O ESPIÃO QUE (NÃO) ME AMAVA: OS DILEMAS DE UMA POLÍTICA EXTERNA DEMOCRÁTICA NA ERA DIGITAL

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O ESPIÃO QUE (NÃO) ME AMAVA: OS DILEMAS DE UMA POLÍTICA EXTERNA DEMOCRÁTICA NA ERA DIGITAL por Lucas Rezende*

Estavam errados aqueles que, ao final da Guerra Fria, diziam que o mundo da espionagem chegava ao seu fim. Não apenas as aventuras de 007 continuam entretendo pessoas ao redor do mundo, como, agora, espiões de verdade trazem também sua própria forma de deleite. Quem imaginaria que, no ápice da Guerra Fria, um ex-espião, acusado de traição por denunciar as práticas de espionagem dos Estados Unidos, seria um dos indicados para concorrer ao prêmio Nobel da Paz? Ou, ainda, que o criador de um site que divulga documentos secretos dos governos viraria personalidade mundial e símbolo da democracia? Era possível imaginar que, via equipamentos portáteis e mídias de comunicação instantânea, revoluções poderiam ser traçadas em países autocráticos? A era digital e as comunicações instantâneas trouxeram uma nova percepção que a divulgação de informações secretas dos Estados não apenas contribuem para a paz mundial, mas também são exemplo de prática de uma política externa democrática. Meu argumento nesse artigo é que não necessariamente isso acontece. Apesar do discurso pacifista, personagens como Edward Snowden e Julian Assange trazem problemas de curto e médio prazo que fazem as relações internacionais contemporâneas mais instáveis e imprevisíveis. Por meio de uma análise do caso do escândalo da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (NSA), do papel dos serviços de inteligência e das consequências que uma política externa equivocadamente chamada de democrática trazem, com atenção para o caso brasileiro, apresento os dilemas entre a estabilidade das relações internacionais e a divulgação de informações secretas. Meu objetivo com esse artigo não é o de condenar uma maior pluralização, bem como a transparência da formulação e da implementação da política externa dos Estados, o que considero não apenas justo como necessário. Busco aqui mostrar o lado B, nada pacífico e estabilizador, que os chamados movimentos leaks trazem para as relações internacionais. Uma discussão conceitual Pegando como exemplo a internacionalização da política externa brasileira (PEB) vivida após a redemocratização do país, coincidindo também com o período final da Guerra Fria, vemos que o aumento do interesse e atores em discutir o tema de política externa é uma tendência bastante observada

- ainda que, para os analistas políticos nacionais, entender o interesse da sociedade nos temas de PEB seja marginal (FARIA, 2008 e 2012). No entanto, a transformação do Ministério das Relações Exteriores (ou Itamaraty) como ator único dos processos relacionados à PEB tem sido alterada, por uma necessidade intrínseca da instituição de, devido ao aumento das demandas sobre questões internacionais, não mais ser capaz de centralizar todos os processos relacionados ao tema - como lhe era devido até meados da década de 1980. Faria (2012) mostra bem como o Itamaraty sai de seu insulamento burocrático e caminha em direção a um papel de coordenador dos atores governamentais e de cooperação com agentes da sociedade, democratizando a formulação e a implementação da PEB. Se, até meados de 1990, a percepção dos analistas brasileiros era que o Itamaraty, devido ao seu isolamento, não atendia aos interesses da sociedade brasileira, "diversas das análises mais recentes têm argumentado que se estão avolumando no país as pressões no sentido de conformação de um processo de produção de política externa que seja mais poroso, plural ou democrático" (FARIA, 2012, p. 312). Ou seja, tanto no Brasil quanto no resto do mundo, vivemos um aumento de uma demanda para a maior democratização dos processos envolvendo a formulação e a implementação de temas ligados a política externa. Paralelamente a isso, um fenômeno, contudo, merece destaque nos últimos anos: o sentimento de democratização das políticas internacional e doméstica por intermédio da troca de informações pelos meios digitais. Há quem aponte, por exemplo, que a capacidade de mobilização de massas das redes sociais digitais foi essencial para as revoluções populares da chamada Primavera Árabe, em especial no Egito e na Tunísia (HERMIDA; LEWIS; ZAMITH, 2012; VARGAS, 2012), bem como para as manifestações públicas que, nesse ano, sacudiram Turquia e Brasil (SAKAMOTO, 2013). Ainda que tenha levado a movimentos disformes e passíveis de maiores radicalizações, é notável a influência de novas mídias, como o Facebook e o Twitter, nesses processos. O sentimento de participação política como resultado de mobilizações voluntárias por essas mídias me parece cada vez mais observado - ainda que, repito, esses movimentos sejam disformes e não tenham trazido, em muitos dos casos, o resultado esperado: a maior democratização e transparência dos processos políticos.

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Se, por um lado, Facebook e Twitter tornaram-se ferramentas importantes de mobilização, o sentimento popular de conhecimento do jogo político tem se propagado via vazamento de informações secretas dos Estados. Tais vazamentos (ou leaks, do original em inglês como acabam sendo alcunhados) são feitos em formas de denúncias, expondo documentos secretos ou ações de espionagem, tornando celebridades instantâneas figuras como Julian Assange, fundador do Wikileaks, e Edward Snowden, delator do esquema mundial de espionagem da Agência Nacional de Segurança (NSA) dos Estados Unidos. Tal popularidade instantânea ocorre porque desperta um sentimento de conhecimento e de participação democrática. Na era digital, não haveria mais espaço para os segredos de Estado, responsáveis por considerável parcela de responsabilidade pelos desentendimentos internacionais. Nesse sentido, a divulgação dos segredos de Estado aumentaria o papel do indivíduo enquanto ator político, demonstrando suas insatisfações com o que Maquiavel nomeou de razões de 1 Estado . É esse sentimento de conhecimento e participação populares, guiados por uma ideal democratizante que clama por um Estado transparente e justo, que nega a razão de Estado e valoriza a vontade individual, que eu aponto aqui como um problema para o processo de democratização da política externa. Se, por um lado, a inclusão de novos atores na formulação e na implementação da política externa é uma demanda que busca fortalecer e legitimar as ações internacionais dos Estados, identificando-as e aproximando-as das demandas domésticas; por outro, a divulgação de informações das práticas diplomáticas ou de como o Estado alimenta suas fontes de informação pode ser, também, uma fonte infinda de instabilidades, desentendimentos e, até mesmo, potencial causa de conflitos internacionais. Não digo aqui que os processos de democratização da política externa devam ser abandonados, pelo contrário. Corroboro a visão de Faria (2008 e 2012) nesse sentido, que mostram, no caso brasileiro, como ainda carecemos de maiores desenvolvimentos na formulação e implementação da política externa. Meu argumento é que a democratização da informação pela exposição de segredos de Estado traz um falso sentimento de estabilização das relações internacionais. Mearsheimer (2011) mostra que há, por vezes, boas razões estratégicas para que um Estado minta para outro. O autor explica: Eu não estou dizendo que mentir é uma grande virtude e que mais mentiras internacionais é melhor do que menos. Eu estou simplesmente dizendo que mentir é, às vezes, um instrumento útil do estadismo em um mundo perigoso. Na verdade, um líder pode ocasionalmente dizer o que Platão famosamente chamou 1

O conceito, segundo o cientista político italiano, diz que, sendo os homens incapazes de se organizar sozinhos, é preciso o Estado agir com força e coerção, garantindo que não haja um retorno ao estado de natureza. A vontade do indivíduo, portanto, deve se dobrar à vontade do Estado. (MAQUIAVEL, 2011).

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de uma "mentira nobre". Por exemplo, o presidente Franklin Roosevelt mentiu ao povo estadunidense sobre o ataque alemão ao USS Greer em agosto de 1941. Ele estava tentando colocar os Estados Unidos na II Guerra Mundial contra a Alemanha Nazista, que, à época, parecia estar em seu caminho para conquistar toda a Europa. O objetivo de Roosevelt era o certo, e foi apropriado para ele mentir nessa instância (MEARSHEIMER, 2011, pp: 12-3. Tradução livre). O que Mearsheimer (2011) quer dizer é que, em nome de algo maior - ou do princípio maquiavélico de razão de Estado – faz sentido que o Estado, por vezes, minta. A não divulgação dessas mentiras, contudo, é fundamental para que o objetivo político seja cumprido. Não tivesse Roosevelt mentido sobre o ataque alemão ao USS Greer, talvez os Estados Unidos nunca tivessem entrado na II Guerra Mundial, no teatro de guerra europeu, e Hitler teria, possivelmente, conseguido firmar seus planos de construção do III Reich. Apesar de ser prática permanente nas relações internacionais, surpreendentemente, contudo, Mearsheimer (2011) chega à conclusão que a quantidade de mentiras entre Estados é menor do que a quantidade de mentiras que os líderes têm, por vezes, que dizer à sua própria população. Governos, dentre outras coisas, preocupam-se com suas continuidades e, especialmente em ambientes democráticos, devem prestar contas públicas às suas populações. Nesse sentido, a liberação de informações confidenciais provoca um afloramento de questões que poderiam ser controladas em curto ou médio prazo, sem a necessidade de uma crise. Por exemplo, foi essencial para dar fim à Crise dos Mísseis entre Estados Unidos e União Soviética, em 1962, um acordo secreto informal entre o presidente Kennedy e o secretário Khrushchev, que estabelecia que os mísseis nucleares soviéticos seriam retirados de Cuba e, em contrapartida, os mísseis estadunidenses seriam retirados da Turquia, mas apenas seis meses depois e sem nenhuma clara associação à crise cubana. Isso porque, se fosse tornada pública tal informação naquele momento, o governo Kennedy seria interpretado como fraco, cedendo às pressões soviéticas e perdendo influência internacional, mesmo tendo salvado a humanidade em seu momento mais crítico. A crise interna que se abateria sob o governo dos Estados Unidos poderia levar a um recrudescimento da Guerra Fria e não à détente, que trouxe maior possibilidade de diálogo entre as duas superpotências. Os cenários poderiam, nesse sentido, ser desastrosos. E não é apenas no risco de uma guerra nuclear que a revelação, em curto prazo, de interesses de Estado se mostra problemática. A divulgação da informação que o governo brasileiro sofreu atos de espionagem pelos Estados Unidos vai em mesma linha, o que exploraremos adiante. A espionagem não é novidade na história da humanidade, tampouco é incompatível com governos democráticos, como mostra Cepik (2003). Pelo contrário, é um elemento essencial no planejamento e na execução de políticas por Estados e por organizações. A espionagem deve ser entendida como

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inserida dentro das diversas atividades de inteligência disponíveis a esses atores. Diplomatas, por exemplo, são autorizados a enviar relatórios de informações a seus países de origens, o que não é categorizado como espionagem esse, um aspecto muito mais restrito dos serviços de inteligência.

NO ASPECTO DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS, O MUITO BARULHO QUE SE SEGUIU À PUBLICIZAÇÃO DAS ESPIONAGENS DA NSA PODE SER LIDO, DESSA FORMA, COMO UMA TENTATIVA DE SOFT BALANCING POR PARTE DOS DEMAIS PAÍSES QUE, ALIADOS OU NÃO DOS EUA, SE PREOCUPAM COM SUA SOBREVIVÊNCIA E COM A PROTEÇÃO DE SUAS INFORMAÇÕES. As chamadas agências de inteligência começaram a fazer parte do corpo do Estado, com destaque, ao longo do século XX, e foram peças importantes no planejamento das ações dos Estados. Quanto mais ações disponíveis ao Estado, maior a sua capacidade de planejamento. Dentre as formas disponíveis e utilizadas pelos atores, as operações encobertas são aquelas feitas via manipulação em seu favor de dados que lhe são importantes. Ao mesmo tempo em que a busca das informações se mostrou relevante, foi aumentando, de igual modo, a necessidade de proteção das informações nacionais, o que gerou os serviços de contra-inteligência e 3 contraespionagem . (CEPIK, 2003).

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Segundo Cepik (2003, p. 28), "inteligência é a coleta de informações sem o consentimento, a cooperação ou até mesmo o conhecimento por parte dos alvos de ação. Nessa acepção restrita, inteligência é o mesmo que segredo ou informação secreta". Aliada a um segundo aspecto, o autor completa a definição dizendo que "inteligência se diferencia da mera informação por sua capacidade explicativa e/ou preditiva" (idem ibidem). 3 A contra-inteligência é mais ampla, e diz respeito à tentativa de se buscar informações das capacidades e intenções dos serviços de inteligência alheios. Já a contraespionagem é mais específica, "voltada principalmente para prevenção, detecção, neutralização, repressão ou manipulação/infiltração de atividades hostis de espionagem" (CEPIK, 2003, p. 59).

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Meu ponto, ao reforçar essas definições sobre a prática da inteligência e da espionagem,é para reafirmar que, desde que geridos de modo transparente e ágil, esses serviços contribuem para a estabilidade e os relacionamentos domésticos ou internacionais. A dificuldade intrínseca está em definir o que é transparente e ágil nesse setor, sem que, com isso, o remédio cause mais dores que a moléstia. E é aí que se entra em um campo interessante da discussão sobre a espionagem: quais os seus limites? Até o momento, simplesmente, não há, ao menos não nas relações internacionais, enquanto perdurar a anarquia e a autoajuda. Definir os limites das atuações dos serviços de inteligência não é uma tarefa facilmente executável, nem no aspecto doméstico e nem no global. O que a atual crise do governo Obama, desencadeada com as denúncias de excessos nas investigações da NSA, nos mostra é que parece haver um interesse político envolvido na limitação de tais ações. Agora, se todos os Estados sabem que não há limites internacionais às ações de inteligência, sendo esses limites colocados pelos próprios serviços de contra-inteligência e contraespionagem (ou seja, dependendo unicamente da capacidade de resposta de cada Estado), por quê, só agora, isso se manifesta? Uma das respostas pode ser, justamente, a superioridade incrível que os Estados Unidos demonstram na capacidade de acumulação e coleta de informações, quando comparado aos demais Estados. Se, nos tempos da Guerra Fria, o que limitava a atuação dos Estados Unidos e seus aliados eram a atuação da União Soviética e seus pares, e vice-versa, a era da unipolaridade viu os EUA aumentarem desproporcional e independentemente a sua capacidade de ação. Em 1977, auge da Guerra Fria, Roger Moore encarnava o espírito do espião ocidental como James Bond, em 007 - O Espião que me Amava. Seu único oponente de fato era Major Anya Amasova, agente da KGB soviética. Ambos eram os melhores em seus países precisamente por darem a vida por ele, colocando, acima de seus próprios interesses, a razão de Estado. Eram heróis, admirados no mundo inteiro, com licença 4 para matar . Apenas um podia ser páreo para o outro. Os tempos mudaram e o protagonista atual, Edward Snowden, é um ex-espião, da vida real, que se tornou famoso não por dar a vida, mas por trair o seu país, revelando a prática de coleta de informações da NSA. Curiosamente revelado pouco tempo após a denúncia que hackers chineses, o escândalo protagonizado por Snowden mostra a inexistência de um outro ator capaz de conter a maciça capacidade adquirida, ao longo dos anos, pelos Estados Unidos na aquisição e 5 processamento de informações .

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Não há qualquer reconhecimento formal que exista uma licença para matar, concedida por governos, como utilizado nos filmes e livros de James Bond. A expressão ficou famosa na ficção, imortalizada por Ian Fleming, criador do personagem. 5 Correlação não original minha, feita pelo Dr. Marco Cepik. Informação verbal.

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No aspecto das relações internacionais, o muito barulho que se seguiu à publicização das espionagens da NSA pode ser lido, dessa forma, como uma tentativa de soft balancing por parte dos demais países que, aliados ou não dos EUA, se preocupam com sua sobrevivência e com a proteção de suas informações. Não tendo condições de fazer frente à contrainteligência ou contraespionagem estadunidense, as manifestações que se viram foram muito mais no sentido de tentativa de criação de constrangimentos aos Estados Unidos do que uma forma prática e que gere resultados palpáveis na limitação da atuação estadunidense no campo da inteligência. Mesmo que se veja o soft balancing como um elemento positivo para a contenção dos Estados Unidos, os prejuízos causados pela revelação das informações afetam muito mais atores do que os atos de espionagem em si. Análise de caso: a resposta brasileira Vejamos o caso brasileiro para entendermos porquê afirmo que essa democratização da política externa na era digital pode ser razão de instabilidade para as relações internacionais. As denúncias de Snowden afirmam que tanto a presidente Dilma Rousseff quanto a Petrobras foram alvo de espionagem pela NSA (THE GUARDIAN, 2013). Rousseff cancelou a viagem que faria aos Estados Unidos para se encontrar com Obama e, devido a isso, negociações outrora avançadas entre os dois países tiveram recuos notáveis. Segundo reportagem da Folha de São Paulo (MELLO, 2013), cinco grandes áreas foram prejudicadas com o cancelamento da visita: (1) foi cancelado um piloto do programa Global Entry, que facilitaria a entrada de 1500 empresários brasileiros nos EUA; (2) um acordo para que os anos de previdência contados em um país valessem também para o outro, no formato de um programa existente com o Japão, foi suspenso; (3) uma potencial abertura para a importação da carne bovina brasileira in natura para os EUA foi adiada indefinidamente; (4) foram cancelados os encontros Diálogo de Energia; Diálogo de Defesa e o encontro bilateral de diretores executivos (CEOs); e (5) foram adiadas as discussões para a parceria em comunicação e tecnologia da informação entre os dois países, que envolve parceria cibernética. Isso falando apenas dos aspectos formais que estavam em negociação, fora os ganhos perdidos incalculáveis derivados dessas e de outras iniciativas que, por ora, encontram-se longe de uma retomada. Esse possível resultado foi apontado logo que a primeira notícia de um possível cancelamento foi anunciada (REZENDE, 2013). Contudo, no aspecto doméstico, não havia muito o que o governo brasileiro pudesse fazer, além de cobrar explicações da sua contraparte estadunidense e se posicionar, para seu público interno, com rigor. Leviano seria depreender que o governo brasileiro estava alheio às possibilidades de coleta de informações da era digital e que foi surpreendido por elas - o próprio Ministro da Defesa, Celso Amorim, afirmou publicamente na reunião da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Congresso, no dia 10 de julho de 2013,

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que sabe que é espionado e que toma os cuidados devidos quanto a isso. O problema é: quando a informação se torna pública no curto prazo, os governantes são obrigados a tomarem medidas mais enérgicas, que, do contrário, não tomariam, para que permaneçam legítimos para o seu público doméstico - ainda que essas medidas tragam prejuízos, tal quais os colocados acima. O cancelamento da viagem da presidente Rousseff a Washington é, nesse sentido, muito mais para dar uma resposta ao público doméstico do que, de fato, como uma forma de revisionismo internacional. Fosse a resposta do governo suave demais, deixando passar as denúncias, Rousseff poderia ser lida como subserviente aos interesses dos EUA e fraca em sua capacidade de resposta - o que traria ainda mais instabilidade ao Itamaraty em um momento de forte crise e de busca de uma nova identidade, após a entrada do ministro Luiz Alberto Figueiredo em substituição a Antonio Patriota. Tivesse o governo brasileiro ficado sabendo das denúncias pelos ambientes formais secretos, por exemplo, sem que a divulgação pública tivesse sido feita, tal crise poderia, possivelmente, ter sido evitada. No plano internacional, vemos uma tentativa de soft balancing para buscar, que seja via constrangimento internacional, limitar a atuação dos EUA. Em conjunto com a Alemanha, o Brasil apresentou, no dia 1° de novembro último, uma proposta de resolução à Assembleia Geral da ONU sobre o direito à privacidade na era digital (MRE, 2013). O texto, mais importante em termos retóricos do que práticos, em pouco alterará o status quo sobre o assunto. As menções ao escândalo da NSA são sutis, e limitam-se a, no máximo, sugerir que os Estados revisem suas formas de coletas de informações, para que a individualidade seja respeitada. Em termos práticos, concordamos com Lopes (2013), que a resolução, de caráter recomendatório, pode apenas sugerir um regime internacional de regulamentação civil da internet. Isso significa que a capacidade da iniciativa germanobrasileira se reverter em uma limitação da atuação dos Estados Unidos ou de outros países é, em si mesma, pouco provável.

O CANCELAMENTO DA VIAGEM DA PRESIDENTE ROUSSEFF A WASHINGTON É, NESSE SENTIDO, MUITO MAIS PARA DAR UMA RESPOSTA AO PÚBLICO DOMÉSTICO DO QUE, DE FATO, COMO UMA FORMA DE REVISIONISMO INTERNACIONAL. 13

DILMA CANCELA ENCONTRO COM BARACK OBAMA Cartoon assinado por Carlos Latuff (2013). FONTE: LATUFFCARTOONS.WORDPRESS.COM

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Possibilidades de mudança? Pelo viés dos Estados Unidos, no caso do escândalo Snowden, reforçando o aspecto anárquico das relações internacionais, os aspectos domésticos da espionagem são aqueles que podem trazer mudanças normativas de fato. Isso porque, enquanto unidade soberana, nenhum Estado é obrigado a cumprir as determinações do direito internacional, optando, sempre voluntariamente, por aderi-las ou não. O caso dos serviços de inteligência e de espionagem é ainda mais complicado. Formalmente, nenhum país admite que asfaz. A resposta da NSA foi de dizer que suas ações são legais. Segundo a agência, O que a NSA faz é coletar as comunicações de alvos de valor de inteligência estrangeira, independente do provedor que os carrega. (...) A NSA trabalha com um número de parceiros e aliados no cumprimento de seus objetivos da missão de inteligência estrangeira, e em todos os casos essas operações estão de acordo com as leis dos EUA e às leis aplicáveis sob as quais aqueles parceiros e aliados operam (NSA apud THE GUARDIAN, 2013. Tradução livre). Tal afirmativa foi mais recentemente repetida, ao afirmarem que a NSA recebeu também auxílio de parceiros europeus, como Espanha e França, em uma tentativa de mostrar que não é, exclusivamente, um ato unilateral estadunidense (ENTOUS; GORMAN, 2013). A crise, em seu aspecto doméstico, aprofundou-se quando o Secretário de Estado dos EUA, John Kerry, afirmou que a NSA conduziu operações e formas de investigação sem o conhecimento ou a aprovação da administração Obama, o que coloca agora em uma disputa burocrática o Departamento de Estado e a NSA (DREAZEN, 2013). A primeira reação da administração Obama, quando das denúncias de espionagem, foi se posicionar de vítima e apontar Snowden como traidor, o espião que não me amava. Com o agravamento das denúncias, envolvendo aliados como Brasil e Alemanha, Kerry indica que os caminhos a serem adotados devem ser os de não defesa da NSA, como uma forma de poupar o governo e buscar um reestabelecimento das relações internacionais dos Estados Unidos com seus aliados. Se Obama sabia ou não das práticas adotadas pela NSA é, nesse momento, irrelevante. Talvez seja mais uma "mentira nobre" que o governo dos Estados Unidos tenha que contar, em nome de um benefício maior, e que os demais governantes, em nome do mesmo benefício, optem por aceitar. Talvez a crise leve a uma meia culpa, como a Presidente do Comitê de Inteligência do Senado, Dianne Feinstein, fez ao afirmar que "nós realmente estamos ferrados agora" (FEINSTEIN apud HARRIS; HUDSON, 2013. Tradução livre), indicando que é necessário e possível uma reestruturação de cima para baixo do funcionamento dos sistemas de inteligência dos Estados Unidos. A pressão doméstica existe e, em veículos de peso como a revista Policy, tem se mostrado forte (idem; ROTHKOPF, 2013). Isso talvez culmine em reestruturação de cargos e de agências, bem

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como em redefinições do aspecto jurídico doméstico que controla os serviços de inteligência dos EUA. Mas é difícil que leve a algo maior, como a revelação dos procedimentos de coleta de informações.

A PRIMEIRA REAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO OBAMA, QUANDO DAS DENÚNCIAS DE ESPIONAGEM, FOI SE POSICIONAR DE VÍTIMA E APONTAR SNOWDEN COMO TRAIDOR, O ESPIÃO QUE NÃO ME AMAVA Ainda que o foco, hoje, seja em colocar os Estados Unidos como vilões, lembremos que, em 2009, no Brasil, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) foi acusada de praticar grampo ilegal no Senado e no Supremo Tribunal Federal. Não é nada diferente da denúncia que a NSA estaria espionando cidadãos estadunidenses. Tal como no caso brasileiro, no qual Cepik e Ambros (2009) afirmavam que a crise trazia uma oportunidade para ajudar a redefinir as funções, as prioridades e os mecanismos de fiscalização de nossas agências de inteligência, contribuindo para um fortalecimento da democracia, a mesma oportunidade hoje se coloca para os EUA. No Brasil, a crise arrefeceu-se e não tivemos nenhuma mudança significativa nas funções, nas práticas ou no monitoramento do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin). Ele continua obscuro e, dada a aparente surpresa do governo com as manifestações de junho, pouco eficazes e ágeis. É difícil, nesse sentido, um cenário de alteração sistemática do modus operandi das coletas e de uso de informações pelos Estados, de modo geral. Tais serviços continuarão operando, em especial por aqueles Estados detentores de mais recursos, e a distância tecnológica que se apresenta hoje tende a os acentuar ainda mais daqueles países que pouco investem em serviços de contraespionagem e contra-inteligência, como é o caso do Brasil. Em termos técnicos e conceituais, há problemas que manterão amplo o guarda-chuva jurídico interno dos Estados Unidos que permite a abrangente atuação de seus serviços de inteligência. Temas como a ciberguerra, que se mantém sem uma definição clara, e terrorismo, propositalmente também conceituado de forma ampla, manterão a possibilidade de atuação da espionagem estadunidense em larga escala, sob a justificativa da defesa nacional e proteção de seus cidadãos. A revelação das informações por Snowden ou dos meandros burocráticos pelo Wikileaks não leva, necessariamente, a uma maior democratização da política externa, mas acarreta, por certo, a uma maior complicação das relações internacionais na

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era digital. Ainda que existam pontos importantes e que merecem maior estudo e atenção, como o uso do Facebook e do Twitter em revoluções e manifestações populares ao redor do mundo, as novas mídias não são, necessariamente, sinônimo de estabilidade ou de mudanças positivas. Uma política externa democrática é desejável e incentivável. Mas sua forma de construção passa por aumentar o debate sobre o tema no cenário doméstico, criando massa crítica e interessada em discutir e influenciar as burocracias no fomento e implementação de questões ligadas a política externa. A porosidade da política externa em caráter doméstico deve, portanto, ser incentivada, mas sem a negação da premissa realista que, por vezes, para um bem maior, algumas mentiras precisam ser contadas. A revelação de informações em curto prazo não apenas prejudica negociações em andamento, como pode provocar crises desnecessárias entre governos. Ainda que governos democráticos desejem aprofundar seus relacionamentos com outros governos democráticos, e precisem, por vezes, fazer vista grossa a questões pontuais em nome disso, a revelação dessas informações faz com que os governos tenham que tomar medidas mais enérgicas, a fim de se justificarem e se manterem legítimos para o seu público doméstico. Isso não impede que os processos institucionais democráticos dos governos guardem essas informações e as tornem públicas no momento adequado – quando não servirem mais para causar crises desnecessárias. Não se trata, portanto, de desaparecer com essas informações ou as colocar debaixo do tapete, e, sim, de mantê-las em uma gaveta até o momento adequado para divulgá-las. Os problemas estão apenas começando, e o cenário futuro que se delineia, de revelação de informações no momento inadequado, é de maior instabilidade para o relacionamento entre a democratização das políticas externas e as tecnologias da era digital. *Lucas Rezende é doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), professor de Relações Internacionais das Faculdades de Campinas (Facamp), pesquisador da Rede Interinstitucional de Pesquisa em Política Externa e Regimes Políticos (RIPPERP). Referências bibliográficas 007 - O ESPIÃO que me Amava. Título original: The Spy Who Loved Me. Direção: Lewis Gilbert. Produção: Albert C. Broccoli. Intérpretes: Roger Moore, Barbara Bach, Curd Jürgens, Richard Kiel, entre outros. Roteiro: Christopher Wood e Richard Maibaum. Danjaq e Eon Productions.1977.

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