O eterno retorno da Europa. Aspectos comparados da cultura e identidade europeia.

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O eterno retorno da Europa Aspectos comparados da cultura e identidade europeia Luís Magarinhos Prefácio de Carlos Quiroga

Autor: Luís Magarinhos | © 2014 Coordenação Editorial: Cultureprint, Crl Pr. Coronel Pacheco nr 2 | 4050-453 Porto www.cultureprint.pt | [email protected] ISBN edição impressa: 978-84-616-7477-0 ISBN edição digital: 978-84-616-8142-6 Depósito Legal: PO 100-2014

Dedico este livro a Lúcia Garcez, Ibirá Machado, Marcia Cattaruzzi, Sonia Lindblom, Luiza Guerreiro, Gilvania Souza, Antonio Guimarães, Liliana Loureiro, Shirley Martins, Eduardo Abad, Ruth Fialho, Olivier Crouzet, Raquel Alves, Magali Narciso Fortes e Ana Maria Galrão Rios por serem fonte de inspiração e me ajudarem a compreender melhor o Brasil, a Europa e a mim mesmo. Pontecesures / Santiago de Compostela, verão de 2010

Sumário A Europa na estação do espelho Por Carlos Quiroga

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Introdução 17 Em que somos diferentes os europeus? 21 Entre Oriente e Ocidente 31 Europa como nação: a construção duma identidade nacional europeia 39 Paganismo, ecologismo, não-especísmo e outros alicerces para uma idéia da Europa 53 De Hobbes a Kant e o cosmopolitismo europeu 59 Conclusão 63 Bibliografia 64

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A Europa na estação do espelho Por Carlos Quiroga «Assez! Tiens devant moi ce miroir. Ô miroir! Eau froide par l'ennui dans ton cadre gelée Que de fois et pendant des heures, desolée Des songes et cherchant mes souvenirs qui sont Comme des feuilles sous ta glace au trou profond Je m'apparus en toi comme une ombre lointaine, Mais, horreur! des soirs, dans ta sévère fontaine J’ai de mon rêve épars connu la nudité!» Mallarmé, Hérodiade

Tirésias, profeta cego de Tebas, com a fama de ter passado sete anos transformado em mulher, foi interrogado pela mãe de Narciso, Liríope, curiosa por saber do invidente se o seu garoto de quinze anos teria longa vida. Respondeu aquele que, com efeito, este teria longa vida – desde que não se conhecesse nunca. Muito depois Narciso, extremamente belo, desprezaria o amor de todas as ninfas, entre elas Eco (que tinha perdido o dom da fala por maldição de Juno, e acabou perdendo o corpo e se transformando nas pedras da caverna), e quando Narciso viu a sua imagem refletida nas águas cristalinas de uma fonte, como todo o mundo sabe, nunca mais conseguiu parar de vê-la, ouvindo apenas a voz de Eco, que repetia as suas palavras, terminando por morrer consumido de amores pela própria imagem. Todo o mundo adivinha, portanto, que o adivinho acertou. Os assuntos da sua mitologia mostram que os gregos antigos tinham formas complexas de sabedoria simples: 7

conhecer-se tem certos perigos, pensavam eles, ou pelo menos consequências funestas. Poderíamos pensar nós que Tirésias não ia por aí, que a sua resposta era algo ambígua, e que conhecer-se não é exatamente o mesmo que ver-se refletido nas águas de uma fonte. Poderíamos até colocar algumas dúvidas sobre o seu discernimento nesta matéria, quando na verdade ele era primeiro especialista noutra, pois no fim de contas tinha sido chamado para dirimir uma delicada disputa entre Zeus e Hera: quem tem mais prazer na relação sexual, o homem ou a mulher? Hera dizia que o homem é quem tem mais prazer, Zeus dizia que é a mulher. Tirésias – que classe de indivíduo é convocado por deuses para opinar sobre este assunto!? – decidiu que "se dividirmos o prazer em dez partes, a mulher fica com nove e o homem com uma". Hera, claro, ficou furiosa pela derrota e cegou Tirésias em vingança. Mas foi aí que um Zeus compadecido e compensatório lhe deu o dom da profecia, a nova especialidade. Uma versão alternativa do mito conta que Tirésias ficou cego ao ter visto Atena a banhar-se nua numa fonte. De qualquer modo, está patente que o consultor era informado nomeadamente a respeito de sexo (e de sexos, pois era capaz de distinguir cobras venenosas copulando, macho ou fêmea) e que teria recebido a graça divina de prognosticar, ainda que depois de saber de sexo (e de sexos). Para além de ser costume que todo o bom vaticínio costume acompanhar-se de ar impreciso, assim dilatando o seu espectro de pertinência. No caso, podemos conceder que seja suficiente para dar por bom. E assim acreditamos finalmente na sentença de Tirésias, conhecer-se tem certos perigos e perigos certos. Eis a forma de recolher em fábula um pensamento claro dos antigos gregos. Porque até devia ser uma máxima bem mais ampla, já que a mesma ideia parece provar-se de outros modos. Para os antigos algo de muito estranho e 8

misterioso permaneceu desde sempre aderido ao espelho, por exemplo, encarando-o como a tela na qual se projeta o mundo das realidades, das fantasias e das inquietudes ligadas a questões existenciais, ao pensamento sobre a vida e sobre a morte. Mas não é o momento de pormo-nos transcendentais, e desde logo já correram alguns séculos desde que esses pensamentos e esse ‘modo avestruz’ de encarar o espelho se praticava. Se os gregos modernos tivessem dado pelo escorrer dos séculos talvez tivessem hoje encarado metaforicamente os seus espelhos também os retrovisores, de outro modo, e tivessem visto o FMI, o Banco Central Europeu e demais escavadoras financeiras a avançar sobre as suas realidades, fantasias e inquietações do presente mundo – onde as mitologias resultam todavia mais complexas e desde logo mais incompreensíveis. Os gregos modernos, à vista do que enfrentam, de certeza terão agora adquirido repentinas formas simples de sabedoria complexa, terão de repente descoberto, muito ao contrário, que desconhecer-se tem certos perigos, ou pelo menos consequências funestas. E terão expulso Tirésias do seu panteão de gregos ilustres. O presente mundo foi acrescido com novéis espertezas – que na verdade já estavam esboçadas nas primitivas, mas não arruinemos prematuramente a argumentação. Para os povos da Grécia antiga, o facto de sonhar com a própria imagem refletida nas águas era agouro da própria morte, ora o inverso já tinha também a sua validez, pois no espelho estava o poder de restituir o que tinha sido perdido. As novéis espertezas acrescem, em termos lacanianos, que chegar à fase do espelho, passar pela experiência de nos ver, de nos refletir e nos conceber como outro, ou seja, a identificação primordial (que pelos vistos acontece antes 9

dos dezoito meses) está na base não só da constituição de uma identidade mas é fundamento para atingir a mínima inteligência por parte dos seres que inauguram uma vida de fantasia. Em síntese popular: cumpre estar avisado, saber, saber-se. Cumpre não ser tão burro como para deixar-se estar desprevenidamente ignorante. Outra coisa será constatar "Como é terrível saber, quando o saber de nada serve a quem o possui". Isso é o que também está posto na boca daquele mesmíssimo Tirésias, neste caso no Édipo Rei do célebre Sófocles. Se chegamos a admitir anteriormente que o profeta cego tenha acertado com Narciso, não teremos como negar que seja agora menos ajuizado e certeiro, pois com as palavras em Sófocles acompanha a correspondente demonstração do afirmado. Contudo, não podemos dar marcha atrás nos tempos e nas novéis espertezas, e não podemos dar mais cancha a Tirésias: hoje um indivíduo tem que começar por conhecer-se, saber se é narciso de si ou se é sibila do demo; hoje se estamos doentes preferimos ficar avisados, se o tumor é incurável que o médico conte; e se formos adotados que nos digam a origem. Basta de patranhas, somos adultos e preferimos saber. Para uma certa e atual Europa – essa que por certo teria na Grécia antiga o berço que embalou a cultura ocidental –, para a Europa em crise, doente, com furúnculos cuja malignidade ignora, tem-se tornado uma urgência repentina estar avisada, saber, saber-se. Essa Europa já não é a filha do rei da Fenícia, raptada por Zeus disfarçado de touro para que a sua ciumenta mulher, Hera, não percebesse. Essa Europa já não é a levada a Creta – ainda que de algum modo os contornos de Creta lhe tenham contribuído para a sua mais recente lucidez. É a Europa que em termos lacanianos atingiu finalmente o estádio do espelho, a 10

Europa que clama pela experiência de se ver, de se refletir e de se identificar, porque agora sim que não se pode furtar a uma identidade comum, agora sim que persegue a mínima inteligência que deve inaugurar a sua vida real. Para que a de fantasia tenha algum futuro. Desconheço se algum dos elementos acima aludidos podem ter a ver, consciente ou inconscientemente, com os motivos deste livro, mas estou convencido de alguma necessidade do livro e de certa oportunidade da sua aparição, à luz do presente quadro do continente e do mundo. Pode-se discutir sobre os valores que aqui se discutem, sobre se ecologia ou paganismo são alicerces certos, novos ou antigos, acerca de cosmopolitismo ou tradição depredadora, mas em todo o caso é um bom princípio começar a falar para haver diálogo. Tudo está tão enredado no presente, subjugado por leis económicas ao que parece impiedosas, porque nas mãos de poderes financeiros desumanos, que nós os humanos agrupados neste pedaço de terra, nos vamos sentindo obrigados primeiro a olhar e mais tarde a sentar-nos e falar do assunto. Durante estas últimas décadas estivemos a falar como nunca com os do bairro, aldeia, vila, comunidade, pátria, falamos da língua, olhamos os galegos e galegas para a Galiza diante da Espanha, ao lado de Portugal, no coração do universo que fala a nossa língua nas sete partidas dele, e algo parecido deve ter feito cada povo, agrupamento com sentido, que este velho e pequeno continente cansado tem produzido nestes séculos todos, cada agrupamento agrupou-se, tratou de entender-se isolado e desentendido do todo. Nunca se sentiu no todo. E eu como galego mal me tenho sentido desse todo chamado Europa, até me tem parecido mais natural sentir-me do todo hipotético em que a minha alma se integra no mundo ao pisar por exemplo um Brasil. Mas eu, mesmo galego, tenho vindo a saber ultimamente que é 11

nesse todo multidiverso, que fala línguas que não percebo mas que tem a mesma moeda, que é nessa enteléquia mais sentimentalmente estrangeira do que as mais distantes que sim percebo onde se joga o meu pão e a minha saúde, e o mesmo devem estar a concluir franceses, holandeses, húngaros, até gregos. E tal sabedoria não parece já de mitologia. Mas que sabemos realmente nós da Europa? Temos pensado sobre a sua noção, fundamento? Temos algum interesse pelo mesmo conceito? Quem tem algo a dizer da Europa...? Com a passagem dos dias, a ritmo de noticiários e de índices e de taxas de inflação, parece que todos os interrogantes começam a ter impulsivos respondentes. Por enquanto limitados a voltar o pescoço, os olhos, porque à língua faltam ainda palavras. Faltam referências para entender a Europa, navegamos juntos no navio com esse nome, mas conhecemos mal a passagem, temo-nos relacionado pouco, só agora que anunciam icebergs nos damos conta de que seria bom, imprescindível, conversar e explicarmo-nos mutuamente o próprio barco por se acontece o pior. Europa é um dos continentes mais pequenos dos seis do mundo, um dos mais populosos, o berço da cultura ocidental, sim, mas teve permanente instinto para o domínio, para guerras quentes e guerras frias, mexendo sempre na política e na economia dos outros, e só agora que está no seu declínio acorda nos seus habitantes uma vontade de compreensão conjunta. Confesso que as sensações de falta de atenção anterior ao tema foram as instigadoras dos primeiros pensamentos que me passaram na cabeça à leitura do trabalho base deste livro, a impressão de que eu tinha voltado pouco essa cabeça para o espaço que ele marcava, e que era bom aprender algo sobre o assunto, olhar para essa outra 12

dimensão macro, porque também assim entenderia o micro. Confesso ainda que o tal trabalho me causou um revigorar alegórico precisamente do que vai dentro daquela cabeça. E confesso, por último, que as linhas de força por onde conduz o seu discurso Luís Magarinhos me resultaram e me resultam extraordinariamente sedutoras. O seu O Eterno Retorno da Europa - Aspectos comparados da cultura e identidade europeia, ao abordar os valores fundamentais que identificam comparativamente a cultura deste continente a respeito doutras áreas do planeta, não deveria deixar indiferente. Olhar para Europa é algo que temos praticado nada e que no entanto vale bem a pena. A presente crise económica desse todo está forçando como nunca o olhar para ele, de maneira que livros como este começam a ter uma pertinência inesperada, e espero que quem o segura nas mãos saiba apreciar. Quanto ao autor, devo ainda explicar que bati um dia com o seu nome nalgum cruzamento incerto e antigo dos caminhos que têm a ver com a cultura, e com a lista de correio da Associaçom Galega da Língua, sem no entanto saber durante um tempo mais dele. Foi em 2007 que alguém me sugeriu especificamente encontrá-lo em São Paulo passando-me o seu email. A minha passagem, em Junho, seria a mais rápida que faria nunca no Brasil, na tarefa de organizar uma mesa com José Miguel Wisnik, Luiz Ruffato, Denise Lorch, Oswaldo Ceschin e Yara Frateschi Vieira, no Memorial do Imigrante, a acompanhar a exposição O Sorriso de Daniel, promovida pelo Arquivo da Emigração Galega e com o objetivo de apresentar a Galiza ao mundo. Apesar de Luís Magarinhos ser um desconhecido para mim, e talvez mais inclinado a encontrar galegos lá por causa dos motivos que desta vez me levavam, aceitei a sugestão e tratei de marcar um encontro para um café com esse desconhecido, até porque o trânsito não era tão 13

veloz que não permitisse alguma vida social. Mas tal coincidência não chegou a efetivar-se, e nem recordo bem os motivos, mas de certeza teria a ver com a vida e os tempos finalmente desarmónicos de ambos – e ambos seguramente esquecemos sem dar maior importância. Mas o seu nome voltou de novo a aparecer-me, desta vez na lista de alunos do Master em Estudos Teóricos e Comparados da Literatura e da Cultura da USC, em 2009, com ele já retornado do Brasil, e aí não houve como faltar ao encontro. A situação era diferente, pois não se tratava para nada da vida social, e Luís Magarinhos realizou para o meu seminário sobre 'Arquitetura Literária - Poética do Espaço e Construção Ficcional' um trabalho, que já se publicou no último número que dirigi da Agália, chamado "Concretismos na literatura e na arquitetura brasileira" (nº 99/100, pp. 183-197). Nem a conjuntura nem mesmo o seu estudo alimentou cumplicidades de maiores, neste segundo e real e mais prolongado contacto, mas haveria um terceiro. Foi a partir de Setembro de 2010. Nessa altura participei no júri que avaliou o Trabalho de Fim de Master de Luís Magarinhos, uma dissertação sobre os "Aspectos comparados da cultura e identidade europeias", transparente fundamento do presente livro. A partir desse ensaio passamos a ter algum trato, pois ele chegou a registar o tema para redigir sobre ele uma tese de doutoramento, deque comecei administrativamente a figurar como orientador. O resto da história de convívio fica também cristalino: se o autor não tirou daquilo uma utilidade académica –algo que por ventura ainda poderá suceder–, tirou um volume como o que se segue. E esta explicação pretende sê-lo mais dos motivos que a ambos nos reúnem nele do que do próprio livro, quer dizer, justificação do pedido do 14

autor para umas palavras minhas e aceitação diligente por meu lado, na consciência de haver um centenar ou mais de preferíveis prologuistas, que teriam muito mais e melhor a dizer sobre o tema. O mais sensato que me resta por dizer é convidar-vos a entrar neste quarto de talvez oportunos espelhos, instrumentos tão relacionados com a revelação da verdade, e com a pureza. Já que, segundo afirma a tradição taoísta nos Anais dos T'ang, os humanos utilizam o bronze, utilizam a antiguidade, utilizam o próprio homem como espelho –porque muita coisa pode ser espelho, e usar de espelho é uma das formas de adivinhação mais antigas, é um dos modos de interrogação dos espíritos mais eficaz–, utilizai vós agora este livro como bronze polido, como água adormecida, para no final ficardes mais avisados. Saber. Saber-vos. Mesmo que em certas noites de sonhar disperso vos aconteça a descoberta da própria nudez, estou seguro que nunca será para o horror, como temem os versos de Mallarmé, porque neste quadro com manchas de tinta a água negra não tem nada de frio ou gelado, antes tem efervescências para a discussão intelectual e até popular sobre donde vimos e aonde vamos, tanta gente diversa no mesmo barco.

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Introdução

Resulta complexo concentrar num livro destas características todos os aspectos dum tema tão abrangente como o que nos atinge. O objetivo é apenas mostrar possíveis linhas de fuga que nos ajudem a entender melhor determinadas características particulares disso que chamamos ‘Europa.’ Ou, pelo menos, perspectivas diferentes sobre a realidade europeia como objeto de estudo em si mesmo. Tentaremos nesse sentido ir mais além da dialéctica recorrente entre os Estados - nação - ou nações sem Estado - e a Europa como um todo, pelo que focaremos as energias no estudo da Europa como entidade autónoma. Os objetivos marcados pretendem mostrar aspectos centrais da identidade e da cultura europeia no momento atual e dum ponto de vista histórico. Para isso, faremos também exercícios de comparatismo cultural com outras áreas do planeta como a América ou a Ásia. Assim, os principais objetivos deste trabalho são: • Analisar a cultura europeia e ver que tipo de valores e 17

parâmetros a identificam e diferenciam de outras áreas e comunidades culturais no planeta, no oriente e no ocidente. • Mostrar dum ponto de vista sócio-histórico, ideológico e simbólico alguns dos mitos fundacionais europeus. • Visualizar a estratégia em curso de construção duma ‘Identidade Nacional Europeia’ levada a termo pelas instituições da União Europeia, tendo em conta, sobretudo, os postulados teóricos de Anne-Marie Thiesse. • Valorizar a importância de determinadas linhas de pensamento ligadas à ecologia, o paganismo e o não-especísmo na construção e sustentação duma determinada ideia da Europa.

É claro que a ambição destes objetivos supera largamente os limites dum livro destas características, mas a ideia não é fazer uma análise totalmente pormenorizada e descritiva desses aspectos senão mostrar, sobretudo, uma focagem nova e fresca nas margens do que podem ser os postulados ‘politicamente corretos’ e que permita abrir caminhos para trabalhos futuros mais aprofundados. Mas antes de entrarmos em conteúdos concretos é pertinente mostrar algumas reflexões epistemológicas que acho importante de serem colocadas aqui. Imre Lakatos (1999) define a evolução da ciência dentro do que ele denomina programas de investigação dentro nos quais se desenvolvem uma série de teorias e conceitos progressivos. Um programa de investigação consiste numa série de teorias em desenvolvimento, essas teorias giram em torno de um «núcleo firme» que se define por ser a cosmovisão ou ideologia inicial que sustenta 18

o desenvolvimento posterior do programa. A «heurística» - interpretação - do programa proporciona meios para resolver esses problemas, e a sua «cintura protetora» de hipóteses auxiliares que protegem o núcleo firme. Lakatos (1999) diz que o conhecimento é produzido pela própria metodologia dos programas de pesquisa e portando condicionado a esta. Paul Feyerabend (1993) nos fala da subjetividade da ciência ao afirmar que «uma comunidade utilizará a ciência e os cientistas de um modo que essencialmente concorde com os seus valores e os seus fins, e corrigirá as instituições cientificas que alberga a fim de as adaptar melhor aos seus próprios propósitos.» Partindo desta evidente e genérica reflexão metodológica que ressalta as dificuldades que existem para atingir uma certa objetividade descritiva num trabalho inscrito no campo das ciências sociais e humanas, destacamos que o núcleo ideológico e a razão de ser deste trabalho é a valorização do projeto de unidade europeia e o destaque das potencialidades da Europa como projeto unitário nos planos cultural, social e político, tendo em conta a desvalorização crescente que o projeto europeu vem sofrendo. Eduardo Lourenço (2001) destaca que os europeus têm sido não só críticos e autocríticos por natureza, mas também céticos a respeito do seu próprio projeto de unidade quando diz que a «construção da Europa só pela irresistível pressão das forças econômicas e da lógica planetária do poder financeiro, não é projeto que entusiasme ninguém.» Uma utopia europeia «só merece ser vivida como vitória da Europa sobre a Europa, da ficção de si mesma que, consciente ou inconscientemente, tenha condicionado seu destino, contra a sua realidade.» 19

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Em que somos diferentes os europeus?

O pensador português Eduardo Lourenço (2001) afirma que uma cultura sem princípios é uma cultura morta em confronto com outras que respeitam os seus valores, mesmo se estes nos parecem monstruosos e inaceitáveis. Neste sentido, a cultura europeia é uma cultura morta na mesma medida em que o projeto de construção europeu não se sustenta num mínimo de convicções fundadoras. Podemos, no entanto, «imaginar uma Europa sem nenhum modelo nem sistema de valores, salvo o já existente, tentador polo seu carácter pragmático e na aparência aberto e livre, mas na realidade determinado pola potência duma economia e uma política carentes de qualquer finalidade ética ou social.» (Lourenço 2001) Na segunda metade do século XVII, e sobretudo nos séculos XVIII e XIX, as velhas culturas europeias estruturaram-se a propósito dum modelo imperial que era simultaneamente religioso, cultural, científico e civilizacional; exatamente como é hoje o modelo americano. Salvo que, neste último, o fator económico e militar é mais importante que as variáveis de ordem cultural. Num certo 21

sentido, podemos dizer que a Europa foi vítima do seu próprio sucesso ao ter-se tornado hoje um tipo de nova terra prometida ou espaço de refúgio para as vítimas reais ou potenciais do mercado mundial do que, ao mesmo tempo, constitui um enclave central: lembremos que tanto o capitalismo quanto as sucessivas revoluções industriais tiveram sua origem na Europa. De todos os agentes presentes hoje no contexto geopolítico global (EEUU, China, Índia, Brasil, etc), a chamada ‘Europa’ provavelmente seja a entidade menos definida e mais difusa, não só porque seja assim historicamente, mas também pela evidência de que nenhum dos outros agentes na cena internacional tem interesse em que o seja. Cinquenta anos de construção europeia não fizeram da Europa um mito definido na consciência do cidadão médio da União Europeia, nem existem ainda hoje uns valores europeus que possam ser claramente reconhecíveis pela cidadania, sendo a carência de instrumentos geradores de opinião e ‘sentido comum’ a nível europeu uma das razões fundamentais desta debilidade. Falta uma política de comunicação europeia que supere as limitações dos atuais Estados-nação. Nesse sentido, pergunta-se Bauman (2006)quantos europeus estariam hoje dispostos a sacrificarem as suas vidas por Durão Barroso, Catherine Ashton ou Herman Van Rompuy? Mesmo assim, diversos autores identificam uma série de valores culturais e sociais que podemos definir como intrinsecamente europeus. Tzvetan Todorov (2005), de origem búlgara e com uma biografia pessoal ligada às fronteiras externas da Europa, oferece uma proposta que ele identifica como exclusiva da Europa e dos europeus e europeias. 22

A «racionalidade», e por extensão a «racionalidade crítica», abre a lista dos valores intrinsecamente europeus indicados por Todorov (2005). Para ele, este é mesmo um valor e não uma característica da realidade quotidiana europeia. Segundo os critérios estabelecidos pelo valor da racionalidade o passado e presente europeus são conotados por atos de absoluta irracionalidade pois a maior parte do que tem acontecido na história europeia não passaria hoje no teste da racionalidade. Nesse sentido, afirma Todorov (2005) que «estando a Europa realmente existente sempre um pouco atrás da Europa que a Europa ansiava ser, essa crença tornava e torna os europeus inerentemente críticos, autocríticos» e até «masoquistas» (Lourenço 2001). Poderíamos assim afirmar que a crítica e a discordância, em vez da autoconfiança e autossuficiência, mostram ser os conteúdos de maior permanência dentro da «racionalidade» europeia. Nesta mesma linha de pensamento, Edgar Morin (2010) nos diz que a alma verdadeira da Europa é a problematização, a existência de uma mente crítica e autocrítica que vem do Renascimento, de Montaigne. A alma da Europa é assim problematizar, interrogar e não ficar nunca dormida. Para Morin (2010), toda «a história do pensamento europeu é uma busca da verdade, uma pesquisa ininterrupta da verdade.» Para ele, o espírito da Europa podemos encontrá-lo a partir do século XVIII, nas mulheres, na música ou na poesia, porque o mundo varonil concentrava-se na guerra, na economia e na conquista do poder material. Morin pensa que esta ideia da Europa se vê a partir desse século XVIII, em poetas como Shelley, Novalis, Hölderlin, Rimbaud ou músicos como Beethoven, Mozart ou Schuman. 23

Para Morin (2010), a verdadeira alma europeia encontra-se neste momento adormecida, e para revitalizá-la «precisa-se um pouco mais de feminidade, de poesia, um pouco mais de arte. Há que ter entusiasmo, razões para reiniciar uma esperança colectiva nos jovens, nas mulheres, nos homens. Há um monte de boas vontades, mas a boa vontade sem esperança fica desocupada. E essa desocupação da boa vontade gera desespero ante a barbárie.» A «justiça» é outro dos valores europeus destacados por Todorov (2005) e cuja natureza é, no caso europeu, assimilada polo acicate das distintas experiências traumáticas. Se a «racionalidade» mostra o seu verdadeiro poder quando se volta contra os vereditos da razão aleatoriamente pronunciados, a «justiça» revela sua verdadeira força «quando a sociedade da época é acusada de parcialidade, iniquidade, favoritismo, corrupção ou preconceito.» (Todorov 2005) Parafraseando Bauman (2006) o mais próximo que se pode chegar duma sociedade «justa» é dizer que a sociedade é justa quando não acredita que o é suficientemente, e portanto está determinada a perseguir esse objetivo com mais determinação. Tornar a justiça como valor em si, não utilitário, colocaria todos os outros valores num papel subsidiário e instrumental. A «justiça prepara o habitat humano para um convívio pacífico e fraterno. Abre a mesa para o diálogo e as negociações orientadas pelo desejo de acordo. Podemos dizer que a justiça é o mais socializador dos valores, já que pode inicialmente estimular confrontos, mas afinal unifica e cura as divisões.» (Bauman 2006) 24

Outro dos valores europeus destacados por Todorov é a «democracia», já que esta pode adequar-se a muitas maneiras de administrar e organizar os problemas compartilhados pelos seres humanos. Problemas que costumam ser diversos e por vezes profundamente contraditórios entre si. Mas, numa sociedade democrática, são as instituições de representação popular as que unem todos\ as os\as que dela fazem parte. Cornelius Castoriadis (1997) singularizou este tipo de sociedade como «sociedade autónoma» em oposição às «sociedades heterônomas» que incorporam a ideia de que as instituições não foram criadas por seres humanos, pelo menos não por aqueles que estão vivos atualmente, e portanto, não podem ser contestadas nem sequer questionadas pola cidadania. Nesse sentido, Nisbett (2003) reflete sobre a essência duma sociedade autónoma com consciência de que todas as suas formas e meios se baseiam somente na vontade de seus membros vivos, o que para ele teria as suas origens no mundo grego europeu: «The Greeks, more than any other ancient peoples, and in fact more than most people on the planet today, had a remarkable sense of personal Agency - the sense that they were in change of their own lives and free to act as they chose -. One definition of happiness for the Greeks was that is consisted of being able to exercise their powers in pursuit of excellence in a life free from constraints.» (Nisbett 2003)

Podemos entender que democracia significaria aqui que a tarefa do cidadão e da cidadã nunca está completa, que ela existe em função do interesse e obstinação deles mesmos e que quando esse interesse é posto de lado a democracia expira, de modo que não pode haver uma democracia, uma sociedade autónoma, sem cidadãos e cidadãs autónomos; ou seja, dotados de liberdade e respon25

sabilidade individual pelo uso dos direitos derivados da democracia. O pensador franco-espanhol Jorge Semprúm (2010) concorda em parte com Todorov ao assinalar que «a alma da Europa é a democracia ou a ‘razão democrática’.» Para ele, esta alma é composta por elementos da razão crítica grega, elementos judaicoristãos e árabes. Porém, a democracia é neste caso o centro de todos estes valores tão diversos entre si. Para Semprúm (2010) essa deve ser a base da cultura europeia e considera errado, e mesmo contraproducente, basear a alma da Europa nos valores cristãos, já que não é claro que o cristianismo e a Europa estivessem sobrepostos como conceitos numa época determinada da história. O autor parafraseia a definição dada pela Comissão Europeia quando diz que «a única fronteira da Europa deve ser a fronteira democrática.» Outro dos valores centrais na conformação da identidade europeia é a «liberdade» que, embora ligada à democracia e assentada na chamada sociedade autónoma, é fundamental para entendermos uma ideia democrática da Europa. Nesse sentido, democracia e liberdade são valores que se constroem e complementam um ao outro. Todorov (2005) postula que a liberdade do indivíduo permite-lhe superar ou mudar a influência das condições externas a ele como sujeito e, ao mesmo tempo, cada pessoa continua sendo, até o dia da sua morte, um ser inacabado e perceptível de mudança para melhor ou pior. Esta é, por exemplo, uma das razões pelas quais a União Europeia exige que todos os seus membros renunciem à pena de morte pois esta nega ao criminoso a possibilidade de mudar, e portanto exclui o condenado a morte do género humano. A pena de morte é nesse sentido uma outra for26

ma de crime. Esta questão é abordada por Rifkin (2005), fazendo uma comparação entre a cultura europeia e a norte-americana. O autor estadunidense vem dizendo que a atitude europeia totalmente contrária à pena de morte se associa inextricavelmente à ideia de universalismo e à expansão empática e universal dos direitos humanos, que estariam sempre por cima das decisões de qualquer Estado no direito a decidir sobre a vida e a morte das pessoas. Rifkin (2005) contrasta isto com a atitude estadunidense de apoio maioritário à pena de morte. Atitude que para ele responde à tradição cultural fronteiriça da justiça rápida e iminente do Antigo Testamento Cristão junto com a visão apocalíptica norte-americana do mundo dual e maniqueísta divido entre bons e maus. É por isso que o sistema penal dos Estados Unidos se sustenta ainda hoje na ideia da retribuição ou recompensa do dano causado à vítima. O «universalismo» é para Lourenço (2001) outro dos valores fundamentais da cultura e do modo de pensar europeu. Nesse sentido, «se alguma coisa parece distinguir, a nível simbólico, a vocação histórica dos europeus é a sua convicção, ou seu desejo, de não ter outra identidade que a da condição humana em geral, isto é, um destino não só empiricamente planetário como em parte foi e é, mas ontologicamente universalista. Se como nações europeias, cada uma por si, são universalidade simbólica e virtual, uma Europa-nação ou nação-Europa ganharia muito em termos de existência, realizando-se sob uma particularidade de novo género.» (Lourenço 2001). Lourenço (2001) entende assim os europeus como sujeitos naturais de um olhar espontaneamente universal. Mas, na verdade, é «o questionamento da pretensão ingenuamente universalista do olhar europeu que assegurou 27

durante três séculos à Europa sua boa consciência civilizadora. Esta observação tem, porém, um avesso no secular reflexo masoquista da cultura europeia.» A única que, para ele, se pode permitir o luxo da autoflagelação. Para o pensador português, nem o antiquíssimo enraizamento histórico, nem as sucessivas metamorfoses das Europas sucessivas, explicitam a profunda pulsão da cultura europeia como eterno retorno de si mesma. Goethe chamou a cultura europeia de prometeica. Prometeu roubou o fogo dos Deuses e assim os traiu, passando seu segredo para os humanos. Arrancando das mãos dos deuses o fogo, é procurado avidamente pela família humana e triunfalmente aceso e mantido por todos os que tivessem sucesso em sua busca. Mas provavelmente isso nunca teria acontecido sem a astúcia, a arrogância e a ousadia de Prometeu. São esses factos cruciais da historia que tendem a ser ocultos hoje em dia, e sua lembrança é muitas vezes atacada em nome do auto-complexo ou da versão atual do bom gosto e da ‘correção política’, que estima imersa no pecado do ‘Eurocentrismo’ qualquer alabança ou reconhecimento em positivo do papel jogado pela Europa na história do mundo. «Trata-se de uma acusação, que se deve sobretudo à antiga tendência europeia ao solilóquio, quando o recomendado era o diálogo.» (Lourenço 2001) A Europa descobriu todas as terras do planeta, mas nenhuma delas jamais descobriu a Europa. Ela dominou sucessivamente todos os continentes, mas nunca foi dominada por nenhum deles. E ela inventou uma civilização que o resto do mundo tentou imitar ou foi obrigado pela força a imitar, mas o processo inverso nunca aconteceu pelo menos até agora -. Todos esses são factos duros duma 28

história que nos trouxe, juntamente com o resto do planeta, ao lugar que todos nós compartilhamos hoje em dia. Podemos assim definir a Europa pela sua «função globalizante.» A Europa pode ter sido, de modo consistente e por longo tempo, um recanto atipicamente arriscado do planeta. Nesse sentido, não poderíamos imaginar a história do mundo sem a história da Europa. Para Bauman (2006), foi a combinação dos valores europeus, de que vimos falando, o que lançou a Europa na sua aventura «contínua, inacabada e interminável» e a sua mistura deu lugar, no caso europeu, a «um composto instável que dificilmente se solidificará um dia, sempre pronto a interagir com outras substâncias, absorvê-las ou assimilá-las.» (Bauman 2006) A Europa tem forjado seus valores e a sua forma de estar no mundo do modo mais difícil e pagando um preço muito alto para superar antagonismos, resolver os conflitos e juntar uma ampla diversidade de culturas não mais vistas como fator de irritação temporária, mas como um modus vivendi permanente. E pode ser que seja isto o que o resto do mundo precisa aprender com mais urgência da Europa.

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Entre Oriente e Ocidente

Geograficamente é que claro a Europa se situa para o leste da América, para o oeste da Ásia e para o norte da África. Mas este pormenor, que pode parecer trivial, nos ajuda a entender aspectos fundamentais da cultura e do modo de pensar europeu. Para o psicólogo Richard Nisbett (2003), a mente ocidental vê o mundo através dos objetos isolados enquanto a mente oriental vê os relacionamentos que existem num contexto geral. Os ocidentais dão enfase ao individuo enquanto os orientais destacam o grupo e as redes de ligação e relacionamento. No Oriente, a mente é condicionada para aceitar o mundo repleto de contradições, enquanto os ocidentais, nomeadamente os Americanos (Rifkin 2005), tendem a ver o mundo em termos racionais para agir ou resolver as contradições. Esta contraposição entre o coletivismo espiritual e heterônomo das sociedades orientais e o individualismo e a natureza autónoma das ocidentais é explicada por Nisbett (2003) quando diz: «The collective or interdependent nature of Asian society is consistent with Asians broad contextual view of the world and their belief that events are highly complex and determined by many factors. The individualistic or independent nature of Western society seems 31

consistent with Western focus on particular objects in isolation from their context and with Westerners belief that they can know the rules governing objects and therefore can control the objects behavior.» (Nisbett 2003)

As tradições religioso filosóficas orientais como o Taoismo, o Confucionismo ou o Budismo focam a sua atenção na compreensão da globalidade das coisas, sendo a atenção aos relacionamentos com os outros o que torna os asiáticos mais sensíveis aos sentimentos alheios; pois enquanto os pais de família americanos (Rifkin 2005) preparam os seus filhos «para pensar em termos de expropriação, a quisição e relações proprietárias - a mentalidade do “meus versus teu”-os pais asiáticos passam muito mais tempo com os filhos concentrando-se em sentimentos e nas relações sociais.» Para explicar esta profunda diferença cultural, Nisbett (2003) define uma série de características que contrapõe as sociedades ocidentais frente às orientais: • Valorização da ação individual e da liberdade frente à ação colectiva. • Desejo de distinção individual frente à mistura harmoniosa com o grupo. • Preferência pelo igualitarismo e o status alcançado frente à aceitação da hierarquia e do status atribuído. • A crença de que as regras que regem o comportamento adequado devem ser universais frente à preferência por abordagens particulares que levem em conta o contexto e a natureza das relações envolvidas.

O antropologista Edward Hall (1976) destaca que existem culturas de baixo contexto – as do âmbito anglo-saxão por exemplo - mas que as expectativas sociais se comunicam explicitamente mediante palavras, o que se 32

opõe à interpretação ou ao contexto. Na comunicação de baixo contexto, «a maioria da informação está concedida no código explícito» (Hall 1976) e as pessoas valorizam os factos, os números e a franqueza assim como a individualidade. Fig. 1 – Visão Oriental e Ocidental das relações do indivíduo dentro do grupo e fora do grupo. Fonte: Nisbett (2003)

Pelo contrário, nas culturas de alto contexto como as asiáticas, cada um dos seus membros conhece as regras culturais e as expectativas não precisam ser especificadas. Alto contexto significa que «a maioria da informação se encontra no contexto físico ou na pessoa, enquanto há muito pouca no código transmitido, explicitamente, fazendo parte da mensagem.» (Hall 1976). Com respeito ao contato físico, as pessoas deste tipo de culturas sabem exatamente quando e como tocar com base em um estrito código não verbal comummente entendido e aceitado. 33

A contraposição entre a ideia ocidental de individuo e a ideia oriental de harmonia é ressaltada largamente por Nisbett (2003) quando faz uma associação entre estas duas características e os tipos de música que historicamente têm sido predominantes no Oriente e no Ocidente. Ele associa por exemplo a música monódica ao mundo oriental e destaca a preferência ocidental pela polifonia que permite uma maior expressão do Ego individual na interpretação de melodias diferentes em diálogo. Ainda assim, em muitos géneros musicais europeus proto-medievais como o Madrigal ou posteriormente a Cantata, encontramos uma presença forte da monodia, assim como nas músicas de raiz ou populares da Europa. Existe então um ligação e certa similitude entre as culturas musicais ancestrais da Europa e do Oriente. Se no Ocidente a música se estrutura entorno da melodia, do ritmo e da harmonia, no Oriente, a maior complexidade melódica - lembremos o maior número de tons, semitons e microtons e os intervalos menores entre eles - compensa por vezes a ausência de ritmo e harmonia. Nesse sentido, a maior complexidade na escala musical ajuda a música oriental na sua função transcendental. Na Europa, a polifonia foi a técnica musical predominante a partir da Idade Média tardia e do Renascimento, alcançando posteriormente a sua máxima expressão no contraponto e a improvisação jazzística amplamente desenvolvida no continente americano. O Jazz representaria nesse sentido o extremo mais elaborado da criatividade e liberdade polifónica associada à expressão individual do artista. Podemos ver assim que a mentalidade asiática parece feita para um mundo em rede e globalizado, dado o seu enfoque no pensamento contextual, a inclusividade e 34

a harmonia. E podemos entender que esta é uma grande vantagem das sociedades asiáticas na hora de procurar soluções ‘à europeia’ que possam superar o marco dos atuais estados nacionais. No avesso, Rifkin (2005) vê nos ocidentais americanos a permanência da ideia antropocêntrica da exploração dos objetos e do conjunto das espécies animais não humanas, mais própria da ideologia do Iluminismo utilitarista do séc. XVIII que busca reformular a natureza para se ajustar à imagem do homem. Nesse sentido cabe destacar por exemplo que a primeira constituição estadunidense foi largamente influenciada pelas ideias de Hume. E dentro do paradigma científico e ideológico do Iluminismo Cartesiano, até certo ponto hegemónico ainda hoje nos EEUU, amar o mundo, o planeta, é necrofilia. Neste paradigma, tudo o que não é humano está morto e não tem valor. Hillman & Ventura (1992) assinalam que isto ajuda a «explicar a verdadeira repulsa que certos extremistas de direita sentem pelos ecologistas e pelas questões ecológicas - sentem repulsa pelo amor que temos pelo planeta porque inconscientemente pensam que é necrofilia - .» O pensamento asiático também apresenta suas carências e debilidades toda vez que a falta de espírito crítico e dum distanciamento diante do statu quo e das estruturas e tradições socioculturais dominantes, assim como a inexistência duma diferenciação individual que possa ser suficiente para que cada pessoa possa florescer na sua especifidade, limita muito o desenvolvimento pleno do potencial individual das pessoas que sacrificam suas necessidades individuais peolo bem-estar coletivo. Para Rifkin (2005), nenhuma dessas duas mentalidades extremas se ajusta realmente a um mundo integrado que na era das Novas Tecnologias e Internet requer tanto do individualismo extremo como da máxima integração em rede. 35

Fig. 2 – Aspectos diferenciadores entre os chamados ‘Sonho Americano’ e ‘Sonho Europeu.’

Sonho Americano

Sonho Europeu

Projeto essencialmente individual

Projeto com um discurso essencialmente social

Enraizado na consciência social do estadunidense prómedio de todas as classes sociais

Discurso oficial na busca de uma identidade europeia emanado da elite e de alguns setores intelectuais

A existência de Deus como sustentação da ideia de excepcionalismo

Discurso humanista de raíz laica e/ ou pagã

Ortodoxia protestante

Secularismo

O Estado reduzido ao mínimo para preservar o bem-estar do indivíduo

O Estado como instituição chave para garantir o bem-estar do indivíduo

A busca do bem-estar individual através do esforço pessoal

Os Direitos Humanos universais como bandeira

Essencialmente referido ao sucesso material

Implica-se fundamentalmente no plano dos ideais humanistas

Discurso especista e antropocêntrico

Discurso especista e antropocêntrico

É um projeto nacionalista

É um projeto universalista

Discurso de política externa messiânico

Discurso de política externa dialogante e multilateral

Melting Pot

Multiculturalismo

Predomínio do pensamento moderno Predomínio do pensamento pós-moderno Predomíno da ética do trabalho como forma de alcançar o sucesso material. Viver para trabalhar.

Predomíno da ética do trabalho como uma forma de alcançar uma maior qualidade de vida. Trabalhar para viver.

Governança de tipo hierárquico

Governança processual não hierárquica

Fonte: Dávalos (2007) e elaboração própria.

Nesta análise da identidade cultural dos EEUU, Rifkin (2005) afirma que o chamado ‘Sonho Americano’ representa apenas «as ideias dum momento específico da história europeia congelado e transportado integralmente para as praias americanas no século XVIII, onde continua a animar a experiência norte-americana até os nossos dias.» 36

Assim, este sonho é conformado pela mistura entre um tipo de fundamentalismo teológico protestante baseado na ideia de sacrifício pessoal, auto-controle e individualismo rústico que os próprios europeus dispensaram há muito tempo, e as concepções de um Iluminismo utilitarista também europeu, fundamentado nas teorias de Locke e Hume sobre o direito natural do homem à propriedade privada e à exploração predatória da natureza. Ideias, por sua vez, contestadas por Rousseau e outros, já na Europa daquele momento. Tendo isto em conta, poderíamos dizer que o apelativo ‘Novo Mundo’ é, em certa medida, equívoco, pois a sociedade e o estilo de vida estadunidense não é mais do que uma caricatura extrema, e geograficamente adaptada, de um período concreto do passado da Europa compreendido entre os séculos XVI e XVIII. Pois enquanto certos traços da Europa pós-medieval se vieram desenvolvendo até hoje com impecável e arcaica ortodoxia nos Estados Unidos, os europeus, depois de múltiplas revoluções, confrontos e guerras de magnitude trágica, só tiveram uma opção: a reinvenção permanente. Na opinião de Rifkin (2005), a Europa situa-se num ponto intermédio entre o individualismo extremo dos EEUU e o coletivismo extremo da Ásia. Para ele, a sensibilidade europeia abre espaço tanto para o espírito individual como para a responsabilidade coletiva.

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Europa como nação: a construção duma identidade nacional europeia

Nos últimos dous séculos o conceito de nação tem sido muito sucedido em todos os recantos do planeta. A ideia, surgida na Europa, tem sido exportada para o resto do mundo e adotada por muitos dos seus compradores com grande entusiasmo. Vejamos senão o exemplo dos Estados Unidos e outros. A União Europeia não é uma federação como o Brasil ou os Estados Unidos, nem é uma mera organização de cooperação entre governos como a ONU. Possui de fato um caráter político único e vanguardista. Os países que pertencem à UE (os seus Estados membros) continuam a ser estados e nações soberanas e independentes, mas congregaram as suas soberanias em algumas áreas para ganharem uma força e uma influência no mundo que não poderiam obter isoladamente. Congregação de soberanias significa, na prática, que os estados membros da UE delegam alguns dos seus poderes nas instituições comuns que criaram, de modo a assegurar que os assuntos de interesse comum possam ser decididos democraticamente ao nível europeu. Quer isto dizer que a UE é um projeto político que visa possuir um 39

estatuto de ‘nação’? Dispõe a UE de condições para ser considerada tal cousa? Anne Maria Thiesse (2000, 2008) desmitifica o conceito ao sinalar que a nação (e o Estado-nação) apesar de ter se tornado um padrão universal em todo o mundo em menos de três séculos (a partir sobretudo dos S. XIX e XX) tem sido em grande parte uma construção cujos argumentos retóricos são, em certa medida, arbitrários. Thiesse (2008) identifica os parâmetros modernos na construção das identidades nacionais como uma mistura dos conceitos clássicos de nação política ‘a la francesa’ surgida da Revolução de 1789 onde a nação é a expressão duma escolha e duma adesão política. Ou na sua versão romântico essencialista alemã da nação se conformando a partir duma comunidade de destino que compartilha traços étnicos e culturais unificadores. Porém, as nações modernas melhor sucedidas fazem sempre uso das duas metodologias na sua construção nacional. Qualquer nação tem assim hoje ao mesmo tempo um componente político -universal e abstrato- e cultural -particular e concreto-, começando pela própria França que nas atuais leis de imigração exige aos estrangeiros «não um bom conhecimento da constituição republicana mas da língua francesa.» (Thiesse 2008) Podemos assim dizer que as ‘identidades nacionais’ atuais são o resultado dum gigantesco trabalho de construção nacional feito por intelectuais, artistas, estudiosos, escritores, etc, que nos últimos dous séculos trabalharam arduamente para construir suas culturas nacionais. Mas o processo tende a ser similar e a repetirse em cada um dos casos seguindo a metodologia que 40

Thiesse (2008) explicita: «na verdade, quando examinamos as identidades nacionais na Europa construídas ao longo do dous últimos séculos, podemos ver que elas são apenas variantes dum modelo comum estruturado» entorno das seguintes características: • Uns antepassados fundadores. • Uma história de séculos, contínua, que estabelece a ligação entre as origens e o presente. • Heróis que são exemplos de civismo e moralidade. • Normalmente uma língua específica. • Obras culturais emblemáticas (literatura, pintura, música, etc). • Monumentos históricos e lugares de memória. • Tradições populares. • Paisagens emblemáticas. • Uma gastronomia particular. • A mentalidade diferenciada. • Um tipo de economia específica. • Sucessos desportivos.

E estes elementos (e outros) são frequentemente usados para representar a nação em cerimônias oficiais, na iconografia dos bilhetes, moedas, selos ou nos guias turísticos. Os construtores das culturas nacionais não deixaram de observar-se e imitar-se entre eles. De intercambiarem entre si ideias, métodos e princípios, traduzindo livros e imitando obras artísticas. Orvar Löfgren (1989) afirma que «toda identidade nacional é particular, mas constitui uma variante de um modelo geral.» A utilização da literatura e dos ícones literários no processo de construção das culturas nacionais europeias tem sido fundamental tal como destaca Lourenço (2001). 41

Para ele, a música ou a arte tem jogado um papel secundário nesta tarefa, o que se poderá dever à tradição humanística europeia baseada no «valor do texto e da linguagem para manifestar e buscar a consolação da insatisfação estrutural do destino europeu». Também Antón Figueroa (2001) coloca em destaque a literatura no seu papel pragmático ao serviço duma determinada doxa identitária: «As funcións nacionais concretas da literatura son múltiples, dependendo, por unha parte, dos elementos literarios utilizados (temas, formas, símbolos e representacións, mitos, lingua, prestíxio e outros) e por outra parte, do momento en que se empregan (fundacionais, de afianzamento, de recuperación, etc) e da función precisa que realizan.» (Figueroa 2001)

Figueroa (2001) ressalta que a literatura tem representado historicamente um papel central na construção das identidades devido à permanência dos textos ao longo do tempo, o seu carácter estável e a sua capacidade para difundir ideias após a invenção da imprensa e a sua mecanização durante a Revolução Industrial, que por sua vez tem sido coincidente com o surgimento das nações modernas. Porém, na época atual, os novos meios de informação estão substituindo e secundarizando o role da literatura como instrumento pragmático ao serviço das culturas nacionais. É por isso que Hall (2001) e Corrêa (2004) defendem que a existência de comunidades virtuais na Internet é uma maneira de gerar identidades nos indivíduos participantes e uma das consequências possíveis da influência da globalização sobre as identidades culturais: «as identidades nacionais estão em declínio, mas novas identidades híbridas tomam seu lugar.» 42

Para Corrêa (2004), nas comunidades virtuais (cuja principal peculiaridade é o facto de surgirem de forma espontânea), quando se estabelecem agrupamentos sociais com base em afinidades, o indivíduo não é obrigado a integrar determinada comunidade pois a motivação é individual da escolha subjetiva. Essa possibilidade de optar livremente por traços de identificação é o que diferencia as identidades virtuais do modelo tradicional de atribuição de identidades culturais em que todo um povo era obrigado a aderir a determinados símbolos nacionais, como hino e bandeira, e a manter vínculos a lugares, datas comemorativas, histórias e tradições específicas: «Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicas e parecem “flutuar livremente”. Somos confrontados por uma gama de diferentes identidades, dentre as quais parece possível fazer uma escolha.» (Hall 2001)

Duma perspectiva sóciocrítica, Bourdieu (1998) assinala que os conceitos de identidade cultural e de nação funcionam como recursos que visam manter o controle e reprimir as diferenças sociais, culturais, educacionais, económicas e políticas de uma população. Há uma tentativa de padronização e homogeneização de um povo, disseminando uma ideia de união e de coesão que ignora qualquer forma de diferença e que, portanto, não representa o quotidiano das pessoas que vivem no mesmo território: «...as lutas a respeito da identidade étnica ou regional, quer dizer, a respeito de propriedades (estigmas ou emblemas) ligadas à origem através do lugar de origem e dos sinais duradoiros que lhes são correlativos, como o sotaque, são um caso particular das lutas das classificações, lutas pelo monopólio de fazer ver e fazer crer, de dar 43

a conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definição legítima das divisões do mundo social e, por este meio, de fazer e desfazer os grupos.» (Bourdieu 1998)

Partindo da base teórica que explica as metologias que os diferentes Estados-nação vêm seguindo nos dois últimos séculos para constituir as suas Identidades Nacionais, tentaremos agora aplicar este marco conceitual ao projeto em curso da União Europeia. A ideia duma Europa unida surgiu da vontade de acabar definitivamente com as guerras e os derramamentos de sangue no continente europeu. Nos primeiros estágios, a União Europeia foi apenas um clube seleto sustentado em alicerces económicos cujo objetivo era estabelecer um mercado comum europeu a partir do Tratado de Roma de 1957. Mas a UE de hoje, formada por 27 estados - o sucesso do clube tem sido absoluto - e mais de 500 milhões de habitantes é uma realidade inequívoca que o processo acelerado de globalização das últimas décadas tem projetado não mais como utopia mas como necessidade imperiosa. Em palavras de Thiesse (2008), a Europa atual «já não se define por oposição a outra comunidade político-económica [o antigo bloco soviético] senão que se poderia dizer que o seu único problema é que a eliminação das obrigações que pesavam sobre o continente obriga os europeus a encontrarem com urgência, e pela primeira vez na sua história, as razões de fundar uma comunidade de interesses e destino.» Como construimos então uma comunidade de destino baixo o guarda-chuvas europeu, tendo em conta a diversidade de línguas, culturas e imaginários? É possível desenvolver na UE o mesmo modelo que foi utilizado para a a criação das identidades nacionais europeias a partir do século XVIII? A tarefa parece titânica, e pôr de acordo a 500 44

milhões de cidadãos entorno duma ideia mais ou menos consensual da Europa resulta extremamente complexo. Certamente, estas coisas fazem-se de acima para baixo, mas mesmo assim a complexidade merece atenção pormenorizada. Vejamos em primeiro lugar o exemplo ‘dos antepassados fundadores.’ Quem seriam então os primeiros europeus? Os gregos? Os romanos? Os celtas? Os vikings? Os povos eslavos, árabes? É evidente que todos esses povos históricos e míticos poderiam ser considerados em certa medida fundadores da Europa dependendo apenas do interesse ou da zona geográfica em que se encontre quem faça a escolha. Nesse sentido, é mesmo paradoxal que a maior exposição realizada até o momento na Europa sobre a Civilização Celta (2.200 obras de 200 museus e 24 países) não tenha sido organizada na Irlanda, nem na Escócia, nem na França das origens gaulesas, muito menos na Galiza dos celtistas e anti-celtistas, mas no Palazzo Grassi de Veneza em 2001. A macro exposição italiana chamavase curiosamente: ‘The Celts: The Origins of Europe’. O exemplo dual italiano resulta paradigmático para entender a complexidade da tarefa. No norte, dos folcloristas piemonteses os partidos da extrema-direita como a Liga Norte de Umberto Bossi, inventor da identidade nacional da Padânia, reivindicam os antepassados celtas fundadores da ‘nação.’ No recanto centro e sul do país são reclamadas as raízes etruscas e gregas. Se dentro dum estado mais ou menos homogéneo como a Itália é difícil pôr de acordo as suas gentes, imaginemos o que se pode passar a nível da Europa. Descendemos então as europeias e os europeus dos celtas 45

ou dos gregos? Lourenço (2001) diz que na verdade somos filhos naturais dos bárbaros e da sua intrínseca diversidade. Duma perspectiva mediéval o Sacro Império Romano Germânico e Carlo Magno são também mitos fundamentais na articulação histórica duma Europa unida desde o prisma do catolicismo. Em qualquer caso, resulta muito complexo articular uma ‘história europeia contínua e linear’ que possa ligar o passado com o presente. Os antepassados com os seus descendentes modernos. Uma compreensão da história europeia sob o paradigma da evolução na continuidade é para Lourenço (2001) pura ilusão: «A nossa história de europeus não é uma história de avatares políticos que se encaixam uns com outros como bonecas, mas uma perpétua construção-desconstrução e reciclagem permanente de acordo com o signo dos tempos, porém imersos mum mundo de nostalgia antiga suscitada pela consciência bárbara de nós mesmos que nos inventou europeus.» Mesmo com as dificuldades inerentes à sua aplicação ao ‘Objeto Político não Identificado’ que representa a União Europeia, o paradigma comum para a construção das identidades nacionais, reproduzido com sucesso em numerosas ocasiões e amplamente exportado fora da Europa, parece uma solução tentadora também para o projeto da Europa unida. De facto, actualmente estão-se realizando numerosas operações para tentar realçar o valor de uma cultura comum dos europeus fundamentada num passado comum: as tentativas para escrever uma história da Europa, para definir os lugares comuns europeus, as cidades de cultura europeia, etc. Mas abundam os obstáculos. Em primeiro lugar: 46

como europeizarmos o que se constituiu num marco nacional? Como chegar, por exemplo, a conceber uma história comum europeia quando toda a nossa percepção do passado está profundamente inscrita nos marcos nacionais? Isto fica clarificado por exemplo nos bilhetes e moedas de Euro que se ilustram com elementos arquitetónicos que buscam uma identificação pan-europeia mas que na realidade são percebidos pela cidadania ainda dentro de parâmetros nacionais. A União Europeia cria normas comunitárias, permite a livre circulação de pessoas e bens no seu território, emite uma moeda e dispõe de órgãos de poder executivo e legislativo, mas falta-lhe construir tudo aquilo que lhe é atribuído a uma nação: uma identidade coletiva, a ligação a um território comum e o ideal partilhado e os valores da fraternidade e da solidariedade entre seus cidadãos e cidadãs. O das matrículas dos carros ou criação do ‘Museu da Europa’ em Bruxelas são exemplos paradigmáticos nesta tentativa de construção identitária. Outras iniciativas como a do selo ‘Património Cultural Europeu’ pretendem fundar a ideia duma história comum. Esse selo irá ser colocado em lugares tão emblemáticos dum ponto de vista simbólico como é a Acrópole de Atenas ou a Casa de Robert Schuman na Alemanha. Na Galiza, o Cabo de Fisterra é possuidor deste selo devido ao grande valor simbólico de Fisterra e do Caminho a SantiagoFisterra na construção europeia. Nesse sentido vale a pena relembrar as palavras de Goethe quando disse que a “Europa se fez caminhando a Santiago.” 47

O cinema é outro instrumento fundamental para a articulação duma cultural europeia reconhecível. Nesse sentido, o programa Média, destinado a financiar a produção de filmes na União Europeia, explicita no seu preâmbulo que o «sector audiovisual é um vector essencial para a transmissão e o desenvolvimento dos valores culturais europeus e desempenha um papel primordial na construção de uma identidade cultural europeia e na expressão da cidadania europeia.» E sem sairmos do campo audiovisual o próprio ‘Festival da Eurovisão’ tem exercido nas últimas décadas uma função de unidade e diálogo intercultural dentro da Europa. Outra ferramenta tem sido o desporto, que através dos distintos campeonatos europeus, incluída a Champions League de futebol, é outro dos instrumentos que estão sendo utilizados neste processo. Mas, apesar das estratégias e ferramentas utilizadas, a construção duma identidade nacional europeia avança a ritmo lento. Porém, Lourenço (2001) mostra certo otimismo ao patrocinar a ideia duma Europa-nação quando afirma que «uma tradição comum, ou largamente partilhada, de referências e valores culturais, é um dos dados mais evocados quando nos referimos à ideia de Europa.» Nessa perspectiva, «a Europa já existiria» ou a sua existência ainda mais afirmada não daria lugar a problemas maiores. Essa Europa como unidade cultural teve no passado uma certa identidade e uma multiplicidade de identidades culturais fortes (a de nações e culturas encerradas nos seus códigos próprios de língua, crença e prática política). A esse título, a riqueza mesma de cada uma das culturas europeias é, sem que os responsáveis pela construção da nova Europa como potencial «nação» tenham consciência 48

disso, «o maior e o mais difícil obstáculo que a invenção da Europa enfrenta.» Lourenço (2001). Se a história das nações mostra que a identidade coletiva se constrói após um grande trabalho (normalmente também coletivo) de elaboração de mitos e narrativas que possam tornar a população coesa; como considerarmos então os fundamentos da solidariedade e da cidadania entre europeus para legitimar uma verdadeira união política? Alguns pensadores como Jürgen Habermas propuseram fundar a cidadania europeia sobre um patriotismo constitucional; uma adesão política que permitiria não renovar as tragédias induzidas pelas guerras de origem cultural e político do passado. Mesmo assim, Habermas (2002) fundamenta a contradição e o défice democrático em que se assenta a UE por ser esta «uma organização supranacional sem constituição própria (o Tratado de Lisboa não adquire esse rango) mas fundada sob princípios do direito público internacional. Nesse sentido, ela não é um Estado no sentido do Estado nacional moderno, amparado no monopólio do poder soberano externo e interno. Por outro lado, os órgãos da UE criam um direito europeu que vincula os Estados membros. Em tal sentido, a UE exerce direito de soberania que outrora estava reservado ao Estado em sentido estrito.» Para Habermas (2002), do ponto de vista normativo nunca poderá haver um Estado federativo europeu que possa ser considerado democrático se antes não se configurar uma cultura política e uma opinião pública integrada a nível europeu. Uma sociedade civil com associações que representem os interesses não estatais assim como um sistema de partidos políticos de âmbito 49

também europeu. Mesmo assim, Bauman (2006) afirma que foi em 2003 quando se fez visível pela primeira vez uma consciência europeia (e provavelmente global) nos protestos massivos em todas a cidades europeias contra a guerra e a invasão do Iraque. A própria catástrofe do Prestige e o movimento Nunca Mais surgido na Galiza em 2002 movimentou também grandes energias cívicas em toda a Europa (lembremos o exército da Bélgica chegando à costa galega antes que o espanhol) movidas pela consciência ecológica e a vontade de ajudar na limpeza e despoluição do mar. Vale a pena ter em conta estes fitos, mas é preciso do nosso ponto de vista, a criação dum contexto comunicacional e de mass média plenamente europeus (ainda inexistente) para que esta nova perspetiva cidadã se possa sustentar a longo prazo. A Internet poderia ajudar nesse sentido, mas é provável que não seja suficiente. O problema consiste, segundo Thiesse (2008), em que uma adesão como a que propõe Habermas (2002) é demasiado frágil e demasiado instável para poder contraarrestar os outros dois modos de identificação que, segundo a sua opinião, estão hoje paradoxalmente apanhando um grande pulo: o nacional e o religioso. Daí a tentativa crescente de querer produzir na União Europeia um modelo que deu prova da sua eficácia: o nacional. E quiçá isto se deva ao facto de que «a combinação da comunidade política com a comunidade cultural demonstrou estar, com efeito, dotada de grande eficácia para a constituição de unidades políticas fortes e estáveis.» (Thiesse 2008) A autora francesa coincide com Habermas (2002) quando afirma que a Europa atual se caracteriza por um sério défice democrático que é imputável, em grande parte, à falta de espaço público transnacional europeu, 50

tendo em conta, sobretudo, que o modelo nacional correspondia a uma forma hoje superada de concepção das relações sociais e produtivas: homogeneização de um espaço geograficamente circunscrito e de fronteiras bem definidas, estritamente hierarquizado e monocêntrico. A UE poderia assim procurar a sua identidade nas novas topologias da pós-modernidade, policêntricas e flexíveis, nas quais as relações entre indivíduos e grupos não seguem linhas imutáveis e hierarquizadas. Tendo em conta este diagnóstico da situação, haveria que empreender com determinação empresas inovadoras para uma mudança conceptual tão radical como a que inspirou, há dois séculos, a formação das nações.

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Paganismo, ecologismo, não-especísmo e outros alicerces para a Europa

Para o físico e filósofo Fritjof Capra (1997), o poder do pensamento racionalista cartesiano ocidental tem-nos levado a tratar o meio ambiente natural como se estivesse formado por partes separadas a serem exploradas em benefício próprio dos humanos. A crença, segundo a qual todos esses fragmentos estão realmente separados de nós mesmos, do nosso meio ambiente e da nossa sociedade, alienou-nos da natureza e do resto de seres vivos e dessa maneira nos diminuiu. Para recuperar nossa plena humanidade, é preciso recuperarmos nossa experiência de conexão com o que Capra (1997) chama a ‘teia da vida.’ Essa reconexão, ou religação, é a própria essência do alicerçamento espiritual da ‘ecologia profunda’ que vê a humanidade como mais um fio na teia da vida. Segundo modo de pensar, cada elemento da natureza, inclusive a humanidade, deve ser preservado e respeitado para garantir o equilíbrio do sistema da biosfera, o que paradoxalmente tem muito a ver com a antiga ideia oriental que relaciona cada acontecimento e fenómeno da natureza com todos os demais. Alain de Benoist (1998) vai mais além quando relaciona o paradigma da ‘ecologia profunda’ com a visão ‘pagã’ do mundo: 53

«A ecologia, evidentemente, está muito próxima ao paganismo em razão de sua consideração global dos problemas do meio, da importância que dá à relação entre o homem e o mundo e, também, por sua crítica à devastação da terra por efeito da obsessão produtivista, da ideologia do progresso e do arrasamento técnico. Esta proximidade é especialmente perceptível no ecologismo radical, também chamado «ecologismo profundo», inclusive quando este comete a meu entender o erro, simetricamente inverso ao do humanismo cartesiano, de dissolver de maneira reducionista a especificidade humana no conjunto do vivente. É notório que os adversários do ecologismo profundo acusem estes com frequência de se relacionarem com antigos cultos pagãos.» (Benoist 1998)

Nesta mesma linha de pensamento, o psicanalista junguiano James Hillman (1992) assinala que «a situação angustiante do planeta, o sofrimento dos seus oceanos e rios, dos seus climas e florestas, as cidades feias e a terra esgotada, fazem com que devamos deixar de usar tudo isso para proveito próprio e recuperemos o sentido das filosofias animistas preocupadas com a alma das coisas.» Hillman aborda no seu pensamento a ideia sincrética e monista neoplatónica que pretende superar a dualidade do platonismo posteriormente assumida polo judaicocristianismo e que se fundamentou nas conceções metafísicas e morais dos dualismos do psicofísico, do bem mal, da superioridade intrínseca do ‘outro mundo’ com relação ao mundo presente, do corpo como ‘prisão da alma’, a distinção entre o Ser criado e o criador, etc. Neste sentido, o neoplatonismo monista foi frequentemente usado como um fundamento filosófico do paganismo clássico e como um meio de defender o paganismo contra o cristianismo. Este dualismo ontológico cristão podemos encontrá-lo expresso numa frase do Quarto Concílio de Latrão (também conhecido como Quarto Concílio Laterano) quando diz que «entre o criador e a criatura nenhuma semelhança pode ser afirmada sem que ela implique uma dessemelhança ainda maior.» Considerando pois o mun54

do como o resultado de uma criação contingente que, por definição, nada acrescenta à perfeição do seu criador, esse dualismo atribui ao mundo uma qualidade inferior e portanto o minoriza: «não ameis ao mundo nem o que há no mundo.» (Juan, 2,15) No cristianismo, «este imperativo constitui o fundamento negativo do amor de Deus e de amor ao próximo por oposição a toda a solidariedade com uma ‘natureza inferior.’ O mundo, dessacralizado e profanado (isto é, arrojado ao âmbito profano), fica transformado em objecto.» (Benoist 1998) O paganismo politeísta foi durante milénios o principal sistema de pensamento dos povos da Europa e de outros povos no planeta, que praticaram religiões habitualmente denominadas pagãs. Essas religiões constituíam um sistema de representação, de valores, de figuras específicas que serviram de marco referencial e de apoio espiritual a numerosas culturas e civilizações. As religiões pagãs foram depois combatidas pelo judaicocristianismo, portador de um sistema diferente de representação e que encarava o facto religioso de um outro jeito. Para Benoist (1998), o estudo comparado de ambos os sistemas permite compreender as causas profundas do seu confronto tendo em conta que o paganismo é um sistema de representação global e holístico que se opõe à concepção cristã da humanidade e do mundo. Benoist (1998) inclui o próprio ateísmo neste paradigma conceitual judaicocristão: «A acusação de ateísmo mantida pelos cristãos com respeito ao paganismo carece, pois, de sentido. O ateísmo aparece com o cristianismo, como uma forma de negação que lhe é própria. O novo estatuto que o cristianismo atribui ao homem é também o que precisa para se opor ao mundo. O ateísmo prolonga essa oposição; não explica um pelo outro, mas os põe em concorrência e concede ao segundo 55

todo aquilo que metodicamente tenta lhe arrebatar ao primeiro. Quer demonstrar que Deus não existe, da mesma forma em que os cristãos se afanam por demonstrar sua existência quando, em realidade, a ideia de Deus não pode enunciar-se baixo o horizonte da prova. O ateísmo é, singelamente, um fenômeno moderno que implica o teísmo cristão como a antítese sem a qual não poderia existir.» (Benoist 1998)

Fernando Pessoa foi um seguidor do sistema de representação pagã, que manifestou especialmente na figura heteronímica de Alberto Caeiro. Caeiro tentou superar o paradigma da dualidade entre um Deus abstrato que vive num Céu distante e o mundo terreno. É essa divisão entre este mundo e o outro que Alberto Caeiro não aceita. A esperança num Deus longínquo desvia as pessoas e separa-as dos céus que elas podem encontrar aqui na terra. O ideal pagão não é movido por uma esperança alienante que nos ausenta do instante presente e nos dispersa do futuro: «A religião pagã é humana. Os atos dos deuses pagãos são atos dos homens magnificados; são do mesmo gênero mas em ponto maior, em ponto divino. Os Deuses não saem da humanidade rejeitando-a, mas excedendo-a, como os semideuses. A natureza divina para o pagão não é anti-humana ao mesmo tempo que super-humana: é simplesmente super-humana. Assim, sobre estar de acordo com a natureza no que puramente mundo exterior, a religião pagã está de acordo com a natureza no que humanidade.» (Pessoa 2005)

Nesse sentido, é ilustrador este poema do Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro: «Se às vezes digo que as flores sorriem E se eu disser que os rios cantam, Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores E cantos no correr dos rios... … Não concordo comigo mas absolvo-me, Porque só sou essa cousa séria, um intérprete da Natureza, Porque há homens que não percebem a sua linguagem, Por ela não ser linguagem nenhuma.»

A religião pagã europeia é a religião indígena, nativa 56

da Europa. O cristianismo veio depois. E todas as religiões nativas do mundo têm aspectos em comum como é a veneração da natureza, a representação politeísta ou o reconhecimento da Deusa e do aspecto feminino da divindade à par do o aspecto masculino. Paganismo europeu, Hinduísmo, a religião dos Iorubas africanos ou o Candomblé sincrético brasileiro partilham nesse sentido sistemas de representação similares. Mircea Eliade (1992) distingue esta humanidade religiosa - ou homem arcaico - como aquela que dispõe dum sistema de representação temporal profano (linear) e outro sagrado circular (cíclico e re-atualizável) em contraposição ao que ele chama ‘humanidade não-religiosa’ (dentro da qual inclui os seguidores do judaicocristianismo) que restringe o tempo real unicamente ao tempo profano, histórico linear. Para Eliade, isto leva a humanidade ao desespero, sendo o relativismo, o existencialismo e o historicismo modernos filhos dum sistema de pensamento que não é capaz de criar mecanismos para fazer com que a humanidade suporte os sofrimentos causados pela consciência da ‘história’ que vê os ‘acontecimentos’ sem um sentido cíclico ou arquetípico. Hillman (2010) destaca que a psique humana é inerentemente politeísta mas alerta sobre as dificuldades czer como bagagem a oposição entre monoteísmo e politeísmo, o monoteísmo está profundamente arraigado no inconsciente coletivo de cada um de nós. O que quer que digamos, o que quer que escrevamos, está tão carregado de suposições monoteístas que uma compreensão da psique politeísta é quase impossível.» Neste ponto, trazemos à tona a questão fundamental dos direitos dos animais e a necessidade de articular um discurso europeu (e global) não especista. 57

O especismo acredita que a vida de um membro da espécie humana, polo simples facto de o indivíduo pertencer à espécie humana, tem mais peso e mais importância do que a vida de qualquer outro ser. Os fatores biológicos que determinam a linha divisória da nossa espécie teriam um valor moral (a nossa vida valeria ‘mais’ que a de qualquer outra espécie). Assim, de modo similar ao sexismo e ao racismo, a discriminação especista pressupõe que os interesses de um indivíduo são de maior ou menor importância pelo simples facto de se pertencer a uma espécie ou outra. De acordo com a igual consideração de interesses (Singer 2004), todos os seres devem ser respeitados independentemente da espécie à que pertencerem. Infligir dor ou sofrimento a um animal sem se preocupar com isso é ignorar o princípio de igualdade. Tendo em conta as limitações deste trabalho para aprofundar os conceitos expostos de paganismo, ecologia profunda, não-especismo e pensamento holístico, estes são, no entanto, elementos que podem alicerçar e assentar a Europa e os europeus em bases sólidas e originais para construir um projeto de unidade e convivência com ambição universalista e global. Não no antigo sentido imperial, mas como luz que possa inspirar uns e outros.

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De Hobbes a Kant e o cosmopolitismo europeu

Thomas Hobbes acredita no Estado como um entramado jurídico que permitem aos homens e mulheres viverem sob uma autoridade sem a qual uns acabariam permanente enfrentados com os outros e assim o homem lobo, os devoraria a todos. No entanto, para Hobbes (1651 / 1974), neste contexto violento, defender a própria vida não é pecado pois ele entende a autodefesa como um direito natural dos seres humanos segundo o qual, ao que se defende, todas as coisas lhe são permitidas, até mesmo matar aquele que o ameaça. Para os indivíduos que vivem na discórdia não existiria alternativa já que a condição do ser humano é defender-se e atacar: «Se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que é im possível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no cami nho para seu fim (que é principalmente sua própria conservação ou seu deleite) esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro.» (Hobbes 1651/1974)

A desconfiança é então para Hobbes (1651 /1974) um dos valores fundamentais nos que se sustentariam os relacionamentos entre as pessoas e as nações, já que os homens são capazes de matar para se proteger a si mesmos e proteger o que é seu. 59

Em contraposição a esta ideia hobbesiana de realidade violenta e voraz, Inmanuel Kant no ensaio À paz perpétua (1795 / 2008) propõe a conceituação duma organização universal da humanidade de um ponto de vista fraterno e cosmopolita. Para ele, o cosmopolitismo tende a negar a importância das divisões políticas e vê no homem um ‘cidadão do mundo’ alheio a qualquer tentativa avassaladora ou nacionalista. Kant reivindica assim uma sociedade civil mundial da qual todos os homens e mulheres são partícipes tal como explica Nadai (2006): «A finalidade da humanidade, já sabemos, é 'estabelecer uma consti tuição política', único estado em que a humanidade pode desenvolver completamente as suas disposições. O ponto de vista que permite falar da história como se ela fosse organizada com vistas a este fim é o do propósito da natureza.» (Nadai 2006)

A ideia de paz perpétua lançada por Kant não deixa de ser um elemento necessário para o desenvolvimento duma sociedade cosmopolita. No entanto, do ponto de vista de Habermas (2005), isto não é suficiente pois o cosmopolitismo kantiano precisa ser conceptualizado e delimitado juridicamente para que possa chegar a ter vigência real. Para que exista um verdadeiro cosmopolitismo e uma verdadeira paz perpétua tem de existir antes um comprometimento dos estados e comunidades nesse sentido. E é por isso que o principal objetivo dum suposto Direito Cosmopolita - ius cosmopoliticum - deveria ser (Habermas 2005) precisamente o de estabelecer essas normas comuns para a supressão total das guerras entre os povos do mundo, pois não é possível garantir a paz se não existem umas normas coercivas que a promulguem, a protejam e que sejam ao mesmo tempo aceites por todos. Kant especifica a necessidade de que essas normas de convivên60

cia entre estados e povos existam, mas não vai mais além na sua articulação e desenvolvimento positivo: «Os povos, enquanto Estados, podem considerar-se como homens singulares que, no seu estado de natureza (isto é, na independência de leis externas) se prejudicam uns aos outros já pela sua simples coexis tência, e cada um, em vista da sua segurança, pode e deve exigir do outro que entre com ele numa constituição semelhante à constituição civil, na qual se possa garantir a cada um o seu direito. Isto seria uma federação de povos que, no entanto, não deveria ser um Estado de povos.» Kant (1795/2008)

Ainda tendo em conta as limitações do marco teórico proposto por Kant há dois séculos, o atual projeto de unidade europeia baseia-se em parte nesta visão de paz perpétua e convivência cosmopolita entre os povos. A Europa, na sua 'lição da tragédia' aprendida. decidiu acordar caminhando cara uma nova era, ainda inacabada, de experimentação, que na opinião de Robert Kagan (2002) se opõe diametralmente à ideia política representada pelos Estados Unidos quando diz que «é hora de parar de fingir que europeus e americanos têm uma visão comum do mundo, ou até que ocupam o mesmo mundo.» Os europeus, diz ele, «acreditam estar, caminhando para além do poder, na direção de um mundo autossustentado de leis e regras, de negociação e co-operação transnacionais» enquanto os Estados Unidos «permanecem enredados na história, exercendo o poder no anárquico mundo hobbesiano em que as regras internacionais não são confiáveis e onde a segurança e a promoção da ordem liberal ainda dependem da posse e do uso do poderio militar.» O próprio Bauman (2006) assinala que, quando observamos a Europa contra o pano de fundo de um planeta tomado por conflitos, ela parece um laboratório em que as ferramentas necessárias para construir a Allgemeine Vereinigung der Menschheit (unificação universal da hu61

manidade) de Kant continuam a ser projetadas e 'testadas na ação', embora neste momento o projeto europeu se encontre profundamente adormecido e sem um norte claro. Mesmo assim (Bauman 2006), «as ferramentas forjadas e testadas dentro da Europa servem antes de tudo para a delicada operação (segundo alguns observadores, delicada demais para apresentar mais do que uma mínima chance de sucesso) de separar as bases da legitimidade política, o procedimento democrático e a disposição de compartilhar, ao estilo comunitário, os ativos a partir do princípio da soberania nacional/territorial com o qual estiveram inextricavelmente ligadas durante a maior parte da história moderna.»

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Conclusão

A União Europeia, integrada por 28 estados e mais de 500 milhões de habitantes, é hoje, com diferença, a primeira potência económica mundial. O PIB nominal da UE supera em um bilião de Euros o dos Estados Unidos e o Euro há tempos que vem desbancando o Dólar como primeira moeda de câmbio no planeta. Muitos países, entre os quais se encontram a China e a Rússia, têm pensado converter suas reservas em Dólares para Euros e os próprios britânicos começaram há tempo a debater uma possível adesão à moeda europeia. Uma parte importante dos europeus, especialmente os mais jovens, já se consideram sobretudo cidadãos europeus. Porém, fora da Europa as pessoas continuam a pensar a União Europeia como um bloco de países e línguas separadas pelas fronteiras nítidas dos antigos Estados-nação. É certo que ainda existem os Estados que conformam a UE, mas a sua força na conformação identitária do projeto político comum de unidade na diversidade não existe mais. Para as europeias e os europeus é evidente que não existem mais fronteiras internas dentro da UE e viajar da Itália ao Reino Unido, da Finlândia a Portugal é tão simples quanto fazê-lo dentro de um Estado. A própria Suíça, que ainda não faz parte formal da UE, vem eliminando as suas fronteiras com a União, aderindo ao acordo de Schen63

gen e dando assim mais um passo na integração. A UE definiu na estratégia de Lisboa e na Estratégia 2020 o objetivo de ser a "mais competitiva economia e sociedade do conhecimento no mundo" e hoje a produção cientifica da União Europeia já supera a dos Estados Unidos. Também está começando a dar os primeiros frutos a estratégia de criar extensas redes transeuropeias de transporte, comunicação, ciência, tecnologia ou inovação, assim como um sistema de ensino superior unificado e homologável em toda a Europa através do denominado Processo de Bolonha (em que também participam outros países europeus que não fazem parte formal da UE como a Noruega, Ucrânia, Rússia ou Turquia). Mas a União Europeia, além de ser a primeira potência económica do planeta, é sobretudo um projeto político de vanguarda que idealiza uma resposta sistémica a questões fundamentais do futuro da humanidade e da biosfera como um todo. A UE representa um modelo de sociedade muito preparada para lidar com as problemáticas da nossa era ao se assentar com firmeza nos conceitos avançados da governança multinível em rede, da soberania partilhada e da política processual não hierárquica. Frente ao forte individualismo disseminado nos Estados Unidos, e o acrítico 'pensamento grupal' da mentalidade asiática que negligencia a importância da iniciativa e desenvolvimento individual, o pensamento europeu consegue sintetizar estes dois extremos focando as suas energias no desenvolvimento de uma sociedade comunitária, sustentável e inclusiva de cidadãos e cidadãs críticos/as, na qual ninguém fique para trás. Enquanto nos Estados Unidos a liberdade individual se baseia no acúmulo materialista de riquezas e na exclusão dos outros através de 64

uma articulação de fronteira entre o "Meu e o Teu" própria da mentalidade Cowboy. Na Europa, é pela inclusão do indivíduo em amplas redes de socialização e por uma apropriação ou acesso comunitário às diversas formas de propriedade que se atinge a liberdade e o bem-estar. A União Europeia é também um projeto profundamente secularizado, embora com uma ambição espiritual elevada, que desde os primórdios ancestrais Greco-Latinos, Celtas ou Vikings, se assenta numa raiz pagã de respeito e integração com a natureza. As religiões sectárias nunca chegaram a ter sucesso real e profundo entre o povo europeu e, se o tiveram em algum momento, rapidamente foram contestadas por outras formas mais holísticas de entender a vida espiritual e a sacralidade da existência e do mundo. Edgar Morin (2009) e Zygmunt Bauman (2006) apontam que o rechaço da Europa se entende porque ela conquistou o mundo e ao mesmo tempo nunca foi conquistada por ninguém. É certo, mas a nova Europa que emerge silenciosamente já superou esse estágio evolutivo, querendo agora oferecer um projeto pioneiro sem precedentes comparáveis na historia da humanidade, de cidadania democrática, igualdade, bem-estar social, qualidade de vida, diversidade cultural, cosmopolitismo, paz, diálogo planetário, sustentabilidade, direitos humanos, direitos dos animais e desenvolvimento espiritual para a construção responsável de um planeta melhor.

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