O Espelho de Machado de Assis

July 5, 2017 | Autor: Rafael Voigt | Categoria: Machado de Assis, Literatura brasileira, Crítica literária
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O ESPELHO DE MACHADO DE ASSIS RAFAEL VOIGT LEANDRO1

Aos 20 anos, Machado de Assis contribuía com O Espelho2, cognominado “revista semanal de literatura, modas, indústria e artes”, na curta vida de seis meses desse periódico. A contribuição de Machado deu-se, principalmente, na crítica teatral, na coluna “Revista de Teatro”. Mas, não raro, encontram-se, nas páginas dO Espelho, crítica literária e poemas do autor de Dom Casmurro. Em alguns números, como em 11 de setembro de 1859, Machado dedica-se à coluna “Aquarelas”. Nessa ocasião, escreve artigo de crítica literária sob o título de “Os fanqueiros literários”. Logo de início, o crítico chama de “fanqueiro literário” o prosador novato. Consultando bons dicionários, depreende-se que o fanqueiro é responsável por fancaria, ou seja, ao comércio de trabalho grosseiro, feito apenas em busca de lucro. Poderia causar espanto o comércio das letras na época da juventude machadiana, em que a imprensa brasileira ainda engatinhava. Entretanto, não é somente a isso que Machado alude: “Desposório3, natalício ou batizado, todos esses marcos da vida são pretextos de inspiração às musas fanqueiras. É um eterno gênesis a referver por todas aquelas almas (almas!) rescendentes do zuarte.” Aqui, num breve parêntese, pode-se pensar em como a literatura para letrados circulava em gêneros literários de aplicação na vida social prática, de modo quase utilitário. É como se existisse um “profissional liberal das letras”, com um escritório instalado numa das avenidas do Rio de Janeiro oitocentista, em cujo letreiro se lê algo do tipo: “Fazemos os melhores versos para a pessoa amada”. Com esse espírito vulgar, não se pode esperar mais do que a ação das musas fanqueiras e não mais das musas gregas, como zomba Machado. A mercantilização das letras está também no alvo de sua crítica. Em tom galhofeiro, propõe uma “inquisição literária”: “(...) Que espetáculo não seria ver evaporar-se em uma fogueira inquisitorial tanto ópio encadernado que por aí anda enchendo livrarias!” (p. 25) Não se pode negar a hipótese de que Machado esteja observando, no perfil pitoresco da figura do fanqueiro, também falsos românticos, aninhados somente em “endeusar as Doutor em Literatura Brasileira pela UnB. Professor de Língua Portuguesa no Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). 2 O Espelho: revista semanal de literatura, modas, indústria e artes: edição fac-similar (1859-1860). Rio de Janeiro: MinC/Fundação Biblioteca Nacional, 2008. 3 Casamento. 1

estrelas”, sem qualquer compromisso com a realidade natal, por meio de obra literária que valha a pena. O crítico traça ainda uma pequena comparação entre fanqueiros parisienses e os do Rio de Janeiro. Se do outro lado do Atlântico, encontra-se meia dúzia em cafés, escrevendo seus vaudevilles; desse lado de cá, “(...) o fanqueiro não tem por ora lugar certo. Divaga como a abelha de flor em flor em busca de seu mel e quase sempre, mal ou bem, vai tirando suculento resultado.” (p. 25) Além de se portar como um dândi, a cortesia é outro traço do fanqueiro literário. Segundo Machado, por trás de tantos modos corteses, esse tipo acaba fisgando um freguês. Essa cortesia participa da cordialidade afetada da burguesia brasileira em formação, como esquadrinhada por Sérgio Buarque em Raízes do Brasil4. Numa última consideração sobre o aparecimento desse malandro das letras, Machado chega a uma conclusão de fina crítica sociológica: “O fanqueiro literário é uma individualidade social e marca uma das aberrações dos tempos modernos. Este moer contínuo do espírito que faz da inteligência uma fábrica de Manchester, repugna à natureza da própria intelectualidade. Fazer do talento uma máquina, e uma máquina de obra grossa movida pelas probabilidades financeiras do resultado, é perder a dignidade do talento, e o pudor da consciência.” (p. 25) O olhar do jovem crítico tem muito do que Schwarz chama, em relação ao Machado maduro, de “tino malicioso para o funcionamento social e para a especificidade do Brasil” (2012, p. 248)5. É como se Machado revelasse o literato fanqueiro de alma brasileira, mas de caráter universal dentro de sua expressão local. O que se percebe é que os fanqueiros literários são de todos os tempos. Às vezes, não são apenas achegados às maquinações literárias. Podem ser um daqueles “donos” de uma coluna jornalística, cujo interesse é destilar certo poder ou vender ideias, como se detivesse o domínio sob um dos instrumentos políticos de persuasão - a escrita -, capaz de soprar as velas da opinião pública para onde bem entender. Muito cuidado, fanqueiro! O público é machadiano. Olhe pelo espelho retrovisor. Ah!... merece um piparote quem encontrar um fanqueiro literário por aí. Agosto de 2015.

4 HOLLANDA,

Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. [1936] Cap. 5 – O homem cordial. 5 SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. Cap. A viravolta machadiana.

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