O Estado Plurinacional Comunitário e a Nova Constituição Política do Estado da Bolívia

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E ECONÔMICAS FACULDADE NACIONAL DE DIREITO

O ESTADO PLURINACIONAL COMUNITÁRIO E A NOVA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO ESTADO DA BOLÍVIA

VICTOR CARNEIRO CORRÊA VIEIRA

RIO DE JANEIRO 2011

VICTOR CARNEIRO CORRÊA VIEIRA

O ESTADO PLURINACIONAL COMUNITÁRIO E A NOVA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO ESTADO DA BOLÍVIA

Trabalho de conclusão do curso apresentado à   Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientadora: Prof. Dra. Vanessa Oliveira Batista

RIO DE JANEIRO 2011

 

Vieira, Victor Carneiro Corrêa. O Estado Plurinacional Comunitário e a Nova Constituição Política do Estado da Bolívia / Victor Carneiro Corrêa Vieira 2011. 67f. Orientadora: Vanessa Oliveira Batista. Monografia (graduação em Direito) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas, Faculdade Nacional de Direito. Bibliografia: f. 63-67. 1. Bolívia. 2. Constituição. 3. Estado Plurinacional Comunitário. I. Batista, Vanessa Oliveira. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas. Faculdade Nacional de Direito. III. Título

 

VICTOR CARNEIRO CORRÊA VIEIRA

O ESTADO PLURINACIONAL COMUNITÁRIO E A NOVA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO ESTADO DA BOLÍVIA

Trabalho de conclusão do curso apresentado à   Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito. Data de aprovação: ____/____/______ Banca Examinadora: ________________________________________________ Presidente da Banca Examinadora Prof. Dra. Vanessa Oliveira Batista – Faculdade Nacional de Direito – Orientadora ________________________________________________ 2º Examinador Prof. Dr. Elidio Alexandre Borges Marques – Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos ________________________________________________ 3º Examinador Prof. Luiz Felipe Osório – Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional  

AGRADECIMENTOS À Universidade Federal do Rio de Janeiro, pelo acolhimento nesses anos de graduação, nos quais aprendi muito, não só   na Faculdade de Direito mas em todos os campi pelos quais tive o prazer de passar e debater com pessoas das mais diversas culturas e posições políticas. À Professora Vanessa Batista, por sua orientação e acompanhamento deste trabalho, sem a qual ele não seria possível, e pela paciência ao me receber até   mesmo nos finais de semana em sua casa para discussão acerca de sua redação. À minha família, pelo apoio em todos os momentos de minha vida e pela disposição sempre que expliquei a história boliviana, as inovações sua da Constituição e a democracia participativa. À Renata Tavares, pela amizade e ensinamentos, que me ajudaram a ter uma visão mais crítica do mundo.

 

Depois de 500 anos de rebelião, invasão e saque permanente; depois de 180 anos de resistência contra um Estado colonial; depois de 20 anos de luta permanente contra um modelo neoliberal; hoje, 7 de fevereiro de 2009, é   um acontecimento histórico

[…]

promulgar

a

nova

Constituição Política do Estado. Evo Morales  

RESUMO VIEIRA, V. C. C. O Estado Plurinacional Comunitário e a Nova Constituição Política do Estado da Bolívia. 2011. 67 f. Monografia (Graduação em Direito) –  Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. Este trabalho tem por objetivo analisar a Nova Constituição Política do Estado da Bolívia e o Estado Plurinacional Comunitário. Para a melhor compreensão do tema, a primeira parte se dedica no estabelecimento de marcos teóricos, sendo eles a nação, a soberania, o Estado Nacional, o monismo estatal, o Estado Plurinacional e o pluralismo jurídico. Na segunda parte é   feito um recorte histórico e geopolítico no mundo, partindo do final da Guerra Fria, passando pelo estabelecimento do neoliberalismo como nova ordem global e finalizando com a emergência dos movimentos sociais, e na América Latina, com início na redemocratização, pós governos militares, avaliando os efeitos da política neoliberal na região e concluindo com as eleições de presidentes símbolos de esquerda em diversos países da região. A terceira parte dedica-se ao Estado Boliviano, primeiramente fazendo uma analise histórica do mesmo período e, posteriormente, apontando as inovações trazidas pela Nova Constituição Política do Estado nas questões de (i) a organização do Estado, (ii) a separação dos poderes, (iii) as relações internacionais, e (iv) a estrutura e organização territorial do Estado. Palavras-chave: Bolívia; Estado Plurinacional Comunitário; Constituição da Bolívia; pluralismo jurídico

 

ABSTRACT

VIEIRA, V. C. C. O Estado Plurinacional Comunitário e a Nova Constituição Política do Estado da Bolívia. 2011. 67 f. Monografia (Graduação em Direito) –  Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.

This work has for objective to analyze the New Political Constitution of the State of Bolivia and the Multinational State of Community. For a better understanding of the topic, it’s first part focuses on establishing theoretical frameworks: the nation, the sovereignty, the National State, the monism state, the Multinational State and legal pluralism. In the second part is made a historical and geopolitical side view, in the world, from the end of the Cold War, through the establishment of neoliberalism as the new global order, and ending with the emergence of the social movements, and in Latin America, beginning in the re-democratization, after the military governments, evaluating the effects of neoliberal policies in the region and concluding with the election of leftist presidents in many different countries of the region. The third part is dedicated to the Bolivian State, first by making a historical analysis of the same period and later, pointing out the innovations introduced by the New Political Constitution of the State in matters of (i) the state organization, (ii) the separation of powers, (iii) the international relations, and (iv) the structure and territorial organization of the state. Key Words: Bolivia; Multinational State of Community; Constitution of Bolivia; legal pluralism.

 

RESUMEN

VIEIRA, V. C. C. O Estado Plurinacional Comunitário e a Nova Constituição Política do Estado da Bolívia. 2011. 67 f. Monografia (Graduação em Direito) –  Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.

Este trabajo tiene como objetivo analizar la Nueva Constitución Política del Estado Boliviano y el Estado Plurinacional Comunitario. Para una mejor comprensión del tema, la primera parte se centra en el establecimiento de marcos teóricos, que son: la nación, la soberanía, el Estado-nación, el monismo del Estado, el Estado Plurinacional y el pluralismo jurídico. En la segunda parte se hace un recorte histórico y geopolítico, en el mundo, desde el final de la Guerra Fría, a través del establecimiento del neoliberalismo como la nueva orden mundial y terminando con la aparición de los movimientos sociales, y en la América Latina, a partir de la democratización, después de los gobiernos militares, haciendo la evaluación de los efectos de las políticas neoliberales en la región y concluyendo con la elección de presidentes de izquierda en los diferentes países de la región. La tercera parte está dedicada al Estado boliviano, primero haciendo un análisis histórico de la misma época y más tarde, señalando las innovaciones introducidas por la Nueva Constitución Política del Estado en materia de (i) la organización del Estado, (ii) la separación de poderes (iii) las relaciones internacionales, y (iv) la estructura y organización territorial del Estado. Palabras clave: Bolivia; Estado Plurinacional Comunitário; Constitución de Bolivia; pluralismo jurídico.

 

SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11 1 MARCOS TEÓRICOS............................................................................................ 13 1.1 Nação e soberania............................................................................................. 14 1.2 Dos Estados Nacionais aos Estados Plurinacionais ..................................... 19 1.3 Monismo estatal e pluralismo jurídico ............................................................ 23 2 RECORTE HISTÓRICO E GEOPOLÍTICO ........................................................... 29 2.1 A América Latina ............................................................................................... 34 3 O CASO DA BOLÍVIA ........................................................................................... 37 3.1 Aspectos políticos, sociais e econômicos (recorte histórico) .................... 37 3.1.1 A democracia participativa ............................................................................... 44 3.2 A Nova Constituição Política do Estado boliviano ........................................ 46 3.2.1 A organização do Estado ................................................................................. 46 3.2.2 Os poderes ....................................................................................................... 48 3.2.3 As relações internacionais ............................................................................... 51 3.2.4 A estrutura e organização territorial ................................................................. 56 CONCLUSÃO ........................................................................................................... 60 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 63

INTRODUÇÃO Este trabalho, apresentado como Monografia de conclusão da Graduação em Direito da Faculdade Nacional de Direito (FND) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tem por objetivo principal avaliar as inovações trazidas pela Nova Constituição Política do Estado da Bolívia, que fundou as bases de um novo Constitucionalismo Plurinacional. Para que se tornasse possível tal análise, foram tomados por marcos teóricos os conceitos de nação, soberania, entre outros. Após analisadas as diversas definições de nação e soberania e chegada a uma conclusão de qual a que melhor se encaixa no modelo Boliviano, partiu-se para a diferenciação entre o Constitucionalismo Moderno e o Constitucionalismo Plurinacional. O último ponto dos marcos teóricos diz respeito ao monismo estatal e ao pluralismo jurídico. Findada a pesquisa em torno dos marcos teóricos, iniciou-se um recorte histórico e político que tornasse possível a compreensão dos motivos que levaram à  mobilização de setores da sociedade boliviana antes excluídos. Nele, foi possível avaliar que o fim das ditaduras militares que assolaram a América Latina dos anos 60 a 80, inclusive, levaram consigo o fim do milagre econômico que era vivido pela região graças a empréstimos monumentais dos órgãos monetários internacionais. A crise econômica assolava os países do Terceiro Mundo e logo ameaçava chegar aos países centrais, visto que suas exportações vinham

diminuindo

consideravelmente,

devido

à   inflação

desenfreada

e

desestabilidade política de seus principais compradores. Com o fim de impedir uma crise no coração do capitalismo, foi lançado um pacote de medidas, que viria a ficar conhecido pelo nome de Consenso de Washington. Esse pacote foi lançado pelos Estados Unidos, pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional, estabelecendo condições para empréstimos e investimentos destes na América Latina, visando

recuperar suas economias da

profunda crise por que passaram. O neoliberalismo se alastrou por toda América Latina, diminuindo o poder interventor do Estado e privatizando suas estatais. No entanto, o resultado foi diverso do esperado. Com as privatizações, subiu o número de demissões visando o corte de gastos, consequentemente, o desemprego gerou uma crise econômica

 

ainda maior, já  que a população não tinha dinheiro para comprar. Aumentou, assim, o emprego informal, a marginalidade, a criminalização e o narcotráfico. No que diz respeito aos governos, a grande circulação de dinheiro oriunda das negociações das vendas das estatais abriu caminho para o aumento da corrupção e estelionato eleitoral, beneficiando os grandes conglomerados internacionais em detrimento dos investimentos sociais. Esse quadro serviu para agravar a crise da representatividade da população, que não reconhecia a legitimidade de seus representantes. Insatisfeita, a população começou a lutar pelos seus interesses, combatendo o modelo político-econômico que depredava a economia de seus Estados e vitimizava-os. Como resultado, a América Latina presenciou, no início do século XXI, a chegada ao poder de diversos presidentes de esquerda, com bandeiras contrarias àquelas levantadas pelos governos anteriores e pelas elites nacionais que se associaram ao capital privado transnacional. A escolha da Bolívia se dá  pelo fato de seu povo ter realizado uma revolução cultural baseada na pluralidade cultural e étnica, buscando a igualdade perante todas as nações que compõem o Estado. Nesse sentido, diferente do previsto por Marx, na Bolívia, a luta não foi entre classes, liderada pelos operários contra a burguesia, mas uma luta étnico-cultural, liderada pelos povos indígenas originários contra a elite burguesa. Dessa forma, a ascensão de Evo Morales, na Bolívia, foi o acontecimento mais icônico desta nova realidade, por se tratar do primeiro presidente índio da história do país, formado por uma esmagadora maioria indígena. Evo representava para as elites não só   a derrota em uma eleição, mas também a derrota ideológica, por figurar tudo aquilo que ela combateu por anos: indígenas, sindicalistas e cocaleiros. Morales foi eleito prometendo uma Revolução cultural, desconstruindo o mito da existência de uma cultura superior (europeia) e lutando para o reconhecimento da igualdade entre todas as crenças dentro da Bolívia. Para tal, convocou a Assembleia Constituinte para a redação de uma nova Constituição que ilustrasse o novo momento do Estado. A Nova Constituição Política do Estado da Bolívia viria a ser promulgada no  

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dia 18 de março de 2009, renomeando o Estado de “República da Bolívia”   para “Estado Plurinacional da Bolívia”. Porém, o nome seria a menor das modificações trazidas

pela

nova

Magna

Carta

boliviana,

que

conta

com

uma

maior

representatividade por parte dos povos originários em todos os poderes e o reconhecimento de suas culturas como culturas oficiais da Bolívia. A presente monografia pretende analisar as inovações trazidas por tal texto constitucional no que diz respeito à  organização do Estado, à  separação de poderes, às relações internacionais da Bolívia e da organização territorial.

1. MARCOS TEÓRICOS Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o Capitalismo, como modelo único e incontestável de formulação estatal, começa a mostrar seus primeiros sinais de fraqueza. O Socialismo se apresenta como uma alternativa promissora aos Estados periféricos, prometendo a igualdade que nunca foi real no modelo burguêscentralizador. A Guerra Fria passou, a grande potência símbolo deste modelo alternativo, a União Soviética, sucumbiu, deixando o mundo subserviente aos interesses da única e incontestável potência internacional, os Estados Unidos. Esse destino foi apresentado como o único caminho possível de se traçar, mas será   que não se pode decidir por um caminho que seja mais justo para os países periféricos? A partir desse questionamento, a América Latina vem apresentando um pensamento de vanguarda, refundando o Estado sob o prisma dos diferentes grupos étnicos e sociais que nele convivem, flexibilizando conceitos que até   então eram indiscutíveis, tais como a soberania Estatal para promulgar leis, a indissociabilidade da nação do Estado, a superioridade incontestável da cultura europeia exportada para todos os continentes e a incontestabilidade do sistema liberal-centralistaindividualista que apresenta sinais de desgaste por todo o mundo. Surge, assim, o Estado Plurinacional, democrático e plural, que reconhece as diversas nações dentro do seu território, admitindo a legitimidade dessas diversas nações que habitam seu território para se autorregular e, ao flexibilizar sua soberania, garante à   sociedade uma maior participação na determinação do seu futuro. Porém, para compreender essa nova proposta de organização estatal, é   preciso definir alguns conceitos básicos, tais como nação e soberania, além de  

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entender a formação do Estado Moderno e seu monismo jurídico, para que seja possível a compreensão desse modelo alternativo e sua proposta de pluralismo jurídico.

1.1. Nação e soberania Ao estudar uma civilização do passado, busca-se entender sua cultura, seu modo de vida, sua organização social, legislativa e política. Dessa forma, é  possível diferenciar os diversos povos que estiveram pela Terra muito antes dos países, como hoje são conhecidos, se unificarem. Entre eles, gregos, romanos, egípcios, incas, maias, astecas e muitos outros. É   possível encontrar, em todos eles, uma noção nacional, mesmo que esta não tenha sido planejada ou compreendida pelos habitantes da época, tanto que tal conceito só   veio a ser reconhecido nos últimos dois séculos. No entanto, apesar de facilmente identificável e superficialmente conhecido, o conceito de nação nunca foi unânime ou universal, mas muito pelo contrário, variando de acordo com o tempo e o enfoque que cada autor pretende dar a cada aspecto de uma sociedade. Essa flexibilidade do conceito de nação pode ser facilmente verificada, visto que sempre que se analisa um livro diferente que versa sobre o assunto, pode-se observar variados conceitos. O historiador Eric J. Hobsbawm evidencia tal situação ao fazer um apanhado das variações de significado em diferentes períodos históricos, apontando, por exemplo, que até   1884, o conceito de nação excluía o governo, restringindo-se à   origem e à   descendência. Ele se refere, ainda, a um dicionário francês antigo que cita uma frase de Froissart: “’je fus retourné  au pays de ma nation en la conté   de Haynnau’   (Eu retornei à   terra de meu nascimento/origem, no condado de Hainault)” 1. No entanto, Hobsbawm defende que o conceito mais adequado à   realidade é   aquele surgido na Era das Revoluções, especialmente a partir de 1830, que garantia à   nação um sentido político e social, sob o titulo de princípio da nacionalidade. Já Emmanuelle Siéyes, por sua vez, ao afirmar que “una ley y una representación comunes son o que constituyen uma nación” delimita a nação como fruto do Estado, grifando ainda que “es, pues, necessaria una regia común y unas 1

 

HOBSBAWM, Eric J. Nações e nacionalismos desde 1780: programa, mito e

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condiciones que, por más que no sean del agrado de algunos comitentes puedan 2

amparar a la totalidad de la nación del capricho de algunos electores” [sic], demonstrando, assim, que apenas aqueles designados como sujeitos detentores de determinadas culturas ou grupos sociais podem exercer pleno gozo de seus direitos. O cientista político Benedict Anderson apresenta um conceito sociológico de nação como “uma comunidade política imaginada –   e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana”3 (grifo nosso). É   limitada porque todas estão restritas a um determinado território definido, e soberana “porque o conceito nasceu na época em que o Iluminismo e a Revolução estavam destruindo a legitimidade do reino dinástico hierárquico de ordem divina”4. Dessa forma, com o fim dos reinados fundados na religiosidade, as nações passaram a desejar liberdade, forçando os Estados a se tornarem laicos e se afirmarem como Estados Soberanos. “E, por último, ela é   imaginada como uma comunidade porque, independentemente da desigualdade e da exploração efetivas que possam existir dentro dela, a nação sempre é   concebida como uma profunda camaradagem horizontal”5 (grifo do autor). Em sentido oposto, para Otto Bauer, em seu texto A Nação –   Um mapa da Questão Nacional, “a nação pode ser definida como uma comunhão de caráter que brota de uma comunhão de destino, e não de uma mera semelhança de destino”6. Para compreender o conceito de nação de Bauer, é  preciso dividir sua definição em duas partes para que se possa melhor avaliá-la. A primeira é   a que diz respeito à   necessidade de uma “comunhão de caráter”. É  possível compreender caráter, como um conjunto de características físicas e mentais que unem os membros de uma nação, ou seja, não basta a existência de um ancestral comum, é  imprescindível que haja uma semelhança cultural, através da educação, da legislação, dos costumes, religião, ciência, arte e política. Já, por “comunhão de destino”, faz-se entender um conjunto de acontecimentos que envolveu todo o povo no âmbito nacional, culminando em um destino comum. Não basta ter um destino semelhante, porque, 2

SIÉYES, Enmanuelle J.. ¿Qué  es el Tercer Estado? pág.10 e 23. Net. Disponível em . Acesso em: 5 de fevereiro de 2011.   3 ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. 1a ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pág. 32. 4 Idem., p. 34. 5 Loc. cit.   6 BAUER, Otto. A nação in BALAKRISHNAM, Gopal (org.). Um mapa da questão nacional. 1a reimpressão. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008, p. 58.    

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de fato, todo o processo de desenvolvimento para a chegada àquele fim, foi o meio que permitiu diferenciar os dois povos. A grande diferença está  nesse meio que leva ao mesmo fim. Para ilustrar tal afirmativa, basta observar as ditaduras Latinoamericanas que, após constantes lutas da sociedade civil chegaram a um fim comum, a democracia. O simples fato de brasileiros e chilenos terem lutado por um mesmo ideal, contra um mesmo tipo de governo e terem atingido o mesmo fim, não os fazem membros de uma mesma sociedade, pois as experiências vividas nos dois casos foram diferentes. Dessa forma, é   possível concluir o mesmo que Boaventura de Sousa Santos em seu livro La reinvención del Estado y El Estado Plurinacional. Para ele, historicamente, exixtem dois conceitos distintos de nação: um conceito liberal, que associa a nação ao Estado, tornando a existência de um impossível sem o outro, e excluindo de um Estado a possibilidade de diversas nações diferentes, já   que a nação está   ligada a um território, daí   o conceito de Estado Nação; e um conceito comunitário, que não restringe a existência de uma nação a um Estado. Um exemplo europeu deste segundo conceito seria a Espanha, que abarca dentro do seu território diversas outras nacionalidades, como castelhanos, catalães, bascos, galegos, andaluzes e outros. Esse conceito comunitário é   o que hoje é   defendido pelas nações indígenas sulamericanas, que reivindicam sua autodeterminação, sem buscar uma independência territorial e será   ele o conceito central adotado por esta monografia7. Outro conceito extremamente importante a ser compreendido é   o de soberania, que pode ser verificado pela primeira vez no período de formação dos Estados modernos e das monarquias europeias. Com esse intuito, Alain Pellet remete à  obra de Jean Bodin de 1576, Les six livres de la Republique, que define o Estado pela expressão Res publica da seguinte forma: “O justo governo de várias famílias e do que lhes é  comum com poder soberano” 8, tornando, assim, o Estado e a soberania dois conceitos indivisíveis. Pellet completa ainda que “ao sublinhar que a soberania deve ser una e indivisível, perpétua e suprema, pretende, no contexto

7

SANTOS, Boaventura de S. La reinvención del Estado y El Estado Plurinacional. 1a ed. Cochabamba: Alianza Interinstitucional CENDA, CEJIS, CEDIB, 2007, p. 18.   8 PELLET, Alain; DINH, Nguyen Q.; DAILLIER, Patrick. Direito Internacional Público. 2a ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003, p. 52.    

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político da época, que ela devia ser monopólio de um monarca hereditário”9. No entanto, a concepção moderna de soberania estatal só   pode ser observada com o fim da Guerra dos Trinta Anos, que culminou na conclusão de dois tratados, em outubro de 1648, o de Osnabrück e o de Münster, que constituem os Tratados de Vestfália, sendo considerados a Carta Constitucional da Europa10. Tal qualificação ocorre pelo fato de “legalizarem formalmente o nascimento dos novos Estados soberanos e a nova carta política da Europa daí   resultante” 11, além de assentarem “os primeiros elementos de um ‘direito público europeu’”

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,

transformando, assim, a soberania e a igualdade dos Estados em princípios fundamentais das relações internacionais. A delimitação da soberania dos Estados permaneceu sendo discutida por diversos teóricos do direito internacional. Hugo Grócio, um dos autores mais expoentes do direito natural, considerado por muitos o pai do direito internacional, define o poder soberano como “aquele cujos atos são independentes de qualquer outro poder superior e não podem ser anulados por nenhuma outra vontade humana”13, mas que deve compreender seus limites estipulados pelo direito, visto que não existem órgãos superiores aos Estados. Portanto, a soberania do Estado possui como delimitadores o direito natural, que, para Grócio, “consiste em certos princípios de reta razão que nos permitem saber se uma ação é   moralmente honesta ou desonesta consoante a sua conformidade ou desconformidade com uma natureza racional ou sociável”14, e o direito voluntário, que engloba a vontade das nações, por vezes, expressa através de acordos entre elas. Essa vontade a que se refere não é  soberana, visto que está  subordinada ao direito natural. O positivismo, entretanto, afirmou que os limites da soberania vinham única e exclusivamente dos tratados e dos costumes, e não de um direito superior, como defendido por Grócio. Entre seus principais defensores, Moser, autor de Principes du droit des gens actuel afirma: Não escrevo um direito das gentes escolástico baseado na aplicação da jurisprudência natural; não escrevo um direito das gentes 9 10 11 12 13 14

 

PELLET, Alain. Op. Cit., p. 53.   Idem., p. 52-53.   Idem., p. 53. Loc. cit. GRÓCIO aput PELLET, Alain. Op. cit., p. 57. Loc. cit.

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filosófico construído segundo algumas noções bizarras da história e da natureza humana; enfim, também não escrevo um direito das gentes político no qual visionários como o abade de Saint-Pierre plasmavam a seu talante o sistema da Europa, mas descrevo o direito das gentes que existe na realidade, como o qual os Estados soberanos regularmente se conformam.15

Alain Pellet conclui que o direito é   necessário para limitar as pretensões dos diversos Estados em exercer a soberania absoluta, afirmando que “o conceito de soberania não pode receber um sentido absoluto e significa somente que o Estado não está   subordinado a nenhum outro mas que deve respeitar regras mínimas garantindo o mesmo privilégio a todos os outros”16. Pode-se afirmar, portanto, que, no plano internacional, nenhum Estado sobrepõe a sua soberania a outro, o que faz com que eles se apresentem em situação de igualdade, estando submetidos apenas às regras internacionais aceitas por elas. Desse modo, ao se abandonar o âmbito estatal e transportar a soberania para o internacional pode-se avaliar que há   uma flexibilização de seu conceito clássico, devido a uma organização dos Estados em blocos econômicos, tais como o Mercosul e a União Européia. Para que tais formas de organização fossem possíveis, os Estados se viram obrigados a ceder parte de sua soberania a um órgão de viria a ser considerado superior a todos os Estados-Membros dele, de modo que suas decisões se tornassem exequiveis imediatamente, surgindo, assim, a supranacionalidade. Portanto, supranacionalidade é  um ato “pela qual os Estadosmembros, livremente e por um ato de soberania, delegam aos órgãos comunitários poderes constitucionais para legislar sobre determinada matéria”17. A partir de então, os Estados passam a flexibilizar sua soberania com o fim de se relacionarem com outros de modo igualitário, trazendo vantagens e desvantagens para ambos. É   com esse conceito flexibilizado de soberania que a presente monografia pretende trabalhar, visto que, a partir dele, é   possível aceitar que dentro de um único Estado tenhamos diversas nações com soberania própria perante seus indivíduos.

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MOSER aput PELLET, Alain. Op. cit., p. 60. PELLET, Alain. Op. cit., p. 85. 17 GOMES, Eduardo Biacchi. A supranacionalidade e os blocos econômicos. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, v. 38, n.0, 2003, p. 162. 16

 

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1.2. Dos Estados Nacionais aos Estados Plurinacionais O Estado Moderno surge com o fim da Idade Média, quando a Monarquia, exaltada sob o pretexto de ter sido escolhida por Deus para reinar e proteger seus súditos, cria a ideia do Absolutismo, decidindo usar de seu poder e influência para subjugar todos aqueles mais fracos ou que, de algum modo, dependiam dela. A justificativa da criação de tais Estados pode ser analisada no Leviatã de Thomas Hobbes, que justifica: A única maneira de instituir um (...) poder comum, capaz de os defender das invasões dos estrangeiros e dos danos uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante o seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda a sua força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir todas as vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade.18

Assim, é   criado o Estado Moderno, e, com ele, se marca o fim da longa era do constitucionalismo antigo, informal, que legitimava a forma organizacional dos diferentes grupos dentro de um Estado e a primazia da cultura europeia ocidental, legitimada através do constitucionalismo moderno19. Para Boaventura de Souza Santos, este constitucionalismo moderno é   extremamente oposto ao modelo anterior, se caracterizando por ser “un acto libre de los pueblos que se imponen una regla a traves de un contrato social para vivir en paz dentro de un Estado”, marcado por uma dupla igualdade, “entre los ciudadanos o entre indivíduos, y entre estados independientes”20. Desse modo, pode-se dizer que ele se fundou em dois pilares, o da soberania popular e o da homogeneidade do povo. Assim, surgiram os Estados europeus, monoculturais, porém, ao mesmo tempo, com tantas nações e culturas diferentes, como é   o caso da Espanha, anteriormente citado. Entretanto, diferentemente da Europa, que viveu a transição de um constitucionalismo para o outro, as Américas se depararam com a imposição da cultura europeia, desde o período das grandes navegações, quando ocorreu sua colonização até   as suas independências, que garantiriam direitos somente aos descendentes dos colonizadores, marcando a supremacia do conhecimento de 18 19 20

 

HOBBES, Thomas. Leviatã. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 147. SANTOS, Boaventura de S. Op. cit., p. 20. Loc. cit..  

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regulação sobre o conhecimento de emancipação. Tais conceitos são introduzidos por Boaventura em outro artigo, quando ele explica que “todo conhecimento se distingue por seu tipo de trajetória, que vai de um ponto A chamado ‘ignorância’   a um ponto B chamado ‘saber’, e os saberes e conhecimentos se distinguem exatamente pela definição das trajetórias pelos pontos A e B” 21 . A partir desse ponto, é   possível delimitar os extremos de cada conhecimento, ou seja, seu ponto de ignorância e o de saber. Dessa forma, o conhecimento de regulação é   caracterizado por considerar como ignorância o caos, ou seja, uma realidade incontrolada e incontrolável. Já   o saber seria a completa ordem. Enquanto isso, o conhecimento de emancipação tomaria como marco o colonialismo, ou seja, a incapacidade de reconhecer o outro como igual, e como fim a autonomia solidária, na qual as diversas nações coexistissem em perfeita harmonia, respeitando seus limites e contribuindo para o desenvolvimento mútuo. Contudo, ao sair vitorioso, o conhecimento-regulação instituiu uma ligação entre o caos e a autonomia solidária, argumentando que “a solidariedade entre as classes é  perigosa, a solidariedade no povo é  uma forma de caos que é  necessário controlar” 22 e, ao mesmo tempo, o colonialismo passou a ser considerado o ideal de ordem. Uma vez constatado isso, Boaventura aponta cinco desafios a serem superados para que se possa desfazer tal associação. Como primeiro desafio, se estabelece a necessidade de reinventar as possibilidades emancipatórias através de uma utopia crítica. Para ele, o mundo encontra-se dominado por utopias conservadoras, as quais Franz Hinkelammert define como a “radicalização do presente” 23 e Boaventura exemplifica com o neoliberalismo24, que justifica a fome, a desnutrição pelo fato de o mercado não ter 21

SANTOS, Boaventura de S. Renovar a teoria critica e reinventar a emancipação social. 1a ed. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 52.   22 SANTOS, Boaventura de S. Op. Cit., p. 53.   23 HINKELAMMERT aput SANTOS, Boaventura de S. Op. cit., p. 54.   24 “(...)o neoliberalismo é  debatido e combatido como uma teoria econômica, quando na realidade deve ser compreendido como um discurso hegemônico de um modelo civilizatório, isto é, como uma extraordinária síntese dos pressupostos e dos valores Basicos da sociedade liberal moderna no que diz respeito ao ser humano, à   riqueza, à   natureza, à   história, ao progresso, ao conhecimento e à   boa vida. As alternativas às propostas neoliberais e ao modelo de vida que representam não podem ser buscados em outros modelos ou teorias no campo da economia, visto que a própria economia como disciplina  

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se expandido totalmente, mas que, quando o fizer, estarão resolvidos todos os problemas. Indica, então, como segundos desafios o silêncio e a diferença. Este primeiro pelo fato de, ao entrarem em contato com a cultura ocidental, as outras culturas, como as indígenas, por exemplo, foram caladas e até   consideradas inferiores e insignificantes, reprimindo aqueles que as defendiam, ou por se considerarem parte ou por serem simpatizantes à   causa. “O diálogo não é   possível simplesmente porque as pessoas não sabem dizer, não porque não tenham o que dizer”25. Nesse mesmo sentido vem o segundo ponto: a diferença intercultural. Ela deve ser compreendida e respeitada, abolindo as políticas de hegemonia26 e de identidade absoluta. Ileana Almeida compartilha desse entendimento ao afirmar que: (...) al funcionar el Estado como representación de una nacion única cumple también su papel en el plano ideológico. La privación de derechos políticos a las nacionalidades no hispanizadas lleva al desconocimiento de la existência misma de otros pueblos y convierte al indígena em vitima del racismo. La ideología de la discriminación, aunque no es oficial, de hecho está generalizada em los diferentes estratos étnicos. Esto empuja a muchos indígenas a abandonar su identidad y pasar a forma filas de la nación ecuatoriana aunque, po lo general, en su sectores más explotados.27

O terceiro desafio se apresenta na dificuldade da compreensão de que todo saber é   local. Para ela, “devemos ter uma distância crítica em relação à   realidade, mas ao mesmo tempo, não podemos nos isolar totalmente das conseqüências e da natureza do nosso saber, porque ele está   contextualizado culturalmente”28, ou seja, a capacidade de agir é   muito maior que a capacidade de prever as consequências dessa ação. Pode-se exemplificar tal afirmativa apresentando o ato dos jesuítas europeus, que, ao catequizarem os índios, menosprezaram suas religiões e crenças anteriores. Para os jesuítas, tal ato tinha como objetivo converter os nativos na fé   cristã  e torná-los mais dóceis, contudo, jamais poderiam imaginar que tal empreitada científica assume, em sua essência, a visão de mundo liberal”. Cf. LANDER, Eduardo. A colonialidade do saber: Eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. 1a ed. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005, p. 21.   25 SANTOS, Boaventura de S. Op. Cit., p. 55.   26 “A hegemonia é  uma tentativa de criar consenso baseada na idéia de que o que ela produz é   bom para todos. Mas houve uma mudança nessa hegemonia, e hoje o que existe deve ser aceito não porque seja bom, mas porque é   inevitável, pois não há   nenhuma alternativa”. Idem.   27 ALMEIDA, Ileana. El Estado Plurinacional: valor histórico e libertad política para los indígenas ecuatorianos. 1a ed. Quito: Editora Abya Yala, 2008, p.19.   28 SANTOS, Boaventura de S. Op. Cit., p. 57.    

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causaria o suicídio de milhares de índios que não se conformavam com o fato de sua cultura e crença serem consideradas erradas. Outro desafio instituído é   o de se criar subjetividades rebeldes e não apenas subjetividades conformistas. Para Boaventura, todos os indivíduos possuem duas correntes, uma fria e uma quente, explicando a primeira como a consciência dos obstáculos e a segunda como a vontade de superá-los. Portanto, há   culturas que são mais introspectivas e não estão sujeitas a novidades, enquanto há   outras mais flexíveis, dispostas a progredir. Dessa forma, é   necessário que se mantenha a corrente fria para que não haja o risco de engano, mas também a corrente quente para que não se desista no surgimento da primeira dificuldade. Por fim, o quinto desafio, e o maior deles, é   o que ele chamaria de póscolonialismo. Aqui, quando se fala de colonialismo, não se refere ao colonialismo político de uma metrópole sobre sua colônia, mas a um colonialismo cultural, do Norte sobre o Sul, ou seja, a transposição dos valores eurocêntricos para o resto do mundo; de modo que, nas palavras de Eduardo Lander, a ‘superioridade evidente’ desse modelo de organização social – e de seus países, cultura, história e raça – fica demonstrada tanto pela conquista e submissão dos demais povos do mundo, como pela ‘superação’ histórica das formas anteriores de organização social, uma vez que se logrou impor na Europa a plena hegemonia da organização liberal da vida sobre as múltiplas formas de resistência com as quais se enfrentou.29

Tal conceito de pós-colonialismo é   de extrema importância para a compreensão dos motivos que levaram ao surgimento do Estado Plurinacional e que será  retomado posteriormente. Entretanto, a luta para superar tais desafios já   vem sendo travada por diversos países da América do Sul, o que garantiu o surgimento de um terceiro tipo de

constitucionalismo,

plurinacional,

pluricultural

e

pluriétnico.

Esse

constitucionalismo se funda na interculturalidade, ou seja, no fato de que, apesar de existirem diversas nações com diferentes costumes, organizações políticas e culturas dentro de um mesmo Estado, poder haver, ainda assim, uma cultura comum e compartilhada, que se verifica na organização da sociedade plurinacional e em sua

29

 

LANDER, Eduardo. Op. cit., p. 33.  

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convivência30. Dessa forma, o constitucionalismo plurinacional constitui a base para o surgimento do Estado Plurinacional e, como tal, se caracteriza como um dos marcos teóricos desta monografia.

1.3. Monismo estatal e pluralismo jurídico Conforme visto anteriormente, o Estado Nação marcou a era da nação única, vinculada ao território e, a partir de então, a nação determinada como mais avançada passou a se sobrepor a todas as outras e ser considerada como norte de desenvolvimento e sabedoria, não só   cultural e política, como também jurídica31. Surge, assim, um fenômeno jurídico conhecido como Monismo Estatal, marcado por um poder centralizado e burocrático, no qual somente o Estado e seus órgãos são capazes de produzir o direito, sustentado no modo de produção capitalista, na sociedade burguesa, na ideologia liberal-individualista e no moderno Estado Soberano. Wolkmer estabelece, portanto, o capitalismo como um marco para o surgimento desse novo modelo jurídico que rompeu com o pluralismo corporativista medieval, e analisa, através de Gian R. Rusconi, seus pressupostos essenciais: a) propriedade privada dos meios de produção, para cuja ativação é necessária a presença do trabalho assalariado formalmente livre; b) sistema de mercado, baseado na iniciativa e na empresa privada, não necessariamente pessoal; c) processos de racionalização dos meios e métodos diretos e indiretos para a valorização do capital e a exploração das oportunidades de mercado para efeito de lucro.32

Desse modo, o capitalismo serviu como alavanca para que a burguesia se consolidasse como nova classe dominante, controlando as novas formas de organização do poder e estabelecendo sua cultura liberal individualista. Nas palavras de Marx, “a burguesia desempenhou na História um papel eminentemente 30

SANTOS, Boaventura de S. La reinvención del Estado y El Estado Plurinacional. 1a ed. Cochabamba: Alianza Interinstitucional CENDA, CEJIS, CEDIB, 2007, p. 18.   31 Para Wolkmer, “ao se conceber o Direito como produto da vida humana organizada e como expressão das relações sociais provenientes de necessidades, constatar-se-á   que, em cada período histórico da civilização ocidental, domina um certo tipo de ordenação jurídica”. WOLKMER, Antonio C. Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3a ed. São Paulo: Editora Alfa e Omega, 2001, p. 26.   32 RUSCONI, Gian R. aput WOLKMER, Antonio C. Op. cit., p. 30.    

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revolucionário. (...) Onde quer que ela tenha conquistado o poder, a burguesia jogou por terra as relações feudais, patriarcais e idílicas” 33 , utilizando do liberalismo, baseado na noção de liberdade total, como bandeira revolucionária contra o antigo Regime Absolutista. No entanto, a burguesia “que brotou das ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classe. Não fez mais do que estabelecer novas classes, novas condições de opressão, novas formas de luta em lugar das velhas”34. Vitoriosa, a burguesia tratou de enraizar como seu fundamento ideológicofilosófico o liberalismo-individualista, instaurando nova fase do Estado Moderno, revestido do monopólio da força soberana, da centralização, da secularização utilitária, que deslocou o controle sócio-político da Igreja para a autoridade soberana e laica, e da burocracia administrativa. É   dessa racionalização da força soberana somada à   positividade formal do direito que surge o Monismo Estatal, que, como visto anteriormente, garante ao Estado a exclusividade de legislar e de julgar, por intermédio de seus órgãos, revestidos de leis gerais e abstratas, sistematizadas no Direito Positivo. O Estado, então, para legitimar sua ordem jurídica, limita sua atuação através de uma legislação que concede certos direitos aos indivíduos, criando o “Estado de Direito”, que se auto-afirma como neutro, sendo controlado e regulado pelo direito35. Para se sustentar, o Estado Moderno baseou sua doutrina em quatro pressupostos ideológicos principais: a estatalidade, ou seja, o Estado é   soberano e detém exclusividade na produção das normas jurídicas; a unicidade, pois o direito Estatal é   burocrático-centralizador, o que significa dizer que ele unifica nacionalmente o direito, já   que, de outro modo, não seria possível a supremacia Estatal; a positivação, visto que todo o direito está   regulamentado por um conjunto de regras coercitivas que legitima a organização centralizada do poder, determinando órgãos fiscalizadores do cumprimento de suas regras; e, por fim, a racionalização, que, conforme Max Weber, pode ser material, relacionada aos valores, à   ética da convicção e à   razão substancial, de modo que “os meios quase sempre costumam ser escolhidos após determinação dos fins desejados. (...) a 33

MARX, Karl H., ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 10a ed. São Paulo: Global Editora, 2006, p. 86.   34 Idem, p. 84-85.   35 WOLKMER, Antonio C. Op. cit., p. 40-49.    

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racionalidade material traduz a subordinação das normas individuais às normas gerais, basicamente em razão de seu conteúdo”36, ou formal, segundo a qual os atos são definidos a partir da razão instrumental e dos procedimentos técnico-formais, os “fins são determinados em função de procedimentos previamente definidos, conhecidos e regulados por uma ordem legal”.37 No entanto, o direito nunca foi uma constante na sociedade moderna, de modo que se pode identificar quatro grandes fases do monismo, a formação, a sistematização, o apogeu e a crise do paradigma. A primeira fase, conforme dito anteriormente corresponde à   formação do monismo jurídico, situada entre os séculos XVI e XVII, caracterizada pelo rompimento com o pluralismo corporativista medieval e com a Igreja, fundando-se no capitalismo mercantil e no fortalecimento do poder aristocrático, culminando em um Estado Absolutista, que se utilizava do Jusnaturalismo38 para legitimar as decisões de seus soberanos absolutistas. Para compreender tal período, vale retornar a Hobbes, que afirma que a lei civil estatal é  “para todo súdito constituída por aquelas regras que a república39 lhe impões, oralmente ou por escrito, ou por outro sinal suficiente da sua vontade, para usar como critério de distinção entre o bem e o mal”, admitindo ainda que o legislador é  soberano e que “a república é  o único legislador”, de modo “o soberano de uma república (...) não se encontra sujeito das leis civis. Como tem o poder de fazer e revogar leis, pode, quando lhe aprouver, libertar-se dessa sujeição, revogando as leis que o estorvam e fazendo outras novas”40. O segundo período se inicia com a Revolução Francesa e se estende até   o final das principais codificações do século XIX. Trata-se da verdadeira etapa de consolidação da legalidade estatal burguês-capitalista, sob as bandeiras de liberdade, igualdade e fraternidade. Dessa forma, o papel do soberano absolutista é   substituído pela tripartição de poderes e pelo ideário do Estado enquanto vontade da 36

WEBER, Max aput WOLKMER, Antonio C. Op. cit., p. 64 WOLKMER, Antonio C. Op. cit., p. 60-65. 38 O Jusnaturalismo defende a existência de um Direito Natural, decorrente de um valor ético, que se sobrepõe ao Direito Positivo, do ordenamento júridico. Bonavides ensina: “(...) Os princípios habitam ainda esfera por interior abstrata e na sua normatividade, basicamente nula e duvidosa, contrasta com o reconhecimento de sua dimensão ético– valorativa ou idéia que inspira os postulados de justiça.” BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 24a ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 259. 39 Cabe lembrar que, nesse período, compreendia-se república como Estado. 40 HOBBES, Thomas. Op. cit., p. 226-227. 37

 

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nação. Wolkmer afirma que: (...) a burguesia, ao instalar-se no poder, não só coíbe as formas herdadas de organizações corporativas, como, sobretudo, cria uma moderna instituição burocrática centralizadora (Conselho de Estado) e implementa, mediante o controle do poder estatal, um corpo orgânico de normas abstratas, genéricas e sistematizadoras, visando a constituir um Direito nacional unificado.41

Portanto, a partir da Revolução Francesa, tornou-se possível o fortalecimento do Jusnaturalismo que, aliando-se aos ideais iluministas e à   dinâmica de unificação legal, garantiram o surgimento das codificações que viriam a ser responsáveis pela consolidação da burguesia como nova classe dominante. Promulgadas as grandes constituições, surge, então um laço ainda maior entre o Estado e o Direito, o que contribuiu para o surgimento da teoria do Positivismo Jurídico. Apesar de não ameaçar a hegemonia do Jusnaturalismo no período, o positivismo jurídico viria a se tornar a principal doutrina jurídica contemporânea, ao afirmar que o Estado é   soberano e única fonte de direito42, legitimando-o como expoente máximo da força43. Nesse sentido, Rudolf Von Jhering afirma em sua obra O Fim no Direito que: (...) (o) Direito de coação social acha-se somente nas mãos do Estado; é o seu monopólio absoluto. Toda associação que queira fazer valer os seus direitos contra os seus membros, mediante a força, deve recorrer ao Estado, e este fixa as condições segundo as quais presta o seu concurso. Em outros termos, o Estado é a fonte única do Direito, porque as normas que não podem ser impostas por ele não constituem ‘regras de direito’. Não há, pois, direito de associação fora da autoridade do Estado, mas apenas direito de associação derivado do Estado. Este possui, como é exigido pelo princípio do poder soberano, a supremacia sobre todas as associações de seu território, e isto se aplica também à Igreja.44

Pode-se dizer que a terceira fase monística se define no século XVIII, com esse aumento do intervencionismo sócio-econômico do Estado, porém, se consolida somente no século XIX e atinge seu apogeu dos anos 20/30 aos anos 50/60 do século XX. Essa fase é   marcada pelo centralismo jurídico defendido pela “Teoria Pura do Direito”, de Hans Kelsen, ou seja, “Kelsen descarta o dualismo EstadoDireito, fundindo-os, de tal modo que o Direito passou a ser o Estado, e o Estado é  o 41

WOLKMER, Antonio C. Op. cit., p. 52. Dessa forma, abandona-se o Direito Natural, de modo que, segundo Bonavides, os princípios estavam “entrando nos códigos como força normativa subsidiária”, ou seja, só seriam aplicados quando a lei fosse omissa. Cf. BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 262. 43 WOLKMER, Antonio C. Op. cit., p. 51-56. 44 JHERING, Rudolf von. aput WOLKMER, Antonio C. Op. cit., p. 56. 42

 

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Direito Positivo” 45 . Portanto, surge, assim, o Estado do Bem-Estar Social, com intervencionismo político-jurídico, defensor do monopólio nos meios de produção, das liberdades e direitos civis individuais, denominados “direitos sociais”   e que, posteriormente, no século XIX, defenderia a expansão dos direitos políticos da cidadania e do voto46. O último grande período monístico se inicia por volta dos anos 60/70 com o enfraquecimento produtivo do Estado do Bem-Estar Social, forçando uma reordenação e globalização do capital monopolista. Isso ocorre porque, passada a Segunda Guerra Mundial, a legalidade que sustentou por tanto tempo a modernidade burguês-capitalista mostrou-se ineficaz perante as “novas demandas político-econômicas, o aumento dos conflitos entre grupos e classes, e o surgimento de complexas contradições culturais e matérias de vida inerentes à   sociedade de massa”47. Dessa forma, o modelo burocrático-centralizador apresentado pela burguesia no amanhecer do Capitalismo mostra-se cada vez mais frágil e incapaz de obscurecer as

desavenças entre classes e os conflitos sociais na periferia do

sistema, tornando inadiável a discussão acerca da necessidade de um novo referencial para o direito que solucione a crise do projeto jurídico estatal. Torna-se essencial, nas palavras de Celso Campilongo, abandonar a “concepção meramente legalista da justiça”, de modo que, ao desvincular o direito da lei, se permita a solução de conflitos “através de fórmulas inteiramente novas de negociação, mediação e arbitramento”48. É   a partir desse quadro de desgaste que surge, na periferia do Capitalismo, a proposta progressista do pluralismo jurídico de base democrático-participativa, defensor da “multiplicidade de fontes normativas não obrigatoriamente estatais, de uma legitimidade embasada nas ‘justas’   exigências fundamentais de sujeitos sociais e, finalmente, de encarar a instituição da Sociedade como estrutura descentralizada, pluralista e participativa”49. O pluralismo, portanto, reconhece a existência de diversas culturas, sociedades, religiões, enfim, realidades, com particularidades próprias que se 45 46 47 48 49

 

WOLKMER, Antonio C. Op. cit., p. 57. Idem., p. 57-58. Idem., p. 59. CAMPILONGO, Celso F. aput. WOLKMER, Antonio C. Op. cit., p. 76. WOLKMER, Antonio C. Op. cit., p. 78.

27  

 

correlacionam

de

forma

igualitária

dentro

de

um

Estado,

respeitando-se

mutuamente. Pode-se estabelecer, ainda, diversas concepções de pluralismo, tais como filosófica, cultural, sociológica, política, econômica e ideológica. A concepção filosófica de pluralismo defende que há   uma independência e, ao mesmo tempo, uma inter-relação entre as realidades e os princípios diversos. Nesse mesmo sentido, N. Glazer define pluralismo cultural como um “estado de coisas no qual cada grupo étnico mantém, em grande medida, um estilo próprio de vida, com seus idiomas e seus costumes, além de escolas, organizações e publicações especiais”50. A concepção sociológica, por sua vez, vai de encontro ao absolutismo estatal soberano, defendendo uma ampliação das diversas associações livres, de tal modo que estas sejam capazes de mediar a relação entre o indivíduo e o Estado, conceito muito próximo ao político, que luta contra um poder unitário hegemônico, buscando um “complexo corpo societário formado pela multiplicidade de instancias sociais organizadas e centros autônomos de poder” 51 . Por fim, a concepção econômica defende a inter-relação entre empresas públicas e privadas, que concorrem entre si. A política, conforme defende Bobbio, refere-se às “diversas orientações de pensamento, diversas visões de mundo, diversos programas políticos (...) não uniformes”52. Após analisar as diversas concepções acerca do pluralismo, é   ressaltada a necessidade de uma delimitação de seus Princípios norteadores. O primeiro a ser listado é  a autonomia, que garante às diversas associações livres independência do Estado, de modo que tais associações só   serão eficazes quando forem livres e reivindicarem seus direitos. Outro princípio é   o da descentralização, que defende o deslocamento dos centros de decisão das instituições formais para as esferas locais e fragmentadas, garantindo, assim, igualdade entre os diversos sujeitos coletivos de um Estado, incitando a participação de base. Ainda com esse ideal, tem-se outro Princípio: o localismo, que ressalta o poder local em contraponto ao estatal, ou seja, na capacidade das forças sociais determinarem, entre si, suas relações econômicas, culturais e políticas, sem a necessidade do intermédio do Estado. A diversidade   é   um Princípio cujo nome é   auto-explicativo, significa dizer que o pluralismo funda suas bases nas diferenças de cada grupo. O último Princípio elencado é   o da 50 51 52

 

LEISERSON, Avery aput. WOLKMER, Antonio C. Op. cit., p. 172. WOLKMER, Antonio C. Op. cit., p. 173. BOBBIO, Norberto. aput. WOLKMER, Antonio C. Op. cit., p. 173.

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tolerância. Tal Princípio se aproxima de conceitos como o da liberdade e da autodeterminação, ao pregar que deve haver um respeito mútuo entre os diversos sujeitos coletivos do Estado. Compreendidos os conceitos de Nação e Soberania, os diferentes tipos de constitucionalismo e determinando o Pluralismo Jurídico como o quarto marco teórico, é  possível, agora, aplicar tais conceitos da realidade internacional. Esse será   o tema tratado a seguir.

2. RECORTE HISTÓRICO E GEOPOLÍTICO Com o fim da Guerra Fria e a desintegração da União Soviética, as recentes democracias sulamericanas se depararam, no início da década de 90, com o enfraquecimento de suas esquerdas nacionais, concomitante com um pacote de medidas econômicas que passava a ser imposto pelo Consenso de Washington53, apresentando o neoliberalismo como única solução para a profunda crise na região. O desaparecimento ou derrota das principais oposições políticas que historicamente se confrontaram na sociedade liberal (o socialismo real e as organizações e lutas populares anticapitalistas em todas as partes do mundo), bem como a riqueza e o poderio militar sem rivais das sociedades industriais do Norte, contribuem para a imagem da sociedade liberal de mercado como a única opção possível, como o fim da História.54

A vitória do capitalismo sobre o socialismo serviu como locomotiva para a reascensão das economias que se encontravam em crise, não só   devido à   crise do Petróleo, na década de 1970, como também pelo fato de não terem se recuperado por completo dos efeitos da grande crise de 1929. A necessidade de um contraponto ao que era anteriormente pregado pelo Oriente gerou um repúdio à   política intervencionista do estado e ao estado de bem-estar social. Nesse sentido, Stephen Gill aponta que surgimento e efetivação do 53

“A disciplina fiscal, uma política de austeridade, de modo a conter o processo inflacionário, praticamente já fora do controle, constituía, de fato, uma necessidade, para que os países da América Latina pudessem retomar o crescimento econômico autosustentável. As medidas recomendadas pelo que se convencionou chamar de Washington Consensus, rejuvenescendo e encorajando os princípios do liberalismo/libertarianismo econômico, sobretudo a privatização das empresas estatais, a desregulamentação da economia e a liberalização unilateral do comércio exterior (...)”. BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Formação do Império Americano: da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque. 2a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 518. 54 LANDER, Eduardo. Op. cit., p. 22.  

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neoliberalismo caracterizou uma significativa mudança na economia política global, marcada por um profundo descaso pelos recursos energéticos, ecológicos e sociais, conforme apontado diversas vezes por relatórios do Programa de Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas (PNUD). A partir de então, o sistema individualista se tornou modelo para as relações interpessoais, discriminando programas sociais e aumentando o contingente de pessoas marginalizadas, forçadas a trabalhar no “setor informal”   e a morar em favelas ou em áreas rurais distantes55. Porém, o individualismo não foi a única novidade trazida com a nova era econômica. A globalização foi a grande responsável pela perpetuação do imperialismo dos países do “norte”   sobre os do “sul”, através da multiplicação das multinacionais que eram “exportadas”   para estes países e que quebravam as indústrias locais, tornando-as incapazes de competir; o estabelecimento de instituições internacionais financeiras56, como o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o Banco Mundial, que, além de interferirem nas políticas econômicas, direcionavam os gastos dos países periféricos. Lênin considera o imperialismo uma fase evoluída do capitalismo, sendo possível traçar seus cinco princípios básicos, que são facilmente identificados no presente contexto: 1) a concentração da produção e do capital levada a um grau tão elevado de desenvolvimento que criou os monopólios, os quais desempenham um papel decisivo na vida econômica; 2) a fusão do capital bancário com o capital industrial e a criação, baseada nesse "capital financeiro" da oligarquia financeira; 3) a exportação de capitais, diferentemente da exportação de mercadorias, adquire uma importância particularmente grande; 4) a formação de associações internacionais monopolistas de capitalistas, que partilham o mundo entre si, e 5) o termo da partilha territorial do mundo entre as potências capitalistas mais importantes. O imperialismo é o capitalismo na fase de desenvolvimento em que ganhou corpo a dominação dos monopólios e do capital financeiro, adquiriu marcada importância a exportação de capitais, começou a partilha do mundo pelos trusts internacionais e terminou a partilha de toda a terra entre os países capitalistas mais importantes.57 55

GILL, Stephen (org.). Gramsci: materialismo histórico e relações internacionais. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007, p.13 56 Cox afirma que “as instituições internacionais também desempenham um papel ideológico. Elas ajudam a definir diretrizes políticas para os Estados e a legitimar certas instituições e práticas no plano nacional, refletindo orientações favoráveis às forças sociais e econômicas dominantes”. COX, Robert W. Gramsci, hegemonia e relações internacionais: um ensaio sobre o método. in. GILL, Stephen. Op. cit., p. 121. 57 LENINE, Vladimir I. O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo. Net. Moscou, 1917. Disponível em .  

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O fantasma dessas crises trazia consigo a necessidade de uma reformulação no cenário econômico global. Dessa forma, o capitalismo apresentou duas correntes opostas que lutaram pela hegemonia, o keynesianismo, que, segundo Hobsbawn, defendia “que os altos salários, pleno emprego e o Estado de Bem-estar haviam criado a demanda de consumo que alimentara a expansão, e que bombear mais demanda na economia era a melhor maneira de lidar com as depressões econômicas”, e os neoliberalismo, afirmando que “a economia e a política da Era de Ouro impediam o controle da inflação e o corte de custos tanto no governo quanto nas empresas privadas, assim permitindo que os lucros, verdadeiro motor do crescimento econômico numa economia capitalista, aumentassem”58. Cabe ressaltar que o papel das agencias internacionais recentemente criadas foi essencial para a definição do novo modelo econômico a ser adotado. Nesse sentido, afirmam Augelli e Murphy: As agencias intergovernamentais, principalmente o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, passaram a ser um dos poucos centros de poder do bloco ocidental reconstituído interessado em transformar a política de uso da força no Terceiro Mundo em uma política para construir consenso. As agencias intergovernamentais se juntaram e se reuniram a algumas instituições privadas da sociedade civil internacional na luta ideológica contra as muitas versões do keynesianismo global.59

O Consenso de Washington trouxe consigo a vitória do neoliberalismo sobre o até   então vigente modelo de Estado intervencionista. Entre seus princípios centrais, pode-se grifar: I – política fiscal: cortes radicais nos gastos correntes (notadamente em salários, gastos sociais e subsídios diversos) e no investimento público; poucas alterações na tributação em face da restrição da demanda; II – política monetária: conter drasticamente a expansão dos meios de pagamento, do crédito interno e elevação das taxas de juros reais; III – política salarial: contenção dos reajustamentos e queda do salário real; IV - política cambial e de comércio exterior: desvalorização do câmbio, incentivos às exportações e restrições às importações.60 Acesso em: 9 mai. 2011. HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: O breve século XX: 1914-1991. 2a ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 399. 59 AUGELLI, Enrico e MURPHY, Craig N. Gramsci e as relações internacionais: uma perspectiva geral com geral com exemplos da política recente dos Estados Unidos no Terceiro Mundo. in. GILL, Stephen. Op. cit., p. 211 60 CANO, Wilson. Soberania e política econômica na América Latina. 1a ed. São Paulo: UNESP, 2000, p. 34. 58

 

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A implementação das políticas de orientação neoliberal acabou por enfraquecer o Estado e estagnar a indústria que perdeu seu papel para a especulação financeira. Nesse sentido, Lênin afirma que “a exportação de capitais (...) acentua ainda mais este divórcio completo entre o setor dos rentiers (especuladores) e a produção, imprime urna marca de parasitismo a todo o país, que vive da exploração do trabalho de uns quantos países e colônias do ultramar”61. Segundo Chomsky: Em 1971, 90 por cento das transações financeiras internacionais tinham alguma relação com a economia real – comércio e investimentos de longo prazo – e 10 por cento eram especulativas. Em 1990, essa proporção se inverteu e, por volta de 1995, cerca de 95 por cento de um valor total imensamente maior era de natureza especulativa, com fluxos diários que geralmente excediam as reservas em moeda estrangeira das sete maiores potências industriais somadas, ou seja, mais de um trilhão de dólares, por dia, a curtíssimo prazo: cerca de 80 por cento com prazo de resgate de uma semana ou menos.62

As transnacionais se tornaram ainda mais fortes ao comprarem as empresas privatizadas de países subdesenvolvidos, concentrando mais de 50% da renda mundial em 300 corporações, enquanto 70% da população mundial se manteve em situação de pobreza ou pobreza extrema, segundo dados do Banco Mundial63. Foi surgindo, assim, a globalização, com a diminuição do poder dos Estados. As empresas transnacionais eram apoiadas pelos governos dos países desenvolvidos, e entravam no mercado dos países mais pobres oferecendo produtos e serviços de melhor qualidade que suas empresas, a preços mais acessíveis, se tornando, então, fortes comercial e economicamente para que, no futuro, viessem a intervir nestes estados periféricos. Nas palavras de Bautista, la globalización es un proceso que se define por la pérdida de las fronteras nacionales como limitadoras del espacio donde tienen lugar los flujos comerciales y económicos principalmente. Este proceso cuenta con diversos motores: a) El impulso empresarial con 61

LENINE, Vladimir I. Op. cit. Disponível em http://www.marxists.org/portugues/lenin/1916/imperialismo/cap8.htm 62 CHOMSKY, Noam. O lucro ou as Pessoas? Coletivo Sabotagem, 2004, p. 12-13. 63 ARAUJO, Rafael Pinheiro de. Dissertação de pós-graduação: Por uma análise comparada entre os movimentos sociais na Bolívia e Venezuela e os partidos políticos MAS (Movimento al Socialismo) e PSUV (Partido Socialista Unido de Venezuela). Rio de Janeiro: UFRJ, 2009, p. 35.  

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desarrollo tecnológico punta, b) La sed insaciable de acumulación de capital y c) La acción política, voluntaria o bajo presión, de los representantes de los Estados nacionales respecto a participar en el juego globalizador.64

Nesse sentido, após definir o Estado como “la forma de organización política de una comunidad cuyo propósito es el bien común, la justicia, la liberdad y la felicidad de su pueblo”65, ele conclui que, ao perder seu foco do bem estar de seu povo, ele perde também sua razão de existir. Isso ocorre pelo fato de, ao abraçar o neoliberalismo combinado com a globalização, os Estados foram levados a adotar novos aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais, baseados nos que foram adotados nos países centrais. Bandeira afirma que: Esse elenco de reformas, que representava, em realidade, o consenso existente entre o Departamento do Tesourso dos Estados Unidos, o FMI e o Banco Mundial, resumia-se na recomendação de que o Estado se retirasse da economia, quer como empresário quer como regulador das transações domésticas e internacionais, de modo que toda a América Latina e o resto do Terceiro Mundo se submetessem às forças do mercado, ou seja, das 51 maiores corporações, a maior parte americanas, transformadas em virtuais Estados transnacionais.66

No entanto, Chomsky ressalta que nem todos os países seguiram a cartilha neoliberal. A Europa, em conjunto com os Estados Unidos e alguns países do leste asiático mantiveram seu protecionismo e intervenção estatal. Ele apresenta o Japão como exemplo de subversão à   política do livre mercado, ao adotar uma política de Estado forte e intervencionista. “(...) desprovido de uma base de recursos naturais, o Japão se tomou, na década de 1990, a maior economia industrial do mundo e a mais importante fonte mundial de investimento estrangeiro, além de responder por metade da poupança líquida mundial e financiar o déficit norte-americano”67. O mesmo se passou nas ex-colônias japonesas. Nem Taiwan, nem a Coréia do Sul adotaram políticas neoliberais, mantendo o Estado forte e interventor. O destino foi muito diferente desses países do Leste Asiático para os que adotaram o neoliberalismo como modelo a ser seguido.

64

BAUTISTA, Oscar Diego. Ideología neoliberal y política de globalización. Medidas implementadas por los países globalizadores y cambios generados en los países globalizados. p. 6-7. 65 Idem., p. 12. 66 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Op. cit., p. 520. 67 CHOMSKY, Noam. Op. cit., p. 17.  

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Entre as principais alterações políticas sofridas, Bautista grifa a incorporação do marketing às campanhas políticas, mudando o papel da imprensa, que passa a atuar como panfletária do candidato de sua preferência. Além disso, ocorre a vinculação do governo aos interesses privados, se tornando refém, vez que estes investem da campanha dos candidatos que se sentem obrigados a retribuir o investimento ao serem eleitos, além do surgimento dos lobbies, que, apesar de ilegais no Brasil, são autorizados em muitos países. Por fim, há   a desestruturação do Estado, já   que, segundo ele, ao privatizar suas estatais, aumenta a taxa de desemprego, devido às políticas de cortes, o que faz com que a população se torne descrédita no Estado, tendo, por consequência, sua desestruturação. Já  no âmbito econômico, houve uma maior concentração da riqueza, vez que as empresas multinacionais compraram as menores, que eram incapazes de competir com aquelas, consolidando seu poder econômico. Bautista grifa que “en algunos Estados, sobre todo del tercer mundo, una empresa llega a tener más poder que el mismo gobierno e incluso puede ser capaz de desestabilizarlo”68. Com o enfraquecimento econômico do Estado, surge a negligência com a educação, saúde, qualidade de vida, emprego, e tudo que possa ser ligado ao gasto social, culminando na privatização desses setores, excluindo, cada vez mais, os setores mais pobres da sociedade. Essa conjuntura de descaso e exclusão serviu como alavanca para o fortalecimento de movimentos sociais que reivindicavam mudanças na política do governo, como maior distribuição de renda, mais empregos e melhor qualidade de vida.

Esses

movimentos

se

espalharam

em

grande

parte

dos

países

subdesenvolvidos e em desenvolvimento, principalmente no caso da América do Sul, que será  objeto de estudo a seguir.

2.1. A América Latina A década de 80 foi marcada pela redemocratização da grande maioria dos países latino-americanos, que enfrentavam graves crises econômicas geradas pela grande fuga de capitais, tanto estrangeiros quanto nacionais, o que contribuiu para um aumento incontrolável da inflação e, consequentemente, a estagnação 68

 

BAUTISTA, Oscar Diego. Op. cit., p.15.

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econômica. O quadro de retração econômica do sul começava a afetar os Estados Unidos, que, além de não receberem o pagamento das dívidas da América Latina, tiveram suas exportações diminuídas. Foi nesse contexto que os Estados Unidos apresentou um plano, em 1989, visando “promover a redução no valor da dívida externa, mediante a diminuição do principal ou das taxas de juros, a extensão dos prazos de pagamento e a substituição de obrigações com taxas de juros flutuantes, por títulos com taxas fixas”69. A condição para que os países se adequassem ao plano de redução da dívida externa era que estes realizassem “reformas estruturais”   inspiradas nas recomendações do Consenso de Washington. Bandeira grifa, ainda, que “tanto os países do sul quanto os do Leste Europeu foram forçados pelo FMI e pelo Banco Mundial a empreenderem eles mesmos ajustes estruturais, em base permanente, enquanto as potências industriais poderiam fazê-lo voluntariamente”70. Chomsky revela que documentos de alto nível, antes secretos, apontam como maior ameaça aos interesses estadunidenses na América Latina os “‘regimes nacionalistas’   e ‘radicais’   sensíveis à   pressão popular pela ‘melhoria imediata do baixo nível de vida das massas’   e por um desenvolvimento voltado ao atendimento das necessidades do país” 71 . Para o governo americano da época, “essas tendências conflitam com a exigência de ‘um clima político e econômico propício para o investimento privado’, com a adequada repatriação dos lucros e a ‘proteção de nossas matérias-primas’  –  nossas, ainda que localizadas em outro país”72. Dessa forma, ao impor sua política econômica, os Estados Unidos impediau o retorno desses governos e manteve o excedente de capital nas transnacionais que, consequentemente, eram exportados para seus países sede, eliminando os investimentos sociais que visavam a distribuição de renda. Com relação a isso, Galeano conclui que “a industrialização dependente aguça a concentração de renda, dos pontos de vista regional e social.A riquesa gerada não se irradia sobre o país inteiro nem sobre a soiedade inteira, mas

69 70 71

72

 

BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Op. cit., p. 517. Idem. p. 518. CHOMSKY, Noam. Op. cit., p. 11. Loc. cit.

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consolida os desníveis existentes e até  os aprofunda”73. O contraste nas sociedades era visível, de um lado o crescimento espantoso das empresas internacionais, que lucravam com a produção a baixos custos, contrastados com os produtos manufaturados

extremamente

supervalorizados;

do

outro,

o

aumento

do

desemprego, diminuição de salários, dos direitos trabalhistas e dos investimentos estatais no desenvolvimento social. A consequência desse quadro foi o aumento em 7,8% do número de pessoas em situação de pobreza e miséria de 1980 à   1990, alcançando a marca de 200 milhões de pessoas, número que ainda aumentaria um pouco até   2002, quando chegou a 221 milhões 74 . Cabe ressaltar que considera-se pobre, segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), a renda familiar dividida pelo número de membros é   menor que a “linha da pobreza”, ou seja, o montante mínimo necessário para que se satisfaça as necessidades essenciais75. O aumento da pobreza foi um fator chave para o aumento da criminaidade e do narcotráfico que, apesar de serem extremamente combatidos desde seu surgimento, nunca receberam programas sociais para a recuperação das classes marginalizadas que se submetem a tais fardos. Além disso, desemprego e a falta de perspectiva de contratações acabou por ampliar o setor informal76 da economia, nesse sentido, o emprego formal cresceu somente 2,2% na América Latina dos anos 90, sendo 2,2% no setor privado e 0,7% no público, enquanto o emprego informal crescia 2,8% por ano77. 73

Galeano, Eduardo. As veias abertas da América Latina. 49a ed. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2009, p. 323. 74 CEPAL. Panorama social da América Latina - 2006. Net. Santiago do Chile, fev. 2006, p. 59. Disponível em: . Acesso em: 17 mai. 2011. 75 A “linha da pobreza” é determinada pelo valor da cesta básica de bens e serviços na moeda de cada país. Idem, p. 62. 76 Compreende-se por economia informal uma “modalidade urbana” caracterizada por: 1) existência de barreiras ao ingresso no mercado de trabalho, seja pela competência, renda ou organização; 2) as empresas de propriedade familiar; 3) a reduzida escala de operações; 4) a utilização de métodos de produção com grande número de trabalhadores e pouca tecnologia; e 5) a existência de mercados não regulamentados e competitivos. Por esse ponto de vista, a atividade informal não é, obrigatoriamente, ilegal, e sim uma resposta da sociedade civil a uma interferência não desejada do Estado. PORTES, Alejandro; HALLER, William. La economía informal. Net. Santiago do Chile, Nov. 2004, p. 9-10 e 42. Disponível em: . Acesso em 25 mai. 2011. 77 CEPAL. Panorama social da América Latina - 2006. Op. cit., p.115.  

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Essa conjuntura de sucateamento do Estado e crescente exclusão social serviu como alavanca para o crescimento de movimentos sociais que buscavam a melhoria na qualidade de vida em seus países, uma maior distribuição de renda e igualdade de direitos para todos os nacionais, com o fim de acabar com a histórica segregação vivida pelas minorias étnicas. Esses movimentos terminaram por eleger, em grande parte da América Latina, presidentes que viriam a governar voltados para as classes mais excluídas da sociedade, como por exemplo, o que ocorreu na Bolívia, com Evo Morales, eleito pelos povos originários para acabar com a histórica exclusão destes no Estado. Será   sobre este caso que a presente monografia se aprofundará  a seguir.

3. O CASO DA BOLÍVIA Assim como em toda a América Latina, a Bolívia passou por um grande período militar, que se estendeu de 1964 a 1982, paralisando os avanços conquistados no período anterior, tais como a reforma agrária, urbana e educativa. No entanto, o que diferenciou o período ditatorial boliviano daqueles dos demais Estados latinoamericanos, foi a proximidade do governo com os trabalhadores rurais organizados em sindicatos, o que ajudou a consolidar o Pacto Militar Camponês, em uma clara tentativa do governo de controlar os setores populares. Porém, tal pacto não seria suficiente para manter os setores populares inertes por muito tempo. Já  no final da década de 1970, o movimento indígena não mais aceitava sua subordinação, organizando-se com o fim de recuperar suas identidades originárias de grupos étnicos.

3.1. Aspectos políticos, sociais e econômicos (recorte histórico) A consolidação da democracia, marcada por um grande acordo entre diversos partidos políticos, denominado “Pacto Democrático”, acabou por coincidir com a grande crise econômica da década de 1980 que, segundo Gumucio: (...) afetava a todos os setores, e nada garantia que, depois desse retorno tático do exército aos seus quartéis, a democracia pudesse florescer com vigor. A economia não mostrava nenhum crescimento fazia anos. O estanho confrontou uma nova caída em seus preços internacionais e o Banco Central apenas possuía US$ 1 milhão de dólares de reservas. O único setor próspero era o do narcotráfico, o  

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que se evidenciava nas ruas pelo livre movimento de dólares nas mãos dos cambistas, quando três décadas atrás era necessário fazer um trâmite vagaroso no Banco Central para obter limitadas somas que permitissem a seguir estudos ou tratamento médicos no exterior.78

Desse modo, a recessão econômica combinada com a baixa dos preços das matérias-primas no mercado internacional, a queda da produção de estanho, a má   administração das empresas estatais, a inflação alta e a dívida externa acumulada configuraram o ambiente perfeito para o desenvolvimento da ideologia neoliberal, contrária à   política intervencionista do Estado. A conjuntura de crise econômica combinada com a instabilidade política, gerada pela multiplicidade de partidos políticos no governo, culminaram na antecipação das eleições para 1985, com o objetivo de preservar a democracia. As eleições foram marcadas pela volta ao cenário político boliviano de um exditador, Hugo Banzer, candidato da ADN (Ação Democrática Nacionalista), que alcançou o segundo lugar nas eleições. Com o fim de evitar outro período de instabilidade política, o MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário), partido vitorioso, fez uma aliança com a ADN, inaugurando um sistema “de democracia de consenso, onde formações políticas importantes alcançam acordos que incorporam consultas recíprocas entre os integrantes, estabelecimento de maiorias congressuais e distribuição de postos na burocracia estatal”79. O presidente eleito foi, então, Vitor Paz Estenssoro, do MNR, ex-presidente boliviano nos períodos de 1952-1956 e 1960-1964. Porém, o presidente que no passado lutou pela Revolução de 1952, com reformas de base e inclusão dos grupos excluídos, abraçava agora o neoliberalismo, reformulando economicamente o país por meio do Decreto Supremo 21060, que estabeleceu a “Nova Política Econômica”. Tal decreto determinava o controle inflacionário, fixando o câmbio único, real e flexível; a liberdade de comércio, liberando a importação de mercadorias sem incidência de impostos e incentivando a exportação de novos produtos; a privatização da Comibol (Corporação Mineira da Bolívia), e, além dela, diversas outras empresas públicas foram privatizadas, com a venda de 50% da empresa para um sócio estratégico internacional e a transferência dos outros 50% para os cidadãos bolivianos maiores de 20 anos; a renegociação da dívida externa e 78 79

 

GUMUCIO, Mariano B. aput. ARAUJO, Rafael Pinheiro de. Op. cit.9, p. 52. PITTARI, Salvador aput. Idem., p. 55.

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seu pagamento pontual; a flexibilização das leis trabalhistas e o corte nos gastos públicos80. Nesse sentido, Marcelo Argento Câmara afirma que: O impacto das reformas fez-se sentir principalmente sobre o operariado. O fechamento das estatais implicou a quebra da confiança entre operários e governos, no fim de um projeto de estabilidade que fez sucumbir projeções pessoais de toda uma geração, que se via, agora, lançada no desemprego em uma economia incapaz de oferecer alternativas consistentes. O Decreto Supremo (DS) 21.060 tornou-se o mais emblemático de todo este processo, pois atingia a empresa que era o principal motor do governo revolucionário: a Comibol. Este decreto descentralizava a empresa em quatro subsidiarias, alem de suspender qualquer tipo de investimento no setor e de encerrar as atividades em vários centros mineiros (que só voltariam a operar de forma praticamente artesanal sob a administração de cooperativas).81

A política neoliberal do governo trouxe consigo a polarização da sociedade, entre os setores mais à   esquerda, liderados pelos mineiros, que mobilizaram manifestações, greves e paralisações, na chamada “Marcha pela Vida”; e mais à   direita, liderados pelos empresários, defensores fervorosos das mudanças realizadas pelo novo governo, que propiciaram um maior lucro, uma maior exploração do trabalho e maior acesso aos recursos estratégicos. Apesar das constantes manifestações, o governo conseguiu concretizar a reforma neoliberal no Estado, tornando-se menos intervencionista e vendendo suas estatais. Para se ter noção, com a privatização da Comibol, cerca de 21 mil dos 27 mil mineiros que trabalhavam na antiga estatal ficaram desempregados, sob a justificativa do preço dos minérios estar muito baixo naquele momento e de promessas do governo de recolocação dos desempregados em outros setores do mercado de trabalho. O grande índice de demissões culminou na migração dos mineiros desempregados para o Chapare, no departamento de Cochabamba, onde trabalhavam na produção de coca, e para a cidade de El Alto, próxima a La Paz, o que, segundo Wasserman, gerou (...) uma fusão muito particular entre culturas políticas diferentes; de um lado, o movimento camponês, que exige terra, autonomia cultural indígena, respeito aos valores culturais arraigados nas comunidades camponesas, e, de outro, a experiência de mobilização e de 80

ROCHA, Maurício Santoro. A outra volta do bumerangue: estado, movimentos sociais e recursos naturais na Bolívia. in. Prêmio América do Sul. Bolívia: de 1952 ao Século XXI. Brasília: Funag, 2006, p. 29 e 30. 81 CÂMARA, Marcelo Argenta. Bolívia: de 1952 ao século XXI – processos sociais, transformações políticas. in. Idem, 2006, p. 89-90.  

39  

 

confronto dos sindicatos operários organizados.82

Nesse contexto de insatisfação política e enfraquecimento dos dois tradicionais atores políticos bolivianos, o COB (Central Obrera Boliviana) 83 , enfraquecido com as privatizações, e as Forças Armadas, excluída do poder político desde a transição para a democracia, surgem novos movimentos, camponeses e indígenas, organizados pela expressão de interesses étnicos e coletivos. Sobre tais movimentos, deve-se destacar que esses movimentos não mais se baseavam na divisão tradicional classista - operariado contra burguesia - mas na divisão cultural e étnica da sociedade boliviana que buscava não só   o acesso à   terra e seu reconhecimento como nações, mas a sua participação no processo político através de uma democracia participativa. No entanto, tais movimentos decidem, em um primeiro momento, se organizar fora do âmbito dos partidos políticos, o que causaria um enfraquecimento ainda maior na esquerda, já   debilitada com a desorganização da população desempregada84. Esse enfraquecimento da esquerda abriu espaço para que as eleições de 1989 fossem centralizadas nos candidatos do MNR, Gonzalo Sánchez de Lozada, da ADN, Hugo Banzer e do MIR (Movimento Esquerda Revolucionária), Jaime Paz Zamora. Como nas eleições não houve um candidato vitorioso com mais de 50% dos votos, coube ao Congresso decidir quem seria o futuro presidente85 , o que resultou na escolha de Paz Zamora, que havia recebido a menor expressividade dos votos, mas que se aliou à   ADN para que pudesse ser eleito através de um acordo, denominado “Acordo Patriótico”. Apesar das promessas de geração de empregos, combate à   pobreza e a miséria, elevação dos investimentos em áreas sociais e em infra-estrutura, o que se verificou foi uma continuidade na política econômica do governo anterior. Sob a 82

WASSERMAN, Cláudia. Bolívia: história e identidade. In. Araújo Heloísa Vilhena de (org.). Os países da comunidade andina. (2 v.) Brasília: Funag/Ipri, 2004, p. 332. 83 O COB foi o principal órgão sindical da Bolívia desde os anos 1950. Com as privatizações e as demissões em massa, o sindicalismo boliviano se viu com os dias contados. O COB organizou a “Marcha pela Vida” com o intuito de retomar seu papel protagonista, contudo, com seu fracasso, ficou selado seu fim. 84 ARAUJO, Rafael Pinheiro de. Op. cit., p. 55-56. 85 Segundo o artigo 90 da Constituição boliviana de 1967, que esteve em vigor até janeiro de 2009, “Si en las elecciones generales ninguna de las fórmulas para Presidente y Vicepresidente de la República obtuviera la mayoría absoluta de sufragios válidos, el Congreso elegirá por mayoría absoluta de votos válidos, en votación oral y nominal, entre las dos fórmulas que hubieran obtenido el mayor número de sufragios válidos”.  

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justificativa de necessidade de modernização do país, foi elaborado o decreto 22407 que buscou a estabilidade macroeconômica, o controle da inflação, a busca por investimentos externos para geração de empregos, o desenvolvimento social e o crescimento econômico. Apesar do desemprego não diminuir, aumentar o trabalho informal e os salários permanecerem estagnados, o governo tentou dar um enfoque maior ao combate à  miséria, mesmo não alcançando os objetivos almejados. Nesse sentido, foi feita a Lei de Participação Popular, que descentralizava a educação e a saúde, concedendo maior participação às comunidades indígenas originárias. As manifestações de insatisfação com a desenfreada corrupção, com a desigualdade de renda e com a exclusão da maioria indígena estouraram por toda Bolívia. A principal conquista dos povos indígenas originários foi o fato de conseguirem o reconhecimento, por parte do governo, de uma área de cerca de dois milhões de hectares e o fim da exploração da região pelas madeireiras. Houve destruições de diversos símbolos do neoliberalismo, como redes de transmissão de energia elétrica, oleodutos e sede de grandes empresas, organizadas pelo EGTK (Exército Guerrilheiro Tupac Katari) 86 , que objetivava a retomada do território aymara87 de Jack’a Uma Suyu (El Gran Omasuyo, o território da água), que se estendia pelo Peru até  o norte do Chile88. Esse período foi extremamente importante para o movimento indígena camponês, que passou a buscar na sua cultura tradicional, instrumentos que os definiam como povos originários, defendendo o fim da criminalização e preconceito contra os mesmos. O movimento Katarista, que recebeu seu nome em homenagem à   Tupac Katari é   uma grande prova disso. Outro símbolo resgatado do período précolonial para os dias de hoje é   a Wiphala, uma bandeira indígena aymara-quéchua com sete cores dispostas na diagonal em 49 quadrados, utilizada nas manifestações públicas contra a política vigente, nos anos 90, de privatização das estatais e disposição dos recursos naturais. Passado o governo Paz Zamora (1989-1993), os governos seguinte, Gonzalo 86

Tupac Katari foi o grande líder da grande insurreição indígena do século XVII. O EGTK surgiu do movimento katarista, que combina demandas sociais camponesas com a valorização da identidade indígena e o combate à discriminação social. ROCHA, Maurício S. Op. cit., p. 54. 87 Os aymaras e os quéchuas são os dois maiores grupos indígenas originários do Altiplano andino, representando 56% da população boliviana, segundo o Censo 2001. 88 ARAUJO, Rafael Pinheiro de. Op. cit., p. 58-60.  

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Sánchez de Lozada (1993-1997) e Hugo Banzer (1997-2001) mantiveram e aprofundaram a política neoliberal. Com a privatização das empresas estatais, a elite boliviana, que outrora prometeu gerar empregos e renda, ignorou os índices negativos, objetivando a maximização dos lucros, o que manteve as altas taxas de desemprego, de empregos informais e subemprego e o número de bolivianos na linha de extrema pobreza e indigência extremamente alto, alcançando o marco de 55% (entre 1990 e 1997) e de 71% da população (de 1998 a 2001). Essa conjuntura seria a responsável pelo aumento das taxas de emigração de jovens bolivianos que não conseguiam emprego no mercado de trabalho89. Gonzalo Sánchez de Lozada volta para mais um período no governo, de 2002 a 2003. No entanto, a conjuntura política boliviana já   se encontrava extremamente desgastada com o neoliberalismo, sendo praticamente irreversível a pressão por parte dos grupos originários pelas mudanças reivindicadas. Ainda sobre a conjuntura do período, Linera conclui que “los tres pilares de la estructura estatal ‘neoliberal’   y en general estatal republicana, muestran un deterioro creciente, y es esta sobreposición de crisis estatales lo que ayuda a explicar la radicalidad de la conflictividad política”90. Algumas das manifestações a serem destacadas são: a mobilização pela legalização da plantação da folha da coca, que vinha sendo combatida desde o final da década de 1980, com o apoio estadunidense, sob o argumento de que era matéria-prima para a cocaína, se esquecendo que o cultivo da folha da coca faz parte da cultura milenar indígena, segundo Rocha, Visando a repressão da oferta, os Estados Unidos passaram a financiar programas de erradicação das plantações de coca na Bolívia, na Colômbia e no Peru. As medidas adotadas oscilavam entre o uso das Forças Armadas e a concessão de benefícios econômicos, como acesso facilitado de produtos agrícolas ao mercado norte-americano (a Iniciativa Andina) e políticas nacionais, como o Plano Dignidade na Bolívia, que oferecia ajuda financeira e técnica para trocas a coca por outros cultivos.91

Além da política contra o plantio de coca, houve, ainda, a “Guerra da água”, em janeiro 2000, em Cochabamba, pelo fato da água ter sido privatizada e os preços terem subido drasticamente em uma região em que a população vive com menos de US$ 1 por dia; a “Marcha pela Assembléia Nacional Constituinte, pela Soberania 89

Ibidem., p. 68-70. LINERA, Álvaro García. La potência plebeya: Acción colectiva e identidades indígenas, obreras e populares en Bolívia. Buenos Aires: Clacso. 2008, p. 343. 91 ROCHA, Maurício Santoro. Op. cit., p. 34,35. 90

 

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Popular, o Território e os Recursos Naturais”, de 2002, cujos protagonistas foram os povos originários das terras baixas; e a “Guerra do Gás”, de setembro/outubro 2003, quando o governo Sánchez de Lozada determinou que o gás natural seria exportado para os Estados Unidos via Chile. Parra Rocha, esse anuncio feito pelo presidente, parecia feito sob medida para irritar os nacionalistas, pois implicava acordos econômicos com os Estados Unidos, a quem detestavam por causa da política antidrogas e do apoio prestado às ditaduras militares da Bolívia. E ainda por cima envolvia o Chile e a ferida aberta da perda do litoral boliviano para as tropas daquele país na guerra do Pacífico, no fim do século XIX. 92

A decisão serviu como estopim para a renúncia do presidente, incapaz de neutralizar a grande massa insatisfeita que se mobilizava contra seu governo em grande parte do território boliviano. Foi nesse contexto de instabilidade que surge a Revolução democrática, cultural e pacífica, liderada pelo MAS (Movimento al Socialismo)93, que culminaria, em dezembro de 2005, na eleição de Evo Morales para presidência da Bolívia com 53,7% dos votos, se tornando o primeiro descendente indígena (aymara) a se eleger presidente, em um país extremamente excludente. Sob o comando de Morales, a Bolívia abandonou a política neoliberal, retomando o ideário do Estado forte e interventor econômica e socialmente, nacionalizando os recursos naturais, defendendo uma descolonização do pensamento através do anti-imperialismo, denunciando a corrupção e os acordos suprapartidários, que antes eram regra e, promovendo a “refundação”  do Estado através da nova Assembleia Constituinte, que viria a promulgar a Nova Constituição Política do Estado boliviano94. No entanto, faz-se mister que se compreenda o instituto da democracia participativa antes que se analise a Constituição advinda das lutas por uma maior participação da sociedade civil.

92

Idem., p. 40. Sobre o MAS, deve-se ressaltar que ele é um partido que surgiu do movimento. Câmara afirma que “não é um partido que se aproxima da mobilização social para com ela articular; é, sim, a mobilização social que cria estratégias de ação dentro da política institucional”. Ganhou prestígio junto aos grupos sociais por levantar a bandeira de que o Estado boliviano deveria ter posse dos hidrocarbonetos para ter controle do excedente econômico. CÂMARA, Marcelo Argenta. Op. cit., p. 97. 94 ARAUJO, Rafael Pinheiro de. Op. cit., p. 73. 93

 

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3.1.1. A democracia participativa Como expressado anteriormente, a atuação política das parcelas da sociedade, antes marginalizadas, foi essencial para tornar possível a eleição de um igual. Inspirados na consciência da necessidade de mudanças, os indígenas bolivianos se organizaram em movimentos sociais para lutar contra a política neoliberal do Estado e exigir mudanças não só na política macro-econômica, mas, também, mudanças estruturais. Dessa forma, Evo Morales foi eleito pelos povos originários para corrigir um histórico de criminalização e subserviência. Para romper com esse histórico modelo representativo, que concede a um representante das elites o poder de decidir sobre o destino de toda uma sociedade, concluiu-se que era necessário dar à população um papel de destaque nos processos políticos, econômicos e sociais. A democracia representativa contribuiu para a concentração de renda, o favorecimento do capital especulativo, a decadência das políticas sociais e a sobreposição dos interesses internacionais sobre o nacional. Criou-se, por parte da população, uma descrença na política e na perspectiva de mudança, passou-se a admitir a corrupção e o estelionato eleitoral como práticas normais da política, assumindo como verdade a imutabilidade do sistema. Araujo complementa que “assistimos paulatinamente nossas democracias deixarem de lado a discussão ideológica e programática, adotando cada vez mais acordões e consensos políticos para a estabilidade da ordem vigente, colocando de lado contestações teóricas tão importantes em momentos de disputa política”95. Em sentido oposto, a democracia participativa molda uma nova forma estatal na qual, segundo Bonavides, “o povo organizado e soberano é o próprio Estado, é a democracia no poder, é a legitimidade na lei, a cidadania no governo, a Constituição aberta no espaço das instituições concretizando os princípios superiores da ordem normativa e da obediência fundada no contrato social” e acrescenta que tal Estado estabelece uma “escala de aperfeiçoamento qualitativo da democracia jamais dantes alcançada em termos de concretização”96. A população passa a estar no centro do

95

Idem., p. 137. BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa: Por um Direito Constitucional de luta e resistência, por uma Nova Hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 20.

96

 

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debate político, em um exercício de verdadeira democracia, possível somente em uma sociedade politicamente consciente e engajada. Essa participação é realizada através de um poder popular, exercido por meio de plebiscitos, referendos, assembleias públicas e fiscalização e elaboração dos gastos públicos, o que aumenta o poder da sociedade, que passa a opinar no governo mesmo fora dos períodos eleitorais, diminuindo a burocracia, conforme afirma Araujo: Dessa maneira, os indivíduos deixam de ser meros delegadores de funções e tarefas, afastando-se do modelo (...) em que as massas necessitam de líderes para assumir funções e passam assim, a ser protagonistas das ações direcionadas para a transformação em suas vidas. Com isso, dá-se também um passo para o combate aos processos de burocratização, tanto de governos quanto de partidos, que assistimos na totalidade das sociedades modernas, inclusive, na que se propunha a combater esse processo, a União Soviética, durante décadas afetada pelos perniciosos males da burocratização desencadeada por Stalin ao assumir do controle do governo após a morte de Vladimir Lênin em 192497.

Esse protagonismo da população serve como base para a fundação da Revolução Democrática e Cultural proposta por Morales. Para que se possa ter uma noção, a Bolívia registrou, ao longo de sua história, desde a independência, em 1825, até a promulgação da Nova Constituição, em 2009, um total de seis referendos, sendo quatro deles realizados na última década. O primeiro, em 2004, teve como discussão central as regras de exportação do gás; o segundo, em 2006, foi realizado para que a população pudesse decidir sobre as autonomias departamentais; o terceiro, em 2008, questionava sobre a revogação do mandato do presidente e dos governadores; e, em 2009, o referendo que aprovou a Nova Constituição Política do Estado Boliviano. A proposta a seguir é de estudar e analisar o novo texto constitucional boliviano, buscando sua compreensão, para que, ao fim, possamos concluir se foi capaz de cumprir com sua proposta de romper com o monismo estatal e com o liberalismo.

97

 

ARAUJO. Op. cit., p. 138.

45  

 

3.2. A Nova Constituição Política do Estado boliviano A Bolívia é  considerada como pioneira no que se refere à  garantia dos direitos coletivos de comunidades originárias indígenas e afrodescendentes. Assinou, em 1991, o Convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre povos indígenas e tribais e, já   em 1994, foi realizada um Reforma Constitucional que concedeu às comunidades indígenas o reconhecimento de sua personalidade jurídica, que reconheceu o seu direito de posse da terra, que garantiu uma reforma educacional que viria a estabelecer o ensino bilíngue, além de garantir às comunidades camponesas o direito de serem consultadas sobre medidas administrativas e legislativas que viessem a afetá-las, no que diz respeito aos seus direitos tradicionais. Contudo, a verdadeira mudança constitucional só  estaria por vir em janeiro de 2009, quando foi aprovada no Referendo Nacional Constituinte a Nova Constituição Política do Estado boliviano (NCPE), que rompeu, em seu preâmbulo, com o “Estado colonial, republicano y neoliberal”98 e fundando “colectivamente El Estado Unitario Social de Derecho Plurinacional Comunitario, que integra y articula los propósitos de avanzar hacia una Bolivia democrática, productiva, (...) comprometida con el desarrollo integral y con la libre determinación de los pueblos”99. Essa Constituição, conforme expresso anteriormente, marca o surgimento de um novo constitucionalismo baseado no reconhecimento recíproco entre as diferentes nações e/ou culturas do Estado, na continuidade histórica, ao reconhecer as injustiças cometidas no passado e se responsabilizar por sua reparação, e o consentimento por parte das nações e culturas e das instituições estatais e da sociedade civil de se reconhecerem como autônomas.

3.2.1. A organização do Estado Nesse sentido, a Carta Magna boliviana apresenta, em sua primeira parte, as “Bases fundamentales del Estado derechos, deveres y garantias”   e, desde então, apresenta artigos interessantes de se apontar. Ainda no primeiro capítulo, vale 98

BOLÍVIA. Constuición Política de Estado (2009), de 7 de fevereiro de 2009. Lex: Disponível em: . Acesso em 10 fev. 2009. 99 Loc. cit.  

46  

 

destacar que, em seu artigo 2o, ela concede a autodeterminação dos povos originários indígenas, suas nações e territórios, ou seja, o direito à   autonomia, ao autogoverno, à  sua cultura, ao reconhecimento de suas instituições e à  consolidação de suas entidades territoriais, e, em seu artigo 5o, que todas as línguas de nações e de povos originários passam a ser consideradas idiomas oficiais, e não somente o castelhano, como ocorria antes. Ambos os temas já   haviam sido tratados pela Constituição precedente e representam uma verdadeira conquista dos povos originários, que não mais são subservientes a uma nação “superior”. Porém, o primeiro grande aspecto que merece ser destacado aparece somente no segundo capítulo, quando, no artigo 9o, 1, o Estado toma para si a responsabilidade de descolonização. Ao referir-se à   descolonização, a Constituição boliviana não se refere à   colonização sofrida com a chegada dos espanhóis no continente e que foi “rompida”   com a independência, mas sim, uma colonialidade intelectual, que se mantém na América Latina desde as descobertas, gerando um preconceito, primeiramente por parte dos europeus e, posteriormente, de seus descendentes contra os povos originários e afrodescendentes trazidos para o subcontinente para serem escravizados. Já   no terceiro capítulo surge outra das grandes modificações trazidas pela NCPE. O artigo 11 adota uma forma de governo democrático-participativa, representativa e comunitária, o que representa, conforme explicado anteriormente, a única forma de ser verdadeiramente democrática, pois não restringe a participação da sociedade à   escolha de seus representantes pelo voto universal. Garantindo, dessa forma, o direito dos povos indígenas, por exemplo, de designar ou nomear, por meio de eleições, seus representantes. Além disso, estabelece canais participativos para que a sociedade opine decidindo seu destino, seja por meio de referendo,

iniciativa

legislativa

cidadã,

pela

revogatória

de

mandato,

por

assembleias, cabildos100 e consulta prévia. O capítulo quatro do titulo 2 traz em seu artigo 30 a definição de nação e povo indígena originário camponês, que compreende “toda la colectividad humana que 100

As assembleias e cabildos funcionam “como organismos públicos de intercambio de razones y argumentos del que nadie estaba excluido, ni siquiera los funcionarios estatales, pero como iguales al resto de los comunarios indígenas”, são “espacios de producción de igualdad política real y de formación de opinión pública, ambos componentes básicos de lo que se denomina ‘democracia deliberativa’”. LINERA, Álvaro Garcia. Op. cit., p. 322.  

47  

 

comparta identidad cultural, idioma, tradición histórica, instituciones, territorialidad y cosmovisión, cuya existencia es anterior a La invasión colonial española”101. Ainda neste artigo, pode-se ressaltar alguns dos direitos elencados, tais como o de propagar sua identidade cultural, crença religiosa e cosmovisão própria, a autodeterminação, a titulação coletiva de terras e territórios, tendo direito à   participação nos lucros da exportação dos recursos naturais não renováveis de seus territórios, à   proteção de seus lugares sagrados e o exercício de seus sistemas políticos, jurídicos e econômicos, tendo, inclusive, participação nos órgãos e instituições do Estado. Definitivamente, este artigo representa um grande avanço no caminho para o plurinacionalismo boliviano, no entanto, representa também o maior desafio deste Estado, pois caberá   a ele administrar as relações entre as diversas nações que o compõe, de modo que nenhuma seja capaz de sobrepor seus interesses ao de outra, criando uma igualdade horizontal. O Princípio descolonizador aparece novamente quando a Constituição trata da educação. O artigo 78 introduz, em um primeiro momento, que a educação deve ser

democrática,

participativa,

comunitária

e

descolonizadora.

A

primeira

característica a que se deve avaliar é   a de educação comunitária. Ao garantir à   educação esse caráter, a Nova Constituição boliviana descentraliza o ensino, passando a admitir que as escolas ensinem as crenças e ensinamentos de cada nação. Essa característica se torna ainda mais expressiva quando acrescenta que ela deve ser descolonizadora, afirmando que, a partir de então, deve assumir uma posição de igualdade entre todas as culturas, abandonando o ensino unicamente europeu. O artigo vai ainda além, ao ressaltar que deve ser intracultural, intercultural e plurilingue, além de libertadora e revolucionária, critica e solidária.

3.2.2. Os poderes Analisada a primeira parte da Carta Magna boliviana, cabe agora à   segunda parte tratar da “Estrutura y organización funcional del Estado”. A Bolívia mantém a organização do Estado fundada na separação dos poderes, ainda que com algumas alterações. A separação dos poderes tem sua origem nos primórdios da ciência política, 101

 

BOLÍVIA. Op. cit.

48  

 

conforme assinala Bobbio, quando surge a ideia de que ao separar o poder entre as classe que compõem a sociedade seria possível atingir a democracia plena. Este conceito surge pela primeira vez em Aristóteles, que aponta que, em um Estado, o poder pode estar concentrado em uma só   pessoa, caracterizando a monarquia, em poucas pessoas, a aristocracia, e em muitas, o que ele chama de “politia”, ou governo misto, do qual “participam equilibradamente o rei, os aristocratas e o povo, e desse modo, possuindo alguma coisa de todas as três formas tradicionais de governo, é  superior a qualquer uma delas”102. Dessa forma, Aristóteles acredita que a união dos pobres com os ricos, através da separação de poderes, é  a única forma dos diferentes segmentos sociais discutirem seus interesses e chegarem à  decisões equilibradas, alcançando a paz social. Bobbio apresenta, ainda, uma segunda doutrina que substitui a divisão pelas classes por uma divisão nas funções. Para essa teoria, “o melhor modo de organizar o poder é   fazer, sim, com que as várias funções estatais sejam exercidas por diferentes órgãos” 103 . Nesse sentido, Montesquieu estabelece três poderes, o legislativo, o executivo e o judiciário, cada um com suas determinadas funções: Através do poder legislativo fazem-se as leis para sempre ou para determinada época, bem como se aperfeiçoam ou ab-rogam as que já se acham feitas. Com o poder executivo, ocupa-se o príncipe ou magistrado (os termos são de Montesquieu) da paz e da guerra, envia e recebe embaixadores, estabelece a segurança e previne as invasões. O terceiro poder - o judiciário - dá ao príncipe ou magistrado a faculdade de punir os crimes ou julgar os dissídios da ordem civil.104

A grande preocupação da maioria dos juristas marxistas é   que esse modelo abre espaço para uma ditadura da burguesia, já   que, apesar das funções serem distintas, só   existir uma classe no poder. Para combater essa predominância das classes mais abastadas nos poderes que compõem o Estado, a Constituição Boliviana estabeleceu medidas para que estes se tornassem mais democráticos, com a inclusão dos povos indígenas originários e das mulheres, como será   analisado a seguir. O primeiro título vai tratar do Poder Legislativo que, conforme o artigo 145, 102

BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: A filosofia política e as lições dos clássicos. 20a reimpressão. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000, p. 286. 103 Idem. 104 BONAVIDES. Paulo. Ciência política. 10a ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 176.  

49  

 

continua sendo bicameral, ou seja, é   composto pela Câmara dos Deputados e pela Câmara dos Senadores. Deve-se ressaltar que o artigo seguinte determina, em seu inciso VII, o direito à   representação dos povos indígenas originários, sendo regidos pelo princípio da densidade populacional em cada departamento. No que diz respeito ao Poder Executivo, a grande alteração introduzida em 2009 foi a possibilidade de cessar o mandato do Presidente por meio de uma ação de revogatória do mandato, caso em que o Presidente perderá   imediatamente suas funções, passando o governo para o Vice-Presidente que deverá   convocar eleições no prazo máximo de noventa dias, conforme previsto nos artigos 170 e 171. Ademais, cabe ao presidente, conforme o artigo 172, 27, “exercer la autoridad máxima del Servicio Boliviano de Reforma Agrária y otorgar títulos ejecutoriales en la distribuición y redistribuición de las tierras”105 . Outra importante alteração inédita na história da Bolívia foi a criação do segundo turno das eleições para cargos do Executivo, acabando com o sistema de negociações antes vigente que culminava no Congresso decidindo o futuro das eleições. O terceiro poder elencado é   o Judiciário, apresentado no titulo III, que versa sobre o Órgão Judicial e o Tribunal Constitucional Plurinacional. O artigo 178 delimita os princípios da justiça boliviana como independência, imparcialidade, segurança jurídica, publicidade, probidade, celeridade, gratuidade, pluralismo jurídico, interculturalidade, equidade, serviço à   sociedade, participação cidadã, harmonia social e respeito aos direitos. Um ponto que deve ser ressaltado é   o fato de explicitar em seus princípios, o pluralismo jurídico. Ao fazê-lo, o Estado Boliviano comprova-se oficialmente plural, já   que passará   a admitir diversas culturas jurídicas diferentes dependendo do território em questão. Nesse sentido, algo extremamente importante de se atentar é  o fato de que, no que diz respeito à  jurisdição, conforme o artigo 181, o Tribunal Supremo de Justiça ser o órgão máximo de jurisdição ordinária, entretanto, quando se refere aos povos indígenas originários, o artigo 190 garante que eles exerçam suas funções jurisdicionais e de competência através da sua autoridade, aplicando seus princípios, valores culturais, normas e procedimentos próprios. Faz-se necessário, portanto, delimitar qual a capacidade de julgamento desta jurisdição indígena originária, o que fica explícito no artigo 191, II, onde se afirma que sua vigência é  pessoal, ou seja, somente os membros da nação ou povo 105

 

BOLÍVIA. Op. cit.

50  

 

indígena originário estão sujeitos a tal jurisdição, material, já   que tal justiça só   conhece os assuntos indígenas, e territorial, pois só   se aplica a relações ou fatos jurídicos que se realizem, ou que os efeitos sejam produzidos dentro da jurisdição de um povo indígena originário camponês. Por fim, o quarto e último poder é   o Eleitoral Plurinacional, responsável por organizar, administrar e executar os processos eleitorais e proclamar seus resultados, passando a reservar duas das suas sete vagas para originários indígenas. Outra alteração interessante expressa no artigo 209, a representação política se dará   não só   pelos partidos políticos, mas também, através das organizações das nações e povos indígenas originários camponeses e das agrupações cidadãs, em igualdade de condições, o que inclui no sistema político boliviano grupos antes excluídos pela falta de afinidade não só   ideológica, mas cultural com os partidos hegemônicos.

3.2.3. As relações internacionais Ainda nessa segunda parte, a Constituição versa sobre as Relações Internacionais no titulo VIII. Nesse quesito, o artigo 259 traz outro avanço na que diz respeito à   democracia participativa, ao determinar que os tratados internacionais deverão ser aprovados por referendo popular quando cinco por cento dos cidadãos registrados no padrão eleitoral assim desejarem, ou quando trinta e cinco por cento dos representantes da Assembleia Legislativa Plurinacional o requererem. Tais iniciativas também podem ser utilizadas para solicitar ao Executivo que subscreva um tratado. Estabelece, ainda nesse titulo, no artigo 265, que a Bolívia promoverá   integração social, política, cultural e econômica com os demais Estados, nações e povos do mundo, tendo como enfoque principal a integração latinoamericana. A Bolívia mantém, assim, seu compromisso com o desenvolvimento dos diversos blocos econômicos dos quais faz parte, entre eles Comunidade Andina de Nações (CAN), assinada em maio de 1969, a Alternativa Bolivariana para os Povos das Américas (ALBA), assinada em dezembro de 2001 e a União das Nações SulAmericanas (UNASUL), assinada em dezembro de 2004. Hoje, se discute a possibilidade do ingresso da Bolívia e do Equador no Mercosul, tornando o bloco mais regional, não uma exclusividade do Cone Sul, que deixariam de ser países  

51  

 

associados ao Bloco para se tornarem Estados membros. Segundo o ministro das relações exteriores, Antônio Patriota, “existe um sentimento de que talvez tenha chegado o momento para uma aproximação maior com potenciais candidatos a membros plenos do Mercosul, e dois países surgiram no radar: Bolívia e Equador”106. Além dos blocos econômicos, a Bolívia mantém estreitos laços comerciais com a grande maioria dos países da América do Sul, devendo se destacar o Brasil e a Venezuela e, mais recentemente, o Peru. O Brasil é   um parceiro comercial histórico da Bolívia, principalmente no que diz respeito aos hidrocarbonetos. O primeiro acordo comercial de cooperação mútua firmado entre os dois governos surgiu na década de 30, com recíproco benefício do comércio de petróleo, no qual o óleo boliviano seria refinado em solo brasileiro. Em 1993, os dois países firmaram um acordo de compra e venda do gás boliviano que visava desenvolver os dois países e contribuir para a integração latino-americana. Já   em 1996, o governo boliviano determinou a isenção de impostos para a implementação do projeto do Gasoduto Brasil-Bolívia (Gasbol), que ligaria Santa Cruz de La Sierra a Porto Alegre, passando pelo Centro-Oeste e Sudeste do Brasil. Esse gasoduto fazia parte do contrato de compra e venda entre a YPFB e a Petrobras, pelo qual a primeira é   obrigada a vender e a segunda a comprar no mínimo 21 milhões de metros cúbicos por dia, estabelecido através de cláusula de “take or pay”, ou seja, a Petrobrás é  obrigada a comprar esse valor, mesmo que não vá   usar e a YPFB obrigada a vender, ainda que haja outro comprador oferecendo valor superior ao oferecido pela empresa brasileira. Três anos depois, a Petrobras, se aproveitando do processo de privatização das empresas estatais bolivianas, comprou ações das refinarias e campos de produção da Bolívia, se tornando acionista majoritária107. Entretanto, as relações entre Brasil e Bolívia viriam a se abalar em 2006, 106

FELLET, João. Mercosul quer a adesão da Bolívia e Equador, diz Patriota. BBC, Brasília, 28 jun. 2011. Disponível em: . Acesso em 28 jun. 2011. 107 DUARTE, Bernardo P. M. C., SARAIVA, Thiago C. e BONÉ, Rosemarie B. Impacto ma relação Brasil-Bolívia, com a nacionalização dos hidrocarbonetos bolivianos, em 2006. Net. Porto Alegre, 2008 p. 88-90. Disponível em: . Acesso em 3 abr. 2011.  

52  

 

quando Evo Morales decretou a nacionalização de todo o setor de hidrocarbonetos da Bolívia, afetando, principalmente a Petrobrás, responsável por 18% do PIB boliviano, 20% dos investimentos diretos e 22% da arrecadação tributária. Esse Decreto Supremo, número 28.701 estabeleceu: artigo 01 - nacionalização total e absoluta, por parte do Estado, dos recursos naturais de hidrocarbonetos da Bolívia; artigo 02 - obrigação de as empresas produtoras de petróleo e gás em território boliviano entregarem toda sua produção à YPFB; artigo 05 - o Estado toma o controle sobre a produção, o transporte, o refino, a distribuição, a comercialização e a industrialização dos hidrocarbonetos do País; artigo 07 - nacionalização de ações para que a YPFB tenha 50% mais uma ação das empresas produtoras de petróleo no território boliviano.108

Para contornar a crise instaurada, a YPFB e a Petrobrás assinaram um acordo concedendo à  Petrobrás “(a) execução de todas as operações petroleiras por sua conta e risco; e (b) recebimento direto na conta de um retorno financeiro definido em função da recuperação de custos, preços, volumes e investimentos, invalidando (...) um contrato de prestação de serviços”109. Na prática, a YPFB passou a ser responsável pelo transporte e comercialização do gás natural, enquanto a Petrobras recebe a parcela correspondente aos custos, depreciações e lucro. Além disso, a YPFB comprou as duas refinarias da Petrobras por US$ 112 milhões, o que é   considerado abaixo do valor de mercado, já   que a mesma pagou US$ 104 milhões pelas duas em 1999, além de ter investido mais US$ 30 milhões para melhorar sua capacidade. Além das relações voltadas para o comércio de hidrocarbonetos, Brasil e Bolívia possuem diversos acordos de combate ao tráfico na Bolívia, de cooperação amazônica, cooperação policial e jurídica, controle de fronteiras e, mais recentemente, um acordo de devolução ao Brasil, por parte da Bolívia, de carros roubados no primeiro que ingressarem no segundo de forma ilegal. Desde sua eleição, Evo Morales sempre buscou aproximação do governo Venezuelano, estreitando os laços comerciais e políticos com tal país. Nesse sentido, o governo boliviano fez questão de subscrever o projeto Venezuelano da Aliança Bolivariana para os Povos da América (ALBA) ainda nos seus primeiros 108 109

 

Idem., p. 92. Idem., p. 93.

53  

 

meses de mandato, afirmando que: (...) sólo la unidad de acción de los países latinoamericanos y caribeños, basada en los principios de cooperación, complementación, ayuda mutua y solidaridad nos permitirá preservar la independencia, la soberanía y la identidad, así como enfrentar con éxito las tendencias hacia el unilateralismo y las pretensiones hegemónicas, fortaleciendo un Tratado de Comercio de los Pueblos, la lucha por el mejoramiento del género humano y por la amistad, la solidaridad y la paz entre los pueblos del mundo debe ser obligación moral de todo gobierno, convencido de la necesidad de promover una verdadera integración solidaria complementaria y humana entre nuestros países y nuestros pueblos (...).110

O ingresso da Bolívia no Bloco acompanhou um acordo firmado entre o país, a Venezuela e Cuba, até  então, únicos signatários do Bloco, no qual a Venezuela se comprometia a colaborar com o desenvolvimento do setor energético e mineiro Boliviano; a eximir de impostos sobre a receita de todos os investimentos de empresas bolivianas, estatais, ou mistas, na Venezuela por todo o período de recuperação de investimento; a criar um fundo especial de até   100 milhões de dólares para o financiamento de projetos produtivos e de infra-estrutura; a doação de 30 milhões de dólares por parte do governo venezuelano para que o governo boliviano possa atender as necessidades de caráter social e produtivo; a doação de uma fábrica de mistura de asfalto, contribuindo para a manutenção e ampliação de estradas; a aumentar notavelmente as importações de produtos bolivianos, especialmente os que contribuam para o aumento das reservas estratégicas de alimentos; a outorgar incentivos fiscais no território venezuelano a projetos de interesse estratégico da Bolívia; a conceder instalações preferenciais para as aeronaves de bandeira boliviana no território venezuelano; a cessão de sua infraestrutura e equipamentos de transporte aéreo e marítimo de maneira preferencial, com o fim de apoio aos planos de desenvolvimento econômico e social da Bolívia; o desenvolvimento de convênios com a Bolívia na área de telecomunicações; além da cooperação nas áreas de ensino e pesquisa que vão desde bolsas de estudos para estudantes bolivianos na Venezuela até   investimentos em empresas bolivianas que

110

AYMA, Evo Morales. Contribuición y subscrisción de la República de Bolivia a la declaración conjunta firmada en la Habana, el 14 de diciembre del 2004, entre los presidentes del Consejo de Estado de la República de Cuba y de la República Bolivariana de Venezuela. Net. 4 dez. 2004. Disponível em: , acessado em 3 de abril de 2011.  

54  

 

estudem o meio ambiente111 . Somado a isso, o acordo prevê   também ações conjuntas a serem realizadas pela Venezuela e por Cuba beneficiando a Bolívia, tais como o fim de qualquer tipo de taxa alfandegária dos produtos bolivianos; a compra dos produtos agrícolas e industriais exportados pela Bolívia que possam ter ficado sem mercado na aplicação de um Tratado ou Tratado de Livre Comércio promovidos pelos governos dos Estados Unidos ou da Europa; a cooperação financeira, técnica e de recursos humanos para que se estabeleça uma linha aérea do Estado boliviano genuinamente nacional; o apoio ao governo Boliviano para que consiga o perdão, sem condicionamento algum, de sua dívida externa; sem contar com a cooperação no desenvolvimento do esporte112. Em contrapartida, a Bolívia deve contribuir com a exportação de seus produtos mineiros, agrícolas, agroindustriais, pecuários e industriais que sejam requeridos pela Venezuela ou por Cuba; deve contribuir com a segurança energética desses países com sua produção excedente e disponível de hidrocarbonetos; deve isentar de impostos as receitas de investimento estatal ou de empresas mistas desses países na Bolívia; participará   junto com esses governos em estudos para recuperação de conhecimentos ancestrais de medicina natural, contribuindo, inclusive, com sua experiência no estudo dos povos originários; e, por fim, deve participar ativamente no intercâmbio de experiências para a investigação científica sobre os recursos naturais e padrões energéticos113. Recentemente, Bolívia e Venezuela estudam a possibilidade de implantar entre os países da ALBA, que, além dos dois, compreende Equador, Cuba, Honduras, Nicarágua, República Dominicana, Antíqua e Barbuda, e São Vicente e Granadinas, o Sistema Único de Compensação Regional (Sucre), com uma moeda e um sistema financeiro próprio, que não dependam do dólar114.

111

AYMA, Evo Morales, FRÍAS, Hugo Chávez e RUZ, Fidel Castro. Acuerdo para la aplicación de la Alternativa Bolivariana para los Pueblos de nuestra América u el Tratado de Comercio de los Pueblos. Net. Disponível em: . Acesso em: 3 abr. 2011. 112 Idem. 113 Idem. 114 BOLÍVIA e Venezuela estudam implantação de moeda regional. Itamarati, La Paz, 1 abr. 2011. Disponível em: . Acesso em: 3 de abr. de 2011. 115 JOMA, Nejme. Peru concede à Bolívia acesso ao Pacífico em porto. Yahoo Notícias, Peru, 19 out. 2010. Disponível em: . Acesso em: 20 de out. 2010. 116 SORUCO. Cláudia. Humala promete trabalhar por unificação de Peru e Bolívia. O Globo, La Paz, 21 jun. 2011. Disponível em: . Acesso em: 21 de jun. de 2011.  

56  

 

grande inovação estrutural trazida pela Nova Constituição foi a divisão territorial, que agora não só   se divide em departamentos, províncias e municípios, mas também, em territórios indígenas originários campesinos, conforme descrito no artigo 269. A partir de então, o Estado Plurinacional Boliviano passaria a integrar uma nova forma de Estado, diversa dos modelos clássicos de Estado Unitário e Federal? Isso é   o que se pretende verificar a seguir. No entanto, antes de se estudar as formas de Estado, não se pode esquecer do conceito de território. Para Jose Afonso da Silva, “território é   o limite espacial dentro do qual o Estado exerce de modo efetivo e exclusivo o poder de império sobre pessoas e bens. Ou, como expressa Kelsen: é   o âmbito de validez da ordenação jurídica chamada Estado”117. Após a leitura do artigo 270 da NPCE, é   possível avaliar que tal conceito não se aplica ao utilizado nesta, visto que define suas entidades territoriais como “descentralizadas e autônomas”, de modo que estas possuem soberania própria para, em seus territórios, desenvolverem sua cultura e hábitos jurídicos e políticos, mantendo-se organizadas territorialmente sob a vigência dos princípios da unidad, voluntariedad, solidariedad, equidad, bien común, autogovierno, igualdad, complementariedad, reciprocidad, equidad de género, subsidiariedad, gradualidad, coordinación y lealtad institucional, tranparencia, participación y control social, provisión de recursos económicos y preexistencia de las naciones y pueblos indígena originario campesinos, em los términos estabelecidos em esta Constitución.118

Após analisado o conceito de território, o primeiro modelo a ser estudado é  o Estado Unitário, que compreende aquele que tem uma única esfera de poder executivo, legislativo e judiciário, de modo que não há   limitações à   aplicação do poder central do Estado em qualquer parte de seu território. Nesse sentido, Dirley da Cunha Júnior define o Estado Unitário, ou simples, como sendo “aquele que possui governo único, conduzido por uma única entidade política, que exerce, forma centralizada, o poder político”119. Nagib Slaibi Filho acrescenta que “tal Estado pode ser centralizado, forma 117

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25a ed. São Paulo: Malheiros. 2005, p. 98.

118

119

BOLÍVIA. Op. cit.

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Cosntitucional. 5a ed. Bahia: Juspodivm. 2011, p. 872.    

57  

 

mais singela, com um só  nível administrativo de execução das atividades estatais, e descentralizado, em que a lei admite mais de um nível administrativo, como, por exemplo, uma Administração Central e diversas Administrações locais”120 . Dessa forma, é   possível afirmar que um Estado Unitário pode ter divisões em departamentos que, ainda que não tenham um poder originário ou de autoorganização, sejam capazes de prestar serviços de seus interesses. Um exemplo desse modelo Unitário Descentralizado é   Portugal, que, segundo Canotilho, “o carácter unitário do estado é   compatível com a autonomia regional e a descentralização territorial devendo considerar-se estas dimensões como elementos constitucionais da organização e funcionamento do próprio Estado unitário”121. O Estado Federal, por sua vez, além de possuir seu poder central, se divide em províncias politicamente autônomas, com poderes executivo, legislativo e judiciário próprios. Júnior define o mesmo como: aquele que possui mais de um governo, vale dizer, aquele que se compõe de mais de uma organização política, todas elas politicamente autônomas em consonância com a própria Constituição. Em razão disso, no Estado Federal a autonomia dos governantes locais (Estados-membros, Distrito Federal e, no Brasil, Municípios) está   a salvo das incursões do governo central (União), tendo em vista que a autonomia dos entes federados está   assegurada pela própria Magna Carta.122

Após compreender o conceito de Estado Federal, faz-se mister diferenciá-lo da União e de seus Estados-membros. Para isso, pode-se recorrer à  José  Afonso da Silva que define: Estado federal é   o todo, dotado de personalidade jurídica de Direito Público Internacional. A União é   a entidade federal formada pela reunião das partes componentes, constituindo pessoa jurídica de Direito Público interno, autônoma em relação aos Estados e a que cabe exercer as prerrogativas da soberania do Estado (...). Os Estados-membros são entidades federativas componentes, dotadas de autonomia e também de personalidade jurídica de Direito Público interno.123

Júnior grifa, ainda, a necessidade de distinguir o Estado Federal da Confederação de Estados, de modo que o primeiro constitui uma “união indissolúvel 120

SLAIBI FILHO, Nagib. Direito Constitucional. 3a ed. Rio de Janeiro: Forense. 2009,

p. 618.

121

360.  

122 123

 

CANOTILHO, José  J. G. Direito Constitucional. 7A ed. Coimbra: Almedina. 2003, p. CUNHA JÚNIOR, Dirley. Op. Cit. p. 872.   SILVA, José A. Op. Cit. p. 100.

58  

 

de Estados autônomos com base numa Constituição”124 e o segundo é   uma “união dissolúvel de Estados soberanos” 125 que se organizam conforme previsto em Tratado, de modo que, conforme anteriormente expresso, os Estados-membros de uma Federação não possuem soberania, ao modo que os Estados-membros de uma Confederação de Estados possuem. No entanto, este ainda não parece ser o modelo aplicável na Bolívia, já   que, ainda que haja uma flexibilização no conceito de soberania e uma admissão dos diversos modelos de organização dentro do mesmo Estado, ainda há   uma vínculo entre os departamentos e o poder central. Alguns autores acrescentam ainda um terceiro tipo de Estado, chamado de Estado Regional que, conforme Júnior, “é   um Estado menos centralizado do que o Estado Unitário, mas que não chega a ser tão descentralizado a ponto de assumir a forma de um Estado Federal”

126

. Dessa forma, além da transferência de

competências administrativas, que já   ocorria no Estado Unitário, no Estado Regional, são concedidas competências legislativas ordinárias. Sobre tal modelo, José   Luiz Quadros de Magalhães conclui que nele, “o poder central concede autonomia, amplia e reduz esta mesma autonomia administrativa e legislativa ordinária. O Judiciário (…) permanece unitário e meramente desconcentrado. (…) No Estado Regional, as Regiões elaboram seus Estatutos nos limites da Lei nacional”127. Apesar da grande coincidência de características, pode-se afirmar que este ainda não é  o modelo vigente na Bolívia. O fato que alarma para tal afirmação é  o de a Nova Constituição Boliviana estabelecer um Tribunal Constitucional Plurinacional, cujo objetivo é   ampliar o conhecimento do Judiciário e relativizar suas decisões baseando-as na origem social do julgado. O último modelo a ser apresentado e, também, o que chega mais próximo da realidade Boliviana é   aquele adotado pela Espanha em 1978, que reconhece a diversidade cultural e étnica, admitindo, inclusive a variedade de línguas oficiais. O Estado Autônomo compreende que para que seja possível sua existência, é   124 125

126 127

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Op. cit., p. 872 Loc. cit.

Loc. cit.   MAGALHÃES, José  L. Q. A Organização Territorial Contemporânea. Net. Disponível

em: . Acesso em: 25 jun. 2011.    

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necessário que: o povo nacional, enquanto elemento constitutivo do Estado, deve ser compreendido como o conjunto de pessoas que se sentem parte do Estado, que compartilham valores comuns que fazem com que se sintam integrantes do Estado nacional, ou, em outras palavras, pessoas que compartilhem a crença coletiva em um determinado Estado nacional128.

Somado a isso, no Estado Autônomo Espanhol, legitima seus departamentos como soberanos capazes de elaborar seu próprio estatuto de autonomia, que deve ser aprovado pelas Cortes Gerais –   no caso, o parlamento espanhol –   passando a ser considerado lei especial que não pode ser alterada pelo parlamento por meio de lei ordinária. Esses estatutos podem ser alterados de cinco em cinco anos, desde que seguindo o mesmo processo. O mesmo estatuto encontra-se previsto na Constituição Boliviana, no artigo 271 fica estabelecido que a Lei Marco de Autonomias e Descentralização será   a responsável pela regulamentação dos procedimentos para a elaboração destes e de Cartas Orgânicas, pela transferência e delegação da competência, pelo regime econômico e financeiro e pela coordenação entre o nível central e as entidades territoriais descentralizadas e autônomas. Vale acrescentar, ainda, que na Constituição Boliviana o processo para a elaboração e aprovação de tais estatutos de encontra no artigo 275. O modelo Autônomo se apresenta, dessa forma, como o modelo mais próximo do existente na Bolívia, por admitir a existência de diversas nações dentro de um mesmo Estado, assumindo suas culturas e línguas como oficiais e legitimálos a estabelecerem estatutos próprios independentes do poder legislativo central.

CONCLUSÃO A chegada de Evo Morales à   presidência da Bolívia marcou o início de uma nova era para todos aqueles povos que sempre foram excluídos, ainda que representassem, em número, a maioria da população. Sua campanha foi focada nesses setores e é   nesse caminho que vem trilhando seu governo desde que assumiu o poder.

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Loc. cit.  

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Desse modo, torna-se fácil perceber, ao se comparar os dois maiores expoentes do chamado Socialismo do Século XXI, a incontestável solidez do movimento boliviano perante o venezuelano. Isso ocorre, em grande parte, pelo fato de que, enquanto na Venezuela o movimento transformador esta diretamente ligado à figura de seu líder, o presidente Hugo Chávez, na Bolívia, foram as classe antes marginalizadas que iniciaram sua revolução e, posteriormente, escolheram seu líder. No entanto, ainda que a política de Evo, focada na Revolução cultural, tenha buscado compensar uma segregação histórica na sociedade boliviana, deve-se atentar para seus riscos, vez que o governo enfrenta diariamente a mídia saudosista que defende a “ordem pública”   e a propriedade privada transnacional, aliada às elites da “media-luna”, lideradas por Santa Cruz. Mesmo considerando o fato de o rechaço à   Morales por parte de tais províncias ter diminuído nas últimas eleições, nas quais foi re-eleito com mais de 60% de aprovação, houve fortes especulações em 2007 e 2008 acerca de uma possível tentativa de separação das províncias montanhosas, lideradas por Santa Cruz, onde a maioria da população é   indígena e apóia o governo. O risco de fragmentação é   constante, pelo menos, é   isso que afirma a oposição desde a promulgação da Nova Constituição Política do Estado. Porém, seria isso verdade, ou apenas uma pressão para que o governo ceda aos seus interesses? O governo Morales tem diminuído drasticamente a pobreza na Bolívia, de modo que estudos do CEPAL indicam que em 2000 mais de 50% da população da Bolívia vivia na linha da pobreza, enquanto hoje esse percentual caiu para menos de 35%. Tudo graças a políticas de inclusão patrocinadas pelo governo desde a promulgação da referida Constituição. A NCPE estabeleceu um marco na história da Bolívia, não só   pela inclusão dos grupos sempre excluídos da sociedade em um lugar de destaque no novo Estado, mas por refundar grande parte do ordenamento jurídico do país, se comprometendo com a descolonização cultural, admitindo todas as línguas de todos os povos que fazem parte da Bolívia como línguas oficiais, garantindo à   população uma maior participação nas decisões do país, por meio da democracia participativa, com o reconhecimento dos territórios indígenas, com a criação de um Tribunal Constitucional Plurinacional, capaz de avaliar os conflitos de jurisdição e aplicar a lei da nação mais justa a cada caso, ou até   mesmo por proporcionar uma maior  

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comunicação da Bolívia com os países vizinhos. Apesar de o Estado estar passando por uma transição entre o modelo clássico federalista antes vigente na Bolívia para um novo modelo plurinacional, mais próximo do modelo autonômico espanhol, pode-se afirmar que a Constituição de 2009 já   rompeu com diversas barreiras impostas pelo Estado capitalista. É   possível afirmar, portanto, que diferentemente do Estado Moderno, fundado no individualismo, centralismo, uniformidade e supremacia de uma classe dominante –   a burguesia –, o Estado Plurinacional se propõe comunitário, includente, democrático participativo e multicultural. A Bolívia soube como se reerguer de uma década de crises e manifestações populares por melhorias sociais. Ao se autoafirmar como um Estado de muitas nações, rompeu com o paradigma da homogeneidade estatal centrada na cultura colonizadora europeia para assumir sua heterogeneidade cultural, social, jurídica e política. Compreendeu que a democracia representativa não simbolizava o ideal de governo para sua miscigenada população, da qual fazem parte tribos indígenas que não acreditam na efetividade de um sistema em que o povo não tem contato direto com seus representantes. Buscou solucionar tal impasse ao estipular a democracia participativa como forma de inclusão da população nos processos de decisão do Estado, e ao aumentar, nos quatro poderes, o número de representantes dos povos originários, o que antes era quase nulo.  

 

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