O EXCESSO E O RESTO EM SILVINA OCAMPO E LUIS MARTÍN-SANTOS

June 5, 2017 | Autor: Giseli Tordin | Categoria: Comparative Literature, Hispanic Literature, Hispanic-American Literatures
Share Embed


Descrição do Produto

!

O EXCESSO E O RESTO EM SILVINA OCAMPO E LUIS MARTÍN-SANTOS

Giseli Tordin (UMass, Amherst)

RESUMO: Procura-se apresentar a correlação entre corpo, ficção e realidade a partir da leitura de três obras: uma peça teatral, Festa, baseada no conto “Las fotografías”, de Silvina Ocampo, e encenada pela companhia de teatro Shiva, Los traidores, teatro escrito por Silvina Ocampo e J.R. Wilcock, e uma narrativa de Luis Martín-Santos, Condenada belleza del mundo, inspirada em um filme espanhol, El próximo otoño (1963). Condenada belleza del mundo assemelha-se a um roteiro no qual se relata como a personagem deve evidenciar ao espectador que os encontros que alcança não provocam uma transformação em sua vida. Já Los traidores centra-se na história da família imperial romana. A impostura de um dos filhos de Septimio Severo, Basiano, o Caracalla, gera realidades outras. Apenas os traidores sabem algumas verdades, como o assassino do imperador e de seu outro filho, e Basiano dificilmente reconhecerá o próprio mundo que criou. Em Festa, é a posição do corpo do ator que provoca tanto o efeito das diferentes sensações de realidade quanto a indiferença em relação ao outro, a que provém de um excesso do eu que transforma este outro em objeto ou desloca-o a um lugar de indiferença. O mal-estar que o corpo do ator capta, mas não sente, é devolvido ao espectador. A leitura comparada das três obras deve permitir reconhecer que o mais real é aquilo que, muitas vezes, escapa da personagem ou do ator, mas que tem no espectador ou leitor a possibilidade de apreensão.

Palavras-chave: Silvina Ocampo. Luis Martín-Santos. Corpo. Ficção e realidade.

Um corpo, outras vidas Antonin Artaud, certa vez, em carta endereçada a um amigo, escreveu que ele, Artaud, era o seu próprio corpo, mas o corpo dele não era ele (ARTAUD apud FORTES, 2010). Nesta sua leitura, o dramaturgo, escritor e ator francês afirmava que o corpo era uma instância muito mais ampla do que qualquer identidade ou uma identidade-ipseidade (em termos ricœurianos).1 A identidade, portanto, estava compreendida pelo corpo. Mas o corpo não se subordinava à identidade. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 1

Segundo Paul Ricœur (1978), a identidade-ipseidade não se forma a partir de uma acumulação de conhecimentos, mas provém do entendimento de si em relação ao outro. Diferentemente da identidademesmidade, que é a permanência de uma identidade ao longo do tempo, a identidade-ipseidade é um traço da constituição do sujeito que se forma no decorrer dos anos e através do outro.

!

Assim, poderíamos pensar que o corpo aceita outras identidades. No teatro, isso parece óbvio. O ator encena aquilo que ele não é, dando vida a situações e personagens através da ação. No entanto, as percepções e os sentimentos dos atores não são imutáveis. Inclusive na repetição de uma peça, suas percepções diferem-se. O que garante a verossimilitude de uma obra ou o que permite que os espectadores envolvam-se mais com aquilo que lhes é apresentado é a existência de um efeito de verdade, o qual provém da própria ação das personagens, dos corpos que atuam. Segundo Konstantin Stanislavski (1936), o efeito de verdade no teatro não significa atestar a real existência de um evento, mas, sim, apontar que determinado fato tem possibilidade de ocorrer. No entanto, há obras teatrais e literárias que parecem pôr em xeque algumas dessas concepções. Em Los traidores, única peça teatral escrita por Silvina Ocampo e Juan Rodolfo Wilcock, reconta-se uma história oficial, trazendo, inclusive, os nomes verdadeiros de quem figurava no poder do império romano no ano 211 da nossa era. Basiano, filho do imperador Septimio Severo, expressa explicitamente que algumas das outras personagens com quem está em contato agem por agir. Ele começa a ter dúvida com relação ao desdobramento dos fatos porque observa que muitos parecem representar a história de um livro, atuando de modo automático. Já em Condenada belleza del mundo, de Luis Martín-Santos, o narrador controla a personagem descrevendo como esta deve atuar para persuadir o espectador e ela mesma sobre tudo aquilo que deve sentir. A ênfase às percepções da personagem parece reduzir o efeito de verdade ou de qualquer beleza estética que a obra poderia suscitar. E em Festa, uma peça encenada por uma companhia brasileira de teatro, grupo Shiva, e adaptada de um conto de Silvina Ocampo, “Las fotografías”, os corpos em cena parecem não perceber a própria angústia que representam. E o espectador fica com o ônus da tragédia criada. Como, portanto, compreender através das personagens as diferentes dimensões de realidade e ficção? O que é a verdade numa obra de ficção ou em um teatro? O que é o real nessas obras? Estariam as obras colocando ênfase na possibilidade de os atores agirem de modo automático? Quais os efeitos de sentido?

!

A partir da fronteira entre cinema, teatro e literatura, procura-se neste trabalho responder a essas questões considerando as diferentes espessuras da realidade transvasadas ao corpo: como os corpos que estão no espaço da cena, corpos que ganham o plano através da visualidade háptica e os corpos que estão além dos corpos, na sua virtualidade circunstancial, permitem outros reconhecimentos ao modificar a postura do espectador ou leitor. Pressupõe-se que esse reconhecimento constrói-se a partir daquilo que não podemos nomear e que está no inconsciente ou nos subterfúgios que, desde o outro, percebemos como nossos. O real no outro lado da moeda Em Los traidores, trata-se de uma peça sobre a história de dois irmãos, Basiano, conhecido como Caracalla, e Publio, que herdarão o império romano após a morte do pai, Septimio Severo. São todas personagens históricas que fazem uma releitura do acontecimento principal, que é a morte de Publio, cujo assassinato é supostamente perpetrado por Basiano. A peça, porém, não reafirma o que a História provê. A beleza encontra-se nas dimensões de incerteza que a atuação possibilita. Todos os fatos históricos reaparecem ali, porém, entrelaçam-se gerando uma leitura outra: a de que nunca se sabe quem, de fato, mata Publio tampouco o pai, morto havia dois meses, apesar de todos ali fingirem que ainda está vivo. Como o fingimento posto em cena é de conhecimento do espectador, sua encenação parece ser dirigida aos que não pertencem à corte. No entanto, as personagens, ao atuarem de modo a inventar outras possibilidades sobre a situação de Septimio Severo – um faz-de-conta –, criam realidades paralelas em relação a uma realidade primeira. A atuação mistura-se à atuação da atuação. No desenvolvimento da peça, é esta desconfiança que gera incertezas:

La imperfecta visión de dos hermanos que se odian y su madre que los ama. ¡Quiere decir efigie y dice esfinge Los tres aislados, como en un teatro,

!

representando un drama establecido, iluminados, sin mirar al público que nada entiende y sin embargo aplaude allá arriba en oscuras graderías. ¡Si pudiera encontrar en algún libro el texto de esa historia defectuosa que los dioses me obligan a inventar! ¿Viste que dijo esfinge en vez de efigie? (OCAMPO, 1956, p.34).

As palavras de Basiano, conquanto sejam irônicas e coloquem em primeiro plano o isolamento de cada personagem, não são capazes de revelar a ele mesmo, dentro desta metalinguagem (que é capaz de observar), que o mais real é a ausência de uma história coletiva pela qual ele mesmo, Basiano, teria responsabilidade. O isolamento deve-se à sua própria incapacidade de entretecer as narrativas das demais personagens e, assim, construir um sentido de verdade que mude os caminhos de uma história já estabelecida. Basiano não percebe que ele poderia ser ator dele mesmo e não de outrem. As personagens deixam de criar ou de representar uma realidade da qual todas elas deveriam fazer parte. Elas não atuam no sentido mais amplo e plural porque o outro é excluído de sua própria constituição. O outro é sempre o inimigo. Um aspecto fundamental da peça não é a descoberta ou não do assassino de Publio, mas o simulacro da atuação que revela um espaço desprovido de realidade. Basiano, ao explicitar desconfiança e temor e, portanto, ao isolar-se, faz nascer de seus atos mundos que se distanciam. O mundo de seu irmão, o mundo de sua mãe e de todas as pessoas da corte não se correspondem ao seu porque uns desconfiam dos outros. Segundo Hannah Arendt, a realidade do mundo é garantida pela presença dos outros. Somente há potencialidade de ação no lugar onde exista confiança mútua. Ora, é exatamente o oposto engendrado por Basiano que começa a governar suspeitando de todos. Sua tirania produz o seu isolamento (refletido em seu monólogo) e fomenta, utilizando as palavras de Arendt no contexto da análise do poder tirano, “os germes de sua própria destruição” (ARENDT, 2005, p.229). E isso é o mais real da peça. No prólogo, as Eumênides, sentadas junto ao público, aparecem repentinamente e anunciam a todos que a obra teatral está repleta de traidores. Embora refiram-se a

!

personagens que ainda não estão no palco, elas são capazes de prever seus atos e ouvir as vozes de quem sequer apareceu. Elas repetem que a noite é antiga, assemelhando-se à Scherezade de As mil e uma noites, pois narram acontecimentos dos quais estão ausentes, não obstante falem de dentro da história e revelem aquilo que só elas podem ouvir. Quando se abrem as cortinas, elas voltam a sentar-se e retornam ao final para reafirmar a traição. Sempre há a tentativa de marcar a dimensão da ficção como se a atuação fosse um fingimento. Mas o que se observa ao final é o contrário. Isto não é um cachimbo A peça de Ocampo e Wilcock lembra a obra de René Magritte, Ceci n’est pas une pipe, de 1928-1929. A frase escrita no quadro, Isto não é um cachimbo, recordando os moldes de uma legenda, contradiz a figura de um cachimbo. Cria-se uma disparidade entre o enunciado e o objeto. Talvez Magritte desejasse chamar atenção para o fato de o desenho não ser o objeto, mas apenas uma representação. Portanto, a arte não é a realidade em si, mas espelha a realidade, é uma imagem desta. Também se poderia pensar que a frase – a palavra – exerce um poder muito forte sobre nós porque a representação de um objeto não é suficiente para afirmar o valor do objeto, mas é a palavra que o determina.2 A similaridade entre Los traidores e Ceci n’est pas une pipe provém deste aspecto: Basiano, na peça, desconfia de todos de sua família porque não acredita na representação. Não é capaz de observar que esta tem um valor de verdade e espelha o engano que está nele mesmo, mas é atribuído ao outro. Basiano acredita em suas palavras as quais funcionam como uma espécie de legenda à representação à que assiste. Ele aponta, na peça, às relações entre o conhecido e o desconhecido: por um lado, demonstra conhecer o estatuto da ficção, que há personagens que atuam ou que

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 2

Para mais detalhes, consultar Isto não é um cachimbo, de Michel Foucault, disponível em http://ltc-ead.nutes.ufrj.br/constructore/objetos/FOUCAULT,%20Michel%20%20%20Isto%20n%e3o%20%e9%20um%20cachimbo.pdf

!

mentem. Por outro lado, na vertente do desconhecido, teme qual será o fim da história; não sabe se conseguirá permanecer no poder. Tomo emprestado um exemplo de Slavoj Žižek sobre a relação entre o conhecido e o desconhecido, a fim de tornar meu argumento mais claro. Donald Rumsfeld, secretário de defesa dos Estados Unidos, em fevereiro de 2002, justificou por que os Estados Unidos deveriam invadir o Iraque. Disse Rumsfeld que havia o ‘conhecido conhecido’, ou seja, sabemos que sabemos; o ‘desconhecido conhecido’: há coisas que agora sabemos o que não sabemos; e o ‘desconhecido desconhecido’: há coisas que não sabemos e que sequer podemos suspeitar. Assim, justificava a invasão no Iraque porque havia ameaças iminentes que os Estados Unidos não sabiam, além de outra ameaça que nem imaginavam. Žižek diz que Rumsfeld é um filósofo amador porque o principal não era dizer sobre as ameaças de Saddam Hussein das quais não suspeitavam, mas, sim, ‘o conhecido desconhecido’, que é o inconsciente freudiano: o conhecimento que não se conhece a si mesmo. Tudo o que negamos estar em nós e que dirige nossas ações. O que julgamos ver no outro (ou o que os Estados Unidos julgavam ver no Iraque) é a existência de algo que está em nós mesmos (nos Estados Unidos) sem suspeitar que este inimigo existe devido às nossas (às suas) crenças. Basiano é incapaz de observar que, no excesso de suas palavras, há algo que lhe escapa: suas ações dirigem-se a ele mesmo. A convicção em suas suposições não lhe permite ver que tramam contra ele. A existência da metalinguagem apontava também a um espelho. Basiano deixa de olhar-se e é surpreendido pela repetição do passado, de uma história já escrita. Ele evita que o passado seja dinâmico. Ele não elabora, portanto, outra experiência porque talvez tenha medo: o medo de encontrar a sua verdadeira face. O medo impede a sua autonomia, provoca reincidências, dificultando que ele modifique a dimensão virtual do passado. Dom Quixote, diferentemente de Basiano, transforma seu próprio caminho: ao saber que um escritor apócrifo conduzia-o rumo à cidade de Zaragoza, o Cavaleiro da Triste Figura, por vontade própria, dirige-se a Barcelona. Dom Quixote é uma reinvenção de si mesmo. Reinventa-se no interior de sua própria leitura. Porém, não se

!

trata de uma leitura parada. A leitura ocorre enquanto atravessa o mundo. Dom Quixote vive porque lê e modifica, inclusive, os rumos de uma história já escrita. Michel Foucault (2002) afirma que a grande façanha de dom Quixote não são as batalhas, mas, sim, a própria transformação da realidade em signo. A ficção reinscreve a realidade vivente de Dom Quixote. O cavaleiro modifica o passado virtual porque vive no mundo da aparência sem, no entanto, percebê-lo como separado da realidade. Já Basiano vive o mundo de suas palavras separadamente das ações que presencia e desconfia das aparências que são, no fundo, o real. O amor é o mais real Condenada belleza del mundo, de Luis Martín-Santos, não é simplesmente uma narrativa baseada em um filme espanhol, mas, sim, uma história outra que se faz a partir de uma releitura desse filme. À semelhança de Los traidores, pode-se supor que também há a descrença na aparência e, mais primordialmente, no amor, o que leva o protagonista a afastar-se do universo da bela moça francesa, por quem se apaixona. Essa descrença é criada pelo narrador cujas palavras funcionam como uma legenda, guiando as ações do protagonista. A convite do diretor catalão, Antonio Eceiza, Martín-Santos acompanha as gravações de El próximo otoño, lançado em 1963. O texto do escritor e psiquiatra espanhol nascido em Marrocos assemelha-se a um roteiro porque descreve como a personagem masculina deve construir-se de modo a evidenciar ao espectador que os encontros que alcança não provocam uma transformação em sua vida. Há um narrador que impõe uma história de modo que a personagem parece não conseguir atuar de outra maneira exceto a de fazer prevalecer o próprio desejo do narrador. São destacados os enganos desse protagonista: de que a jovem francesa que ali vem passar as férias não o ama. Há uma metatextualidade que amplifica essa desconexão do protagonista com relação aos outros e consigo mesmo:

!

El muchacho está absolutamente anclado en su vida anterior. Está enajenado por las circunstancias de su familia y él mismo. Es un débil. No tiene capacidade de cambio. Está resignado a su destino. (MARTÍN-SANTOS, 2004, p.12)

A ênfase nesta descrição pode ser compreendida como uma maneira de tornar o corpo um objeto, um fantoche nas mãos de um autor: “No es necesario que se le vea bien [...]. La cámara tiene que moverse a su alrededor, para demostrar que es un objeto” (idem, p.17). É interessante destacar que o narrador tece uma descrição como se estivesse apenas observando ou fazendo uma tradução dos fatos. No entanto, é o próprio narrador quem cria esses sentimentos. O tempo todo o leitor não perde de vista que se trata de uma história de um “encuentro no modificante” (idem), frase que é repetida. Ora, a ênfase na exposição desses desejos (especialmente como devem ser expressos) é uma tentativa de apagar a própria dimensão do protagonista e do seu corpo. Assim, pode-se afirmar que essa própria ênfase, que desvela ainda uma metatextualidade que nos coloca de frente com uma linguagem despida tanto de uma realidade quanto de uma magia ficcional, mitiga o mundo das percepções, evidenciando que esta personagem, este eu, não se adequa ao mundo, ou seja, que ele está em constante conflito. A narrativa é tecida não a partir dos fatos, mas, sim, da própria gestualidade inventada. São os gestos que o narrador diz vislumbrar a priori que vão determinar que se trata de um encontro não-modificante. O que salta à vista, portanto, não é propriamente a passividade da personagem exceto a formulação de um mundo desencantado. Assim, o encontro efetivo com o outro não existe. Segundo Jacques Lacan (1975), apenas os encontros produzem um mundo simbolizado. Na narrativa, o momento do encontro já coincide com sua própria desfeitura. Desmancha-se no ar porque as palavras do narrador proíbem o acesso ao outro. Os significantes, ao invés de abrirem o texto para a multiplicidade de sentidos, adormecem-no.3 !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 3

A literatura produzida por Luis Martín-Santos data do momento em que Espanha vivia a ditatura franquista que, iniciando-se em 1936, só terminaria no ano de 1975. A sociedade retratada por MartínSantos em seus romances é uma sociedade moderna repleta de conflitos, como a impossibilidade de o sujeito assumir seus próprios papéis. Em um documentário sobre o dia do livro exibido pela Red de Televisión Española (RTVE 2), o livro Tiempo de silencio, único romance que publicou em vida, é comentado como uma das obras mais importantes do século XX na Espanha cujas formas de apresentação

!

No filme de Eceiza, o sentimento de frustração da personagem Juan, quem não consegue aproximar-se de Monique por acreditar que a jovem francesa não o ama, além do fato se sentir-se impedido de viver este amor devido à sua condição social e familiar, é percebido através da visualidade háptica. Trata-se, na verdade, de um conceito da teoria fílmica desenvolvido pela pesquisadora canadense, Laura Marks, segundo o qual a imagem que se projeta pretende que o espectador tenha uma experiência táctil. É como se os olhos pudessem tocar a imagem e senti-la. Esta percepção isola o objeto de seu campo visual. Assim, o espectador percebe, no filme de Eceiza, o próprio afastamento dos mundos de Monique e Juan. Já no texto de Martín-Santos, a frustração do amor acontece na medida em que as palavras do narrador impedem o contato entre as personagens. No entanto, não se deve perder de vista que o real é ainda o amor, sentimento presente nas personagens. Por isso as inúmeras tentativas de dizer o contrário. Assim, tanto no filme quanto na narrativa o que poderia devolver à personagem a sua crença no amor seria um resgate do seu papel, essencialmente a tomada de consciência de seu corpo como totalidade, o que lhe permitiria situar-se ativamente no mundo simbólico, reescrevendo, com suas palavras, uma nova relação entre o imaginário e o real (LACAN, 1975, p.130). A verdade em um clic Diferentemente do filme de Eceiza no qual o mal-estar é pressentido tanto pelo protagonista quanto pelo espectador, em Festa, peça adaptada do conto de Silvina Ocampo, o mal-estar será pressentido pelo espectador e não (ou em menor medida) pelas personagens. O espectador não parece ser cúmplice, mas a quem o desafeto dirigese, visto que as personagens ali são mediadoras, passando indiferentes às circunstâncias que se lhes apresentam. Trata-se da festa de aniversário de Adriana, uma jovem paralítica. Os convidados, em silêncio, chegam com um presente, depositando-o em um !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! das personagens e encadeamento dos fatos são as mais arriscadas e inovadoras até então já produzidas. Disponível em: http://www.rtve.es/alacarta/videos/pagina-2/pagina-2-dia-del-libro/3097172/

!

canto. Posicionam-se em pé e não conversam entre eles. No entanto, eles esperam avidamente pelo fotógrafo cuja chegada modifica inteiramente o clima da festa. O que era estático, sem palavras, ganha um ruído de vozes difícil de compreender. Eles fazem da festa de Adriana um espetáculo particular, posto que cada um quer uma foto com a melhor pose. Adriana morre na festa, vítima do esquecimento, já que os convidados não percebem que ela não estava bem. Todos são anti-heróis, provocadores de uma ação parada, crua, engessada. Os convidados projetam ante o fotógrafo (através de inúmeras poses) a imagem daquilo que eles não são (os seus excessos). As supostas imagens estampariam, na verdade, o que gostariam de ser, mas o público sabe que enquadram o oposto, ou seja, o resto: um quase não-existir. O centro da festa é o flash da câmera fotográfica o qual preenche um desejo de satisfação que, no entanto, nunca se sacia. Os assuntos sobre que conversam giram em torno do banal, dos acidentes, de outras tragédias do cotidiano que se somam e que pertencem exclusivamente ao outro. Os convidados são sempre emissores da mensagem, nunca destinatários. Falam de tragédias, mas não a veem em si mesmos. Os presentes configuram o que Walter Benjamin denomina “valor de exposição”, já que estão subtraídos de uma esfera de uso e parecem relembrar a constante indiferença entre convidados e aniversariante. Os presentes não cumprem sua finalidade. Não são presentes com os quais se presenteia. São presentes empilhados. São presentes ausentes. A pergunta que se poderia formular é por que as personagens não se dão conta do mal-estar de Adriana. As personagens não se dão conta porque estão imersas em outra realidade, a da fotografia. Há uma ênfase em torno à espetacularização do elemento fotográfico.4 O real é a indiferença e todas as poses cujas imagens poderiam revelar uma forma harmoniosa são o puro meio, não possibilitando a abertura de um mundo outro. Tudo se esgota em uma sucessão de flashes.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 4

Tanto o conto quanto a peça têm pontos de contato com a autoexposição nas mídias sociais. Silvina Ocampo elucidara nos anos de 1970, muito antes do Facebook, certa necessidade do mundo contemporâneo: a exposição para que o outro, quem está de fora, ateste a felicidade do sujeito. O que vale é a imagem da felicidade e do amor declarados a todos, não um sentimento no âmbito privado.

!

Considerações finais Como os convidados de Festa, Basiano não se coloca no ponto de vista do outro. Não há empatia. Em Los traidores, as múltiplas menções ao espelho não são capazes de fazer que Basiano enxergue sua própria história de destruição porque há um adensamento da autossuficiência. Publio, já morto, ao aparecer ao irmão em forma de espírito, diz que ao matá-lo Basiano estava matando a si mesmo. Assinalar uma dimensão que contenha mais realidade que outra ou mais ilusão do que outra – um excesso da metateatralidade – pode expressar o desejo, na peça de Ocampo e Wilcock, de proteção; como se a própria metateatralidade fosse uma tela protetora, dificultando um conhecimento de si mais profundo. O mesmo se pode afirmar com relação à Condenada belleza del mundo. O narrador tenta dissolver os efeitos da ficção, mas não consegue esconder que esse excesso reativa um resto, que é ainda a possibilidade do amor. Já em Festa, fotografar as inúmeras poses dos convidados revelava aquilo que não era ou que não existia: a alegria. Com a morte de Adriana, apenas um ator permanece em palco. O fotógrafo. Espera-se uma atitude dele ante o corpo sem vida. Ele afasta-se de Adriana e, de costas ao público, começa a disparar novos flashes. A indiferença persiste de modo mais monstruoso, pois agora é o espectador quem a pressente mais de perto, como se fosse o próprio fotógrafo, uma vez que assume a mesma perspectiva deste. Afirma Giorgio Agamben que graças ao objetivo fotográfico um gesto aparentemente comum, sem relevância, carrega o peso de uma vida inteira; “assume em si o segredo de toda uma existência” (Agamben, 2005, p.31). Mas em Festa, o sentido maior não está no excesso das fotografias, mas naquilo que não foi capturado pela lente e que só pode ser apreendido, em última instância, por quem assiste, e não por quem atua. Referências AGAMBEN, Giorgio. Profanaciones. Tr. Edgardo Dobry. Barcelona: Anagrama, 2005.

!

ARENDT, Hannah. La condición humana. Tr.Ramón Novales. Barcelona. Paidós, 2005 ECEIZA, Antonio. El próximo otoño [Filme-vídeo]. Produção de Elías Querejeta. Direção de Antonio Eceiza. 1963. Duração: 87 min, VHS, Preto e branco.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Trad. Salma Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

FORTES, Tiago. O corpo é um instrumento de trabalho do ator? O percevejo online. v.2, n.1, 2010. http://www.seer.unirio.br

LACAN, Jacques. El seminário, Libro 1. Los escritos técnicos de Freud. Tr. JacquesAlain Miller. Barcelona: Ediciones Paidós, 1975.

MARKS, Laura U. Video haptics and erotics. 1998. Screen n.39, 4. Winter. p.331-348.

MARTÍN-SANTOS, L. Condenada belleza del mundo. Barcelona: Seix Barral, 2004. OCAMPO, S.; WILCOCK, J. R. Los traidores. Buenos Aires: Ed. Losanges, 1956. 79p. RICŒUR, Paul. O conflito das interpretações. Tr. Paulo Bauer. Rio de Janeiro: Imago, 1978. STANISLAVSKY, Konstantin. Creating a role. New York: Theatre Art Books, 1961. SHIVA, Companhia de Teatro. Festa. Direção de Cíntia Abreu. Festival de Teatro da Cidade de Carapicuíba. 2007. ŽIŽEK, Slavoj. Sobre la violencia. Seis reflexiones marginales. Tr. Antonio Fernández. Barcelona: Austral, 2013. 287p.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.