginássemos na sala externa, e poderíamos fazer tudo o que quiséssemos com os materiais. Elas saíram pela porta correndo, apropriando-se rapidamente dos objetos, observando, tocando, puxando e reconhecendo.

No final, quando a professora pediu para que elas voltassem para a sala, um dos meninos deitou em cima de um tecido no chão, amarrado entre duas mesas. Perguntei para ele o que era aquilo onde ele estava deitado. Ele respondeu: É...uma rede....uma rede-cama. Uma rede-cama de um espião! - E saiu correndo.



À medida que eu me envolvia e percebia a dinâmica que acontecia, eu era contagiada com toda a energia que criava milhares de significados para os objetos até então obsoletos. Através das transformações, descobertas e fantasias, o movimento constante das crianças configurava um espaço lúdico, alimentado por componentes físicos, simbólicos e emocionais. Algumas de minhas reflexões teóricas se materializavam em minha frente em uma oficina que me parecia um verdadeiro campo experimental para a fenomenologia, a estética relacional, a obra aberta e tantas outras teorias da arte contemporânea, onde até mesmo os parangolés de Helio Oititica eram reinventados. O espaço ali configurado era ‘O espaço existencial aberto e constituído pelo corpo’ de que falava Merleau Ponty. A interação das crianças com as coisas falava simultaneamente sobre os dois níveis de abertura da obra contemporâna, tanto do plano da interpretação, ao ressignificarem os objetos que ali estavam dinamicamente (um objeto não tinha o mesmo significado por mais de 3 minutos), assim como do plano da própria produção da obra. Carteau, propõe uma discussão da ordem do movimento, da ação e da performance como motivadores da criação dos espaços. De fato, era o processo de praticar o espaço é que o fazia existir com seus inúmeros significados. Lembrei-me então do corredor onde brincava atrás da sala da coordenação durante os recreios. O corredor, projetado simplesmente como local de passagem, era onde as mais diversas fantasias e brincadeiras transformavam aquele espaço em casa, nave, toca, esconderijo, passarela e palco. Por mais que a arquitetura crie significados para os espaços vazios, preenchendo-os de funções, a experiência da criança com os espaços é impermanente e mutável. As crianças se apropriam de forma poética do que já é, para criarem um universo novo de sentidos de acordo com as suas vontades. O vazio de que fala Manuel de Barros possibilita o inesperado e o imprevisível, onde o espaço eternamente por fazer deixa marcas que ultrapassam a infância e mantém vivos os criadores dentro de nós. No fim, o que existe são os processos de reinvenção contínua onde nunca se chega a um objeto final, nem dos espaços, nem de nós mesmos.

OFICINA II - O ESPAÇO ENQUANTO PROCESSO “Com o que você brincava quando era criança? -Eu brincava com os espaços.” Ítalo Calvino



Na segunda oficina surgiu uma preocupação maior com a metodologia por se tratar de uma turma com crianças de sete anos. Imaginei que para se envolverem com a dinâmica, as crianças mais velhas precisariam entender o objetivo e seria necessário pré-definir alguns caminhos. Pensei em algumas ideias e criei até uma proposta que ensaiei e levei para apresentar. Quando cheguei na sala, as crianças estavam sérias, sentadas na configuração padrão de carteiras alinhadas e a professora na frente. Me apresentei como fiz com a outra turma, mas arrisquei introduzir o assunto arquitetura. Elas diziam já saber o que fazia um arquiteto: Construía casas, escolas e hospitais, disseram. Perguntei se elas gostariam de ser arquitetas naquele dia e imaginar o que elas modificariam na escola. A sala seria assim? E se as cadeiras fossem viradas de cabeça para baixo? Perguntei. Virei uma mesa de cabeça para baixo e as convidei para configurar junto comigo a sala que elas imaginariam ser ideal, tentando abrir caminhos mais livres de pensamento. Entre sorrisos e olhares curiosos elas logo se juntaram a mim, pulando, virando as carteiras em diversos sentidos e criando as mais variadas formas de sentar (enquanto a professora olhava um pouco assustada). Após essa introdução, levei as crianças para uma área da escola com chão de terra, pedras e árvores, apelidada de ‘ruína’, onde eu tinha preparado a oficina. Em um pequeno espaço retangular de madeira, forrei duas fachadas com plástico transparente e coloquei diversos pincéis e copos com tinta colorida em volta. Pedi para elas que entrassem no espaço para imaginar e pintar o que gostariam de ver do lado de fora. No meu pensamento, aquilo tudo seria a representação de uma lente que refletia o olhar da criança e a sua percepção imaginativa do que poderia ser a realidade. Nos primeiros momentos, as crianças pareciam compenetradas em desenhar formas geométricas, flores, animais e personagens. Alguns minutos depois comecei a perceber que o motivo inicial já tinha sido esquecido. Mãos sujas de tinta manchavam a tela transparente, que ficava a cada segundo mais colorida. As crianças começaram a pintar as mãos, os braços e a tela simultaneamente enquanto cantavam, conversavam e se moviam constantemente.

Quando pensei em lembrá-las da intenção inicial, percebi que era eu que ainda não tinha me libertado da expectativa da produção de um objeto final que desse concretude para o meu trabalho. Esta expectativa por um produto me impediu temporariamente de viver o processo com a atenção e a liberdade dos olhos de criança que eu tanto buscava. Não demorou muito para que elas me mostrassem que a experiência que acontecia ali não era sobre o objeto final. Fiquei em silêncio e deixei a dinâmica seguir o seu curso, quando uma delas perguntou se podia me pintar também. Disse que sim, e entrei no espaço. Aos poucos, as crianças e os materiais se integravam em uma coisa só. Era sobre o movimento dos corpos com as pinturas, sobre a música que cantavam enquanto pintavam, sobre os sorrisos, sobre amassar os copos de plástico, lavar as mãos na bacia de água suja de tinta sentindo e observando o líquido a escorrer, sobre a alegria e o encantamento de ver as cores surgirem na tela transparente e na pele simultaneamente. Era sobre toda a experiência que acontecia durante o processo, não sobre o resultado ou o significado dela, de que falavam as crianças. Envolvida na experiência, percebi: Aprendia o olhar.

O RETORNO Logo no mesmo dia da segunda oficina, quando sentei para refletir sobre tudo o que vivi e observei, novas ideias e lembranças começaram a surgir. Lembrei da disciplina de projeto que tivemos no primeiro semestre de faculdade. Entre os croquis coloridos, as maquetes conceituais, os desenhos de observação e as instalações, lembrei claramente de estar encantada e realmente envolvida com a faculdade. Chegava em casa e dizia que tinha me encontrado ali. Me perguntei o que tinha acontecido durante os semestres seguintes para eu me distanciar tanto deste envolvimento e encantamento inicial. Em P0, tivemos que construir uma instalação inspirada em um conceito dado pelos professores. Coincidentemente ou não, o tema de meu grupo era fantasia. Criamos um livro gigante sinestésico que narrava uma história infantil, e em cada palavra ligada a algum sentido (boca doce, pele perfumada, cabelos sedosos, etc), tentamos transmitir sensações através de doces, frascos de perfume e objetos com diferentes texturas posicionados dentro do livro. Colocamos o livro debaixo de uma árvore na frente do departamento de Arquitetura e criamos uma ambientação com tecidos, flores e um dos integrantes do grupo tocando violão. Apesar da interpretação muito literal (e caloura) do que seria fantasia, lembro-me de ter adorado todo o processo de criação. Surgiu então a ideia de fazer um retorno a P0 e criar uma instalação. “Levei a vida inteira para pintar como uma criança” disse Picasso. Eu levei a faculdade inteira para descobrir que as respostas para minhas inquietações estavam nas origens do processo de aprendizagem da arquitetura, onde esta ainda se aproximava da arte e seus processos. Algumas coisas começaram a fazer sentido. A instalação não seria o produto final do TCC, mas uma etapa do processo tão importante quanto as outras que agora envolveria a criação e a construção de um espaço que refletisse minhas ideias. A instalação é um dos pontos mais próximos entre a arte contemporânea e arquitetura. Ambas apropriam-se do espaço como suporte para estabelecer alguma relação com o ser humano. As instalações possibilitam uma consciência maior da experiência no espaço justamente por não estarmos habituados a elas e com um olhar mais atento, tentamos desvendar seus diálogos. Durante o desenvolvimento da instalação, busquei aplicar toda a percepção que eu havia desenvolvido até então. Este novo olhar para as experiências tornou o processo criativo muito prazeroso, desde a elaboração dos conceitos, dos primeiros croquis, até a construção, pela primeira vez, de uma instalação com estrutura de madeira. Pedi ajuda para meu amigo Alexandre, designer e artista que entende muito de construção em madeira e passamos algumas manhãs e tardes em seu ateliê construindo as peças que seriam posteriormente montadas na faculdade de arquitetura. Aprendi muitas coisas que eu ainda não sabia e estive atenta a todo o processo que se revelou imensamente gratificante. A ideia da instalação foi conceber um espaço que ainda não estaria finalizado. Neste corredor, busquei criar uma estrutura que possibilita uma experiência de criação e que configura a estética da instalação como um objeto em constante processo. Quem participa da ação desta experiência internamente, tem a noção de sua totalidade, já que a tela interior está desvinculada das molduras externas. Quem está fora tem a liberdade de emoldurar o que deseja ver como produto final movendo as molduras que não estão fixas e correm pela tela através de um cabo de aço. Para mim, determinadas cores e formas podem ser um objeto final, para outra pessoa poderia ser uma coposição diferente. No entanto, estas molduras que delimitam os objetos finais são pontuais e representam uma parcela muito pequena da totalidade do processo de criação.

Primeiro semestre de 2008 Disciplina: Projeto Arquitetônico 0 Instalação Fantasia

Não represento aqui, portanto, as possibilidades de comportamentos, resultados e imagens que podem surgir da interação com este projeto durante e após a apresentação do presente trabalho. Nesta instalação-corredor, é através da ação que a estética irá se configurar. O espaço não está apreendido por inteiro porque não está totalmente realizado.



Afinal, o que significa a ARQUITETURA (PARA MIM)?

Assim, concluo esta etapa fazendo outro retorno, ao me perguntar novamente sobre significados. Semelhante à pergunta que fiz no início deste trabalho, mas agora abrangendo um contexto maior, me perguntei: Afinal, o que significa a arquitetura para mim? A resposta para esta pergunta clarificou tudo o que eu havia desenvolvido até então, quando notei que já trazia este significado comigo desde o princípio. Percebi que eu estava certa quando acreditava que a Arquitetura estabeleceria diversas relações entre outras áreas de criação e me ajudaria a desenvolver diferentes observações e conceitos. Mas, principalmente, percebi que a arquitetura não só está relacionada com todas as artes, como é o espaço que as envolve. Arquitetura é a porta de entrada para as inspirações e a janela que permite os devaneios. É o teto que abriga as criações e o chão que suporta as experiências do ser, em todas as idades. A arquitetura, afinal, envolve a existência. É cenário das memórias e espaço das emoções, sentimentos, percepções e sentidos. Aliás, entre todas as áreas da criação, só a arquitetura consegue despertar no mesmo instante todos os sentidos ( e aparentemente a arte também, quando resolve ser espaço).

A Arquitetura, assim como a poesia, tem a capacidade de transmitir essências. Os poetas não descrevem somente a aparência de um lugar, acontecimento ou pensamento, mas transmitem a sua essência, principalmente daquilo que é ausente de significado. A arquitetura também pode transcender a aparência através de uma relação sensível com a humanidade, transmitindo a essência de um lugar, de um conceito, de uma cultura, de sonhos e desejos. Os espaços da casa, da escola, do jardim, do curso, da faculdade, da galeria, do bar, da festa, da praça, da cidade, envolvem as experiências do ser humano e fazem parte do vir a ser singular de cada pessoa que se modifica a cada nova vivência, estando em constante processo de construção. Fazendo parte intrínseca deste processo, poderia dizer que, de certa forma, a arquitetura também nos constrói.

AGRADECIMENTOS

BIBLIOGRAFIA BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional, São Paulo, Martins, 2009 DELEUZE. G.; GUATTARI, F. Mil Platôs, São Paulo, Editora 34, 1997 BACHELARD, GASTON. A Poética do Espaço, São Paulo, Martins Fontes, 2000 CALVINO, Italo. As Cidades Invisíveis, São Paulo, Biblioteca Folha, 2003 ZUMTHOR, Peter. Atmosferas, 1a ed. Editora Gustavo Gili, 2009 GUYAU, Jean-Marie. A Arte do Ponto de Vista Sociológico, São Paulo, Martins Fontes, 2009 NESBITT, Kate. Uma Nova Agenda para a Arquitetura. PALLASMAA, Juhani. A geometria do sentimento: Um olhar fenomenológico sobre a arquitetura. São Paulo, Cosac Naify, 2008 NASCIMENTO, Andréa. A Criança e o Arquiteto: Quem aprende com quem? São Paulo, 2009 KLEE, Paul. Prose Works. Selections. 1879 – 1940 HOLL, Steven. Questions of Perception: Phenomenology of Architecture, San Francisco, ‪William Stout Publishers, 2006 CERTEAU, Michel de. A invenção do Quotidiano - Artes de Fazer, Petrópolis, Vozes, 1994 ECO, Umberto. Obra Aberta - Forma e Indeterminarão nas Poéticas Contemporâneas. São Paulo, 2001 ZUMTHOR, Peter. Pensar a Arquitetura. São Paulo, Gustavo Gilli, 2009 LITERATURA MANOEL DE BARROS. Memórias inventadas - Exercício de ser criança. São Paulo, 2003 SAINT - EXUPÉRY, Antonie. O Pequeno Príncipe, Rio de Janeiro, 1999 GAARDER, Jostein. O Mundo de Sofia, Cia das Letras, São Paulo, 1991

Ao meu orientador, Américo, pelas infindáveis reflexões compartilhadas e por todo o aprendizado. À Angela e à Marcia, por terem abraçado a ideia das oficinas na Escola Sarapiquá. Ao Romullo e ao Alexandre, pela ajuda na materialização de minhas ideias. À Louise, pelas conversas inspiradoras. À Maria Amélia e à Maria João, por me emprestarem o livro da biblioteca da Casa de Pascoaes e por toda hospitalidade em Portugal. Ao Álvaro, por todo amor, amizade e compreensão neste caminho compartilhado. A todos os professores e amigos que me ajudaram direta ou indiretamente neste trabalho. Ao Victor e à Gabriela, por tornaram este processo mais leve e alegre. A todas as crianças que me inspiraram e me ensinaram o olhar. Aos meus pais, Anelise e Henry, por todo apoio, conselhos e amor imensurável. Vocês fazem parte do que sou, obrigada por tudo.

SITES DA INTERNET PATER, Walter. Studies in the History of the Renaissance (first published in 1883; in later editions retitled The Renaissance: Studies in Art and Poetry). Disponível em http://grammar.about.com/od/classicessays/a/SuccessIn-Life-By-Walter-Pater.htm, Acesso em 5 de maio de 2014 SPERLING, David. CORPO + ARTE = ARQUITETURA. As proposições de Hélio Oiticica e Lygia Clark. Disponível em http://www.forumpermanente.org/painel/coletanea_ho/ho_sperling, Acesso 13 de junho de 2014 TADEU, Patrícia. A fenomenôlogia em Merleau Ponty. Disponível em http://filosofiadaarte.no.sapo.pt/fmp.html, Acesso 5 de maio de 2014

15/08/2014 Fotos tiradas antes e depois da apresentação do presente trabalho. Integrantes da platéia entraram no espaço e participaram da experiência de criação, configurando a estética da instalação a cada pincelada, cor e forma, do início ao fim da apresentação. Alguns estudantes continuaram a pintar a instalação após a conclusão do trabalho.

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