O FEMININO ADENTRA A ARENA: MULHERES E A RELAÇÃO COM O AS LUTAS DE GLADIADOR NA ROMA IMPERIAL

September 29, 2017 | Autor: Renata Garraffoni | Categoria: Gender Studies, History of Women's Studies, Epigrafía romana, Gladiators and the Arena Games
Share Embed


Descrição do Produto

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS

CAMINHOS DA HISTÓRIA Revista do Departamento de História Centro de Ciências Humanas – UNIMONTES

ISSN 1517-3771 CAMINHOS DA HISTÓRIA

Montes Claros

v. 15, n.1

semestral

2010

1

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

COPIRRAITE©: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS – UNIMONTES Reitor Paulo César Gonçalves de Almeida Vice-Reitor João dos Reis Canela CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CCH Diretor Mércio Coelho Antunes Chefe do Departamento de História Wilma Isabel Fagundes Amaral CAMINHOS DA HISTÓRIA Editores Marcos Fábio Martins de Oliveira e Regina Célia Lima Caleiro (Unimontes) Carlos Antonio Aguirre Rojas (Unam-México) Márcia Pereira da Silva (Unesp-Franca) Comissão Editorial Alysson Luiz Freitas de Jesus (Unimontes), Carlos Antonio Aguirre Rojas (Unam-México), César Henrique de Queiroz Porto (Unimontes), Cláudia de Jesus Maia (Unimontes), Filomena Luciene Cordeiro (Unimontes), Laurindo Mékie Pereira (Unimontes), Márcia Pereira da Silva (Unesp-Franca, SP), Marcos Fábio Martins de Oliveira (Unimontes), Marta Verônica Vasconcelos Leite (Unimontes), Regina Célia Lima Caleiro (Unimontes), e, Wilma Isabel Fagundes Amaral (Unimontes). Conselho Consultivo Alzira Lobo de Arruda Campos (aposentada UNESP. Universidade São Marcos), Ana Maria Sayago de Warner (Universidad Nacional de Córdoba/Argentina), Ângelo Carrara (UFJF), Carla M. J. Anastasia (UFMG), Celso Silva Fonseca (UnB), Eliana Regina de Freitas Dutra (UFMG), Estevão Chaves Rezende Martins (UnB), Fábio Faria Mendes (UFV), Helenice Rodrigues da Silva (UFPR), Heloísa M. Starling (UFMG), Ida Lewkowicz (UNESP), Laima Mesgravis (aposentada USP/UNESP. Universidade São Marcos), Marcelo Badaró Mattos (UFF), Marcos Antônio Lopes (UEL), Tarcísio Rodrigues Botelho (PUC-MG), e, Wilson do Nascimento Barbosa (USP). Revisão Ortográfica De responsabilidade dos autores Publicação semestral Endereço UNIMONTES, Campus Universitário “Professor Darcy Ribeiro” Caixa Postal 126 - Cep: 39401-089 - Montes Claros – MG Site: e-mail:

Catalogação: Divisão de Biblioteca Central Prof. Antônio Jorge - Unimontes CAMINHOS DA HISTÓRIA (Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES) Montes Claros, MG – Brasil, 1996 – 1996 - 2010 v.; 24 cm. Semestral ISSN 1517-3771 1. História. 2. História do Brasil.

2

CDD 901 – História 981 – História do Brasil

Capa: Estátua da Loba Capitolina Imagem retirada do site Historia Viva Professor Ernesto – Disponível em . Acesso em: 02/out. 2010. Idealizadora/ Layout da capa: Profª. Marta Verônica Vasconcelos Leite Editoração Gráfica Maria Rodrigues Mendes

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO....................................................................................... 5 DOSSIÊ TEMÁTICO O IMPÉRIO ROMANO E SUA DIVERSIDADE A DIVERSIDADE NO MUNDO ROMANO: CONSIDERAÇÕES SOBRE AS CONTRIBUIÇÕES DA ARQUEOLOGIA Pedro Paulo A. Funari e José Geraldo Costa Grillo................................... 11 RECONSTRUINDO MEMÓRIAS: A RELAÇÃO DE CAIO GRACO COM OS EQUESTRES NAS OBRAS DE VELÉIO PATÉRCULO E APIANO DE ALEXANDRIA Ana Teresa Marques Gonçalves e Alice Maria de Souza............................... 23 LER E ESCREVER EM POMPÉIA: DIVERSIDADE NA CONSTRUÇÃO DE GÊNERO Lourdes Conde Feitosa.............................................................................. 45 O FEMININO ADENTRA A ARENA: MULHERES E A RELAÇÃO COM O AS LUTAS DE GLADIADOR NA ROMA IMPERIAL Renata Senna Garraffoni e Lorena Pantaleão da Silva.................................... 61 ORÍGENES E A DEFINIÇÃO DAS FRONTEIRAS ENTRE O CRISTIANISMO E O JUDAÍSMO NO CONTRA CELSO Gilvan Ventura da Silva e Carolline da Silva Soares.................................... 85 A HISTÓRIA AUGUSTA E A CULTURA POLÍTICA SENATORIAL NO BAIXO IMPÉRIO Carlos Augusto Ribeiro Machado...............................................................101 O IMPÉRIO E SUAS DIVERSIDADES: ROMANOS, SASSÂNIDAS E GERMANOS NO SÉCULO IV Cláudio Umpierre Carlan........................................................................ 123 ARTIGOS REGIONALIDADE E HISTÓRIA: REFLEXÕES SOBRE REGIONALIZAÇÃO NOS ESTUDOS HISTORIOGRÁFICOS MINEIROS Marcos Lobato Martins...........................................................................135 3

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

IMPRENSA, ESPAÇO PÚBLICO E CULTURA POLÍTICA Lincoln de Abreu Penna............................................................................ 155 COMUNICAÇÃO PROJETO MULHERES E VIOLÊNCIA NO NORTE DE MINAS (1980 – 2007) Cláudia de Jesus Maia e Regina Célia Lima Caleiro..................................... 171 NORMAS PARA ENVIO DE ORIGINAIS E SUBMISSÃO DE ARTIGOS E CONTRIBUIÇÕES.................................................................................... 177

4

APRESENTAÇÃO

Apresentamos a Revista Caminhos da História, periódico sob a responsabilidade de pesquisadores membros e/ou convidados do Curso de História da Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes. Organizado recentemente em dossiês, o periódico tem hoje o mérito de contar com a colaboração de profissionais dos mais variados lugares e de muitas Instituições. O Presente número traz Dossiê intitulado O Império Romano e sua diversidade. Trata-se de importante oportunidade para todos os que se interessam pela pesquisa em História Antiga e suas muitas correlações. Como se trata de um período da História de extrema importância, mas que conta com um número menor de pesquisadores se compararmos com a História do Brasil, chamamos a atenção para a novidade e as especificidades da temática. O Dossiê começou a se estruturar quando a professora Dra. Margarida Maria de Carvalho, da Unesp-Franca, aceitou o convite para organizar o trabalho. Desde então, ao esforço da pesquisadora somou-se os esforços de significativos pesquisadores da área que, gentilmente, aceitaram participar da empreitada e hoje integram a lista de autores. Organizamos os trabalhos levando em consideração o aspecto cronológico. O primeiro texto, de autoria de Pedro Paulo Funari e José Geraldo Costa Grillo, analisa “as contribuições da Arqueologia para o conhecimento do mundo romano”, o que inclui informar o percurso da Arqueologia Clássica até os seus atuais interesses e preocupações. O segundo abarca temporalidades diversas, uma vez que trata das “versões de Veléio Patérculo e Apiano de Alexandria” (autores que viveram em contextos distintos) “sobre os fatos que envolveram Caio Graco e os equestres no final do século II a.C” e é de autoria das historiadoras Ana Teresa Marques Gonçalves e Alice Maria de Souza. Em seguida Lourdes Conde Feitosa nos apresenta interessante reflexão sobre “o 5

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

uso da epigrafia como fonte documental” ao considerar grafites desenhados nas paredes de Pompéia em busca de estabelecer as relações de gênero naquela cidade romana do século I d.C. Ainda relacionado às questões de gênero, Renata Senna Garraffoni e Lorena Pantaleão da Silva, em artigo intitulado “O feminino adentra a arena: mulheres e a relação com as lutas de gladiador na Roma Imperial”, discute “a renovação dos estudos clássicos e as mudanças de abordagens sobre a presença das mulheres nas lutas de gladiadores, no contexto da pósmodernidade”. O quinto artigo, permeado pelo conceito de fronteira, examina “as relações entre o judaísmo e o cristianismo no Alto Império com base na obra Contra Celso, de Orígenes”. Para a compreensão do texto, segundo os autores Gilvan Ventura da Silva e Carolline da Silva Soares, é importante constatar que “crenças instituídas em oposição umas às outras, como o cristianismo perante o paganismo e o judaísmo, jamais se mostraram refratárias a influências recíprocas, razão pela qual mesmo uma análise preliminar dos rituais, símbolos e princípios religiosos de matiz pagão, judeu ou cristão não deixa de revelar pontos de interseção e de contato”. Posteriormente, Carlos Augusto Ribeiro Machado é autor de “A História Augusta e a cultura política senatorial no Baixo Império”. O texto trata da “História Augusta como indício (mas também um reforço) da relativa autonomia do Senado romano”. Encerrando o Dossiê, “O Império e suas diversidades: romanos, sassânidas e germanos no século IV” de Cláudio Umpierre Carlan dimensiona a importância do uso de variadas fontes (iconográficas, arqueológicas e textuais) para a produção historiográfica. Trata especificamente da propaganda e da legitimação do poder imperial no “mundo romano após a Tetrarquia, com a luta pelo poder entre Constantino e, mais tarde, Licínio”. Para além do Dossiê, o número que ora apresentamos conta com artigos livres. Eduardo Mei e Suzeley Kalil Mathias, em artigo intitulado “Comunicações e clientelismo no Brasil (1964-1989)”, tecem análise comparativa entre o comportamento de civis e militares quando no poder do Estado em relação ao setor das comunicações, mesmo que os governos militares tenham registrado tendência de investir mais no setor. O texto de Lincoln de Abreu Penna, contextualizado na cidade do Rio de Janeiro e atento às questões de otimização do espaço e embelezamento da urbe então capital do Brasil, equaciona desenvolvimento, população e cotidiano, com ênfase nas culturas políticas dos cidadãos cariocas do início do século XX. Já Marcos 6

DOSSIÊ TEMÁTICO O IMPÉRIO ROMANO E SUA DIVERSIDADE Organização: Margarida Maria de Carvalho

Lobato Martins aborda “propostas de regionalização empregadas nos estudos de processos históricos nas Minas Gerias oitocentistas”. Por fim, e não menos importante, é a Comunicação de Regina Célia Caleiro e Cláudia Maia que divulga pesquisa financiada pela FAPEMIG sobre a “violência de gênero no norte de Minas Gerais a partir dos imperativos sócio-econômicos e culturais, enfatizando a violência contra as mulheres e a atuação das Delegacias de Crime Contra a Mulher e da Defensoria Pública no período de 1980 a 2007”. O texto ainda aponta para publicação programada para o ano de 2011. Acreditamos que o Dossiê, bem como os demais textos, proporcionará momentos de leitura prazerosa e divulgação da pesquisa acadêmica. Desejamos boa leitura a todos.

Márcia Pereira da Silva Editora Margarida Maria de Carvalho Organizadora do Dossiê

7

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

8

DOSSIÊ TEMÁTICO

O IMPÉRIO ROMANO E SUA DIVERSIDADE

9

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

10

A DIVERSIDADE NO MUNDO ROMANO: CONSIDERAÇÕES SOBRE AS CONTRIBUIÇÕES DA ARQUEOLOGIA

Pedro Paulo A. Funari* José Geraldo Costa Grillo* *

Resumo: De modo a evidenciar as contribuições da Arqueologia para o conhecimento do mundo romano, os autores retraçam a trajetória da Arqueologia Clássica, apontando as transformações metodológicas e epistemológicas pelas quais a disciplina passou e seu interesse atual pela variedade e processos de interação cultural. Unitermos: Arqueologia; Mundo romano; Cultura; Diversidade; Interação. Abstract: In order to show the contributions of Archaeology to the knowledge of the Roman world, the authors start with the trajectory of Classical Archaeology, pointing the methodological and epistemological transformations through which the discipline has passed and its current interest for a variety of cultural interaction processes. Keywords: Archaeology; Roman world; Culture; Diversity; Interaction.

* Professor Titular da Universidade Estadual de Campinas, Coordenador do Centro de Estudos Avançados da Unicamp/CEAv (www.gr.unicamp.br/ceav). ** Professor Adjunto da Universidade Federal de São Paulo e pós-doutorando na Universidade Estadual de Campinas sob a supervisão do Prof. Dr. Pedro Paulo A. Funari. Bolsista da FAPESP.

11

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

Introdução O estudo da diversidade no mundo romano tem tido uma contribuição particular a partir da cultura material. Como parte das transformações das últimas décadas na abordagem do mundo antigo, a diversidade passou a ser um elemento cada vez mais levado em conta e abordado. Foram publicados livros sobre esta temática, no Brasil, refletindo a crescente preocupação com a variedade cultural, social, mas também no âmbito das relações de poder, de gênero, e econômica (FUNARI; GARRAFFONI; LETALIEN, 2008; FUNARI, PÉREZ; SILVA, 2008; FUNARI; SILVA, 2009; NOGUEIRA; FUNARI; COLLINS, 2010). Neste artigo, apresentase, em um primeiro momento, a trajetória da disciplina que estuda a cultura material romana, a Arqueologia Clássica, seguida de três estudos de caso. 1 A trajetória da Arqueologia Clássica Convém começar com um balanço sobre a disciplina Arqueologia Clássica e seus avatares (Cf. BERNAL, 1987; HINGLEY, 2000; SCHNAPP, 1993; SHANKS, 1997). AArqueologia Clássica é um campo de pesquisa cujas origens estão no Renascimento. A coleta de obras de arte gregas e romanas iniciou-se na Itália, desde o início da era moderna, mas seria a descoberta das ruínas antigas de Pompéia e Herculano, no século XVIII, a dar a partida do moderno antiquariado. Por séculos, a coleta de obras artísticas fora considerada uma atividade privada, financiada pela nobreza, nos quadros do antigo regime. O novo antiquariado resultou do desenterramento das cidades do Vesúvio e introduziu a preocupação com o menos impressionante, com temas menos dependentes do alto estilo, como no caso dos artefatos de uso quotidiano. Johann Joachim Winckelmann (1717-1768) é considerado o fundador da Arqueologia Clássica como parte da História da Arte e a face germânica da disciplina está ainda conosco e sua ênfase no detalhe e na exaustividade é o resultado desse legado. O Antiquariado iria ligar-se a uma nova tendência, no ocaso do século XVIII. A Revolução Francesa e a difusão do Iluminismo por toda a Europa deu origem a uma nova ciência, a Filologia, o estudo científico da língua, que está na base do desenvolvimento ulterior da História, o estudo do passado pela compreensão dos documentos escritos. Os primeiros teóricos da Filologia buscavam restabelecer a língua Indo-Européia e a primazia das línguas grega e latina para o mundo ocidental, rotulando-as como línguas de primeira classe e, por isso, clássicas. Desde o século XVII, o termo “clássico” era usado para tratar das antigüidades gregas e romanas, mas a Filologia iria usar o termo para se referir ao mundo greco-romano, em oposição à Antigüidade Egípcia e Mesopotâmica, que começavam, pela primeira vez, a serem estudadas por meio da consulta dos documentos escritos e dos monumentos. Os estudos clássicos como um campo acadêmico logo passou a incluir as disciplinas nucleares, grego e latim, mas também a História e a Arqueologia do “mundo clássico”. 12

A DIVERSIDADE NO MUNDO ROMANO Pedro Paulo A. Funari; José Geraldo Costa Grillo

A Arqueologia Clássica como uma atividade acadêmica derivou da Filologia e era, normalmente, praticada em instituições devotadas aos Estudos Clássicos. Em muitos lugares, a Arqueologia e a História da Arte foram consideradas como temas gêmeos, já que o estudo dos restos materiais do mundo antigo concentrou-se, em primeiro lugar, na grande arquitetura, escultura e pintura. A Arqueologia Clássica liga-se, de forma direta, às ambições imperiais de britânicos, franceses, alemães e norteamericanos e, como conseqüência, fundaram-se importantes instituições arqueológicas em Atenas e Roma, como a British School, a École Française o Deutsches Archäologisches Institut e a American Academy, seguidas por escolas arqueológicas em diversos outros sítios clássicos. Desta forma, a Arqueologia Clássica ligava-se, de maneira direta, ao imperialismo. Tem havido muitos debates sobre as definições e aplicações do termo “Arqueologia Clássica”. Em muitas instituições, em particular por influência da definição original alemã, ela está ligada à História da Arte, como no caso dos países de língua alemã, na Itália e em diversas instituições alhures, como nos Estados Unidos. Quase em toda parte, está ligada ao estudo das línguas grega e latina, mas, mais recentemente, tem sido estudada também em instituições arqueológicas sem relação com as línguas, como no caso da Grã-Bretanha. Outro ponto de controvérsia refere-se às civilizações estudadas, pois, às vezes, incluem áreas consideradas importantes para o legado ocidental, como o Egito, o Oriente Próximo e o Egeu. Outra disputa refere-se às suas fronteiras cronológicas, pois mesmo a maioria que considera que ela trata das civilizações grega e romana está dividida sobre seu início e término. Em geral, a Grécia inclui a Grécia pré-helênica até a conquista romana no segundo século a.C. e Roma começa com os sítios proto-históricos itálicos e vai até os Antoninos, no século II d.C., ou até muito mais tarde, com o assentamento de grande número de germanos, no século V d.C. Por fim, a área geográfica varia de acordo com a dispersão de vestígios greco-romanos, com seu centro no Mediterrâneo, mas atingindo ao norte a Escócia, por breve tempo ocupada pelos romanos no século II d.C., ao sul a Arábia e o norte da África, a leste a Turquia e o Oriente Médio e a oeste Portugal e o País de Gales. O termo “clássico” é particularmente ambíguo, pois pode referir-se a um período específico, o acme da civilização, como a Grécia (século V a.C.) ou Roma (final da República e início do Principado) “clássicas”. No interior da Arqueologia, usa-se para designar o zênite de diferentes civilizações, como no caso do maia “clássico”. O termo é ainda utilizado por diversas disciplinas, como em música “clássica” (i.e. estilo de fins do século XVIII). A Arqueologia Clássica, como o estudo arqueológico da Grécia e de Roma, fundase na Filologia e o seu núcleo é filológico. A própria definição da área é baseada em documentos escritos em grego ou latim e, em geral, o arqueólogo clássico deve também aprender essas línguas e, em seguida, especializar-se em uma dessas línguas 13

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

e áreas culturais. Os arqueólogos clássicos herdam a dicotomia grego/latim e são helenistas ou romanistas, com uma especialização em um dos dois campos muito precoce. Subjacentes a essas características, encontra-se o pressuposto que os arqueólogos estudam duas civilizações diferentes, um conceito de origem germânica para se referir a uma ambígua mistura de costumes, ethos e outros aspectos subjetivos de uma identidade comum. Como a disciplina desenvolveu-se como um efeito colateral do estado nacional, ela interpretou os mundos grego e romano como entidades homogêneas, como seriam as nações modernas. Na mesma linha de raciocínio, como os estados modernos consideravam que estavam espalhando uma cultural ocidental superior para povos coloniais inferiores, ávidos por adotar uma cultura mais desenvolvida, os classicistas cunharam os termos “helenização” e “romanização” para se referirem à suposta adoção de traços culturais superiores helênicos e romanos, como no caso da cultura material. Outra característica associada à Arqueologia Clássica e às raízes filológicas é a importância da evidência escrita, estudadas por arqueólogos especialistas em epigrafia e paleografia. A publicação de inscrições, desde meados do século XIX, tem sido uma importante tarefa dos arqueólogos clássicos. O Corpus Vasorum Antiquorum e o Lexicon Iconographicon Mythologiae Classicae são dois exemplos notáveis do modelo filológico na publicação da iconografia. AArqueologia Clássica desenvolveu uma ampla gama de especialidades, da Numismática ao estudo das ânforas, todas caracterizadas pela publicação de corpora de artefatos, em geral no estilo germânico de amplidão e exaustão de referências. Os estudos tipológicos também têm caracterizado a área, sempre a partir de modelos filológicos. Isto é claro no estudo dos vasos pintados gregos e da pintura parietal romana. Em ambos os casos, os estilos são definidos segundo analogias lingüísticas e o método tipológico usado em toda a disciplina para estudar diferentes categorias de artefatos funda-se na Filologia, em particular na sua interpretação do inteiro ciclo de existência de uma língua e de uma categoria material. Na tradição da Filologia Histórica, as línguas são consideradas como um ser vivo, seguindo o ciclo biológico, do nascimento, adolescência, maturidade, decadência e desaparecimento. Este esquema é aplicado à cultura material, com os artefatos seguindo um ciclo de vida. A Arqueologia Clássica também tem se dividido entre as técnicas usadas no Mediterrâneo e nos países do norte da Europa. No Mediterrâneo, há uma longa tradição de desenterramento de estruturas arquitetônicas e isso resultou tanto da despreocupação com os pequenos achados como do esplendor dos vestígios às margens do Mediterrâneo. Mesmo que alguns arqueólogos tenham introduzido escavações estratigráficas, como foi o caso de Nino Lamboglia antes mesmo da Segunda Guerra Mundial, na Itália, a difusão dessas técnicas deveu-se a influências vindas do norte. Mortimer Wheeler e depois Paul Courbin foram os responsáveis pela adoção de metodologias de campo estritas na Arqueologia Clássica. Sir Mortimer 14

A DIVERSIDADE NO MUNDO ROMANO Pedro Paulo A. Funari; José Geraldo Costa Grillo

criou uma estratégia de campo, inspirada na organização militar, e levou a uma revolução nas práticas de escavação, pois, pela primeira vez, passou-se a estar atento à evidência contextual. Além disso, depois da guerra, crescentemente a Arqueologia Clássica tem se preocupado com o estudo dos artefatos comuns, de humildes ânforas e tijolos a quinquilharias de bronze. Em países mediterrâneos, o estudo dos artefatos comuns é conhecido pela expressão latina instrumentum domesticum. A disciplina tem sido caracterizada, ainda, por uma enorme multiplicação de campos de especialização. Nas últimas décadas uma série de questões tem rondado a Arqueologia Clássica. Tem havido um crescente crítico à relevância do estudo do mundo antigo em geral. O latim e o grego eram ensinados nas escolas de elite e o mundo clássico era idealizado pelas potências imperialistas. Entretanto, os estudos clássicos foram deixados de lado pela sociedade, os Impérios coloniais feneceram e a Arqueologia Clássica tem sido desafiada pelos arqueólogos de outras searas por ser muito conservadora, deslocada da ciência moderna. A Arqueologia Clássica tardou a responder a tais contestações no interior da academia, mas está, de forma crescente, reavaliando seu papel social. Ela praticamente ignorou as discussões levantadas pela Arqueologia Processual dos anos 1960 (New Archaeology), mas, hoje, interage mais com as tendências pós-processuais, com destaque para as características filosóficas e discursivas das teorias pós-modernas que se fundam em raízes clássicas comuns. Não é casual que alguns dos mais ativos arqueólogos teóricos hoje sejam arqueólogo clássico. As perspectivas da disciplina dependem de sua capacidade de interagir com as novas realidades. Muitas vias estão abertas, em particular a cooperação com arqueólogos que estudam outras civilizações e períodos, uma tendência presente no mundo anglo-saxão. O desenvolvimento das áreas específicas tradicionais continuará, como nas ciências em geral, mas sua relevância será cada vez mais avaliada por sua habilidade de dirigir-se a um público acadêmico mais amplo. A Arqueologia Clássica possui uma longa e rica tradição e seu futuro liga-se ao desafio de manter seu legado e, ao mesmo tempo, interagir com as discussões epistemológicas contemporâneas. 2 Estudos de caso da diversidade A. Os castros e a Palestina No noroeste da Península Ibérica, desenvolveu-se, nos últimos séculos a.C., uma sociedade celta cujos vestígios chegaram até nós, na forma de construções muradas em elevações e que são conhecidas pelo nome de castros. Esse nome, muito comum nessa região, tanto do lado espanhol como português, deriva do termo latino castrum, 15

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

usado pelos romanos para designar um local fortificado. O sobrenome Castro provém da quantidade de castros na região, também muito usado no Brasil. Os vestígios dos castros mostram restos não apenas das muralhas, como das casas e dos alimentos usados por essa sociedade de agricultores e criadores de animais, com destaque para os restos de bois e vacas, a indicar o consumo de carne bovina e de derivados de leite. Os povos que viviam nesses castros foram encontrados pelos romanos e foram incorporados ao domínio romano. Como usar essas fontes arqueológicas? Inês Sastre (2002) mostrou como houve mudanças nesses castros do período anterior à chegada dos romanos e à sua inclusão no império. Sastre detectou que havia, nos assentamentos anteriores, diferenciação de status, com conflitos internos e entre os diversos castros. A chegada dos romanos acentuou essas diferenças e criou condições para o aparecimento de uma autêntica classe dominante, parte da estratégia imperial de cooptação das lideranças locais, em todo o império. Essa preocupação está presente nas fontes literárias e há inúmeros exemplos na tradição textual que a isso se referem. As fontes arqueológicas dos castros de época romana revelam uma mudança importante, na forma do aparecimento de construções voltadas para o armazenamento e controle da distribuição de alimentos, por parte da nascente elite, assim como se registram ocupações de regiões periféricas menos férteis pelos segmentos empobrecidos da antiga comunidade. Esse processo, na origem das primeiras elites nessa região, é relevante tanto em termos metodológicos, em geral, como para o caso específico do Brasil. O processo de constituição de elites em sociedades mais ou menos igualitárias, com a participação de um poder externo, de uma sociedade altamente estratificada, como a romana, encontra paralelos em muitos outros locais e períodos da História, como no contato entre europeus e indígenas na América ou nativos, na África, em época moderna. A tradição da ocupação das áreas altas, em assentamentos irregulares e com hierarquização viria a influenciar, posteriormente, o surgimento das cidades medievais portuguesas e coloniais brasileiras (Cf. FUNARI, 2005). As fontes arqueológicas foram utilizadas pelo historiador, neste caso, tanto em conjunção com a tradição literária, quanto com a analogia etnográfica, resultando em uma análise original que rompe com a abordagem tradicional, que encarava a ocupação celta em toda Europa sob o mesmo prisma. A especificidade de cada contexto histórico pode ser bem explorada pelo historiador atento às fontes arqueológicas. Mesmo nas sociedades que utilizam a escrita mantém-se largos contingentes populacionais à margem das letras e podemos dizer que, em grande parte da História, os iletrados constituem maiorias ausentes das fontes escritas que apenas as descrevem, distante e negativamente. Neste caso, também, as fontes arqueológicas são importantes para os historiadores, de modo a ter acesso a segmentos sociais 16

A DIVERSIDADE NO MUNDO ROMANO Pedro Paulo A. Funari; José Geraldo Costa Grillo

pouco visíveis ou conhecidos. Isto se passa com o estudo do Jesus histórico e dos seus primeiros seguidores da Galiléia, todos analfabetos. As fontes literárias sobre Jesus são os Evangelhos, escritos ao menos quarenta anos após sua morte, em grego, língua que nem mesmo Jesus dominava, falante que era do aramaico. As fontes arqueológicas mostraram-se importantes para o estudo de Jesus e do contexto em que ele viveu, pregou e morreu. Por meio de escavações de aldeias judaicas da época de Jesus, sabemos que Jesus provinha de uma aldeia muito pequena, Nazaré, com poucas centenas de pessoas, que as aldeias da Galiléia que Jesus freqüentava eram também pequenas e com casas de pau a pique e cobertas com tetos de cobertura vegetal (Cf. CROSSAN; REED, 2002; FUNARI, 2010). Os barcos dos pescadores como Pedro, o apóstolo, eram pequenos e simples. Já as fontes arqueológicas do lado das elites mostram outra realidade: a inscrição com o nome de Pilatos, os vestígios monumentais das casas da elite sacerdotal judaica, com sua decoração romana, o ossuário de Caifás, tudo isso atesta uma vida cosmopolita, em que a elite local bem se entendia com as autoridades romanas. Essas fontes arqueológicas permitem melhor entender as frases de Jesus, reportadas muito depois, contra a riqueza e em prol dos pobres, como no famoso Sermão da Montanha. B. As cidades gregas da Ásia Menor As cidades gregas da província da Ásia Menor constituem-se em um caso semelhante de diversidade e de interação com a cultura com romana. Foram os estudos sobre o culto ao imperador, nessa região, que trouxeram isso à tona. O culto imperial variava de lugar para lugar, conforme as particularidades das cidades, fazendo com que cada uma reagisse de maneira diferente à sua presença. Percepção essa que só foi possível devido a um esforço mais amplo de estudo, no qual o uso das arqueológicas assumiu um papel inovador para a compreensão das relações entre Roma e as cidades provinciais. Na província da Ásia Menor, conforme Stephen Mitchell (1995), onde a unidade básica da organização política era a cidade (pólis), as cidades gregas tinham de ajustar seus ideais de autonomia e de liberdade estabelecidos no passado à realidade presente do domínio romano. Ao longo do tempo, do período helenístico ao romano, esses ideais praticamente se extinguiram; o que não significou o fim das cidades gregas, pois o governo romano limitava-se à manutenção da ordem, arrecadação de impostos e administração da justiça. Com a finalidade de prover uma estrutura administrativa para a província, os imperadores mantiveram as cidades como comunidades organizadas (póleis), permitindo, no mais das vezes, que permanecessem com governo próprio e com poderes locais. Da perspectiva romana, entretanto, as cidades provinciais, sejam quais fossem, eram unidades integrantes do amplo sistema imperial de administração e controle. Portanto, uma a uma teve de estabelecer seu lugar e sua postura face ao domínio romano. 17

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

As maneiras de Roma se relacionar com as cidades provinciais e destas com ela tornaram-se o ponto crucial dos estudos sobre o culto imperial. Glen Warren Bowersock (1965), por um lado, apoiado quase que exclusivamente nas fontes escritas, conclui que os cultos de magistrados romanos no Oriente revelam mais acerca de diplomacia e clientela do que da religião dos gregos, pois as instituições gregas e romanas fundiram-se com incrível facilidade desde o período da República tardia, dando um impulso adicional à atividade diplomática romana; nesse contexto, o culto imperial foi fundamentalmente uma extensão desse sistema diplomático, pertencendo a essa evolução natural que Augusto estimulou em suas relações com as cidades gregas visando à coesão e à estabilidade. Simon R. F. Price (1984), por outro lado, atento, também, às fontes arqueológicas, como templos, estátuas e textos epigráficos entre outras, entende que o culto imperial na Ásia Menor, antes de ter sido um fenômeno religioso superficial, foi um sistema que, ao mesmo tempo, definia a posição do imperador e formava em grande medida a rede de poder que constituía o tecido social, em suma, um modo de conceituação do mundo, que, junto com a política e diplomacia, construiu a realidade do império romano. Diante dessa nova situação, as cidades da Ásia Menor tiveram de se sujeitarem ao domínio romano, e, apesar da diversidade de suas culturas locais, a resposta dada em comum para esse problema foi, segundo Price (1984), encontrar um lugar para o imperador romano no âmbito dos cultos tradicionais aos seus deuses. Já habituadas com os cultos helenísticos aos dirigentes, não lhes foi estranho sintonizar o culto ao imperador com essa prática. Todavia, algumas mudanças foram efetuadas na dinâmica do culto. Diferentemente dos decretos helenísticos sobre os cultos reais, que descrevem simplesmente as benfeitorias políticas do rei, os de Augusto estabeleciam comparações entre suas ações e as dos deuses. Uma vez que os deuses desde tempos remotos eram descritos como benfeitores, Augusto passou a ser tido como benfeitor de todo o mundo. O arcabouço fundamental do culto ao imperador era formado pelos festivais imperiais. A maneira encontrada de introduzir o imperador na vida da comunidade foi adaptar um festival tradicional em honra da principal divindade local. Através de assimilações, identificações e de dedicações conjuntas da cidade, o imperador entrava em relacionamento íntimo com os deuses tradicionais de cada cidade. O culto imperial provocou transformações nas cidades. O espaço físico foi reorganizado. Mudanças arquitetônicas aconteceram em todas as cidades que tinham templos imperiais; pois, se culto ao imperador era a tentativa de prover um lugar para ele, era natural que expressão física desse lugar se encontrasse no interior de seu espaço cívico, isto é, integrado ao centro da vida religiosa, política e econômica da comunidade. Portanto, os templos imperiais situavam-se, geralmente, nas posições mais destacadas no interior da cidade. Em Éfeso, na Lídia, por exemplo, toda a praça superior foi reprojetada durante o principado de Augusto (Cf. PRICE, 1984, 18

A DIVERSIDADE NO MUNDO ROMANO Pedro Paulo A. Funari; José Geraldo Costa Grillo

p. 139, fig. 3): entre o Pritaneu e o Buleutérion, encontram-se os restos de dois templos imperiais e, no centro da praça, há outro templo de Augusto. No período logo a seguir, diante dos dois templos imperiais, foi construído um pórtico real dedicado a Ártemis (a deusa da cidade), Augusto e Tibério, contendo uma sala com a estátua de Augusto. No final do século I d.C., foi construído mais um templo imperial, agora dedicado a Domiciano. Assim alocados, os templos imperiais inscreviam, no coração da cidade, uma expressão permanente do imperador, criando, conforme Paul Zanker (1988), uma espécie de palco arquitetônico no qual ele se fazia lembrar constantemente a todos os moradores da cidade. Lembrança visual que não se esgotava nos aspectos arquitetônicos; fazia-se também presente nas representações pictóricas, nas estátuas espalhadas alhures e nas moedas com sua efígie, as quais circulavam em toda parte. Em suma, era uma linguagem visual, surgida no contexto das formas de se homenagear o imperador, vindo a desembocar num sistema de comunicação no qual se integravam as imagens e o simbolismo do império. A remodelação do espaço físico afetou as identidades das cidades. Os estudos arqueológicos dos espaços religiosos da cidade grega (Cf. ÉTIENNE; MÜLLER; PROST, 2000) têm apontado uma relação entre templos e sociedade: uma vez que suas construções envolviam boa parte da população e, sobretudo, as autoridades da cidade, eles encarnam uma imagem determinada que a cidade intenta mostrar de si mesma, de acordo com sua ideologia e sua história. Esses monumentos de natureza religiosa eram um dos lugares privilegiados de memória, pois exprimiam, através de suas pinturas, esculturas (estatuária e baixos-relevos) etc., mitos, lendas e tradições locais em torno dos quais se estabeleciam os traços identitários das cidades. Nesse sentido, as cidades da Ásia Menor exprimiam suas identidades pela preservação das tradições gregas, estabelecendo cultos antigos, usualmente envolvendo deuses do Olimpo, mas atualizados por mitos e lendas locais que os relacionam à fundação da cidade, a exemplo do culto de Ártemis em Éfeso (Cf. MITCHELL, 1995). Diante da nova cena, entretanto, em que o imperador tem um papel importante, as cidades já não podem ter o sentimento de pertença de antes. Como interpretar essa situação? Deixaram os gregos de serem gregos? Tornaram-se romanos? Não, de modo nenhum! Esse tipo de mudança não precisa necessariamente ser explicado através de polaridades com romanos de um lado e gregos de outro; trata-se de um processo de interação entre a cultura grega e a romana. Ambas se modificam nesse contato: assim como as cidades gregas foram modificadas, Roma não é mais a mesma: o imperador também teve de manter a organização política das cidades e adaptar seu culto aos cultos dos reis helenísticos pré-existentes. A questão não se colocava mais em termos de ser grego ou romano, mas sim em como, de modo paradoxal, permanecer grego tornando-se romano. Identidades não são exclusivas, mas combinatórias (Cf. WOOLF, 1994; 1997). Como ressalta Maurice Sartre (2007), em numerosas cidades da Ásia Menor, a identidade grega já era dupla: as cidades se 19

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

tomam ao mesmo tempo por gregas e por gálatas, lídias, lícias, frígias etc. Não há dúvida de que a dominação romana as forçou a assumirem uma nova identidade; pois, Roma deveria incitar as cidades das províncias a se sentirem “romanas”. Todavia, trata-se de uma identidade suplementar, que se agrega às já existentes e as modifica. Assim, a identidade grega das cidades da Ásia Menor foi se modificando pouco a pouco e em ritmos diferentes conforme os lugares e seus contextos. Como Roma nunca procurou impor sua cultura, as cidades puderam se sentir romanas sem o ser culturalmente. Conclusão A cultura material contribui, de forma decisiva, para que se possa estudar e avaliar a diversidade social, cultural e das relações de poder no mundo romano. Regiões tão distantes, a ocidente e a oriente, testemunham como a interação cultural do mundo romano manifestava-se nos rincões mais recuados. As evidências materiais permitem um conhecimento mais amplo e variado de uma diversidade cada vez mais explorada e investigada pelos estudiosos da Antiguidade romana. Agradecimentos Agradecemos aos seguintes colegas: Martin Bernal, Greg Woolf, Richard Hingley, Paulo Nogueira, Charles E. Orser, Jr., Alan Schnapp e Michael Shanks. Mencionamos o apoio institucional do Grupo de Pesquisa Arqueologia Histórica, cadastrado no CNPq e sediado na UNICAMP, da UNIFESP, do CNPq e da FAPESP. A responsabilidade pelas idéias restringe-se aos autores. Referências BERNAL, M. Black Athena: the Afroasiatic roots of Classical civilization. New Brunswick: Rutgers, 1987. BOWERSOCK, G. W. Augustus and the Greek world. Oxford: Clarendon, 1965. CROSSAN, J. D.; REED, J. Excavating Jesus: beneath the stones, behind the texts. New York: Harper Collins, 2002. FUNARI, P. P. A. O Jesus histórico e a contribuição da Arqueologia [A sair, em livro organizado por André Leonardo Chevitarese, Gabriele Cornelli e Mônica Selvatici, 2010]. FUNARI, P. P. A.; GARRAFFONI, R. S.; LETALIEN, B. (Org.). New perspectives on the ancient world: modern perceptions, ancient representations. Oxford: Archaeopress, 2008. 20

A DIVERSIDADE NO MUNDO ROMANO Pedro Paulo A. Funari; José Geraldo Costa Grillo

FUNARI, P. P. A.; PÉREZ, D.; SILVA, G. J. (Org.). Arqueología e historia del mundo antiguo: contribuciones brasileñas y españolas. Oxford: Archaeopress, 2008. FUNARI, P. P. A.; SILVA, M. A. O. (Org.). Política e identidades no Mundo Antigo. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2009. HINGLEY, R. Roman officers and English gentlemen: the imperial origins of Roman archaeology. London; New York: Routledge, 2000. MITCHELL, S. Anatolia: land, men and Gods in Asia Minor. Volume I – The Celts in Anatolia and the impact of Roman rule. Oxford: Clarendon, 1995. NOGUEIRA, P. A. S.; FUNARI, P. P. A.; COLLINS, J. J. (Org.). Identidades fluidas no judaísmo antigo e no cristianismo primitivo. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2010. PRICE, S. R. F. Rituals and power: the Roman imperial cult in Asia Minor. Cambridge: Cambridge University, 1984. SARTRE, M. Romanization en Asie Mineure? In: URSO, G. (Ed.), Tra Oriente e Occidente. Indigeni, greci e romani in Asia Minore. Atti del convegno internazionale. Cividale del Friuli, 28-30 settembre 2006. I convegni dela Fonazione Niccolò Canussio, 6. Pisa: ETS, 2007. p. 229-245. SASTRE, I. Forms of social inequality in the Castro culture of North-West Iberia, European Journal of Archaeology, 5, 2, p. 213-248, 2002. SCHNAPP, A. La conquête du passé: aux origines de l’archéologie. Paris: Carré, 1993. SHANKS, M. Classical archaeology of Greece: experiences of the discipline. London: Routledge, 1997. WOOLF, G. Becoming Roman, staying Greek: culture, identity and the civilising in the Roman East. Proceeding of the Cambridge Philological Society, 40, p. 116143, 1994. _____ Beyond Romans and natives. World Archaeology, 28, p. 339-350, 1997. ZANKER, P. The power of images in the Age of Augustus. Ann Arbor: University of Michigan, 1988.

21

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

22

RECONSTRUINDO MEMÓRIAS: A RELAÇÃO DE CAIO GRACO COM OS EQUESTRES NAS OBRAS DE VELÉIO PATÉRCULO E APIANO DE ALEXANDRIA Ana Teresa Marques Gonçalves* Alice Maria de Souza* *

Resumo: Neste artigo, apresentamos as versões de Veléio Patérculo e Apiano de Alexandria sobre os fatos que envolveram Caio Graco e os equestres no final do século II a.C. Como a produção de um texto não é inocente ou desvinculada de interesses pessoais e sociais, analisamos as possíveis justificativas para as divergências de interpretação destes dois autores que viveram em contextos distintos. Nosso objetivo, neste momento, é analisar a reconstrução da memória sobre a relação entre Caio Graco e os membros da ordem equestre, estabelecida mediante a aplicação da Lex Repetundarum. Assim, a análise dos relatos dos autores tem, como foco principal, a maneira como cada um deles interpretou e transmitiu o fato concernente à transferência da direção dos Tribunais Provinciais para a responsabilidade dos equestres. Unitermos: Memória; Identidades; Imaginário; Veléio Patérculo; Apiano de Alexandria. Abstract: This article aims to present the versions of Velleius Paterculus and Appianus of Alexandria on the facts about Gaius Gracchus and the equestrians in the end of Second century b.C. As there is no innocent production of a text and it is always linked with personal and social interests, the possible justifications for the divergences of interpretation of these two authors, who had lived in distinct

* Professora Adjunta de História Antiga e Medieval da Universidade Federal de Goiás (UFG). Doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP). Bolsista Produtividade do CNPq. ** Mestre em História pela UFG.

23

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

contexts, will analyzed here. We analyze the reconstruction of the memory on the relation between Gaius Gracchus and the members of the equestrian order, established by the application of the Lex Repetundarum. Thus, the analysis of the stories of the authors has, as main focus, the way as each one of them interpreted and transmitted the fact about the transference of the direction of the Provincial Courts for the responsibility of the equestrians. Keywords: Memory; Identities; Imaginary; Velleius Paterculus; Appianus of Alexandria.

Caio Graco era irmão mais novo de Tibério Graco, ambos filhos de Tibério Semprônio Graco e Cornélia Semprônia. Caio participou ativamente do projeto de reforma agrária1 empreendido por seu irmão, compondo, juntamente com ele e Ápio Cláudio (sogro de Tibério), o Triunvirato responsável pelo recenseamento e redistribuição das terras públicas (PLUTARCO. Vida de Tibério Graco, 13), e permaneceu afastado da vida pública por dez anos, desde a morte do irmão até sua candidatura ao Tribunato da Plebe. Ao longo de suas duas magistraturas, Caio propôs uma série de leis2 , das quais destacamos, neste artigo, a Lex Repetundarum3 , e sua análise realizada por Veléio Patérculo, no século I d.C., e por Apiano de Alexandria, no século II d.C.. Esta lei, também chamada de Lei Judiciária, data de 122 a.C., e propunha que a direção dos Tribunais Provinciais, responsáveis pelo julgamento dos crimes de extorsão e

1

2

3

A proposta de reforma agrária foi feita por Tibério Graco, Tribuno da Plebe em 133 a.C., com base na Lei Licínia Sêxtia (377 a.C.) que limitava a possessão de terras públicas (o ager publicus) por particulares. Esta reforma consistia no confisco do excedente destas terras que estavam nas mãos das famílias ricas e sua distribuição à plebe. Dentre estas, podemos cita a Lei Frumentária, que responsabilizava o Estado pela distribuição mensal de trigo a preço fixo e mais baixo que o de mercado para os cidadãos romanos; a lei que propunha a fundação de colônias fora da Península Itálica; além de seus projetos de abertura, pavimentação e sinalização das estradas; e a proposta de alargar a cidadania romana até os limites das províncias italianas, reforma que, juntamente com a fundação de colônias foram empreendidas em seu segundo mandato (APIANO. História Romana. Guerras Civis, I.23), e causaram a grande reação do Senado que culminou na perseguição e morte do Tribuno da Plebe e de seus partidários. Esta lei, mesmo não sendo sua finalidade última, auxiliou os equestres em sua busca por poder político, que chegaria ao ápice durante o Império, quando a ordem equestre forneceu aos Príncipes os funcionários dos cargos de maior importância como, por exemplo, os Prefeitos do Egito e as Prefeituras do Pretório, além de criar as condições censitárias necessárias para que os cavaleiros disputassem as cadeiras no Senado e as magistraturas nas eleições.

24

RECONSTRUINDO MEMÓRIAS: A RELAÇÃO DE CAIO GRACO COM OS EQUESTRES... Ana Teresa Marques Gonçalves; Alice Maria de Souza

corrupção, fosse colocada sob a responsabilidade dos membros da ordem equestre4 (COMBÉS, 1977, p.203) que, com este ato, ganharam maior poder e influência política, além de renovar os contratos para a cobrança de impostos pelos Publicanos da província da Ásia (ALFÖLDY, 1989, p.92). A estreita relação entre memória e identidade, muito permeada pelos imaginários concernentes ao presente e ao passado, deve ser considerada ao analisarmos o relato de Veléio Patérculo e Apiano de Alexandria. A construção da identidade tem na redescoberta do passado um de seus construtores. Não existe a identidade única e soberana, pois cada grupo constrói e reconstrói os meios simbólicos para o mútuo reconhecimento de seus membros, de acordo com suas necessidades e objetivos. Neste processo, a presença de um passado comum ao grupo oferece coerência para a sua existência, por dar a ele a idéia de continuidade; para tanto, a memória pode sofrer manipulações. Este processo de reorganização memorialística pode ocorrer em dois sentidos: tanto o grupo pode ser associado ao passado para suprir suas necessidades identitárias, quanto um novo membro pode buscar ser reconhecido como integrante do grupo pela assunção da versão do passado, ou posicionamentos frente a este, sustentada pelos seus membros.

4

Os membros da ordem equestre constituíam a cavalaria romana, organizada em dezoito Centúrias desde a reforma empreendia pelo Rei Sérvio Túlio, que estabeleceu o sistema fundado na divisão dos cidadãos em classes etárias e censitárias, com duplo fim militar e eleitoral. O sistema serviano organizou o exército em 193 centúrias recrutadas em cinco classes censitárias e permaneceu sendo a base do censo romano até o fim da República. De acordo com este sistema, os cavaleiros eram recrutados entre aqueles que possuíam o censo mais elevado, constituindo assim a primeira classe censitária. Este recrutamento plutocrático e aristocrático explica as características da ordem equestre (NICOLET, 1974, p.15-16): era plutocrática, porque seus membros eram escolhidos com base no censo; e aristocrática, porque inicialmente, a cavalaria era recrutada nas famílias ligadas à monarquia, e mesmo quando seu recrutamento passou a ser feito em bases mais amplas, esta ordem continuou representando esta antiga tradição. As ordens equestre e senatorial mantinham estreita identificação entre si, mas havia diferenças entre elas que resultavam de suas especializações, das incompatibilidades e proibições legais que se criaram. Após as magistraturas de Caio Graco como Tribuno da Plebe, entretanto, as duas ordens começaram a se separar. O conflito político entre o Senado e a ordem equestre nasceu da ascensão à função judiciária desta última, passando pelo acesso à magistratura, a linha que separava as duas ordens. A partir de então, as duas ordens passaram a apresentar fronteiras mais nítidas no que se refere aos elementos de definição de ambas, principalmente à possessão do cavalo público, principal prerrogativa da ordem equestre, que os membros do Senado e seus descendentes deixaram de possuir. Entretanto, os objetivos e ambições de ambas as ordens no que se refere à participação na direção do Estado não sofreram mudanças suficientes para que estes grupos sociais se tornarem inimigos.

25

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

Veléio Patérculo5 escreveu, no início do século I d.C., um breve relato sobre os Tribunatos de Caio Graco, que compreende os capítulos seis e sete do livro dois da História Romana. Nesta narrativa rápida e concisa, encontramos a caracterização de Caio Graco, a explicação de sua busca pelo Tribunato da Plebe e a enumeração de suas reformas. Também somos informados sobre a perseguição a Caio e seus partidários, e sobre as penas públicas sofridas pelo Cônsul Lúcio Opímio, líder da perseguição ao Tribuno. Apesar de ser descendente de uma família equestre, Veléio Patérculo censura todos os atos de Caio Graco, inclusive a lei que possibilitou o crescimento da importância política da ordem equestre. É por meio da análise de todo o relato sobre os Tribunatos de Caio Graco que compreendemos os motivos que levaram este ex-equestre a censurar as mudanças derivadas da aplicação da Lex Repetundarum, pois ao longo da narrativa o autor construiu a defesa de valores que, segundo ele, foram negados por Caio, o que pode justificar sua postura repreensiva. A atmosfera em que Veléio produziu sua obra influenciou de forma marcante os seus posicionamentos diante dos fatos; afinal, o período era de transição entre o fim das Guerras Civis e o estabelecimento do Principado. Neste contexto, o resgate dos antigos valores civis e políticos era importante para construir a justificativa da nova ordem, como resgate dos tempos áureos da República. O contexto em que Veléio produziu sua obra concerne ao governo de Tibério, caracterizado por uma grave crise política. Uma atmosfera de conspirações e disputas de poder envolvia esta época, que ainda configurava o período de transição entre República e Principado. Deste contexto, surgem diversos traços capazes de explicar algumas escolhas e silêncios de Veléio em sua narrativa. Em linhas gerais, o governo de Tibério foi marcado por uma péssima relação deste com o Senado. Apesar de ter amigos e apoio particular de Senadores, a história das relações de Tibério com a casa senatorial foi envolvida por uma atmosfera de

5

26

Marco Veléio Patérculo descendia de uma família era da Campânia cujo histórico indica grande influência militar e política em seu passado. O autor nasceu entre 19 e 20 a.C. (SUMNER, 1970, p.275), iniciou sua participação na vida pública romana em 2 a.C. e desfrutou de uma razoavelmente rápida promoção da ordem equestre para a senatorial (SUMNER, 1970, p.265). Há registros de que ele serviu como oficial de cavalaria sob o comando do futuro Imperador Tibério na Germânia no ano 4 d. C, e mais tarde na Panônia, na Trácia, na Macedônia, na Acáia e na Ásia, tendo com isto conhecido bem o território do Império e o funcionamento da máquina militar romana. Ele foi promovido a Questor, pela influência de Marco Vinício de Tibério (SUMNER, 1970, p.271-272 e 274-275), foi Prefeito do Pretório durante a campanha do Reno e acompanhou o triunfo de Tibério em 12 d. C. (SÁNCHEZ MANZANO, 2001, p.8-9). Depois disto, Veléio, juntamente com seu irmão, assumiu uma cadeira no Senado, quando ambos foram eleitos Pretores em 14 d.C., estando inscritos na lista dos candidati caesaris – ou seja, sua candidatura era apoiada pelo Imperador – que havia sido originalmente arranjada por Augusto e, depois da morte deste, formalmente confirmada pelo novo Imperador. Veléio morreu algum tempo depois da conspiração de Sejano, deixou dois filhos e provavelmente uma fortuna substancial para ambos seguirem normalmente uma carreira senatorial até o Consulado (SUMNER, 1970, p.297).

RECONSTRUINDO MEMÓRIAS: A RELAÇÃO DE CAIO GRACO COM OS EQUESTRES... Ana Teresa Marques Gonçalves; Alice Maria de Souza

medo, suspeita e hostilidade, que se estabeleceu desde muito cedo em suas transações, ainda que Tibério parecesse realmente ter desejado ver o Senado como um honesto parceiro nos negócios do Estado (SHOTTER, 2004, p.27-28). O período tiberiano não marcou nenhuma reversão às práticas da República. Tibério, ao contrário de Augusto, não cuidou para obter do povo sua afeição, mas mantinha seu respeito. No campo da legislação social, o Imperador parece ter sido motivado pelo desejo de preservar a dignidade tradicional das altas ordens no Estado (SEAGER, 2005, p.115-117). A carreira equestre sob seu governo não sofreu inovações, o Senado, em princípio, conservou a administração de Roma e da Península Itálica e os magistrados viram-se resumidos a tarefas administrativas, a Questura, a Pretura e o Consulado eram funções imperiais reservadas aos Senadores, mas os Imperadores, aos poucos, criaram uma administração paralela confiada aos cavaleiros (que se desenvolveu lenta e irregularmente, de acordo com a política de cada Imperador). No âmbito sócio-cultural, Tibério seguiu o modo de conduta de seu antecessor, coerente com as necessidades intrínsecas do Principado e que visava dar maior coesão e unidade ao Império. Assim como no governo de Augusto, a propaganda oficial se esforçou em representar os Príncipes como restitutores ou conservatores rei publicae (GIL, 1961, p.125). O controle e supressão da memória, considerada potencialmente perigosa pelos romanos, tornou-se um componente crucial da autoridade política durante o Principado, cuja memória era seletiva (GOWING, 2005, p.12). Tibério deixou claro, assim que assumiu o poder, que o controle da memória seria importante em sua agenda (GOWING, 2005, p.28). A literatura desse período reflete bem isso6 (GOWING, 2005, p.32): na História Romana de Veléio Patérculo não há a idéia de ruptura entre República e Principado7 . Este se diferenciava daquela pela elevação do Princeps e era apenas uma maneira de restabelecer e manter a República, não uma nova forma de governo (GOWING, 2005, p.34-35). Não podemos, por isto, afirmar que a obra de Veléio fez parte da propaganda oficial do governo, sendo muito mais um discurso de lealdade ao Imperador (FANTHAN, 1996, p.129).

6

Enquanto a literatura do período augustano visava à legitimação do Príncipe através dos poemas épicos que identificavam o governo de Augusto com o objetivo buscado desde o início da História romana, a literatura produzida durante o governo de Tibério, segundo Allain M. Gowing (2005, p.32), era essencialmente histórica e explicitamente designada para promover a memória oficial. Esta essência justifica-se pelo controle da memória, pois o período que abrange os governos de Tibério e Augusto constituiu a transição entre as guerras do fim da República e o estabelecimento de uma nova lógica sócio-administrativa romana. A memória, em períodos como este, sempre convida a comparações com o passado (GOWING, 2005, p.30), o que seria muito perigoso no início do Império, e justificaria o controle e manipulação das informações sobre o passado republicano. 7 A descrição do retorno de Otávio a Roma, depois da batalha do Ácio, revela isto: “Pôs-se fim às Guerras Civis depois de vinte anos [...]. Aquela inveterada e antiga constituição do Estado foi recuperada (VELÉIO PATÉRCULO. História Romana, II. 89)”.

27

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

Neste contexto permeado por intrigas palacianas, pela atuação da propaganda oficial e pelo controle da memória, Marco Veléio Patérculo escreveu sua História Romana. Este relato do passado romano apresenta traços que refletem o contexto de sua produção, sendo o principal deles a sua peculiar interpretação dos tempos republicanos e o desejo de apresentar o Imperador como predestinado à direção do Estado e mantenedor da Res publica. A obra de Veléio Patérculo, escrita em dois pequenos volumes, abarca a história de Roma desde sua fundação até os dias contemporâneos ao autor, e nos oferece uma interessante interpretação sobre os fatos que marcaram o Tribunato da Plebe de Caio Graco e sua relação com a ordem equestre, no final do século II a.C. A obra foi dedicada ao Cônsul de 30 d.C., Marco Vinício8 , como um recurso para moderar o forte elemento panegírico da obra, em relação a Tibério: o endereçamento dos elogios a Tibério a um amigo9 da mesma opinião faria com que a história fosse vista como um domínio privado dos dois (MARINCOLA, 2004, p.56). Neste sentido, nem amizade10 , nem patronagem11 justificariam a dedicatória, que seria um artifício retórico para amenizar os desvelados louvores ao Imperador. A localização temporal dos Tribunatos de Caio é feita tanto com referência ao Consulado de Marco Vinício – “[...] já que desde então até seu Consulado, Marco

8

Marco Vinício tinha trinta e cinco anos e descendia de uma família da Campânia que alcançou prestígio pela participação nas guerras do fim da República. Seu avô foi Cônsul em 19 a.C. e amigo de Augusto (SUMNER, 1970, p.288). Veléio Patérculo iniciou sua carreira militar sob o comando do pai de Marco Vinício, Públio Vinício, segundo Sánchez Manzano (2001, p.9), desempenhando o cargo de Tribuno Militar. 9 Não se pode afirmar apenas a existência de amizade entre Veléio Patérculo e Marco Vinício, sobretudo porque ao longo da obra que nos chegou não há, entre os muitos vocativos ao Cônsul de 30 d.C., ao menos um em que Veléio se refira a Marco Vinício com o adjetivo de “amigo” (amicus), ou faça qualquer alusão a um laço de amizade (amicitia). Portanto, muito mais do que pela amizade, a relação de Veléio Patérculo com Marco Vinício provavelmente era balizada pela patronagem, considerandose que o patronato na Antiguidade não se restringia a relações de dependência social ou financeira, mas frequentemente se configurava como uma convenção literária vantajosa para o autor e para o patrono. Veléio Patérculo habilmente dignificou seu trabalho com referências ao Cônsul, para quem foi interessante sua menção na história como um forte apoio de Tibério, além da honra de receber a dedicatória de uma obra durante sua magistratura (WOODMAN, 1975, p.274). 10 David Konstan afirma que amicitia designa, em geral, a relação específica entre amigos (amici), apesar da longa prevalência da idéia de que amicitia era a palavra utilizada para fazer referência às relações entre partidos, não possuindo necessariamente um sentimento de intimidade (KONSTAN, 2005, p.173-174). A patronagem, tradicionalmente caracterizada pela “relação pessoal assimétrica, que envolve expectativas de intercâmbios recíprocos com um potencial para a exploração” (KONSTAN, 2005, p.192-193), pode coexistir com a amizade, ou seja, nem toda conexão entre patronos e protegidos é descrita como amicitia; quando esse é o caso, o par também é, ou deseja ser, considerado como um par de amigos (KONSTAN, 2005, p.194). 11 A patronagem caracteriza-se por três traços que a distinguem de outros tipos de relação: envolve uma reciprocidade de proteção e serviços; é uma relação pessoal e de considerável duração, além de ser assimétrica no que diz respeito ao status dos indivíduos envolvidos e nos tipos de favores e serviços comungados (SALLER, 2002, p.1-3).

28

RECONSTRUINDO MEMÓRIAS: A RELAÇÃO DE CAIO GRACO COM OS EQUESTRES... Ana Teresa Marques Gonçalves; Alice Maria de Souza

Vinício, medem cento e cinquenta e um anos.” (VELÉIO PATÉRCULO. História Romana, II.7) – quanto em relação ao Tribunato de Tibério Graco, tendo decorrido dez anos entre os mandatos dos dois irmãos (VELÉIO PATÉRCULO. História Romana, II.6). Esta é a primeira informação que Veléio Patérculo fornece sobre os Tribunatos de Caio Graco, e indica o eixo narrativo, pois a atuação política de Caio é apresentada sempre em paralelo à de seu irmão12 , evidenciando que, para Veléio Patérculo, Caio Graco era o continuador das reformas que irmão iniciou em 133 a.C., o que é utilizado como explicação para a maioria dos atos de Caio ao longo da narrativa. Assim como Tibério, segundo Veléio Patérculo, Caio foi vítima de uma loucura (furor), que o impulsionou a buscar suas reformas: “[...] a mesma loucura que se apoderou de Tibério Graco13 arrebatou também seu irmão [...]” (VELÉIO PATÉRCULO. História Romana, II.6). Em latim, furor é uma palavra utilizada para se referir àquilo que faz agir sem pensar, àquilo que desequilibra. Neste sentido, o termo latino pode significar loucura ou, seus sinônimos, insensatez e imprudência. Deve-se notar que o furor era um fenômeno desencadeado ou pela ação de um deus, ou pela vaidade, ou pelo desejo de vingança, como ocorreu com Caio, segundo Veléio Patérculo: “[...] mas foi em vingança pela morte de seu irmão ou por se preparar à ascensão a um poder próprio de um rei, a exemplo dele se fez Tribuno, com umas pretensões muito amplas e extremadas (VELÉIO PATÉRCULO. História Romana, II.6). Caio Graco candidatou-se ao Tribunato buscando a desforra pela morte de Tibério e almejando o poder régio, objetivos que indicam o desejo de vingança e a vaidade desencadeadores do furor. Os romanos não viam com bons olhos o governo de

12

A referência a Tibério está presente na descrição do Tribuno de 123 a.C., que é comparado a ele quanto às suas qualidades e habilidades pessoais – “[...] semelhante a ele tanto em todas suas virtudes como neste erro, mas muito mais saliente em gênio e eloquência” (VELÉIO PATÉRCULO. História Romana, II.6); o corpo de Caio Graco teve o mesmo destino que o de Tibério – “Igual a anteriormente o corpo de Tibério Graco, assim também o de Caio foi atirado ao Tibre [...]” (VELÉIO PATÉRCULO. História Romana, II.6) – e o autor apresenta uma análise sobre o desfecho das atuações política dos dois irmãos, conjuntamente: “Este final de vida e morte tiveram os filhos de Graco [...]. Se só tivessem ambicionado como dignidade a própria do cidadão, qualquer coisa que quiseram conseguir com pressões, a República teria lhes concedido se tivessem estado tranquilos” (VELÉIO PATÉRCULO. História Romana, II.6). 13 Ao se referir a Tibério Graco, Veléio Patérculo não utiliza o termo furor para demonstrar seu desequilíbrio: “Tibério [...] se apartou dos bons [...], e ainda que todos desejassem estabilidade, difundiu inquietude por toda parte e conduziu o Estado a uma situação extremamente perigosa e arriscada” (VELÉIO PATÉRCULO. História Romana, II.2). Sobre o seu afastamento dos bons – aqueles que respeitavam o mos maiorum e contribuíam para a ordem – e pela desestabilidade perigosa a que levou o Estado, subentende-se que Tibério estava tomado pelo furor que, de igual modo, controlou os atos de Caio Graco.

29

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

uma realeza – ou o acúmulo de poderes nas mãos de um único homem – talvez pela memória dos tempos de Tarquínio, o Soberbo. Por isto, o fato de Caio almejar poderes reais é um bom exemplo do desequilíbrio causado pelo furor. Afinal, Caio, desviando-se da conduta de um bom cidadão, desejava o tipo de poder que inviabilizaria o governo romano, causando, assim, o desequilíbrio da ordem vigente, tão importante para o funcionamento do Estado e para a paz com os deuses (pax deorum). Assim, Caio Graco – talvez por entender que, para se vingar da morte de Tibério, deveria seguir seus passos reformadores e utilizar a sacrossantidade tribunícia para tanto – candidatou-se ao Tribunato Apesar de Caio e Tibério serem semelhantes em virtudes, o irmão mais novo seria capaz de alcançar o nível mais alto da cidadania – ou seja, uma cadeira no Senado – se não tivesse cometido o mesmo erro que o irmão (VELÉIO PATÉRCULO. História Romana, II.6). O autor alude a esta possibilidade em outro momento, e se referindo aos dois irmãos: “Se só tivessem ambicionado como dignidade a própria do cidadão, qualquer coisa que quiseram conseguir com pressões, a república lhes concederia se permanecessem tranquilos” (VELÉIO PATÉRCULO. História Romana, II.6). A tranquilidade que os irmãos Gracos não conservaram consistia na manutenção da ordem e do equilíbrio no governo romano. Sua perturbação resultou da busca por poderes excessivos, postura indigna de um bom cidadão14 . Podemos interpretar estas assertivas como a expressão velada de sua condenação aos atos dos irmãos Gracos. Apesar de terem grande capacidade, foram perseguidos e mortos devido à sua ambição e desrespeito à tradição, conduta incompatível com a boa cidadania e perigosa, por provocar a desordem. Isto é confirmado pela afirmação de que ambos “empregaram mal suas excelentes qualidades” (VELÉIO PATÉRCULO. História Romana, II.7). Veléio Patérculo, assim, enumera as reformas empreendias por Caio Graco, ainda em seu primeiro mandato: Concedeu a cidadania a todos os itálicos, e a estendeu até os Alpes, repartiu terras, pôs a condição de que cada cidadão não poderia ter mais que quinhentos acres, limitação que estava regulada pela lei Licínia, estabeleceu novos impostos de trânsito,

14

30

Cives é a palavra que encontramos no latim para definir o cidadão, mas que também é utilizada para referências ao homem político, cujo ideal era o bonus ou o optimus civis (NICOLET, 1992, p. 44). O homem político romano, o cidadão, tinha sua existência balizada por três principais fundamentos: as qualificações censitárias, a obrigação do serviço militar e a determinação do estatuto social pelas honras políticas. A política, definida como o acesso às magistraturas, não consistia apenas em uma carreira; mais do que isto, ela era geradora de estatuto, determinando a influência, o poder e a dignidade, modelando e organizando, em grande medida, a vida social, sobre a qual prevalece (NICOLET, 1992, p.45-46).

RECONSTRUINDO MEMÓRIAS: A RELAÇÃO DE CAIO GRACO COM OS EQUESTRES... Ana Teresa Marques Gonçalves; Alice Maria de Souza

encheu as províncias de colônias 15 , transferiu os juizados do Senado à ordem equestre, determinou que se desse trigo à plebe [...] (VELÉIO PATÉRCULO. História Romana, II.6).

A clara exposição das reformas, sem detalhes e em uma linguagem simples, pode ser a aplicação de um recurso retórico para demonstrar o descontrole de Caio ao empreender tais reformas. A afirmação de que “... não havia nada que não mudasse, não deixava nada tranquilo, nada sem inquietude, em definitivo, não mantinha (nada) em seu lugar” (VELÉIO PATÉRCULO. História Romana, II.7) reforça esta idéia de descontrole e a influência do furor nos projetos reformistas de Caio Graco. O discurso de Veléio Patérculo sobre as reformas de Caio Graco insinua que tudo foi fruto de uma insanidade que controlou um cidadão de futuro brilhante. Quanto às perseguições e à crueldade usada em sua execução, apesar de Veléio insinuar que houve certo exagero nos atos, podemos apreender que, em sua ótica, eles foram buscados pelos transgressores da ordem. Pelo fim que Caio Graco e seus partidários tiveram, e pela posterior condenação da postura de Opímio, podemos perceber que nestas lutas desencadeadas por motivos pessoais, como a vaidade e a busca de vingança, não houve vencedores e, por desencadear a desordem, sua maior vítima foi o Estado, que saiu enfraquecido e precipitou-se na Guerra Civil16 . A escrita de Veléio Patérculo – no que diz respeito à seleção de conteúdo, linguagem e posicionamentos diante dos fatos – foi influenciada por alguns fatores característicos de sua época. Estes seriam o controle da memória exercido pelo Imperador, a que a escrita de Veléio foi susceptível devido a seu desejo de demonstrar dedicação e gratidão a Tibério; e a necessidade de se inserir em sua nova ordem, a ordem senatorial, que o levou a escrever sua obra em um modelo de escrita aceito pelos Senadores e expressando opiniões que convergiam para o ponto de vista senatorial sobre o passado. Os autores antigos, com algumas exceções, faziam parte da camada dirigente, e alguns se dedicavam à história após o término de sua vida pública. Para eles, a 15

16

A fundação de colônias fora da Península Itálica é considerada, por Veléio, como um dos projetos mais nocivos que Caio implementou (VELÉIO PATÉRCULO. História Romana II, 07). O dano causado por esta modificação na distribuição territorial do Estado romano atingiu as esferas política e econômica. A fundação destas novas colônias, uma atribuição do Senado – grande responsável pelos assuntos externos – que o Tribuno tomou para si, desequilibrando a administração romana, implicaria no aumento da distância entre o cidadão e Roma, o que dificultaria sua presença nas votações, enfraquecendo o sistema comicial de votação; além disto, o deslocamento dos cidadãos para novas cidades diminuiria a riqueza da cidade de Roma, calculada através do censo quinquenal. Para anular estes efeitos, os dirigentes do Estado mandaram que os cidadãos instalados nas colônias retornassem a Roma para o censo, evitando o crescimento do poder das cidades provinciais (VELÉIO PATÉRCULO. História Romana, II.7). Esta stasis constituía uma crise que se manifestava simultaneamente nos planos religioso, social, moral e político (DENCH, 2005, p.139), causando, portanto, o completo desequilíbrio da sociedade.

31

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

história era palpável, de modo geral, como um tipo de continuação da política por outros meios. Nesta estreita ligação entre a política e a história, a censura exercida pelos governantes sobre os autores aparece como um novo e importante aspecto. O Principado forçou o posicionamento dos historiadores. Alguns ficaram do lado dos Imperadores, enquanto outros se opunham a eles em nome dos ideais republicanos. Veléio pode ser citado como exemplo dos defensores do Principado, enquanto Tácito exemplifica o segundo (NICOLAI, 2007, p.24-25). A condenação dos atos de Caio, por Veléio, pode ser explicada pela idéia de que, se o Principado era uma forma de restauração da República, aquilo que perturbou sua ordem, os episódios da Guerra Civil, não devia se defendido; pelo contrário, devia-se enfatizar seu repúdio à sua ocorrência. Além disso, durante o governo de Tibério, o cargo de Tribuno da Plebe perdeu sua função17 , e o Tribuno cuja memória sobrevivia era visto não com um popular, mas como um campeão do Senado: Marco Lívio Druso, Tribuno em 91 a.C. cujo pai foi o inimigo de Caio Graco e cujo distante parentesco com o Imperador lhe rendeu jogos como homenagem (ROWE, 2002, p.58). Se esta era a memória oficial do cargo tribunício, pode também ter influenciado a opinião de Veléio sobre Caio Graco, não só por sua procura de ascensão social através do discurso, mas também pelo desejo em demonstrar gratidão e dependência pelo Imperador. Era comum que os homens que entravam no Senado por indicação do Príncipe, por seu débito com ele, aprovassem sem questionar os seus desejos (TALBERT, 1984, p.33); um dos quais era a memória oficial, comungada por Veléio ao condenar os atos de Caio. Assim, a íntima relação estabelecida entre memória e história na Antiguidade pode ser percebida na História Romana de Veléio Patérculo. Uma obra histórica sempre era permeada pela memória do grupo ao qual o autor pertencia – que ajudava na seleção, interpretação e narração dos temas da obra. O Imperador era responsável pela indicação de novos membros para as ordens romanas. Por este procedimento, a ordem senatorial era constantemente renovada com os homens novos, que advinham das camadas superiores de cidades provinciais ou eram membros de famílias equestres (ALFÖLDY, 1989, p.134). Certamente Veléio Patérculo, vindo de ilustre família da Campânia, entrou na ordem senatorial por indicação de Tibério, após o término de sua carreira militar. Neste período ainda existiam, no Senado, membros das famílias patrícias republicanas,

17

Apesar de o cargo tribunício ainda existir, ao longo do Império perdeu a suas principais características e função. O Tribuno da Plebe era, assim como a maioria dos outros magistrados, indicado pelo Imperador, confirmado no cargo pelo Senado e, depois, pelo povo. Sua lealdade era devotada ao Imperador, não ao povo, cuja e a proteção agora era prerrogativa do Imperador.

32

RECONSTRUINDO MEMÓRIAS: A RELAÇÃO DE CAIO GRACO COM OS EQUESTRES... Ana Teresa Marques Gonçalves; Alice Maria de Souza

mas seu número tendia a diminuir18 ao longo do tempo, sendo substituídos gradativamente por representantes da aristocracia provincial. A diferença de origem contribuía para o preconceito entre os Senadores, mas é difícil acreditar que os novos membros provinciais tinham um menor senso da tradição que os outros. Isto porque, apesar da constante mudança de membros e das diferentes origens dos mesmos, não houve um significativo enfraquecimento do colegiado, que se manteve uniformemente conservador em sua tradição e dignidade. Entretanto, os Senadores de origem não patrícia eram subestimados pelos descendentes das grandes famílias republicanas (TALBERT, 1984, p.35-38). Veléio adotou, em sua escrita, a adulação no que dizia respeito a Tibério, e a imitação19 do modelo de escrita histórica agradável aos olhos dos Senadores. Esta seria a maneira de Patérculo estabelecer sua autoridade, como escritor; e um estudo das assunções implícitas e explícitas na narrativa pode revelar uma constante negociação entre o escritor e seu tempo (MARINCOLA, 2004, p.20). Segundo Arnaldo Momigliano (2004, p.67-68), o modelo de escrita senatorial seria aquele desenvolvido por Tucídides na Grécia durante o século V a.C. e transmitido aos romanos por Políbio, durante o século II a.C. Para o modelo tucidideano, a História era a História política, e o passado era apenas o início da situação política que existia no presente, que era a base para a compreensão do passado, ou seja, a pesquisa deveria começar pelo presente e poderia penetrar no passado apenas na medida em que a documentação permitisse. Tal modelo permaneceu, de modo geral, como o modelo de História verídica, seu estilo tornou-se parte da vida literária romana já na época de Salústio e Cícero, e os Senadores, educados com Tucídides e Políbio, estavam naturalmente inclinados a aceitar a abordagem política e militar (MOMIGLIANO, 2004, p.75). Essas características do modelo tucidideano de escrita da História, ou seja, a abordagem unicamente política dos fatos e a submissão do passado pelo presente são encontradas na obra de Veléio Patérculo, e corroboram a hipótese de busca de identificação do autor para com sua nova ordem através da escrita. Neste caso, o modelo tucidideano foi imitado quanto à disposição do material histórico, o

18

19

Para isso, havia vários motivos: ou porque os filhos de Senadores não queriam seguir a carreira senatorial, ou porque não conseguiam manter o censo necessário para esta ordem ou porque a família possuía herdeiros para o cargo, e já no século II d.C. todos os membros do Senado podiam estar conscientes da sua origem não senatorial (TALBERT 1984, p.35). A imitação do modelo precedente é parte da autoridade do autor antigo, pois a tradição seria utilizada por ele para identificar seus interesses, simpatias e alianças (MARINCOLA, 2004, p.19). A boa imitação caracterizava-se pelo entendimento do espírito do original e daquilo que foi admirável nos escritos anteriores; traços como a escolha da linguagem, organização, atitude ou até sua matéria. O tipo mais comum era a imitação verbal, que podia alcançar uma única palavra ou frase, indo até a apropriação de um estilo (MARINCOLA, 2004, p.13-15).

33

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

que reflete as crenças fundamentais sobre a natureza e propósito de seu trabalho histórico (MARINCOLA, 2004, p.18). Veléio, ao longo de toda a sua obra, descreve os fatos, desde a Guerra de Tróia até o governo de Tibério, basicamente em seus traços políticos. Além disso, o autor é um exemplo de que a interpretação do passado, para um escritor do início do Império, implicava consequências no presente: ele interpreta o passado republicano como a história de um povo que buscava uma identidade (SÁNCHES MANZANO, 2001, p.14), concretizada no governo de Tibério, o presente pelo qual o autor avalia o que é relatado em sua história (GOWING, 2005, p. 41). Sua pretensão à promoção social20 através de suas habilidades literárias e do emprego da adulação, parcialidade e demonstrações de respeito em seus discursos justifica seus silêncios sobre alguns temas21 (SÁNCHES MANZANO, 2001, p.19). Desta maneira, podemos explicar o posicionamento de Veléio Patérculo não apenas frente à relação de Caio Graco e os membros da ordem equestre, balizada pela aplicação da Lei Judiciária, mas no que diz respeito a todo o Tribunato do Graco mais novo. Veléio justifica a candidatura de Caio ao cargo tribunício, e as atitudes tomadas por ele ao longo da magistratura, pela loucura (furor) e pela busca de vingança pela morte do irmão. Ele desaprova os atos dos Tribunos, afirmando que eles aplicaram mal suas qualidades. Além disso, as perseguições e assassinatos de Caio Graco e seus partidários, apesar de cruéis, foram necessários, como consequência da loucura que dominava Caio, e para restaurar a ordem. Apesar de ser um ex-membro da ordem equestre, Patérculo não defende sequer a lei que deu aos cavaleiros a oportunidade de crescer em importância política. Isto se deve ao estilo rápido e conciso da escrita e, principalmente, à memória da República produzida durante o século I d.C. Já Apiano de Alexandria22 escreveu sua História Romana na segunda metade do século II d.C., durante o governo do Imperador Marco Aurélio, época caracterizada 20

Isso também pode explicar o constante propósito moralizante da obra, critério para a eleição das anedotas e exemplos, para a censura aos comportamentos licenciosos, valorização da simplicidade e da austeridade na vida privada, e para o elogio da magnificência pública (SÁNCHES MANZANO, 2001, p.14). 21 Um exemplo disto é seu relato sobre o fim da Guerra da África (17-24 d.C.). Seu respeito por Sejano provavelmente determinou sua omissão sobre ter sido Públio Cornélio Dolabela, e não o tio do prefeito de Tibério, o responsável pelo fim da guerra. Dolabela não recebeu recompensa alguma, enquanto a Junio Blesco foram outorgadas as ornamenta triunphalia (SÁNCHES MANZANO, 2001, p.19). 22 Apiano nasceu em Alexandria, no Egito, provavelmente nos últimos anos do governo de Domiciano (8196 d.C.) (GRANT, 1996, p.98). Ao longo de sua vida, desempenhou altos cargos administrativos em sua cidade natal; durante o governo de Adriano foi advogado em Roma, provavelmente na qualidade de aduocatus fisci, (SANCHO ROYO, 1985, p.8), cargo instituído pelo Imperador Adriano.Na velhice, por intercessão de Frontão, Apiano foi nomeado para o cargo de Procurador Imperial (SANCHO ROYO, 1985, p.8), provavelmente na Província do Egito (GRANT, 1996, p.98). A data de sua morte é incerta. Antônio Sancho Royo (1985, p.13) supõe que ele morreu em 165 d.C.; segundo Michael Grant (1996, p.99), Apiano viveu até pelo menos 180 d.C., tendo finalizado seu trabalho algum tempo antes.

34

RECONSTRUINDO MEMÓRIAS: A RELAÇÃO DE CAIO GRACO COM OS EQUESTRES... Ana Teresa Marques Gonçalves; Alice Maria de Souza

por uma considerável liberdade de expressão, devido, dentre outros fatores, a seu distanciamento temporal em relação ao período das Guerras Civis e pela consolidação do governo imperial. Produzido em um contexto distinto, o relato de Apiano sobre os Tribunatos de Caio Graco apresenta muitas diferenças em relação àquele construído por Veléio Patérculo e, para estudá-las, o método comparativo de análise – que consiste em identificar e analisar semelhanças e diferenças presentes entre objetos análogos tomados em contextos distintos – é fundamental. Não podemos situar a vida de Apiano no decorrer do governo de apenas um Imperador. Ele, segundo a historiografia, recebeu a cidadania e o título equestre das mãos de Adriano e o cargo de Procurador Imperial de Antonino Pio, tendo provavelmente desempenhado esta função durante o governo colegiado de Marco Aurélio e Lúcio Vero. Assim, podemos afirmar que a trajetória de Apiano acompanhou a evolução da dinastia dos Antoninos. Além disso, Apiano participou de um mundo bilíngue em que o estabelecimento de identidade era quase sempre duplo e abarcava o lado ocidental-latino e o oriental-grego, cuja influência na cultura romana estava em franco crescimento. Luís Gil (1961, p.179) caracteriza todo o século II como um período de moderação e magnanimidade, pela prosperidade econômica dentro de uma ordem pública estável. As delações e processos por motivos políticos estavam suspensos. Os cidadãos recobraram certa segurança pessoal. Os escritores deste momento (como Plínio, o Jovem e Dion Crisóstomo, por exemplo) olhando o tenebroso passado, elogiavam a rara felicitas temporum que desfrutavam; e graças a eles conhecemos os sucessos de períodos em que a liberdade não era grande. Estes relatos despertavam o interesse dos Imperadores, pois ao reprovar os crimes do passado, fazia-se indiretamente o elogio do presente (GIL, 1961, p.173-174). Os três Imperadores que se sucederam no século II d.C., Antonino Pio (138161), Marco Aurélio (161-180) – até 169 com seu colegiado Lúcio Vero – e Cômodo (180-192), integravam a dinastia dos Antoninos (iniciada por Nerva, Trajano e Adriano). A importância dos Antoninos é múltipla, mas encontra-se principalmente no fato de representarem uma época de transição (GRANT, 1996, p.4). As mudanças operadas na sociedade romana deste período tiveram como instrumento mais significativo as guerras, iniciadas pela ruptura das fronteiras norte e leste, que indicaram o fim próximo da estabilidade e da harmonia (GRANT, 1996, p.152). Géza Alföldy (1989, p.110) afirma que o período que vai do governo de Augusto ao de Antonino Pio é caracterizado pelo florescimento da política romana. Época em que o Império atingiu o máximo de sua extensão geográfica23 e viveu um período de relativa 23

Esta máxima extensão geográfica foi alcançada com a conquista da Dácia, realizada por Trajano.

35

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

paz, tanto internamente quanto nas fronteiras. Segundo Paul Petit (1974, p.175-176), o governo dos Antoninos caracterizou-se pelo equilíbrio entre os elementos civis e militares, seguindo a tradição de Augusto. As mudanças relevantes constituem a transformação do poder pessoal do Imperador em um governo cada vez mais burocrático: o Princeps perdeu paulatinamente seu traço de magistrado, de representante do povo romano e se tornou o titular de um ofício público. Neste sentido, a evolução do Conselho do Príncipe é significativa: era formado por amici e comites do Imperador, chamados a discutir com ele as grandes opções políticas, além de ser um dos órgãos da justiça imperial (CROOK, 1955, p.67). Sua existência rendeu a ilusão da permanência da política pessoal dos soberanos através de seus conselheiros. Roger Rémondon (1967, p.3) afirma que foi durante os governos de Marco Aurélio e Cômodo que o equilíbrio e a estabilidade da paz romana foram quebrados. Então, apareceram as múltiplas formas de uma possível crise interior (crise política, econômica, religiosa e moral) e exterior, pelos movimentos dos povos estrangeiros em toda a Europa. Paul Petit (1974, p.31-34) concorda com esta análise e também enumera como causas deste início de declínio, além do agravamento das guerras externas, o aparecimento da peste – que causou grandes perdas humanas – e a crise econômica, consequência da paralisação do comércio pelas guerras e do aumento dos impostos para cobrir os custos bélicos. Deste período há um considerável número de escritores importantes, tanto em grego quanto em latim. Destacam-se, na prosa em latim, as obras de Apuléio e talvez de Frontão (embora de sua obra não tenha sobrevivido o suficiente para um julgamento preciso); na escrita grega, destacam-se as Meditações de Marco Aurélio e a obra de Luciano de Samósata. A predominância de escritores gregos é mais um dos inúmeros sinais de que a parte grega do Império estava se afirmando, em particular, pela Segunda Sofística (GRANT, 1996, p.83). No cenário da produção literária, não havia, desta maneira, espaço para a ação repressora do Imperador. O controle agora era exercido mediante o mecenato imperial e a estatização da educação: todos os Imperadores do século II d.C., menos Cômodo e Trajano24 , acolheram sob seu patrocínio escritores e artistas (GIL, 1961, p.178). História Romana é a principal produção histórica de Apiano e a única que nos chegou. Compõe-se de uma narração da História de Roma desde sua fundação até a morte de Sexto Pompeu, em 35 a.C., ocorrida pouco depois da divisão do Império entre Antônio e Otávio (SANCHO ROYO, 1985, p.10-13). A obra foi

24

36

Estes dois Imperadores não desenvolveram a prática do mecenato por diferentes razões. Trajano por achar que suas ações eram suficientes para promovê-lo; e Cômodo, porque se preocupou mais em lidar com as conjurações contra seu governo (GIL, 1961, p.178).

RECONSTRUINDO MEMÓRIAS: A RELAÇÃO DE CAIO GRACO COM OS EQUESTRES... Ana Teresa Marques Gonçalves; Alice Maria de Souza

escrita em grego, compunha-se de vinte e quatro livros25 dos quais doze sobreviveram completos26 , e outros seis, em fragmentos27 . A primeira parte de História Romana (o seu livro I) trata da fundação de Roma e de suas guerras com outros povos e, para a organização desta narrativa, Apiano utilizou não o método cronológico, mas sim o etnográfico28 , cuja referência foi a cidade de Roma (SANCHO ROYO, 1985, p.11-12). No entanto, este modelo etnográfico é rompido na narrativa das Guerras Civis29 , das quais se ocupa a maior parte da obra de Apiano. Então, a ordem cronológica é adotada, e são narradas as lutas internas desde o Tribunato de Tibério Graco até o Segundo Triunvirato. Apiano de Alexandria, pelo estilo da narrativa, pela seleção de conteúdos da obra e devido a sua maior liberdade na escrita, narra os episódios relacionados às magistraturas de Caio Graco de maneira mais detalhada que Veléio Patérculo, analisa alguns deles e apresenta explicações e justificativas diferentes daquelas transmitidas por Veléio. Os capítulos vinte e um a vinte e sete do livro dois da História Romana têm como matéria os dois Tribunatos de Plebe da Caio Graco e suas reformas. Segundo Apiano, Caio se candidatou ao Tribunato no momento em que os Senadores reprovaram a proposta de alargamento da cidadania romana à todos os aliados; e a divisão do ager publicus era dificultada por aqueles que o possuíam. Por causa disto, o povo estava descrente e inerte quando ele apresentou-se ao Tribunato. Apiano então descreve Caio apenas como “irmão menor do legislador Graco e muito querido como Triúnviro Agrário” (APIANO. História Romana II. Guerras Civis I, 21). A justificativa de Apiano para a candidatura de Caio ao Tribunato é bem diferente daquela apresentada por Veléio. Ao invés da busca de vingança pela morte do irmão ou de poderes excessivos, “Sem dúvida, apresentou-se como

25

Foram perdidos, no decorrer dos séculos, seis livros intitulados “Sobre a Hélade”, “Sobre a Jônia”, “Sobre o Egito”, “A Hecatontecia”, “Sobre a Dácia” e “Sobre Arábia” (SANCHO ROYO, 1985, p.35-35). 26 Os livros “Sobre Ibéria”, “A Guerra de Aníbal”, “Sobre África”, “Sobre Ilíria”, “Sobre Síria”, “Sobre Mitríades”, além dos cinco livros sobre as Guerras Civis, e do Prólogo, são aqueles que nos chegaram completos. 27 Os livros que nos chegaram fragmentados são: “Da Realeza”, “Sobre a Itália”, “História Samnita”, “História da Gália”, “Sobre Sicília e outras Ilhas” e “Sobre Macedônia”. 28 É difícil estabelecer os motivos que levaram Apiano a construir sua História nesta perspectiva etnográfica, e com este objetivo há várias hipóteses: desejo de imitar algum modelo precedente, condicionamento do próprio material histórico, pelo fato de Apiano não ser historiador de ofício, pela incapacidade do autor em organizar as informações das diferentes fontes de forma cronológica, ou mesmo pela influência do exercício da advocacia em sua concepção da História de Roma compartimentada, estanque, como um advogado defende cada caso isoladamente (SANCHO ROYO,1985, p.12). 29 A narrativa das Guerras Civis está disposta nos livros II e III da História Romana, que apresentam o subtítulo de Guerras Civis, sob o qual são organizados os cinco livros que tratam destas lutas internas. Os livros I e II das Guerras Civis compõem o livro II da História Romana, cujo livro III é composto pelos livros III, IV e V das Guerras Civis.

37

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

candidato ao Tribunato porque muitos Senadores o tratavam com depreciação no Senado” (APIANO. História Romana. Guerras Civis, I. 21). Não há, na narrativa de Apiano, indícios sobre os motivos desta indiferença dispensada pelos Senadores a Caio Graco. Entretanto, podemos supor que este comportamento derivava da lembrança dos atos de seu irmão quando Tribuno da Plebe. A ordem em que as leis e reformas empreendidas por Caio aparecem no relato de Apiano é diferente30 daquela apresentada na obra de Veléio Patérculo; mas isto não nos autoriza a afirmar que há uma discrepância, entre os autores, sobre a ordem de ocorrência das reformas, pois, tanto Apiano quanto Veléio não apresentam este tipo de rigor cronológico. Além disto, Apiano, diferentemente de Veléio, não apenas enumera as leis, como também esclarece sobre sua natureza e os objetivos perseguidos pelo Tribuno ao implementá-las. Se o principal ato de Caio, em sua primeira magistratura, a Lei Frumentária31 , objetivou ganhar a simpatia da plebe, no segundo mandato sua primeira ação visou a conquistar o apoio dos cavaleiros. De acordo com o relato de Apiano: “Como já tinha comprado a plebe, tratou de atrair para si também, por meio de outra manobra política similar, os cavaleiros que ocupavam uma posição intermediária, por sua dignidade, entre o Senado e a plebe” (APIANO. História Romana. Guerras Civis, I.22). É importante ressaltar que Apiano refere-se aos membros da ordem equestre apenas utilizando o termo “cavaleiros”, diferentemente de Veléio, que utiliza o título da ordem, referindo-se à lei. A caracterização dos equestres republicanos demonstra que, sendo membro da ordem equestre, Apiano conhecia o seu passado, e, provavelmente, estava consciente da diferença entre a sua constituição no século II a.C. e em seu tempo32 . A sua escolha em citar a localização social dos equestres na República – desnecessária se não houvesse o conhecimento da mudança – reforça esta suspeita.

30

Um exemplo desta diferença de ordenação é o fato de que a Lei Frumentária é a última citada por Veléio, e a primeira ação de Caio, segundo Apiano. 31 A distribuição de trigo a expensas do erário público (Lex Frumentaria), primeiro objeto de análise do autor, no que diz respeito à legislação de Caio, concretizou a estratégia do Tribuno para, assim que foi eleito, ganhar a simpatia do povo e, ao mesmo tempo, atingir os Senadores. Devido a esta lei, ele ganhou o apoio de Fúlvio Flaco e foi eleito para o seu segundo Tribunato. Sua reeleição foi possibilitada pela vigência de uma lei que permitia ao povo eleger um Tribuno, dentre os cidadãos, caso as candidaturas tribunícias não estivessem completas (APIANO. História Romana. Guerras Civis, I.21). O apoio de Fúlvio Flaco parece muito importante, na visão de Apiano, pois este – que supomos ter sido eleito para o Tribunato quando Caio foi reeleito, pois, sua participação nas ações de Caio só é mencionada a partir de então – figura como parceiro de Caio em todos os seus projetos e vítima da mesma perseguição. 32 No século II d.C., a ordem equestre constituía um importante grupo na administração imperial, seus membros desempenhavam cargos de confiança dos Imperadores e igualavam-se aos Senadores, ou até os superavam, em prestígio e riqueza.

38

RECONSTRUINDO MEMÓRIAS: A RELAÇÃO DE CAIO GRACO COM OS EQUESTRES... Ana Teresa Marques Gonçalves; Alice Maria de Souza

Os Senadores, segundo Apiano, cederam à modificação prevista na Lex Repetundaram não por apoiá-la, mas porque ficaram envergonhados diante dos exemplos de corrupção citados por Caio: Transferiu os Tribunais de Justiça, que estavam desacreditados por sua venalidade, dos Senadores para os cavaleiros, reprovando em especial aqueles casos recentes de Aurélio Cota, Salinator e, em terceiro lugar, Mânio Aquílio, o conquistador da Ásia, os quais, depois de subornar às claras os juízes, haviam sido absolvidos por eles, tanto que os embaixadores enviados para acusá-los ainda estavam presentes e iam de um lado para outro espalhando com ódio estes fatos. Disto, precisamente, o Senado, envergonhandose muito, cedeu à lei e o povo a ratificou. Assim foram transferidos os Tribunais de Justiça do Senado para os cavaleiros (APIANO. História Romana. Guerras Civis, I.22).

Em seguida, Apiano analisa os desdobramentos desta lei, demonstrando que Caio Graco, ao propor tal alteração nos Tribunais, tinha outro objetivo, além de comprar o apoio dos cavaleiros, que seria a diminuição do poder dos Senadores, concretizado devido ao amplo alcance da lei e pelas características e atribuições jurídicas dos Tribunais: Dizem que, pouco tempo depois de ter entrado em vigor a lei, Graco afirmou que ele havia abatido o poder do Senado com um golpe definitivo e a experiência do curso dos acontecimentos posteriores pôs mais em relevo a veracidade das palavras de Graco; posto que eles podiam julgar a todos os romanos e itálicos e também aos próprios Senadores, sem limitações, tanto no relativo a questões de propriedade como nos direitos civis e de desterro, elevou os cavaleiros, por assim dizer, à categoria de dominadores, ao tempo que igualou os Senadores à condição de súditos (APIANO. História Romana. Guerras Civis, I.22).

Assim, vemos nestas duas passagens como Apiano percebe um movimento de alternância de poder entre os membros do Senado e os da ordem equestre. Com a aplicação da Lei Judiciária, os cavaleiros tiveram seu poder aumentado, enquanto o dos Senadores foi diminuído. Nesta inversão do nível de poder destas duas camadas sociais, percebemos que o objetivo de Caio Graco era sempre a diminuição do poder dos Senadores, exemplos de corrupção, segundo Apiano. O relato de Apiano sobre a Lei Judiciária de Caio Graco, também apresenta uma análise das consequências, a longo prazo, de sua aplicação. Segundo o autor, a lei causou um vácuo de poder e se revelou ineficaz em relação à corrupção dos Tribunais, pois os cavaleiros se comportaram de forma tão vendável quanto anteriormente o foram os Senadores: Além disso, como os cavaleiros votavam nas eleições para sustentar o poder dos Tribunos, e obtinham deles o que queriam em retorno, eles se tornaram mais e mais terríveis para os Senadores. Em breve, pois, sofreu um vácuo de poder no governo, por estar a honra apenas nas mãos do Senado e o poder efetivo dos cavaleiros. E prosseguindo por este caminho, não só detiveram o poder, mas também cometeram violência contra

39

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

os Senadores nos julgamentos. E, participando eles também da corrupção, no tempo que desfrutavam de fartos lucros, se comportaram a partir de então de forma mais vergonhosa e desmedida que os Senadores. Levaram acusadores subornados contra os ricos e corrompendo totalmente os julgamentos por causa do suborno, foram coligandose entre si pela força, até o ponto em que se abandonou por completo o costume de uma classe de investigação, e a lei judicial ocasionou por muito tempo outra sorte de luta civil não menor que as anteriores (APIANO. História Romana. Guerras Civis, I.22).

Segundo a interpretação de Apiano, a mudança da direção dos Tribunais provocou o desequilíbrio na administração do Estado, pois, a honra encontrava-se em poder de uns, enquanto o poder (kratos) efetivo era detido por outros. A honra (dinamis) constituía o principal aspecto de legitimação do poder e da garantia da lealdade dos governados (LENDON, 2005, p. 25) – como a dignitas no pensamento político latino. Ou seja, para que o seu poder fosse reconhecido, todo líder romano deveria ser antes de tudo, considerado pelos seus liderados como digno – ou merecedor, capaz – de cumprir seu papel. O kratos desprovido de dinamis não era legítimo e tendia a ser corrompido, causando desequilíbrio tanto entre os cidadãos quanto entre estes e os deuses protetores da cidade. Este desequilíbrio, no relato de Apiano, equivale ao vácuo de poder que surgiu ao longo do tempo, resultando na luta civil. O poder para agir estava sob o controle dos cavaleiros, mas suas ações não eram reconhecidas, porque legitimadas pela dinamis/dignitas, ainda portada pelos Senadores – identificados como capazes de dirigir a administração pública. Entretanto, qualquer ação destes era impedida pela reação dos equestres. Assim criou-se o vácuo de poder: devido a ações não legitimadas e dignidades estagnadas. Não podemos disto concluir que Apiano considerava os Senadores, por possuírem a dinamis necessária, como aqueles que deveriam desempenhar o kratos. Segundo ele, a corrupção dos membros do Senado no desempenho das funções judiciais motivou a transferência da direção deste ofício para os equestres. A solução para estes desvios de conduta, e para o retorno do equilíbrio, consistia em manter unidos a dinamis e o poder. A narrativa das Guerras Civis e seu desfecho, com Otávio restabelecendo a ordem, demonstra que o Princeps, reunindo kratos e dinamis, assegurava o equilíbrio na sociedade romana. As variações encontradas nos relatos dos dois autores podem refletir também as diferentes fontes que eles consultaram; o método de produção da obra, a linguagem empregada e as opiniões veiculadas ao longo do relato foram escolhas dos autores. Estas escolhas não são inocentes e refletem valores simbólicos da época em que a obra foi escrita. Veléio Patérculo escreveu no período de transição da República para o Império. Neste período, as feridas das Guerras Civis ainda doíam no imaginário romano, a rememoração do passado republicano era perigosa – pois poderia incitar a comparação e o desejo de retorno aos tempos áureos dos Cipiões – e qualquer 40

RECONSTRUINDO MEMÓRIAS: A RELAÇÃO DE CAIO GRACO COM OS EQUESTRES... Ana Teresa Marques Gonçalves; Alice Maria de Souza

demonstração de simpatia aos responsáveis pelas lutas civis – aqueles que de diferentes maneiras transgrediram a tradição, era justificativa para julgamentos e condenações. Para o contexto de Veléio, a manutenção da ordem era garantida pela defesa dos valores que representavam a cidadania ideal, desrespeitados, segundo o autor, por Caio Graco. O contexto da produção de Apiano era bem diferente. No fim do século II d.C., a memória da República era acessada apenas pelos monumentos e obras de autores do início do Império. As Guerras Civis eram fatos distantes e a opinião a respeito de seus líderes importava na política romana importava como modelos para os Príncipes. A identidade romana sofreu grandes modificações, mesclando-se com a cultura grega, a fim de englobar todo o Império oriental e garantir seu controle. Apesar de afirmar que a Lei Judiciária causou um vácuo de poder, e de demonstrar sua ineficácia quanto à corrupção dos Tribunais – pois, os cavaleiros se corromperam mais que os Senadores – o autor analisa a proposta da lei agrária de Tibério como sendo um excelente projeto impedido de se realizar. Entretanto, sua análise a respeito da Lex Repetundarum foi fortemente influenciada pelos valores de sua época. No século II d.C., o governo imperial já se encontrava consolidado. Nele, o Imperador era o portador da dignitas e, portanto, merecedor do poder. Seu papel era equilibrar as forças presentes no Império, fossem estas políticas ou religiosas, constituintes das relações com os deuses ou entre os homens. Assim, a análise da obra de Apiano de Alexandria sobre o vácuo de poder causado pela Lei Judiciária derivou deste ideal de poder e manutenção do equilíbrio governamental. Enquanto Veléio Patérculo narra os episódios envolvendo Caio Graco de forma concisa, explicando todas as atitudes dos irmãos Tribunos como fruto do controle do furor, considerando os Senadores como os defensores da ordem e da boa cidadania e justificando a perseguição a Caio pelo fato de que ele não se comportava como bom cidadão, causando a desordem; o relato de Apiano apresenta outra formatação. Ele narra os fatos relacionados ao Graco mais novo de forma mais detalhada, pela maior liberdade de expressão que seu contexto oferecia, e sua análise também difere profundamente daquela feita pelo autor do início do século I d.C. Para Apiano, os Senadores consistiam um exemplo de corrupção que Caio tentou sanar ao transferir a direção dos Tribunais para os equestres; e a perseguição do Tribuno foi fruto do mal entendido derivado do assassinato de um cidadão, pois, o medo da desordem política se encontrava mais distante no tempo e a imagem do Príncipe se revestia de um significado de estabilidade. Deste modo, podemos comparar dois relatos sobre o mesmo fato, que apresentam profundas diferenças porque os imaginários e a memórias republicana de seus respectivos contextos fixavam-se em diferentes bases. Enquanto a memória sobre a República oferecia perigo quando Veléio Patérculo escreveu, o considerável 41

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

distanciamento cronológico em relação ao século II d.C. fazia da República uma época quase lendária, conhecida apenas através de obras produzidas durante o Império. Portanto, a restauração da República, idéia difundida na época de Veléio, contrasta com a certeza de que o Príncipe era necessário enquanto dinamizador social, característica do contexto de Apiano. Referências A) DOCUMENTOS TEXTUAIS APIANO. História Romana. Trad. Antonio Sancho Royo. Madrid: Gredos, 1985. V.2. APPIAN. Roman History. Trad. Horace White. London: Willian Heineman, 2002. V.2 (Loeb). PLUTARQUE. Les Vies Paralléles. Tomo XI: Agis e Cleoméne – Les Graques. Trad: R. Flacelière; E. Chambry. Paris: Les Belles Letres, 2003. VELÉIO PATÉRCULO. História Romana. Trad. Maria Assunción Sánchez Manzano. Madrid: Gredos, 2001. VELLEIUS PATERCULUS. Histoire Romain. Trad. Joseph Hellegouarc’h. Paris: Les Belles Lettres, 1982. B) OBRAS GERAIS ALFÖLDY, Géza. História Social de Roma. Lisboa: Presença, 1989. COMBÉS, R. La Republica en Roma. Madrid: EDAF, 1977. CROOK, J. Consilium Principis. Cambridge: University Press, 1955. DENCH, Emma. Romulus’Asylium: the Character of Roman Citizenship. In: ______. Romulus’ Asylum: Roman Identities from the Age of Alexander to the Age of Hadrian. New York: Oxford, 2005. p. 93-151. FANTHAN, Elaine. Roman Literary Culture: from Cicero to Apuleius. London: The Johns Hopkins University Press, 1996. GIL. Luis. Censura en el Mundo Antiguo. Madrid: Alianza,1985. GOWING, Alain M. Empire and Memory: The Representation of Roman Republic in Imperial Culture. Cambridge: University Press, 2005. 42

RECONSTRUINDO MEMÓRIAS: A RELAÇÃO DE CAIO GRACO COM OS EQUESTRES... Ana Teresa Marques Gonçalves; Alice Maria de Souza

GRANT, Michael. The Antonines: the Roman Empire in Transition. New York: Routledge, 1996. LENDON, J. E. Empire of Honor: The Art of Government in the Roman World. New York: Oxford, 2005. KONSTAN, David. A Amizade no Mundo Clássico. São Paulo: Odysseus, 2005. MARINCOLA, John. Authority and Tradition in Ancient Historiography. Cambrigde: Univesity Press, 1997. MOMIGLIANO, Arnaldo. As Raízes Clássicas da Historiografia Moderna. Bauru: EDUSC, 2004. NICOLAI, Roberto. The Place of History in the Ancient World. In: MARINCOLA, John (org.). A Companion to Greek and Roman Historiography. Oxford: Blackwell, 2007. p. 13-26. NICOLET, Claude. L’Ordre Équestre: A L’Époque Républicaine (312-43 av. J.-C.). Paris: E. Boccard, 1974. T.1. ____________. O Cidadão. In: GIARDINA, Andrea (org.). O Homem Romano. Lisboa: Presença, 1992. p. 19-48. PETIT, Paul. Histoire Générale de l’Empire Romain. Paris: Du Seuil, 1974. V.2. RÉMONDON, Roger. La Crisis del Imperio Romano: de Marco Aurelio a Anastasio. Barcelona: Labor, 1967. ROWE, Greg. Princes and Political Cultures: The New Tiberian Senatorial Decrees. Michigan: University Press, 2002. SALLER, Richard P. Personal Patronage under the Early Empire. Cambridge: University Press, 1982. SÁNCHES MANZANO, Maira Assunción. Introdução. In: VELÉIO PATÉRCULO. História Romana. Trad. Maria Assunción Sánchez Manzano. Madrid: Gredos, 2001. p. 7-30. SANCHO ROYO, Antonio. Introdução. In: APIANO. História Romana. Trad. Antonio Sancho Royo. Madrid: Gredos, 1985. p. 7-39. SEAGER, Robin. Tiberius. London: Blackwell, 2005. SHOTTER, David. Tiberius Caesar. London: Routledge, 2004. 43

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

SUMNER, G.V. The Truth about Veleius Paterculus: Proligomena. Harvard Studies in Classical Philology. New York, v. 74, p. 257-297, 1970. WOODMAN. A. J. Questions of Date, Genre, and Style in Velleius: Some Literary Answers. The Classical Quarterly. London, v. 25, nº2, p. 272-306, 1975.

44

LER E ESCREVER EM POMPÉIA: DIVERSIDADE NA CONSTRUÇÃO DE GÊNERO

Lourdes Conde Feitosa*

Resumo: A proposta desse texto é refletir sobre a importância da escrita para uma leitura de gênero no ambiente popular da Pompéia Romana, a partir dos grafites desenhados nas paredes da cidade. Para isso, apresentamos algumas considerações sobre o uso da epigrafia como fonte documental, a vivência estabelecida entre mulheres e homens comuns, e como esses escritos indicam a composição de gênero e marcam uma fascinante diversidade presente nessa cidade romana do século I d.C. Unitermos: Escrita, Leitura, Gênero; Diversidade Abstract: The aim of this paper is to do a reflection about the writing importance for gender investigation on Roman Pompeii popular contexts. This analysis appears from graphite met in wall of the city. We begin with some details involved at the epigrafia as documental fonts, soon we discuss about the life of popular women and men and we consider as these writings point a composition of gender. So emerges a fascinating diversity in the city just in the beginning of this era. Keywords: Writing, Reading, Gender, Diversity

* Doutora em História Cultural, pesquisadora do Centro do Pensamento Antigo – UNICAMP e do Grupo de Pesquisa Arqueologia Histórica. Professora da Universidade Sagrado Coração, Bauru/São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected]

45

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

“Não é esse, finalmente, o propósito da escrita? Vencer ao esquecimento”. Isabel Allende Luciano Canfora, em Lire a Athènes et a Rome, texto publicado em 1989, considera que a alfabetização no período greco-romano é restrita à população urbana e, mais, a uma minoria dentre ela. Os escravos seriam os principais excluídos, salvo algumas exceções de escravos letrados. Chega a afirmar que uma das causas da estabilidade social do Estado Romano é justamente a ausência de alfabetização das massas livres (CANFORA, 1989, p. 927/8). Esse filólogo e historiador italiano é exemplo de uma abordagem acadêmica que analisa a instrução no mundo antigo apenas a partir das referências literárias, expressão dos valores e concepções das elites e do próprio significado que o aprendizado da leitura e da escrita tinha entre os seus pares. Segundo essa perspectiva, afirma-se que não é possível conhecer nada mais do que um décimo ou menos da vida romana (MC MULLEN, apud FUNARI, 2003, p. 74) e somente pelo viés aristocrático. A documentação antiga, em particular a epigrafia, permite-nos rever essa idéia de que a instrução era um conhecimento restrito às elites no mundo antigo. A partir das escavações iniciadas no século XVIII, grande quantidade de registros tem sido encontrada em diferentes extensões do mundo antigo, em variados formatos, gêneros e línguas, como os papiros gregos, e ainda em maior quantidade os papiros demóticos, descobertos no Egito; tabuinhas de Persépolis, em língua elamita e escrita cuneiforme acádia modificada; textos ibéricos escritos em lâminas de metal (plomo); inscrições celtas registradas em caracteres gregos e latinos, denominadas por textos grecogalos e grecolatinos; inscrições em ânforas etruscas e púnicas; as tabuinhas de Vindolanda e os grafites e as inscrições pintadas de Pompéia, escritos em latim (BOWMAN; WOOLF, 2000). Desde o século XIX há um trabalho sistemático de organização e publicação dessas referências1 . Como menciona Greg Woolf, a variedade desses escritos evidencia a complexidade da escrita não clássica e permite uma análise crítica de algumas idéias formuladas desde o século XIX, como a de uma civilização clássica inventada por gregos e propagada pelos romanos, sem receber contribuições dos diversos povos que ocupavam a região Mediterrânica; o predomínio do grego e do latim de forma 1

Alguns exemplos de compilação de inscrições podem ser vistos em: Corpus Inscriptionum Graecarum (CIG), Corpus Inscriptionum Latinarum (CIL), Inscriptions latines de Narbonnaise (ILN), Documents d´archéologie française (DAF), Inscriptions latines dês Trois Gaulês (ILTG), Revue archéologique de Narbannaise (RAN), Vindolanda Research Reports (VRR), Recueil des Inscriptions Gauloises (RIG), dentre outras. Cf. Bowman;Woolf, 1999 e Bodel, 2001.

46

LER E ESCREVER EM POMPÉIA: DIVERSIDADE NA CONSTRUÇÃO DE GÊNERO Lourdes Conde Feitosa

homogênea e ampla, desconsiderando-se as variações de interesses que faziam com que fossem utilizados na íntegra, adaptados à língua local, ou mesmo rechaçados; e, ainda, a concepção de dois extremos em relação à escrita e à leitura no Mundo Antigo: uma limitada difusão da capacidade de ler e de escrever, restrita às elites, ou um amplo e popular alfabetismo (Woolf, 2000). No mundo romano esses registros epigráficos foram feitos em pedras, metais, cerâmicas, telhas, vidros, reboco de muros, mosaicos tesserae (Ireland, 1983, p. 220; Keppie, 1991, p. 10; Bodel, 2001, p. 2) e compõem-se de inscrições oficiais, como àquelas compiladas no volume XVI do Corpus Inscriptionum Latinarum (CIL), correspondentes às atividades militares, e de inscrições não-oficiais destinadas às circunstâncias da vida cotidiana e escritas, a grande maioria delas, de próprio punho por pessoas de origem popular. O significativo volume dessas inscrições e os diferentes graus de conhecimento do latim expressos são considerados, por um número cada vez maior de pesquisadores, como evidências da prática da escrita, leitura e da difusão do alfabetismo na sociedade romana, embora considerado os devidos cuidados mencionados acima por Bowman e Woolf2 . O melhor exemplo da presença do litterator3 está na cidade romana de Pompéia, na qual o latim era utilizado em diferentes finalidades e formas. Os grafites pintados - tituli picti, eram usados para anúncios em lojas ou em cartazes com propagandas eleitorais (programmata). Também se recorriam às tabuletas de cera, pequenos pedaços de madeira cobertos de cera, na qual se escrevia. Pode-se ter uma idéia de sua utilização por meio daquelas encontradas em um cofre de madeira, pertencente ao banqueiro Iucundus para controle de suas finanças e empréstimos. A cera estava derretida, mas como a ponta do graphium (instrumento de ponta dura utilizado para o desenho das letras) havia alcançado a madeira que ficava atrás, foi possível reconstruir boa parte das informações, publicadas no CIL, Suplemento I4 . Mas a maneira mais comum e freqüente de as pessoas se expressarem em Pompéia era por meio de traçados realizados em muros, paredes externas e internas de edifícios públicos, tabernas, locais de trabalho, habitações, ou seja, praticamente

2

3

4

Sobre esta questão conferir, por exemplo, Väänänen, 1937, p. 15; Gigante, 1979, p. 37 e 41; Funari, 1989, p. 28 e 2003, p. 74; Franklin, 1991, p.82; Varone, 1994, p. 9; Cavallo, 1995, p. 517-536. O litterator corresponde àquele que ensina a leitura e a escrita, professor dos estudos elementares, bem como ao que possui alguma instrução. Estas compõem um total de 155 tabuletas de cera das quais 64 têm registrado a data de sua redação, a maioria entre os anos de 52 e 62, com exceção dos números I e II que são dos anos 15 a 27, e o III, facultativamente atribuídos a 52 ou 33. Cf. Väänänen, 1937: 18. Menção sobre o uso dessas tabuletas também pode ser vista no grafite CIL, IV, 1796.

47

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

em todos os espaços disponíveis nas paredes da cidade, chamados em latim de graphio inscripta5 . O latim, língua originalmente falada na região do Lácio, acompanhou o processo de expansão romana e foi difundido nas regiões conquistadas (PARCA, 2001, p. 64). Falado em extensa área do Império romano, embora com um núcleo comum, variava segundo a região, influenciado pela interação com línguas e dialetos regionais e de um meio social a outro, de acordo com o grau de conhecimento (VÄÄNÄNEN, 1937, p. 15) e de interesse de cada grupo, como mencionado no início o texto. Por exemplo, a preocupação em escrever o grego e o latim na norma culta pode ser vista como uma maneira simbólica das elites mostrarem erudição e requinte, tanto para os seus pares como aos demais indivíduos6. Em Pompéia, o latim passou a ser difundido a partir da incorporação da cidade como colônia romana e por muitos anos foi utilizado concomitante ao osco, a língua nativa (PARCA, 2001, p. 65). A inscrição abaixo indica a mistura das letras em osco e latim, realçada pelo próprio texto:

Figura 1. (CIL, IV, 9300)

Um desafio que se põe diante da constatação de um número tão significativo de inscrições comuns é considerar como essas pessoas aprendiam a ler e a escrever. Há inscrições que estão de acordo ou próximas às normas cultas do latim, o que leva a supor uma educação mais formal, embora não se saiba exatamente como isso tenha se dado. Segundo Clarke, durante o Império a educação tomou impulso e floresceram muitas escolas das mais diferentes disciplinas, como Geometria, Retórica, Gramática, Aritmética e Música; dentre estas, as mais importantes eram as escolas de Gramática e Retórica, por onde passavam os romanos bem nascidos destinados à carreira pública (Clarke, s/d, p. 206). Exemplos dessa escrita são encontrados em paredes pompeianas utilizadas para recados “oficiais”, ou seja, 5

6

48

Até o último Suplemento do CIL foram publicados 10.913 grafites. Diversos outros, descobertos desde então, estão sendo publicados em boletins de escavações. Cf. Funari, 1989, p. 17: “a erudição imagina-se herdeira e continuadora imóvel da tradição reprodutora de um passado clássico”.

LER E ESCREVER EM POMPÉIA: DIVERSIDADE NA CONSTRUÇÃO DE GÊNERO Lourdes Conde Feitosa

anúncios de venda de produtos, de espetáculos ou cartazes eleitorais, escritos, via encomenda, por trabalhadores pagos para isso - os scriptores7 . Entretanto, como os grafites eram de cunho popular, pondera Funari que a maioria dos autores dessas inscrições, se passou pelo ensino primário, pouco assimilou das regras ortográficas e da norma culta em geral8 . Isso não os impedia, contudo, que “por meio da escrita pudessem participar ativamente da vida social” (Funari, 2003, p. 75-78, 80). A ação desses “grafiteiros” era tão intensa que justificava a atuação do dealbator (dealbatio – ação de branquear), trabalhador que tinha por finalidade a limpeza das paredes, encarregado de apagar velhas notícias, mensagens indesejáveis ou mesmo de deixar as paredes limpas9 , seguramente para novos desenhos. Além de uma experiência formal como a da escola, pode-se considerar também a importância de métodos pedagógicos alternativos, tanto no aprendizado da língua e da cultura latina e grega, como o contato com imigrantes, com o comércio, a prestação do serviço militar, além das representações teatrais e da atuação dos circulatores, pessoas que promoviam entretenimentos itinerantes, com funções de cantar, declamar poesias ou ler trechos de livros (Gigante, 1979, p. 41; Horsfall, 1996, p. 28, 47). Considerando-se esses aspectos, embora não tenham sido encontrados livros nas cidades vesuvianas10 , é possível verificar, por exemplo, a influência literária épica, elegíaca e dramática romana, grega e helenística nas representações do sentimento afetivo (Gigante, 1979, p. 37). Citações de autores como Homero, Virgílio, Tiburtino, Ovídio, Catulo, Lucrécio, Propércio, dentre outros, são encontrados nos grafites11 . Em diversos deles os autores fizeram suas as palavras de poetas famosos, que tinham as suas obras publicadas e divulgadas pelo império; mas em outros a linguagem, o padrão e o significado foram perpassados e adaptados ao contexto e à leitura popular (Feitosa, 2005, p. 81-87). Nesse processo de assimilação da língua latina, visíveis diferenças podem ser observadas entre a escrita e a leitura erudita e popular. Os escritos oficiais seguem 7

Menções a esses trabalhadores podem ser vistas em CIL, IV 1904, 2487, 2993a, 3512, 4925, 5009. Um exemplo da atividade docente pode ser encontrado na inscrição “C. CVSPIVM PANSAM AED D R p OVF SATVRNINVS CVM DISCENTES ROG” (CIL, IV, 275), no qual o professor Saturnino, com os seus alunos, indicam Caio Cuspio Pansam para o cargo de edil. 9 Cf. grafites como CIL, IV 222, 1190 e 3529. 10 Cidades de Pompéia, Herculano, Stábia e Oplontes, soterradas pela erupção do Vesúvio no ano de 79 d.C. Como sugere Cartelle (1981, p. 81), parece razoável não terem sido encontrados livros nessas cidades à medida que estes não poderiam suportar as altas temperaturas, as cinzas e os lapilli ardentes que os teriam coberto. 11 Para Gigante, os grafites constituem uma notável fonte para o conhecimento da difusão da cultura literária fora dos círculos literários das elites (Gigante, 1979, p. 26). 8

49

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

as regras gramaticais do padrão erudito, enquanto o latim popular, mais flexível, acaba por adequar-se aos elementos regionais. Como mencionado acima, em Pompéia são encontradas reminiscências da escrita e da sintaxe osca adaptadas à língua latina, gerando alterações fonéticas, de ortografia e de justaposições em muitas palavras; além disso, a sua disposição na frase também se aproxima, convém supor, da manifestação espontânea da fala cotidiana. Outro aspecto relevante dessa diferença está na possibilidade de apreender variados significados atribuídos às palavras, de acordo com os valores dos grupos nos quais são constituídos. Os grafites pompeianos denotam as características desse latim popular ou vulgar, diferenciado do latim erudito pela sua estrutura, formação e disposição das palavras na frase. No texto literário impresso há uma rigorosa atenção com o gênero literário adotado, preocupação que não existe no redigido nas paredes, mesmo naqueles inspirados em poetas aristocráticos. A experiência com a escrita também é muito diversa. A grafia suave e bem direcionada produzida pela pena e realizada, por vezes, pelas mãos de escravos que registravam o que lhes era ditado, é distinta daquela feita com o graphium, cuja textura das paredes dificultava a elaboração das letras, a precisão de seu traçado e de sua reelaboração. Característica marcante de cada texto também está no destinatário de cada um deles. Os literários, como os de Virgílio, Tibulo e Ovídio e os demais textos impressos, eram direcionados a um público geral e variado, sendo lidos em diferentes partes da sociedade romana. A mensagem dos grafites, em contrapartida, era voltada, em sua grande maioria, para a comunidade local, em um extenso “diálogo” no qual os leitores podiam fazer as suas considerações sobre o que estava escrito, apresentar saudações, ofensas, votos de bom augúrio, opiniões, recados, entre uma infinidade de temas e questões. Isso significa que o latim popular grafado nas paredes não se resume a uma ortografia incorreta, fruto de uma educação deficiente quando comparada às normas da escrita latina erudita. É nesse conjunto de variações morfológicas, de sintaxe e de semântica, próximo à fala e representando os universos culturais de seus escritores, que os grafites manifestam a força e o sentido de sua representação popular12 . Essa diversidade da escrita no Mundo Antigo e, em particular no Romano, também é marcante na composição das relações entre o feminino e o masculino no ambiente popular. 12

50

Em sentido parecido Woolf considera que a expressão latinogala não era uma fase de transição entre a escrita grecogala e a escrita latina, mas que ambas apareceram na mesma época e floresceram paralelamente. Tampouco considera essa escrita uma mistura do latim com o galo, usada pelo povo semiromanizado (2000, p. 150). Ver também Funari, 2003.

LER E ESCREVER EM POMPÉIA: DIVERSIDADE NA CONSTRUÇÃO DE GÊNERO Lourdes Conde Feitosa

No quadro complexo de particularidades jurídicas da sociedade Romana - livre por nascimento (ingenuus), manumitido (libertus) e cativo (seruus) - um elemento em comum entre muitas mulheres e homens era o seu distanciamento de uma vida economicamente estável. Além de cativos de guerra, o estado de penúria vivido por muitos deles fazia com que adultos relegassem a sua condição de livres para se venderem como escravos, e que crianças carentes fossem abandonadas ou vendidas por seus pais (Veyne, 1961: 215). Essas condições faziam com que as sensíveis e reais diferenças entre os grupos sociais não se detivessem na origem estatutária, mas fossem frutos das relações de opressão e exploração originárias da base escravista que vigorava. Por meio dessas desigualdades é que escravos, livres e libertos de baixos extratos diferenciavam-se dos demais e esse compunha a primeira característica comum aos denominados populares. Entretanto, os contrastes étnicos e regionais, característicos de um domínio vasto como o romano, marcaram as singularidades culturais entre os diversos grupos populares que se constituíram na sociedade romana. No caso específico de Pompéia, vários traços podem ser vinculados a mulheres e homens plebeus da cidade. O primeiro deles diz respeito à condição de trabalhador, como encontrado nos ícones registrados por eles e sobre eles13 . Por meio dos grafites, essas pessoas referenciavam os inúmeros ofícios e associações profissionais aos quais pertenciam, como proprietários de pequenas tabernas, oficinas e padarias14 ; atividades independentes na função de professor, alfaiate, vendedor de roupas e jóias15 ; além de inúmeras associações de trabalhadores como as do pomari [vendedores de frutas], muliones [cocheiros], aurificis [ourives], pistori [padeiros], lignari [lenhadores], aliarii [vendedores de alho] e galinarii [vendedores de aves], fullones [pisoeiros], unguentari [perfumistas], culinari [ajudantes de cozinha], caupones [taberneiros] e agricolae [trabalhadores agrícolas]16.

13

Em 1939, o estudo de Tanzer The common people of Pompei, identificou por “povo comum” as pessoas que viviam no mundo do trabalho (prestação de serviços, produção e comércio). Apresentou uma inusitada compilação dos variados tipos de atividades laborais exercidas na cidade, por meio de grafites reunidos no volume IV do Corpus Inscriptionum Latinarum, mas não houve a preocupação em identificar os aspectos estatutários ou culturais que pudessem envolver tais pessoas. 14 Cf. CIL, IV, 368, 4472/3 (Oficina dos Atti), 7749. 15 CIL, IV, 275 (professor); 3130, 7669/ 71/ 74 (joalheiro). 16 Pomari , CIL, IV, 180, 183, 202, 206; Muliones, CIL, IV, 97, 113, 134; Aurificis, CIL, IV, 710; Pistori, CIL, IV, 429, 4227, 4888, 5380; Lignari, CIL, IV, 485, 951, 960; Aliarii, CIL, IV, 3485; Galinarii, CIL, IV, 241, 373; Fullones (os que preparam o pano depois de tecido), CIL, IV, 998, 2966, 3478, 3529, 4100, 4102/03/07/09/12/18/20; Unguentari, CIL, IV, 609; Culinari, CIL, IV, 373; Caupones, CIL, IV, 336; Agricolae, CIL, IV, 480, 490.

51

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

A grande maioria desses trabalhadores não mencionou os seus nomes ou suas diferenças estatutárias17 , contudo as referências encontradas nos grafites permitem identificar aspectos de sua composição social. Nomes como Caprasia e Nymphio18 , Felix19 , Fuscus e Vaccula 20 , Losimio21 , Hermes22 , Iphigenia23 , Hilario24 , Narcissus25 , Fortunatus e Anthusa26 , Aegle27 , Maria28 e Pollia29 (grafias preservadas no original), sinalizam a sua origem estrangeira - grega, judaica, árabe, “oriental”, dentre muitas outras - ou da própria cidade (D’Avino, 1964; Della Corte, 1956), mas todos de procedência humilde. Esses nomes feitos por mulheres e homens estão presentes nos diversos escritos dedicados a campanhas políticas. O pompeiano Cerato registrou a sua condição de liberto no apoio a Védio, o seu candidato à edilidade: P. Vedium Numm(ianum) aed. Ceratus lib(ertus) rogat (CIL, IV, 910) [O liberto Cerato indica para edil P. Vedio Nummiano]30 ; o mesmo fez o liberto Thesmo ao indicar Albúcio: L. Albucium aed. Thesmus libert rog (CIL, IV, 2983) [L. Albúcio para edil. O liberto Thesmo pede]. Aselina, considerada como a líder de um grupo de prostitutas (D’ Avino, 1964, p. 49), deixou registrado, juntamente com outras garotas, suas indicações aos pleitos 17

As condições de liberto e escravo foram citadas, por exemplo, nas inscrições CIL, IV, 910, 2983 e 2038. 18 CIL, IV, 171, 207. 19 CIL, IV, 174, 1989. 20 CIL, IV, 175/6. 21 CIL, IV, 229. 22 CIL, IV, 241. 23 CIL, IV, 457. 24 CIL, IV, 913. 25 CIL, IV, 1130. 26 CIL, IV, 1230. 27 CIL, IV, 7866. 28 CIL, IV, 7862. 29 CIL, IV, 368. 30 Outras referências podem ser encontradas em CIL, IV, 2983; 2993. Em outro grafite, Cresces, que Della Corte interpretou como recém liberto (1954, p. 182), envia saudações a todos os companheiros de escravidão: Cresces conservis universis sal(utem), CIL, IV, 475.

52

LER E ESCREVER EM POMPÉIA: DIVERSIDADE NA CONSTRUÇÃO DE GÊNERO Lourdes Conde Feitosa

locais. Aselina teria a seu cargo Egle (grega), Maria (judia), Esmirna (“exótica”). Ainda há outras, como Palmira (“oriental”), por exemplo, mas esta a serviço de Hermes. Aselina apóia dois candidatos a duumviro; Esmirna, também31 . Um deles coincide e elas fazem uma única inscrição para manifestar sua preferência por C. Lolio Fusco. Quanto ao outro candidato, há divisão. Aselina prefere L. Ceio Segundo, e Esmirna, C. I. Políbio. Mas nenhuma das duas tem candidato à edilidade. Nesta casa, o apoio a edis ficou por conta de Maria e Egle. Cada uma delas, como fica claro, tinha independência para escolher seus candidatos. Como estas, também deixaram as suas menções trabalhadoras de tabernas como Polia, que apoiou Cn. Cerino Vátia à edilidade (CIL, IV, 368;) e Ferusa, que preferiu L. Popídio Segundo (CIL, IV, 7749). Da mesma maneira fizeram outras mulheres32 . É curioso observar essas indicações de apoio político, pois na sociedade romana as mulheres não tinham direito à cidadania política, portanto, não poderiam ser candidatas ou eleitoras. Durante o Principado, período em que esses registros foram feitos, também não todos os homens livres eram cidadãos33 e mesmo dentre estes havia distinções entre a cidadania com pleno direito - ciues Romani, daquela com direitos parciais - ius Latii (ALFÖLDY, 1987, p. 154). Dentre os libertos, os aspectos jurídicos também variavam segundo o tipo de manumissão como, por exemplo, os libertados sob a manumissio iusta, que obtinham o direito ativo de voto34 . Não sabemos qual era a situação dos libertos Cerato e Thesmo, mas há grande possibilidade de que ambos, juntamente com as mulheres mencionadas, não pudessem participar oficialmente das eleições. Supostamente sem condições financeiras para trocas políticas, as indicações destas mulheres e homens podem ser vistas como uma atividade coletiva da qual faziam parte como membros ativos, dando suas opiniões, discutindo política, apoiando e indicando candidatos e que, talvez, essa participação na organização da comunidade fosse mais importante do que as eleições em si mesmas (SAVUNEN, 1995; WILL, 1979).

31

CIL, IV, 7863, 7864 e 7873. Para Della Corte, em comentários apresentados abaixo das inscrições, esses nomes estariam associados às mulheres de condição servil. Mas a condição de cada uma delas só pode ser identificada quando mencionada na própria inscrição. 32 Cf., entre outros exemplos, Júnia (CIL, IV, 1168), Epídia (CIL, IV, 6610) e Sutória Primigênia (CIL, IV, 7464), na campanha de 79; Cornélia (CIL, IV, 3479), em 77; Caprásia (CIL, IV, 171), em 76; e Víbia (CIL, IV, 3746), cujo candidato não foi possível discernir. 33 Isso só veio a acontecer com Caracalla (211–217), pela Constitutio Antoniniana. Cf. Alföldy, 1987, p. 144. 34 Los argúi que, no final da República, não havia nenhuma restrição legal à ocupação do ordo decurionum (conselho local responsável pela administração da justiça, das finanças, abastecimento de alimentos, construções e manutenção da ordem pública) pelos libertos, embora os altos cargos estivessem reservados aos ingenui, homens nascidos livres (LOS, 1987, p. 850-2).

53

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

Além das indicações para os pleitos locais, a pequena cidade da Campânia romana, com uma população estimada entre dez e quinze mil habitantes e uma dinâmica econômica baseada na agricultura, indústria e comércio, guarda outros tipos de referências. As bodegas, casas, armazéns, prostíbulos, teatros, o fórum e o anfiteatro têm em suas paredes marcas dos sentimentos e das idéias de seus habitantes e daqueles que passavam pela cidade para o veraneio, comércio ou para diversão com os ludi35 . Grande parte dessas inscrições conservadas nas paredes pompeianas é de rápida menção e suscitada diretamente pelo coração, como as evidências destes grafites sobre o sentimento amoroso: Marcus Spedusa amat (CIL, IV, 7086). [Marcos ama Espedusa] Marcellus Praenestinam amat, et non curatur (CIL, IV, 7679) [Marcelo ama Prenestina e não é correspondido] Amethusthus nec sine sua Valentina CIL, IV, 4858 [Ametusto não vive sem sua Valentina] Vibius Restitutus hic solus dormiuit et Vrbanam suam desiderabat (CIL, IV, 2146) [Víbio Restituto aqui dormiu sozinho e lembrou-se ardentemente de sua amada Urbana] Suauis uinaria sitit rogo uos et ualde Sitit Calpurnia tibi dicit. Val(e) (CIL, IV, 1819) [Digo a você: desejo teu doce vinho e desejo muito] Calpurnia te diz. Saudações!].

35

54

Ludus, ludi: palavra de origem etrusca que pode ter dois sentidos. O primeiro, “jogos de ação”, correspondente aos jogos de caráter religioso e oficial. O segundo refere-se a escola, o local onde os gladiadores treinavam antes do espetáculo. Cf. Garraffoni, 2005, p. 23.

LER E ESCREVER EM POMPÉIA: DIVERSIDADE NA CONSTRUÇÃO DE GÊNERO Lourdes Conde Feitosa

Diversos casais também eternizaram nas paredes sua união. Segundo registrou, ou talvez mesmo Primigênia tenha escrito a frase abaixo, seguindo uma tradição de por o nome do homem no início da frase, como se repete na seqüência abaixo: Secundus cum Primigenia conveniunt (CIL, IV, 5358) [Segundo com Primigênia, em comum acordo] [Ba]lbus et Fortunata duo coiuges (CIL, IV, 4933) [Balbo e Fortunata, os dois esposos] L. Clodius Varus Pelagia coniunx (CIL, IV, 2321) [Lucio Clódio Varo e sua mulher Pelagia] Staphilus hic cum Quieta (CIL, IV, 4087) [Estáfilo aqui com Quieta] Outra sucessão de grafites, escritos em colunas do Pórtico posterior da região ocidental, mostra o desejo dos enamorados de deixar unidos os seus nomes com pedidos de bom augúrio: (H)ic sumus felices. Valiamus recte (CIL, IV, 8657) [Aqui somos felizes. E continuamos firmes] (H)ic (h)abitamus: felices nos dii faciant (CIL, IV, 8670) [Aqui habitamos. Que os deuses nos façam felizes] As paredes também guardam os registros das muitas súplicas amorosas, feitas por homens que, em uma linguagem simples e direta, pedem o amor da mulher estimada. Desta maneira expressou-se Secundo, no átrio de uma casa: Secundus Prim(a)e suae ubi/que isse salute(m) Rogo, domina, ut me ames (CIL, IV, 8364) [Secundo à sua querida Prima, uma saudação cordial. Peço, senhora, me ame!] Súplicas foram feitas a Plotina e a Sava: Aelius Magnus Plotillae suae salutem. 55

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

Rogo, domina (CIL, IV, 1991) [Élio Magno saúda a sua amada Plotila]. Peço-te senhora!] Propero. Vale, mea Sava, fac me ames (CIL, IV, 2414) [Tenho pressa. Tchau, minha Sava! Me queira sempre!] Todos esses grafites nos permitem vislumbrar a relação construída entre homens e mulheres que compartilhavam trabalhos, alegrias, infortúnios e explorações na Pompéia Romana do início de nossa era. Uma cidade pequena, mas representativa da pluralidade étnica e das influências heterogêneas compartilhadas por pessoas de diferentes origens. Diversidade de sentimentos, idéias, sensibilidades e valores que definiram a maneira como as relações de gênero se configuraram no ambiente popular, eternizadas pelos registros nas paredes. Anunciadora de como conviviam mulheres e homens, a própria escrita é enaltecida na representação de um casal, cuja pintura foi encontrada no tablinum de uma casa de Pompéia: Leitura dos grafites

Figura 2. Provavelmente o casal Terentius Neo e sua mulher. Casa VII, 2, 6. (Cantarella, 1999, p. 26.)

56

LER E ESCREVER EM POMPÉIA: DIVERSIDADE NA CONSTRUÇÃO DE GÊNERO Lourdes Conde Feitosa

Essa pintura é representativa de pessoas de classes sociais menos elevadas e provavelmente ilustra os proprietários de uma padaria (MAIURI, 1953, p. 103). É significativa a presença do papiro na mão esquerda dele e a tabuinha de cera e o graphium nas mãos dela, sinais da importância que a familiaridade com a escrita e a leitura sugere ter também no nível da representação desse espaço social. Considerações Finais Vivemos dias de reflexões sobre os paradigmas construídos em tempos modernos de um povo romano uno, coeso e dominador, algoz dos bárbaros e herdeiro cultural dos gregos. A documentação arqueológica de Pompéia, em particular a epigráfica, embora fragmentada, nos desafiam a pensar a pluralidade das sensibilidades que compunha a sociedade romana. A indagação sobre a constituição histórica do que seja característico à feminilidade e à masculinidade possibilita compreender como os comportamentos que os distinguem são influenciados pelas relações culturais articuladas entre eles. Por essa razão, os variados grupos sociais, baseados em seus valores, conceitos, visões e espaços sociais, formulam diferentes vínculos, comportamentos e atitudes em suas relações sociais. A análise da escrita, da leitura e de gênero permite-nos vislumbrar um Mundo Antigo cada vez mais diverso, complexo e distante da unidade que um dia se imaginou existir. Agradecimentos Meus agradecimentos aos colegas Margarida Maria de Carvalho, Renata Senna Garraffoni e Pedro Paulo Funari. As idéias aqui apresentadas são de minha responsabilidade. Referências 1. Documentação Antiga Corpus Inscriptionum Latinarum, uolumen quartum (CIL, IV): DELLA CORTE, M. Inscriptiones Pompeianae parietariae et vasorum fictilium, supp. pars III, fasc. 1-4. Berlin: Akademie Verlag, 1952, 1955, 1963 e 1970. MAU, A., ZANGEMEISTER, C. Inscriptionum parietariarum pompeianarum, 57

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

supp. pars II. Berlim: Akademie Verlag, 1909. ZANGEMEISTER, C. Tabulae ceratae Pompeis repertae, supp. pars I. Berlin: Akademie Verlag, 1898. ZANGEMEISTER, C., SCHOENE, R. Inscriptiones parietariae Pompeianae, Herculanenses, Stabianae. Berlin: Akademie der Wissenschaften, 1871. 2. Textos Epigráficos BODEL, J. Epigraphic Evidence. Ancient history from inscriptions. London/ New York: Routledge, 2001. CARTELLE, E. M. Priapeos; grafitos amatorios Pompeyanos; la valada de la fiesta de Venus; el concúbito de Marte y Venus; centón nupcial. s. l.: Gredos, 1981. DELLA CORTE, M. Case ed abitanti di Pompei. Roma: L’Erma, 1954. IRELAND, R. Epigraphy. In: HENIG, M. (Ed.) A handbook of Roman Art. Ithaca/New York: Cornell University Press, 1983. p. 220-233. KEPPIE, L. Understanding Roman inscriptions. Baltimore: John Hopkins University Press, 1991. VÄÄNÄNEN, V. Le latin vulgaire des inscriptions pompéienes. Helsinki: Annales Academiae Scientiarum Fennicae, 1937. 3. Gerais ALFÖLDY, G. História social de Roma. Tradução de Victor Alonso Troncoso. Madrid: Alianza, 1987. BOWMAN, A; WOOLF, G. Cultura escrita y poder en el mundo antiguo. In: ________ (Org.) Cultura escrita y poder en el Mundo Antiguo. Barcelona: Gedisa, 2000. CANFORA, L. Lire a Athènes et a Rome. Annales ESC, juillet-aout, nº 4, p. 925937, 1989. CANTARELA, E. Pompei. I volti dell´amore. 2 ed. Milano: Mondadore, 1999. CAVALLO, G. Donne che leggono, donne che scrivono In: RAFFAELLI, R. (Ed.) Vicende e figure femminili in Grecia e a Roma. Ancona: Pari Oportunità, 1995. p. 517-536.

58

LER E ESCREVER EM POMPÉIA: DIVERSIDADE NA CONSTRUÇÃO DE GÊNERO Lourdes Conde Feitosa

CLARKE, M. L. - Educação e Oratória In: BALSDON, J. P. V. D. (Org.). O Mundo Romano. Trad. de Victor M. de Morais. Rio de Janeiro, Zahar, s. d. D’AVINO, M. La donna a Pompei. Napoli: Loffredo, 1964. FEITOSA, L. C. Amor e sexualidade: o masculino e o feminino em grafites de Pompéia. São Paulo: FAPESP/Annablume, 2003. FEITOSA, L. M. G. C., FAVERSANI, F. Sobre o feminino e a cidadania em Pompéia. Pyrenae, nos 3 e 4, p. 253 – 259, 2002/2003. FERREIRA, A.G. Dicionário de Latim-Português. Portugal: Porto, s/d. FRANKLIN Jr., J. L. Literacy and the parietal inscriptions of Pompeii. In: BEARD, M. et alli. Literacy in the Roman World. Jornal of Roman Archaeology. Supll. Series, nº 3. Michigan: An Arbor, 1991. FUNARI, P. P. A. Cultura popular na Antigüidade clássica. São Paulo: Contexto, 1989. FUNARI, P.P. A vida cotidiana na Roma Antiga. São Paulo: Annablume, 2003. GARRAFFONI, R. S. Gladiadores na Roma Antiga. Dos combates às paixões cotidianas. São Paulo: Fapesp/Annablume, 2005. GIGANTE, M. Civiltà delle forme letterarie nell´antica Pompei. Roma: Bibliopolis, 1979. HORSFALL, N. La cultura della plebs romana. Barcelona: PPU, 1996. LOS, A. Les affranchis dans la vie politique à Pompei. Mefra, 99, no 2, p. 847873, 1987. MAIURI, A. La peinture romaine. Suisse: Copyright, 1953. PARCA, M. Local languages and native cultures. In: BODEL, J. (Ed.) Epigraphic Evidence. Ancient history from inscriptions. London/New York: Routledge, 2001. SAVUNEN, L. Women and elections in Pompeii. In: HAWLEY, R., LEVICK, B. Women in Antiquity. London: Routledge, 1995. TANZER, H. H. The common people of Pompei. A study of the graffiti. Baltimore: The Johns Hopkins Press, 1939. VARONE, A. Erotica pompeiana. Iscrizioni d’amore sui muri di Pompei. Roma: L’Erma di Bretschneider, 1994. 59

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

VEYNE, P. Vie de Trimalcion. Annales. v. 16, no 2, p. 213-247, mars-avr., 1961. WILL, E. L. Women in Pompeii. Archaeology. v. 32, no 5, p. 34- 43, 1979. WOOLF, G. El poder y la difusión de la escritura en Occidente. In: BOWMAN, A; WOOLF, G. (Org.) Cultura escrita y poder en el Mundo Antiguo. Barcelona: Gedisa, 2000.

60

O FEMININO ADENTRA A ARENA: MULHERES E A RELAÇÃO COM O AS LUTAS DE GLADIADOR NA ROMA IMPERIAL Renata Senna Garraffoni* Lorena Pantaleão da Silva**

Resumo: O artigo começa por discutir a renovação dos estudos clássicos e as mudanças de abordagens sobre a presença das mulheres nas lutas de gladiadores, no contexto da pós-modernidade. Volta-se, em seguida, para o uso da literatura e Epigrafia para o estudo da História do mundo antigo. Como estudo de caso, o artigo analisa trechos de Juvenal e lápides funerárias no contexto da luta de gladiadores com o intuito de aproximar esses temas tratados separadamente pela historiografia. O artigo conclui-se enfatizando as identidades fluidas e contraditórias. Unitermos: Literatura antiga; Epigrafia; relações de gênero; conflitos sociais. Abstract: The paper starts by discussing the renewal of classics and the new approaches to study the presence of women during gladiators’ combats, in the context of postmodernity. It turns then to the issues relating the use of literature and Epigraphy for the historical study of the ancient world. As a case study, the paper focus in Juvenal’s Satires and gladiators’ funerary commemorations (epitaphs) and it aims to study female presence in the Roman arena. The paper concludes by stressing how identities were fluid and rife with conflict during the Roman Empire. Keywords: Ancient literature; Epigraphy; gender relations; social conflicts.

* Professora DEHIS/UFPR. e-mail: [email protected]. **Mestranda PGHIS/UFPR – Bolsista Capes/Reuni, e-mail: [email protected]

61

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

Introdução Os estudos clássicos, considerados por muitos pesquisadores uma das áreas mais tradicionais dentro da disciplina histórica, vêm apresentando, nos últimos anos, mudanças significativas. Dentre os temas que tem recebido maior destaque citamos os trabalhos sobre as mulheres romanas, com grande quantidade de publicações produzidas, em geral, influenciadas pelos estudos de gênero. A demora para o desenvolvimento de trabalhos sobre a situação feminina no mundo antigo foi, em diversos momentos, justificada pela falta de fontes para tanto, ou seja, de vestígios textuais elaborados pelas próprias mulheres (FINLEY, 1990), impossibilitando ou restringindo seriamente as pesquisas. Nas raras ocasiões nas quais eram realizadas, conforme apontado por Pantel (1990), as pesquisas se limitavam a examinar os casos das esposas ou filhas de imperadores e membros da aristocracia romana, apresentadas pela historiografia como exemplos de virtude feminina. Logo, análises sobre a relação entre as mulheres romanas e os combates de gladiadores durante o período imperial, como a que aqui será apresentada, são possíveis há pouco tempo, graças a mudanças teóricas e a valorização da interdisciplinaridade (FUNARI,1995; FEITOSA, 2005). A interdisciplinaridade que destacamos não se restringe ao diálogo da História com uma única disciplina, mas com duas, Literatura e Arqueologia, configurando aquilo que os britânicos chamam de ‘Classics’. No campo literário há algumas obras pouco exploradas pelos historiadores que apresentam uma grande quantidade de figuras femininas e são marcadas pelo cômico (CARDOSO, 2003). Durante muito tempo considerado um gênero “menor”, atualmente, estudiosos defendem sua relevância, uma vez que apresentariam mais dados sobre a vida cotidiana e, consequentemente, sobre as mulheres. No entanto, devido a sua especificidade, a de provocar o riso, sua leitura exige alguns cuidados particulares por parte do historiador ao desenvolver sua interpretação. No que concerne a cultura material, observamos tanto na Europa como no Brasil, nos últimos anos, uma grande quantidade de trabalhos elaborados levando em consideração temas como gênero e sexualidade, os quais acabam por abordar, também, a situação feminina na Roma antiga (FEITOSA, 2005; CAVICHIOLLI, 2003). Além dos relatos textuais satíricos, que oferecem uma visão da elite romana, a cultura material nos proporciona a possibilidade única de acessar vestígios elaborados por grupos exonerados da escrita no império romano e, por conseguinte, dos estudos históricos. Pensando nestas questões iremos apresentar aqui um estudo que busca um diálogo interdisciplinar, entre a história, os estudos literários e a Epigrafia, ramo da arqueologia clássica, visando compreender um pouco melhor a relação entre as 62

O FEMININO ADENTRA A ARENA: MULHERES E A RELAÇÃO COM O AS LUTAS... Renata Senna Garraffoni; Lorena Pantaleão da Silva

mulheres e o mundo dos gladiadores e dos jogos romanos. Essa reflexão se originou a partir do fato de encontrarmos pontos de convergências entre nossas pesquisas e procuramos sistematizar alguns aspectos que nos pareceram mais relevantes. Trata-se de um estudo preliminar que estamos realizando na Universidade Federal do Paraná com o intuito de aproximar essas duas esferas do cotidiano romano que, geralmente, são entendidas como separadas. Nesse sentido, a escolha do tema, a presença feminina nos jogos gladiatórios não foi fortuita, mas intencional, pois buscamos discutir a possibilidade de construir abordagens alternativas que envolvessem as mulheres e os combates no início do Império romano. Pelo fato de tratarmos universos documentais distintos, apresentaremos, inicialmente, as reflexões epistemológicas que pautam nossa abordagem para, em seguida, tecermos algumas considerações sobre o estudo de obras satíricas, assim como o autor e o texto proposto para análise, a sátira VI da obra Sátiras de Juvenal. Por fim, apontaremos considerações sobre as inscrições e discutiremos uma categoria especial, as lápides funerárias que remetem ao universo das lutas de gladiadores. A idéia central dessa reflexão é, portanto, estabelecer um diálogo entre estes discursos distintos, intencionado vislumbrar novas possibilidades teóricas e metodológicas de compreensão de como se davam as relações entre o universo feminino e os espetáculos durante o início do Império Romano, aspecto pouco explorado tanto entre os estudiosos de temas relacionados às mulheres como por aqueles que se dedicaram a estudar os combates. 1 Mulheres, gladiadores e historiografia As lutas de gladiadores sempre se apresentaram como um fenômeno polêmico diante dos estudiosos do mundo clássico. Desde o século XIX classicistas tentam compreender este fenômeno e várias teorias foram propostas para explicar este tipo tão particular de espetáculo. Talvez a interpretação mais conhecida seja a idéia da “plebe ociosa” que vivia de pão e circo. Junto a ela, a teoria da Romanização, pela qual os anfiteatros eram entendidos como símbolos do poder romano, também dominou por décadas os cenários interpretativos dos combates. Nascidas em contextos colonialistas do século XIX, estas duas interpretações ainda seguem com vida, seja na mídia, seja em publicações acadêmicas relativamente recentes1.

1

Para as interpretações do século XIX, cf. Mommsen 1983; Friedländer 1947. Durante o século XX destacamos: Carcopino, 1990; Grimal, 1981; Mancioli, 1987; Robert, 1995; Potter e Mattingly, 1999. Para novas abordagens sobre a teoria da Romanização e combates de gladiadores, cf., por exemplo: Gunderson, 1996; Futrel, 1997; Golvin 1988.

63

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

Na década de 1960, ou seja, após II Guerra Mundial, foi somada à noção de “plebe ociosa” a questão da violência implícita nos espetáculos, pouco comentada até então (GARRAFFONI, 2005). Esta nova possibilidade de análise difundiu outro conceito que, aos poucos, tornou-se bastante comum na historiografia sobre os combates: a idéia na qual as arquibancadas romanas eram freqüentadas por uma população pobre, desocupada, fascinada por espetáculos sangrentos, uma clara reação a historiografia anterior. Esses discursos foram muito criticados após nos anos 1970. Veyne (1990), por exemplo, discutiu os espetáculos a partir de uma perspectiva crítica, pois ao invés de considerar a plebe romana uma massa apolítica e violenta, argumentou que o anfiteatro era um lugar onde povo e imperador se defrontavam e lutavam por seus interesses. Seu modelo interpretativo, baseado em uma perspectiva sociológica, permitiu uma nova explicação da arena romana, na qual o anfiteatro seria um local em que ocorreria o contato com a ideologia dominante e os jogos de poder implícitos. Neste sentido, embora Veyne tenha descrito o ambiente do anfiteatro como monolítico, o fato de o estudioso destacar os interesses da elite e da plebe fez com que muitos classicistas, estrangeiros e brasileiros, adotassem esta perspectiva de análise (WEEBER, 1994; WIEDEMANN, 1995; GUNDERSON, 1996; ALMEIDA, 2000; CORASSIN, 2000). Durante os anos de 1980 e 1990, muitos estudiosos optaram por desenvolver o modelo proposto por Veyne e, embora a grande maioria aceitasse seus pressupostos, houve aqueles que expandiram o campo de compreensão deste fenômeno, destacando não somente suas implicações políticas, como também enfatizaram seus significados culturais. Neste contexto, ocorreu um deslocamento do foco de atenção e a ênfase no contexto histórico em que os combates ocorriam, isto é, uma sociedade escravista, altamente militarizada, passou a ter um importante peso nos argumentos desenvolvidos (BARTON, 1993; FUTREL, 1997; HOPKINS, 1983; PLASS, 1995; WISTRAND, 1990; 1992). Apesar da particularidade de cada estudo, grande parte destes autores ressaltou o valor pedagógico dos combates de gladiadores. As arenas romanas tornaram-se, então, um local simbólico em que valores como masculinidade, bravura, força, disciplina e punição aos crimes eram expostos e reafirmados. Embora tenhamos resumido aqui um debate historiográfico muito mais complexo, optamos por fazer isso ressaltar uma característica comum entre os estudos que se referem aos combates de gladiadores: em sua grande maioria as interpretações estão fundadas em aspectos políticos ou econômicos, dispensando pouca atenção aos aspectos culturais ou religiosos que tais combates envolviam. Na tentativa de dar uma explicação aceitável para os padrões modernos, estudiosos criaram modelos interpretativos amplos, que abordam facetas da sociedade romana, mas pouco 64

O FEMININO ADENTRA A ARENA: MULHERES E A RELAÇÃO COM O AS LUTAS... Renata Senna Garraffoni; Lorena Pantaleão da Silva

discutem as concepções ou anseios das pessoas que nele estavam envolvidos. Assim, na tentativa de explicar racionalmente um fenômeno particular que envolve violência física, os estudiosos deixaram de lado as pessoas comuns como os próprios gladiadores, pouco mencionados nesses textos e, quando por ventura o fizeram, dificilmente citaram a presença das mulheres, crianças ou idosos, explicando a arena como um lugar primordialmente masculino e adulto. Do ponto de vista teórico é possível explicar essa situação a partir das considerações de Richard Hingley (2005). Embora o autor não estude os gladiadores e sim apresente uma ampla crítica à teoria da Romanização, Hingley destaca um ponto fundamental para nossa abordagem: o Império romano foi construído, entre os estudiosos modernos, como um discurso feito a partir do ponto de vista masculino de uma determinada elite romana. Ou seja, Hingley destaca que, mesmo com o avanço dos estudos clássicos e a discussão de diferentes tipos de identidades, a visão masculina de Roma não foi desafiada e, consequentemente, a ênfase no poder masculino da elite inibe a percepção tanto das diversas formas de masculinidades como a presença feminina. Hingley não desenvolve uma análise de Gênero em seu trabalho, pois sua preocupação está em estudar as relações romano/nativo, mas nos ajuda a buscar uma forma mais balanceada de entender o Império Romano. Como um estudioso voltado às análises construídas a partir do pensamento pós-moderno, Hingley nos desafia a criar interpretações menos normativas acerca do mundo romano. Assim, inspiradas por Hingley e motivadas pela possibilidade de trazer para o discurso acadêmico sujeitos muitas vezes invisíveis na historiografia, optamos por focar nos gladiadores e nas mulheres que com eles de alguma forma se relacionaram, na tentativa de colaborar para a construção de modelos interpretativos menos excludentes sobre o passado romano. Por se tratar de um trabalho pouco convencional, optamos por discutir duas categorias documentais distintas: uma sátira de Juvenal e lápides funerárias encontradas em Roma no mesmo período da escrita do texto. Como buscamos destacar desejos e sensibilidades nem sempre visíveis na historiografia a documentação mencionada é muito instigante, pois de um lado temos uma sátira moralista e, de outro, epitáfios que indicam como pessoas infames construíam suas relações e buscavam o conforto mútuo. Por se tratar de um estudo de caso, não utilizamos uma ampla quantidade de dados, mas buscamos contrapor os discursos distintos, de um satirista e da preservação de memórias, para provocar novas possibilidades de leituras e repensarmos nossas noções de Império Romano, violência e relações de gênero. 65

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

2 O riso em Roma Como mencionamos a pouco, ao fazermos um breve levantamento acerca das produções de historiadores acerca do Império Romano, percebemos que há um predomínio de estudos no campo da política, das guerras e conquistas ou da economia. Essa tradição de estudos acabou por estabelecer os parâmetros daquilo que deveria ser o Império Romano, circunscrevendo-o em um mundo masculino e das elites letradas. Essa situação provocou uma série de silenciamentos, seja da população das camadas menos favorecidas, assim como das mulheres. O que observamos nesses estudos sobre o mundo clássico é uma idealização do cidadão romano em geral, representado como extremamente sério contrapondo-se a uma plebe que permanece nos anfiteatros, imersa em práticas obscenas. Creditamos em parte a construção deste perfil ao fato de, por um extenso período, estudiosos do mundo romano se apropriaram de um suposto “legado” romano para a legitimação de determinadas condutas imperialistas e/ou totalitaristas ao longo dos séculos XIX e XX (HINGLEY, 2010; SILVA, 2007). Neste sentido, devido ao caráter tradicionalista e elitista que vigorou décadas nos estudos clássicos obras que destoassem do ideal de virtude e seriedade romanas foram menos estudadas ou ainda relegadas a nichos acessíveis apenas a especialistas. Esta configuração foi favorecida, conforme apontado em um estudo acerca do riso latino por Minois (2003), pelo fato de que, mesmo os textos mais cômicos foram traduzidos, muitas vezes, em estilo grandiloquente e retórico, renegando a presença constante do riso na sociedade romana e sua função como uma ferramenta para a manutenção da moral. Observamos esta figuração do humor no mundo romano, em diversos autores, conforme apontado por Graff (2000). Segundo este estudioso, o humor serviria como uma possibilidade de estabelecer uma crítica entre iguais, ou seja, permitira que os membros da elite romana criticassem seus pares sem ofender o interlocutor, constituído, assim, um aspecto da retórica, utilizada por autores como Cícero, por exemplo. Destacamos tais fatos porque, dentre as obras remanescentes do mundo romano, encontramos muitas que foram elaboradas com ênfase na comicidade e que apresentam inúmeros aspectos da vida cotidiana, mas foram pouco estudadas no campo da historiografia. Devido a sua especificidade humorística, muitos defenderam que não eram dignas de credibilidade devido aos exageros e omissões ou, entre os que se aproximaram delas, acabaram por transformá-las em reflexo imediato da realidade, tornando mulheres ou as camadas populares esteriotipadas e carregadas de conotações negativas (GARRAFFONI, 2002). Considerando as mudanças epistemológicas apontadas e a partir de uma problematização específica das obras em questão pelo historiador, é possível pensar sobre aspectos sociais e culturais romanos pouco estudados. É por esse motivo que apresentamos algumas considerações sobre o estilo satírico que permeia o texto aqui analisado. 66

O FEMININO ADENTRA A ARENA: MULHERES E A RELAÇÃO COM O AS LUTAS... Renata Senna Garraffoni; Lorena Pantaleão da Silva

3 Juvenal e as Sátiras O estilo escolhido por Juvenal, a sátira, é marcado por características específicas, em sua maioria estabelecidas por Lucílio, poeta fundador deste gênero literário, em especial no que diz respeito à métrica, tema, apresentação e linguagem. Mais do que a simples cópia dos preceptores, na Antiguidade a inserção em um gênero se dava, por um lado, por meio do respeito aos caracteres específicos do mesmo e, por outro, expressava o elogio e admiração ao poeta que estava servindo como inspiração. Elaborada em versos, tendo como tema a moral e a educação, o texto satírico tinha o intuito de ser recitado em voz alta. (BRAUND, 1996) Sobre a vida de Juvenal não possuímos muitos dados e suas biografias mais antigas remontam ao século IV d.C., portanto, foram escritas em um período bastante distanciado daquele no qual o autor viveu (segunda metade do século I e início do século II d.C.). A partir da análise de fatos citados em sua obra aponta-se que a escrita da mesma tem início em torno de 96 d.C. Sabemos também que é provável que Juvenal seja proveniente de uma família próspera (Comte 1994) e que teria tido acesso à educação e ao estudo da retórica, mas sem meios para se manter na vida adulta, fora obrigado a se submeter a relações de clientelismo como Marcial (autor que cita Juvenal em seus epigramas). Tendo alcançado pouca expressão literária durante os séculos II e III, d.C. obteve maior êxito a partir do século IV e durante todo período medieval, provavelmente devido à ironia e ao tom moralizador da escrita satírica, motivos que favoreceram a reprodução de seus escritos a partir da Antiguidade Tardia. A obra de Juvenal é composta de dezesseis sátiras com temas diversos. Suas múltiplas abordagens incluem uma miríade de temas, desde questões políticas até dados corriqueiros da vida cotidiana, além da situação dos poetas ou ainda das dificuldades dos membros de grupos populares no mundo romano. Essa diversidade permite que, atualmente, se desenvolvam diversas pesquisas a partir destes textos, por exemplo, o trabalho de Cubillos Poblete (2004) acerca dos grupos marginalizados no mundo romano. Dentre essas dezesseis sátiras, uma em especial, a Sexta, nos interessa nessa ocasião. Nessa sátira o autor propõe como tema principal a questão se um homem deveria ou não se casar, expondo para tanto uma grande quantidade personagens femininas em situações diversas. Assim, ainda que seja um texto que apresenta uma visão proveniente de um homem próximo às elites romanas, ele nos permite algumas aproximações com o universo feminino do período imperial. Esta sátira é iniciada com a citação de um exemplo nostálgico pertencente ao período no qual Saturno ainda governava a Terra, ou seja, um claro retorno a um passado mítico. Segundo o autor, as mulheres atenderiam a exigentes padrões 67

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

morais e éticos, apresentando um comportamento simples. Em contraponto a esta primeira imagem apresentada a sua audiência, Juvenal apresenta nos versos seguintes críticas ao comportamento feminino, apontando que, no presente relatado por ele, existe uma dificuldade tão grande em se encontrar esposa nobre e honesta que, caso ocorresse, o felizardo deveria subir em prece ao Capitólio. Essa estrutura de contrapor presente e passado faz com que o leitor perceba as diferenças entre as mulheres narradas e, também, permite a Juvenal exagerar e formar caricaturas de comportamentos que seguramente provocariam o riso. Há uma diversidade de críticas ao longo dessa sátira, muitas delas bastante ácidas, mas é interessante notar que são constantes a um grupo específico, ou seja, seu alvo preferencial são as matronas romanas. Desta forma, destacamos que o autor não aponta suas observações satíricas para toda a sociedade, mas visa, por meio das críticas aos comportamentos femininos, atingir aos membros das elites romanas. Nesse sentido, destacamos que há vários momentos em que isso ocorre, mas para essa ocasião acreditamos ser proveitosa a análise de trechos nos quais há uma relação entre a presença feminina e os espetáculos romanos, pois em diferentes partes da Sátira VI Juvenal recorre aos gladiadores para degradar a moral das matronas. A razão por essa escolha não é aleatória, mas sim um desdobramento de nossas pesquisas, como comentamos inicialmente. Em diversas ocasiões notamos que os espetáculos públicos são estudados a partir do masculino e a figura feminina se encontra pouco presente. Juvenal aponta, em distintos momentos, esse entrecruzamento de mundos, pouco familiar aos estudiosos das lutas de gladiadores. No entanto, é importante destacar que não se trata de afirmar que o narrado por Juvenal era o comportamento padrão das matronas, ou seja, não propomos tratar a obra de Juvenal como reflexo da realidade, mas ao contrário, entender como os gladiadores aparecem em diferentes circunstâncias ao lado dessas mulheres enquanto uma construção discursiva que pretendia ironizar a sociedade romana daquele período. No caso específico que vamos comentar a seguir, o gladiador deve ser entendido como figura de linguagem para depreciar aqueles com os quais se relacionam, em especial a matrona. Tomar gladiadores ou ladrões como figura retórica para atacar membros das elites romanas é uma prática que aparece tanto em sátiras como em textos de cunho político. Habinek (1998) chama atenção para esse aspecto nos discursos de Cícero, pois de acordo com este classicista, Cícero utilizava uma série de termos, repetidos em diferentes momentos, nos quais incluía seruus, latro e gladiator para rebaixar inimigos políticos como Verres e Catilina. Garraffoni, por sua vez, destaca um fenômeno semelhante na obra de Suetônio, pois o autor critica ou exalta a memória dos imperadores a partir de relações bastante específicas com os gladiadores ou com os espetáculos públicos (Garraffoni 2001; 68

O FEMININO ADENTRA A ARENA: MULHERES E A RELAÇÃO COM O AS LUTAS... Renata Senna Garraffoni; Lorena Pantaleão da Silva

2007). Estes exemplos são constituídos por técnicas narrativas diversas da sátira de Juvenal, mas quando vistos em conjunto sob esse prisma do lugar da figura do gladiador no discurso, podem nos fornecer indícios para repensarmos a concepção dos combates em alguns textos romanos. Ao contrapor o gladiador da literatura satírica de Juvenal com a matrona buscamos romper interpretações de uma historiografia normativa que define gladiadores e mulheres como pertencentes a universos distintos ou meros reflexos imediatos dos textos e, especialmente, buscamos trazer novas visões acerca da construção de um ideal de feminilidade no mundo antigo. 4 As Mulheres e os espetáculos Ao criar um panorama sobre a situação feminina na Roma antiga, Juvenal descreve casos nos quais as mulheres estão de alguma forma associadas ao mundo dos espetáculos. Dentre estes destacamos dois: o primeiro é a citação do autor de uma matrona que tem um gladiador como amante e, em seguida, analisaremos as críticas impostas por Juvenal às mulheres que aderem as práticas gladiatórias. A primeira narrativa nos apresenta Épia, uma matrona romana, esposa de um senador, descrita como sendo proveniente de uma família rica (in magnis opibus plumaque paterna VI-88). No entanto, embora tivesse um bom marido, Épia acaba por manter um relacionamento com um gladiador, abandonando esposo e filhos para segui-lo. Aproveitando-se da contraposição cômica entre um senador e o gladiador, ao longo do trecho o autor aponta como as mulheres romanas teriam dificuldade em seguir o esposo, mas para satisfazer o amante seriam capazes de realizar grandes sacrifícios, ainda que este pertencesse aos grupos marginais da sociedade. Destacamos que ao descrever o amante de Épia, Juvenal o caracteriza de forma bastante peculiar, afirmando que ele ainda começava a ter barba no pescoço (radere guttur coeperat VI, 105-106), que perdendo o braço esperava pela aposentadoria (secto requiem sperare lacerto), possuía diversas deformidades no rosto (multa in facie deformia), entre elas uma enorme fenda no centro do rosto aberta pelo contato constante com o elmo (attritus galea mediisque in naribus ingens gibbus) e, finalmente, seus olhos sempre lacrimejavam ardorosamente (acre malum semper stillantis ocelli). No entanto, por ser um gladiador, aos olhos da matrona parecia mais belo que Jacinto, impúbere de grande beleza pelo qual o deus Apollo se apaixonou e o homenageou após sua morte criando, a partir de seu sangue, a flor de mesmo nome. A ênfase na contraposição da descrição pejorativa deste personagem em relação à paixão feminina que ele desperta e, posteriormente, à imagem de Jacinto, aponta 69

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

que, para além da imagem comumente apresentada acerca dos gladiadores romanos, de infames, estes se comunicariam de outras formas com a elite romana. Ao finalizar questionando se o leitor se espanta com este caso em particular o autor nos leva a pensar que as paixões despertadas por estes gladiadores poderiam ser comuns. Enfatizamos que dois pontos nos chamam atenção na descrição do gladiador: a descaracterização física do gladiador e a relação entre ele e o marido da matrona. Em primeiro lugar, ressaltamos que embora Juvenal apresente o amante com nome próprio, Sérgio, este relacionado à Épia como um estereotipo, ou seja, ela se apaixona não pelo homem, mas pela profissão deste, tanto que chega a afirmar na narrativa que, ao perder a profissão, não interessaria mais a matrona, pois sua busca é o gládio, (ferrum est quod amant VI, 112). Esta relação da comicidade com os estereótipos é discutida por Bergson, pois em seu estudo clássico sobre o riso afirma que a rigidez é o elemento central da comicidade e que o estereotipo seria um dos exemplos desta. Neste caso, ao lermos o trecho enxergamos a profissão e não a pessoa por trás da armadura. Destarte apresenta-se aqui um padrão comportamental da matrona, a qual se tem a impressão que, ao deixar de se envolver com este gladiador, irá em busca de outro. Logo a forma escolhida por Juvenal para a apresentação de Épia desencadeia uma ligação direta no texto da matrona com os jogos, da fascinação que os gladiadores causam naquela. Esta associação de uma matrona com os espetáculos certamente não era bem vista por setores da sociedade, motivo pelo qual está descrita em um texto satírico, por um autor que, enquanto membro da elite ou estabelecendo relações de clientelismo, representava a visão de mundo deste grupo. Ao mesmo tempo, embora crítico desta prática e descrevendo-a por meio do exagero visando causar o riso em sua audiência, Juvenal aponta para a presença feminina nos jogos. Outro elemento relevante e que gostaríamos de ressaltar, em segundo lugar, é o fato de que ao descrever o caso de Épia, o autor contrapõe o senador ao amante de baixo estatuto social, ridicularizando um membro da elite que teria sido trocado por um escravo. A esposa, ao invés de cumprir seu papel de seguir o marido, prefere realizar grandes proezas para manter-se ao lado de seu amante. Esta situação tornase ainda mais cômica se atentarmos ao fato da grande humilhação para o senador perder a sua esposa para um gladiador, esta seria maior ainda ao observarmos os atributos físicos do mesmo. Assim, o senador teria sido não apenas trocado pelo escravo, mas pelo pior dentre estes, ao retirar os elementos distintivos do gladiador, Juvenal o ridiculariza, prática que se estende ao esposo traído. Ao igualar duas personagens de camadas sociais diferenciadas, retira da elite as prerrogativas que, além das posses monetárias obviamente, lhe separavam do restante da população e propõe relações entre pessoas dos mais distintos contextos sociais. 70

O FEMININO ADENTRA A ARENA: MULHERES E A RELAÇÃO COM O AS LUTAS... Renata Senna Garraffoni; Lorena Pantaleão da Silva

No que concerne às mulheres que lutaram na arena, há poucos registro textuais sobre elas, mas Juvenal nos apresenta considerações importantes para pensarmos sobre o tema, como o trecho analisado a seguir. Nessa mesma sátira Juvenal menciona a presença de mulheres na arena, aquelas que atuaram como gladiadoras (VI - 246-267). Muito embora apresente estes dados em tom de reprovação, seu texto nos faz acreditar que diversas matronas desejavam participar dos jogos. Ao longo do trecho que será analisado em seguida o autor ridiculariza este desejo, apresentado-o não como pertencente a uma personagem em particular, mas como algo intrínseco à personalidade de algumas mulheres. Inicia esse trecho afirmando que era de conhecimento geral que certas mulheres conheceriam todas as regras dos jogos gladiatórios e que teriam a capacidade de desferir inúmeros golpes, os quais eram treinados contra estacas de madeira, (uel quis non uidit uulnera pali VI, 247). Estas mulheres, além de vestirem os trajes, se ungiam com os óleos (femineum ceroma VI, 246) específicos daquela profissão. Assim, segue o texto narrando que antes de possuírem este amor pela arena estas matronas eram dignas (Pectore plus agitat uraeque paratur harenae VI, 251), contudo, agora não teriam mais vergonha de trajar o elmo (mulier galeata VI, 252). A vestimenta aparece aqui como elemento relevante para a construção do texto. Ao longo de todo o trecho Juvenal contrapõe as vestes dos gladiadores e, portanto, masculinas que agora elas tomam para si (mulier galeata, Balteus et manicae et cristae,galeae, positis scaphium cum sumitur armis ) àquelas vestes reconhecidamente femininas deixadas para trás (VI, 259-260 Hae sunt quae enui sudant in cyclade, quarum / Delicias et panniculus bombycinus urit?), ridicularizando o fato de serem mulheres que agora portam a cinta ou a armadura de proteção daqueles que se apresentam nas arenas. Continuando a narrativa acerca das peripécias femininas na arena, visando provocar o riso em sua audiência, Juvenal apresenta os golpes que elas com grande alvoroço desferem comparando-os a pássaros, mais especificamente pica-paus (As pice quo fremitu monstratos perferat ictus VI-261), ou seja, contrapondo uma prática que supostamente seria bastante violenta com o vigor de um pequeno pássaro, ridicularizando, assim, os movimentos realizados pelas gladiadoras e afirmando, ao final, que elas realizavam tudo com tão grande habilidade que causariam surpresa ao retirar o elmo e se revelarem mulheres. Considerando este trecho, um primeiro elemento que podemos citar é a crítica do autor à presença de mulheres em locais e posições que seriam reconhecidamente masculinos, neste caso a busca pelo papel de gladiador. Esta contraposição do autor de elementos femininos com aqueles que não o são, pode ser observada nas transposições entre as cerimônias da deusa Flora e os jogos, posteriormente da vestimenta especifica feminina (cyclade, quarum/ delicias et panniculus bombycinus VI-259-260) em contraposição as braçadeiras e protetores de perna e elmos utilizados pelos gladiadores. 71

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

Assim, o autor constrói o riso ridicularizando a possibilidade de mulheres apresentarem virtudes masculinas como a habilidade para a luta e a coragem necessária para ser gladiador. Percebemos aqui que, por meio do texto de Juvenal podemos observar a resposta mais conservadora no início do século II d.C. a maior proeminência e liberdade alcançadas pelas romanas. Logo, estas novas práticas femininas que não correspondem mais às antigas prescrições e costumes são censuradas por meio da escrita satírica, que busca corrigir a sociedade por meio do riso. Neste sentido, a aparição de personagens que se relacionam com os jogos de formas distintas como Épia ou as gladiadoras são elementos que apontam para uma maior inserção feminina na sociedade. Se Juvenal se apresenta bastante crítico a todas as mudanças que surgem neste momento na sociedade romana, afirma que as mulheres têm acesso aos jogos, apontados por ele como um local de depravação moral, fazendo que, por meio destes relatos, observemos uma crítica à emancipação feminina. Finalizamos apontando que uma leitura atenta a sátiras como essa favorece a quebra de uma visão normativa sobre o mundo clássico, uma vez que análises de textos considerados menores, ou pouco confiáveis, quando problematizados de acordo com o seu gênero literário permitem a construção de interpretações diferenciadas pelo historiador. Porém, a escrita satírica ainda é uma forma de expressão proveniente da elite romana e, é por essa razão, que gostaríamos de focar nas lápides funerárias, inscrições feitas de próprio punho ou pagas por gladiadores ou suas amantes. Ao ler essas lápides nossa intenção não é reforçar o discurso de Juvenal, mas indicar a presença de outras formas de discursos sobre a relação de mulheres e os gladiadores, expondo as complexidades dessas relações pouco exploradas pela historiografia. 5 Epigrafia anfiteatral: o caso das lápides Da mesma forma que buscamos contextualizar a escrita de Juvenal, antes da análise das lápides funerárias, seria interessante tecer algumas palavras acerca do desenvolvimento dos estudos da Epigrafia romana, sua importância e particularidades. Gostaríamos de destacar que desde o século XIX, quando as primeiras escavações arqueológicas com um perfil mais científico foram feitas, os estudiosos do mundo romano perceberam a infinidade de inscrições que atravessava o cotidiano dessa sociedade. Sejam inscrições que captam um momento específico, como as dos instrumenta domestica, ou as duradouras como as monumentais que comemoravam os feitos dos grandes políticos romanos, o fato é que a quantidade remanescente chama a atenção dos especialistas devido a sua particularidade discursiva provando debates acerca das diferentes maneiras de interpretá-las. 72

O FEMININO ADENTRA A ARENA: MULHERES E A RELAÇÃO COM O AS LUTAS... Renata Senna Garraffoni; Lorena Pantaleão da Silva

Alföldy (2003), por exemplo, comenta que, durante o período de Augusto, no início do Principado, há uma explosão epigráfica e, baseando-se no clássico estudo de McMullen (1982), afirma que os romanos desenvolvem uma cultura epigráfica e transformam as inscrições dos mais variados tipos em um meio de comunicação eficaz, difundindo valores simbólicos e atingindo a opinião pública nas mais distintas esferas, diferentemente do que poderia ocorrer com a circulação dos textos eruditos. Neste contexto, Alföldy defende, em seus variados trabalhos, que as inscrições são imprescindíveis para um maior conhecimento da sociedade e economia romana. No entanto, é preciso ressaltar que não há um consenso entre os estudiosos sobre como definir o que consiste uma inscrição e os meios de abordá-las. López Barja (1987), por exemplo, afirma que, para alguns, uma inscrição pode ser definida como a escrita em uma superfície dura, enquanto para outros o fator de definição da inscrição é a própria escrita em si, sua forma e conteúdo, não a importando o local onde foi cunhada. Esse descompasso entre as duas perspectivas metodológicas geraria aquilo que Funari (1994) definiu como uma encruzilhada dos estudos epigráficos. Para Funari, a principal dificuldade produzida por esse impasse reside no fato de que alguns especialistas publicam a tradução das inscrições, mas não comentam o contexto material em que foram encontradas, criando um fosso entre a cultura material e a Epigrafia. Nesse sentido, epigrafistas acabam desconhecendo os trabalhos de arqueólogos e vice-versa dificultando um diálogo que poderia ser profícuo para ambas áreas de especialização. Embora essa dificuldade esteja presente no campo da Epigrafia, alguns aspectos são mais consensuais entre os estudiosos. Muitos afirmam que as inscrições variam em quantidade tanto no tempo como no espaço. López Barja (1987), assim como Meyer (1990), afirma que há uma maior ocorrência em áreas urbanas e no período imperial. Além disso, o estudioso espanhol ainda destaca que na parte ocidental do império há uma predominância de inscrições em latim, enquanto que na parte oriental há muitas inscrições em grego. Mesmo diante da variedade de tipos e formas de inscrições, López Barja chama a atenção para o fato de que, quando um estudioso transforma a inscrição em fonte primária para sua investigação acerca do mundo romano, deve considerar suas particularidades como os aspectos legais, religiosos ou urbanísticos que podem vir a expressar. Ao destacar que os dados epigráficos não equivalem a uma realidade objetiva, indica que elas precisam ser interpretadas de acordo com seus limites e potenciais. Essas considerações são importantes para comentarmos o corpus de inscrições que selecionamos. São lápides funerárias feitas por familiares de gladiadores mortos ou feitas pelos próprios gladiadores e dedicadas a seus parentes falecidos, todas do século II d.C., período no qual Juvenal vivera. Há uma série de dificuldades que são encontradas quando se estuda esse tipo de material. Em primeiro lugar é importante destacar que quase nunca estão no contexto original, pois muitas lápides 73

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

foram removidas e se tornaram base para a construção de edifícios medievais, por exemplo. Além disso, Sabbatini Tumolesi (1974; 1984) e Hope (1998; 2000a; 200b) apontaram que essas lápides são raras e em um estado de conservação bastante precário, mas apesar de todos esses percalços, elas nos ajudam a pensar os jogos gladiatórios a partir de diferentes perspectivas, em especial pelo fato de podermos nos aproximar do cotidiano dos gladiadores, de seus amores, vitórias, derrotas, amigos e parentes. Mesmo que, como mencionou Hope (2000a: 97), somente gladiadores profissionais pudessem ser enterrados com ritos próprios (a maioria era enterrada em valas comuns), os epitáfios são discursos específicos que permitem pensar no cotidiano dos gladiadores, retirando-os de um mundo masculinizado e isolado e inserindo-os em redes de relações íntimas e afetivas. Essas lápides são entendidas aqui como discursos construídos a partir da visão de homens e mulheres que estavam à margem da sociedade romana, mas que quiseram perpetuar suas memórias e redes de sociabilidades. A maioria das lápides era escrita com letras irregulares, indicando a origem humilde daqueles que comemoraram o/a falecido/a, pois ao invés de pagar por serviço profissional, fizeram de próprio punho. Outros, porém, puderam juntar posses e pagar por lápides mais elaboradas, feitas por profissionais. Para essa ocasião, selecionamos cinco epitáfios, todos encontrados em Roma. São eles2 : [1] D(iis) M(anibus) Publiciae Arom= te(!) coniugi karissime fec(it) Albanus eq(ues) vet(eranus) Lud(i) Mag(ni); vix(it) ann(is) XXII, men(ibus) V, d(iebus) VIII In f(ronte) p(edes) III, in ag(ro) p(edes) VIII (CIL, VI, 10167) Aos Deuses Manes, Publicia Aromtis. Albanus, gladiador eques, veterano do Ludus Magnus fez para sua Querida esposa, que viveu vinte e dois anos, cinco meses e oito Dias. O túmulo tem o espaço de três a oito pés.

2

74

Todos os epitáfios foram retirados do CIL VI, corpus de inscrição latina e os comentários baseados em Sabbatini Tumolesi, 1988.

O FEMININO ADENTRA A ARENA: MULHERES E A RELAÇÃO COM O AS LUTAS... Renata Senna Garraffoni; Lorena Pantaleão da Silva

[2] D(iis) M(anibus) Iuliae Proculae Gaesus murmillo Veteranus, coniugi B(ene) m(erenti) f(ecit) (CIL, VI, 10176) Aos Deuses Manes, Júlia Procula. Gaesus, um veterano mirmilhão fez para sua esposa, que mereceu. [3] D(iis) M(anibus) Cornelio Eugeniano Summa rudi Et Corneliae Rufinae Parentibus dulcissimis Bene merentibus, Filia fecit (CIL, VI, 10201) Aos deuses Manes, Cornelio Eugeniano, que ganhou a summa rudis E Cornelia Rufina, Sua filha fez aos doces pais, que mereceram. [4[ D(iis) M(anibus) Mariae Thesidi P(ublius) Ael(ius) Troadesis Thraex Vetranus Coniugi Santissim(ae) Pientissi(mae) B(ene) m(erenti) f(ecit) (CIL, VI, 10193) Ao deuses Manes, Maria Thesidis. Publius Aelius, um gladiador veterano trácio de Troad Fez essa para a mais sagrada e devota esposa, Que mereceu. 75

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

[5] Diis Manibus M(arci) Ulpi Felicis mirmillionis Veterani; uixit ann(is) XXXXV Natione Tunger Ulpia Syntysche liberta coniugi Suo dulcissimo, benemerenti Et Iustus filius fecerunt (CIL, VI, 10177) Aos deuses Manes, Marcus Ulpi Felix, gladiador veterano mirmillhão, Que viveu quarenta e cinco anos. Da nação Tunger. Ulpia Syntych, uma liberta que, junto com Iustus, o filho dele, Fez essa para seu doce esposo, que mereceu. As cinco lápides mencionadas encontram-se, também, no catálogo elaborado por Sabbatini Tumolesi (1988). A partir dele é possível ver as fotos das lápides, seus tamanhos e proporções e destacar que em todos os casos tratam-se de lápides bem elaboradas, escrita com letras capitais e regulares, o que indica que as pessoas que as fizeram tinham posses e buscaram por serviço profissional. Se do ponto de vista material todas indicam que as pessoas envolvidas tinham alguma posse, a análise dos epitáfios permite uma série de observações importantes acerca da relação entre gladiadores e mulheres. Em primeiro lugar, é importante destacar que temos aqui três tipos de dizeres distintos: lápides 1, 2 e 4 são de gladiadores que as fizeram em homenagem as suas falecidas companheiras; a lápide 3 é a filha quem dedica aos pais e a 5 é feita pela companheira ao gladiador morto. Estamos, então, diante de distintas situações nas quais as mulheres estão presentes: seja como aquelas que recebem a homenagem, como aquelas que escolhem as palavras para imortalizar a vida do gladiador. No caso das que recebem homenagens, lápides 1, 2 e 4, percebemos poucos dados sobre a vida da falecida, como idade, e palavras carinhosas, além de dados biográficos do marido que dedica. No caso das mulheres que dedicam, lápide 3 uma filha, lápide 5 companheira junto com o filho, a ênfase também está na profissão do homem, todos gladiadores veteranos. Em todos os casos destacados, pouco sabemos sobre as vidas dessas mulheres, sejam as filhas como companheiras, as descrições são breves, mas indicam sua presença no mundo, suas escolhas e sua atuação junto a amigos e parentes. Se tomarmos como ponto de partida o fato de que esses epitáfios foram pagos, isso explicaria a forma dos dizeres e algumas fórmulas repetidas como B(ene) m(erenti) f(ecit) ou mesmo o emprego do termo coniugi, que aparece em algumas lápides. Garcia y Bellido (1960) já chamou atenção para o emprego do termo 76

O FEMININO ADENTRA A ARENA: MULHERES E A RELAÇÃO COM O AS LUTAS... Renata Senna Garraffoni; Lorena Pantaleão da Silva

coniux - o qual remete a um sentido que, para além de esposo(a) enfatizaria o companheirismo entre o casal (ERNOUT, 1967)- em lápides de gladiadores na Hispania, pois não é comum esse termo para designar esposa entre escravos. No entanto, o que gostaríamos de ressaltar é que os epitáfios formam um discurso particular, de construção de memória. No caso de todas as lápides, a presença feminina é destacada seja como homenageada seja como aquela que escolhe os termos para a homenagem. Esse tipo de discurso, embora também seja idealizado, se difere do elaborado por Juvenal, pois no contexto epigráfico percebemos a exaltação da memória, a valorização daqueles que se foram e dos que prestaram a homenagem. Além disso, no segundo caso é possível perceber as diferentes origens étnicas ou status social dos envolvidos, sejam eles escravos, livres ou libertos. Ou seja, se as críticas de Juvenal focam na degradação das mulheres, pois se aproxima das arenas para construir críticas moralizantes, os epitáfios são escolhas das pessoas e buscam expressar, de maneira sintética, aspectos biográficos dos envolvidos e seu lugar no mundo. Nesse sentido, estamos diante de dois tipos de discursos bastante particulares: o primeiro, literário, escrito de forma erudita, com idéias morais bem desenvolvidas, com críticas ácidas aos membros das elites romanas, já o segundo, é conciso, fragmentado, algumas vezes de difícil leitura, mas que exalta a memória de pessoas queridas. Duas características quase antagônicas, mas quando contrapostas nos permitem pensar a complexidade e as contradições implícitas nas relações humanas durante do século II d. C. Ao aproximarmos desses discursos, tão distintos na sua origem, percebemos como a escrita romana pode nos ajudar a perceber o universo dos combates por diferentes vieses, seja o ácido e satírico, como o amoroso e gentil dos epitáfios. Do nosso ponto de vista, acreditamos que a principal vantagem de contrapor esses dois discursos é a possibilidade de quebrar visões essencialistas e monolíticas sobre os combates e torná-las multidimensionais. Acreditamos assim que esse tipo de abordagem ajuda a entender as relações entre homens e mulheres nas arenas buscando evitar oposições binárias como ‘sensualidade feminina’ e ‘violência masculina’. Como Gilchrist (1999) já mencionou, a cultura material ajuda a repensar visões naturalizada de papéis masculinos e femininos e, no caso específico, as lápides mencionadas, são suportes que desafiam nossas certezas, pois os gladiadores não são mais guerreiros violentos, mas pais, amantes, homens que dividiam sua vida com amigos e parentes e construíam seu lugar no mundo. Já as mulheres, libertas ou livres, mesmo que com biografias concisas e poucas palavras, são esposas amantes, mães, filhas, poderiam ser lembradas ou responsáveis pela escolha das memórias, mas o importante é que viviam e mantiveram suas redes de relações, independente das críticas literárias. Nas inscrições, tanto os gladiadores como as mulheres, destacam suas qualidades e constroem discursivamente suas formas de identidade de maneira independente 77

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

das palavras moralistas de Juvenal, tornando as relações mais complexas e multifacetadas. Considerações finais A idéia central dessa reflexão, trabalhar a presença das mulheres nas arenas, surgiu a partir da leitura das Sátiras de Juvenal. A princípio, o que mais chamou a nossa atenção foi o fato desse escritor romano dedicar parte de uma de suas maiores sátiras a esse tema e a constatação de que poucos estudiosos modernos se dedicaram a pensar sobre esse aspecto acerca dos combates de gladiadores. Assim, ao revermos boa parte dos discursos sobre a arena, excetuando as pesquisas de alguns estudiosos (BRICEÑO JÁUREGUI, 1986; VESLEY, 1998; MCCULLOUGH, 2008), percebemos um silêncio sobre a presença feminina, embora ouvíssemos os ecos na escrita satírica. Diante dessa situação e do desafio de pensar sobre um tema pouco abordado, buscamos os epitáfios para contrapor aos discursos satíricos, procurando expandir as percepções sobre os combates ao longo do século II d.C. Ao contrapor esses diferentes discursos, nos deparamos com um corpus de documentação singular. Por um lado as sátiras, sempre vistas com desconfiança pela maioria dos historiadores e, por outro, os epitáfios, menos conhecidos e explorados. No entanto, ambos apresentaram um ponto em comum: diferentes discursos que entrecruzavam universos separados pela historiografia moderna. Embora a sátira seja repleta de exageros e as inscrições funerárias concisas, explorando seus limites percebemos a presença de situações ambíguas, mas que ajudam a pensar a arena romana como um espaço multifacetado. Ambos discursos, cada um a seu modo, permitem uma reflexão sobre formas de vidas diferenciadas, pois enquanto Juvenal se preocupa em criticar costumes e apresentar sua visão moral sobre os combates e as mulheres, os epitáfios se constituem em uma busca de um lugar no mundo por parte desses indivíduos infames e das pessoas que fizeram parte de suas vidas. Construindo memórias a partir de suas visões de mundo, mulheres e gladiadores podem ser introduzidos ao discurso acadêmico de uma maneira múltipla a partir de suas diferentes origens étnicas e sociais, indicando as complexidades do passado romano e desconstruindo visões universais sobre o Império. Mais do que isso, ao trabalhar documentos distintos, cada um em seu contexto, é possível focar nas particularidades e evitar modelos interpretativos androcêntricos. Por fim, acreditamos que tratar esses discursos, muitas vezes marginalizados pela historiografia, nos permite perceber presenças esquecidas e entender o universo dos combates de gladiadores não só como espetáculos políticos ou de imposição de poder, mas também como espaços de conflitos, de construção de memória, de afetos e paixões, ou seja, de personagens que de uma forma ou de outra, construíram redes de relações e visões de mundo. 78

O FEMININO ADENTRA A ARENA: MULHERES E A RELAÇÃO COM O AS LUTAS... Renata Senna Garraffoni; Lorena Pantaleão da Silva

Agradecimentos As autoras gostariam de agradecer à Margarida Maria de Carvalho pelo convite para participar dessa obra coletiva, além dos seguintes colegas que muito contribuíram para as reflexões aqui expostas: Ana Paula Vosne Martins, Lourdes Feitosa, Marina Cavicchioli, Pedro Paulo A. Funari, e Richard Hingley. Do ponto de vista institucional, agradecemos ao Departamento de História da UFPR, a CAPES, pela bolsa de pesquisa Reuni/mestrado de Lorena Pantaleão da Silva e a British Academy, pelo apoio financeiro a Renata Senna Garraffoni durante seu estágio de pós-doutorado na Universidade Birmingham (2008-2009). A responsabilidade das ideias expressas aqui recai apenas sobre as autoras. Fontes: JUVENAL. 1921. Satires. Les belles letres. Paris. Referências ALFÖLDY, G. La cultura epigráfica de los romanos: la diffusion de un medio de comunicación y su papel en la integración cultural. In: Remesal, J. et alli (Org.) Vivir en tierra extraña: emigración e integración cultural en el mundo antiguo: actas de la reunión ralizada en Zaragoza 2 y 3 de junio 2003, Barcelona: Universitat Barcelona, 2003, p. 137-149. ALMEIDA, L.S. Poder e política nos espetáculos oficiais de Roma Imperial. Clássica, n.9/10, 2000, p.132-141. BARTON, C. A. The sorrows of the Ancient Roman; the gladiator and the monster. New Jersey: Princeton University Press, 1993. BERGSON, H. O riso. São Paulo: Martins Fontes, 2007. BRAUND, S. Introduction. In: JUVENAL, Satires. Londres: Cambridge University Press, 1996. BRICEÑO JÁUREGUI, M. Los gladiadores de Roma: estudio histórico legal y social, Bogotá: Instituto Caro y Cuervo, 1986. CARCOPINO, J. Roma no apogeu do Império. São Paulo: Cia das Letras, 1990. CARDOSO, Zélia. A representação da mulher na poesia latina. In: FUNARI, P. et alii. Amor, Desejo e Poder na Antigüidade, Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003. 79

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

CAVICCHIOLI, M. A posição da mulher na Roma Antiga. Do discurso acadêmico ao Ato Sexual. In: FUNARI, P. et alii. Amor, Desejo e Poder na Antigüidade, Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003. COMTE, G.B. Latin literature: A history, Londres: John Hopkins, 1994. CORASSIN, M.L. 2000. Edifícios de espetáculos em Roma. Clássica, n.9/10, p.119-131. CUBILLOS POBLETE, M. La Mirada juvenaliana: La cocina romana como reflejo de la sociedad. Instituto de História. Pontifícia Universidad Católica de Valparaiso. Vol. XII, 2004, p. 129-130. ERNOUT, A; MEILLET, A. Dictionnaire étymologique de la Langue Latine, Paris: Klincksieck, 1967. FEITOSA, L. C. Amor e Sexualidade: o masculino e o feminino em grafites de Pompéia. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2005. FINLEY, M. As mulheres silenciosas de Roma. In: Aspectos da Antigüidade. Portugal: Edições 70, 1990. FRIEDLÄNDER, L. La sociedad romana – Historia de las costumbres en Roma, desde Augusto hasta los Antoninos. Madri: Fondo de Cultura Econômica, 1947. FUNARI, P.P.A. Bretanha romana – Estudos recentes sobre a Arqueologia da Bretanha romana. In: Revista de História da arte e Arqueologia, 1994, p. 249252. FUNARI, P.P.A. Romanas por elas mesmas, Cadernos Pagu, no. 5, 1995, p. 179-200. FUTREL, A. Blood in the arena: the spectacle of Roman Power. Austin: University of Texas Press, 1997. GARCÍA y BELLIDO, A. Lapidas funerarias de gladiadores de Hispania. In: Archivio Español de Arqueologia, 1960, 33: 123-144. GARRAFFONI, R. S. O conflito no espaço público: a arena romana em discussão. In: Boletim do CPA, no 11, 2001, p. 65-75. GARRAFFONI, R. S. Poder e espetáculo no início do Principado Romano. In: Guimarães, M.L. et Frighetto, R. (Org.), Instituições, Poderes e Jurisdições, Curitiba: Ed. Juruá, p. 107-116. 80

O FEMININO ADENTRA A ARENA: MULHERES E A RELAÇÃO COM O AS LUTAS... Renata Senna Garraffoni; Lorena Pantaleão da Silva

GARRAFFONI, R.S. Bandidos e Salteadores na Roma Antiga. São Paulo: Editora Annablume/FAPESP, 2002. GARRAFFONI, R.S. Gladiadores na Roma Antiga: dos combates às paixões cotidianas. São Paulo: Editora Annablume/ FAPESP, 2005. GILCHRIST, R. Gender and Archaeology – contesting the past, Londres: Routledge, 1999. GOLVIN, J-C. L’Amphiteatre Romain – Essai sur la théorisation de sa forme et de ses fonctions. Paris: Publications du Centre Pierre, 1988. GRAFF, F. Cícero, Plauto e o Riso Romano. In: BREMMER, J; ROODENBURG, H.(Org) Uma história cultural do humor.Rio de Janeiro: Record, 2000. GRIMAL, P. A vida em Roma na Antigüidade. Lisboa: Publicações EuropaAmérica, 1981. GUNDERSON, E. The ideology of the arena. Classical Antiquity, v.15, 1996, p.113-151. GUNDERSON, E. The ideology of the arena. Classical Antiquity, v.15, 1996, p.113-151. HABINEK, T.N. Writing, Identity, and Empire in Ancient Rome, Nova Jersey: Princeton University Press, 1998. HINGLEY, R. Globalizing Roman Culture - Unity, diversity and Empire, Londres: Routledge, 2005. HOPE, V. Contempt and respect – the treatment of corpse in ancient Rome. In: Hope, V., & Marshall, E. (Org.), Death and disease in the Ancient city, Londres: Routledge, 2000a, p. 104-127. HOPE, V. Fighting for identity: the funerary commemoration of Italian gladiators. In: Cooley, A. (Ed.), The epigraphic landscape of Roman Italy Londres: University College of London, 2000bb, p. 93-113. HOPE, V.M. Negotiating identity and status: the gladiators of Roman Nîmes. In: Berry, J. et Laurence, R. Cultural Identity in the Roman Empire, Londres: Routledge, 1998, p. 179-195. HOPKINS, K. Death and Renewal – sociological studies in Roman History. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.

81

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

LOPES BARJA, P. Epigrafia Latina, Santiago: Tórculo Artes Gráficas, 1987. MACMULLEN, R. The Epigraphic habit in the Roman Empire. In: Jaap, 1982, p. 103, ss. MANCIOLI, D. Giochi e Spettacoli. Roma: Edizioni Quasar, 1987. MCCULLOUGH, A. Female gladiators in Imperial Rome: literary context and historical facts. In: Classical World, 101, n. 02, 2008, p. 197-209. MEYER, E.A. Explaining the Epigraphic habit in the Roman Empire: the evidence of Epitaphs. In: JRS, vol. LXXX, 1990, p. 74-96. MINOIS, G. O riso unificado dos latinos. In: História do riso e do escárnio. São Paulo: Unesp, 2003. MOMMSEN, T. El mundo de los Cesares. Madri: Fondo de Cultura Econômica, 1983. PANTEL, P. A história das mulheres na Antigüidade, hoje. In: PERROT,M. ; DUBY, G. História das Mulheres no ocidente. vol. 1. Porto: Afrontamento, 1990. PARATORE, E. História da Literatura Latina, Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983. PLASS, P. The game of death in Ancient Rome – Arena sport and political suicide. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1995. POTTER, D.S.; MATTINGLY, D.J. (Org.). Life, death and Entertainment in the Roman. Michigan: The University of Michigan Press, 1999. ROBERT, J-N. Os prazeres de Roma. São Paulo: Martins Fontes, 1995. SABBATINI TUMOLESI, P.L. Epigrafia anfiteatrali dell’Occidente Romano I - Roma, Roma: Edizioni Quasar, 1988. SABBATINI TUMOLESI, P.L. A proposito di alcune iscrizioni gladiatorie veronesi. In: Atti dell’Istituto Veneto di scienze, lettere ed arti CXXXIII, 1974, p. 435-448. SABBATINI TUMOLESI, P.L.A proposito do CIL, VI, 31917 da Praeneste (?). Bullettino della Comissione Archeologica Comulale di Roma LXXXIX, 1, 1984, p. 29-34.

82

O FEMININO ADENTRA A ARENA: MULHERES E A RELAÇÃO COM O AS LUTAS... Renata Senna Garraffoni; Lorena Pantaleão da Silva

SILVA, G. História Antiga e usos do passado: Um estudo de apropriações da Antiguidade sobre o regime de Vichy(1940-1944). São Paulo: Annablume Fapesp, 2007. VESLEY, M. Gladiatorial training for girls in the Collegia Iuvenum of the Roman Empire. In. Echos du Monde Classique/Classical Views XLII, 1998, 17: 85-93. VEYNE, P. Bread and circus: Historical Sociology and political pluralism. Londres: The Penguin Press, 1990. WEEBER, K.-W. Panem et circenses: Massenunterhaltung als Politik im antiken Rom, Mainz am Rhein: Philipp von Zabern, 1994. WIEDEMANN, T. Emperors and Gladiators. Londres: Routledge, 1995. WISTRAND, M. Violence and entertainment in Seneca the Younger. Eranos, n. 88, 1990, p.31-46. WISTRAND, M. Entertainment and violence in ancient Rome – the attitudes of Roman writers of the first century AD, Sweden, 1992.

83

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

84

ORÍGENES E A DEFINIÇÃO DAS FRONTEIRAS ENTRE O CRISTIANISMO E O JUDAÍSMO NO CONTRA CELSO Gilvan Ventura da Silva* Carolline da Silva Soares * *

Resumo: Sabemos que, no Império Romano, nem sempre a convivência entre os distintos grupos religiosos foi pacífica, como evidenciam os múltiplos conflitos entre pagãos, cristãos e judeus ao longo de todo o período imperial. No entanto, uma das constatações mais importantes, do ponto de vista dos estudos culturais, é a de que crenças instituídas em oposição umas às outras, como o cristianismo perante o paganismo e o judaísmo, jamais se mostraram refratárias a influências recíprocas, razão pela qual mesmo uma análise preliminar dos rituais, símbolos e princípios religiosos de matiz pagão, judeu ou cristão não deixa de revelar pontos de interseção e de contato. À luz de tal consideração, nosso objetivo, no presente artigo, é examinar as relações entre o judaísmo e o cristianismo no Alto Império com base na obra Contra Celso, de Orígenes. Para tanto, nosso principal aporte teórico será o conceito de fronteira. Unitermos: Império Romano; Judaísmo; Cristianismo; Orígenes; Fronteira Abstract: As we know, the relationships amidst the distinct religious groups in the Roman Empire were not always peaceful, as the several conflicts involving Pagans, Christians and Jews over the imperial era point out. However, from a cultural standpoint, one of the most important conclusions is that, even opposing creeds, as Christianity before Paganism and Judaism, were never impermeable. Therefore a preliminary analysis about rituals, symbols and religious tenets of Pagan, Jewish * Professor de História Antiga da Universidade Federal do Espírito Santo. Doutor em História pela Universidade de São Paulo. Membro do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano (Leir) e bolsista produtividade do CNPq. ** Licenciada em História e mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo sob a orientação do Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva.

85

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

or Christian tone is able to unearth some points of contact among such religious systems. In the light of such issue, we aim at discussing, in this paper, the contacts between Judaism and Christianity based on the book Contra Celso, by Origen. In this connection, our main theoretical approach will be the concept of border. Keywords: Roman Empire; Judaism; Christianity; Origen; Border

1 Um Império de templos, igrejas e sinagogas A concepção segundo a qual o Império Romano deve ser apreendido como uma entidade suprarregional que, em virtude da atuação excepcional de uma cidade – no caso, Roma – tenderia paulatinamente à homogeneidade mediante a difusão da cultura grecolatina, sofisticada o suficiente para impor a sua dinâmica e ritmo próprios às províncias, vem sendo, nos últimos anos, cada vez mais contestada, tanto em termos teóricos quanto em termos empíricos, jazendo agora no mais absoluto descrédito. De fato, para os pesquisadores do século XXI o caráter multifacetado, plural, heterogêneo do Império se afirma como uma realidade capaz de estimular projetos de investigação empenhados em compreender como, a partir das investidas de uma potência conquistadora que, num espaço de algumas gerações, consegue submeter um vasto conjunto de territórios bastante díspares entre si e, o que é mais surpreendente, conservá-lo unido por cerca de quinhentos anos, as identidades locais foram se adaptando e se reformulando a partir dos influxos provenientes dos núcleos de predomínio do grego e do latim. Tal é, por exemplo, a diretriz teórica que baliza o trabalho de Louise Revell (2009), Roman Imperialism and local identities, recentemente publicado. Ocorre, no entanto, que a ênfase na pluralidade e na heterogeneidade traz consigo um desdobramento importante quando pensamos, não nos termos de uma sociedade romana, no singular, mas na diversidade dos grupos sociais disseminados pelas zonas urbanas e rurais do Império, com condições e interesses igualmente diversos. Nesse sentido, é preciso considerar que, muito embora as autoridades romanas tenham sido hábeis o suficiente para manter o orbis romanorum coeso por muito tempo, uma façanha absolutamente inédita em se tratando dos impérios antigos, amortecendo assim, na medida do possível, os pontos de atrito que uma realidade plural não poderia deixar de produzir e garantindo, desse modo, a perpetuação do próprio Império, isso não equivale a supor que o conflito tenha sido sempre contornado, controlado, administrado. Muito pelo contrário, o que observamos desde o início do Principado, num momento em que, segundo certa corrente historiográfica, institui-se a Pax Romana, é a geração contínua de novos conflitos e/ou o agravamento de conflitos anteriores. Dentre as circunstâncias que favoreceram a emergência do confronto entre os grupos sociais ao longo da era imperial, uma das mais evidentes ressalta da coexistência de 86

ORÍGENES E A DEFINIÇÃO DAS FRONTEIRAS ENTRE O CRISTIANISMO... Gilvan Ventura da Silva; Carolline da Silva Soares

credos religiosos de orientação politeísta e monoteísta, um confronto para o qual não foi possível encontrar uma acomodação duradoura e que conduziu, ao fim e ao cabo, à afirmação do culto num deus único às expensas da multiplicidade de deuses e deusas que por séculos foram venerados nos lares, templos e encruzilhadas. Se o Estado romano levou cerca de duzentos e cinqüenta anos para deflagrar uma ampla ofensiva contra um credo (o cristianismo) que julgava responsável por todas as mazelas de Roma, tanto a “ameaça” cristã quanto a judaica já haviam ensejado, em mais de uma oportunidade, atos de retaliação violenta ou diatribes literárias por parte dos pagãos, razão pela qual tanto a miragem da tolerância do paganismo diante da alteridade religiosa quanto a do cristianismo como matriz da intolerância no Mundo Antigo devem ser forçosamente reavaliadas. Contudo o mais importante, ao menos do ponto de vista dos estudos culturais, não parece residir na constatação de que os grupos religiosos em interação no Império Romano adotaram de quando em quando um comportamento francamente hostil, mas sim na de que crenças instituídas em oposição umas às outras, como o cristianismo perante o paganismo e o judaísmo, jamais se mostraram refratárias a influências recíprocas, razão pela qual mesmo uma análise preliminar dos rituais, símbolos e princípios religiosos de matiz pagão, judeu ou cristão não deixa de revelar pontos de interseção e de contato. 1 Isso nos conduz a imaginar a relação entre os sistemas religiosos no Império como um jogo altamente complexo, no decorrer do qual os adeptos de credos distintos, mesmo quando assumem uma posição agressiva contra princípios que julgam em desacordo com a crença que professam, não deixam de reter, algumas vezes de modo involuntário, em outras nem tanto, atitudes e valores outrora passíveis de crítica. O que desejamos salientar é que, mesmo as religiões mais ciosas de seu estatuto de pureza, não se encontram, em absoluto, ao abrigo de hibridismos e sincretismos de todo tipo na medida em que os seus adeptos se movem num meio marcado amiúde pelo pluralismo, o que os leva a assumir a todo o momento um papel de intermediários de trocas culturais. Isso nos conduz a supor que o conceito de fronteira possa ser particularmente útil quando se trata de discernir o teor dos contatos mantidos entre os distintos sistemas religiosos no Império Romano. Como esclarece Zientara (1989), o termo “fronteira” deriva do léxico medieval fronteria (ou frontaria, numa possível variante), significando, originalmente, a porção de um território situado in fronte, ou seja, nas margens. A noção de 1

Como sustentam Chevitarese & Cornelli (2007), “o judaísmo, o cristianismo, o paganismo grego nunca existiram, enquanto formas culturais autônomas independentes, fora das simplificações manualísticas ou das identificações ideológicas posteriores”. Na verdade, o correto é se trabalhar com a noção de “judaísmos” e “cristianismos”, uma vez que, havia várias comunidades judaicas e/ou cristãs e politeístas disseminadas pela bacia do Mediterrâneo, “proporcionando, em níveis locais, especificidades no ver, no sentir, no praticar essas experiências religiosas no interior dessas mesmas comunidades”.

87

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

fronteira empregada atualmente nas Ciências Humanas escapa, a princípio, a essa acepção estritamente geográfica, mas sem, contudo, abandoná-la por completo. Tal como os antropólogos, cientistas sociais e historiadores a compreendem, a fronteira designa um espaço estanque e móvel de práticas culturais em interação, razão pela qual se tornam cada vez mais comuns programas de pesquisa voltados à investigação dos parâmetros que compõem as fronteiras religiosas, lingüísticas, étnicas além, naturalmente, das fronteiras geográficas, mesmo porque, em inúmeras circunstâncias, o ato fundador de fronteiras culturais, quaisquer que sejam elas, implica, em contrapartida, a delimitação de territórios do ponto de vista físico.2 Na avaliação de Daniel Boyarin (2004), um dos principais especialistas contemporâneos em judaísmo antigo, as fronteiras são o resultado de uma ação sobre um espaço mais ou menos indiviso, de maneira que, diante de um conjunto de práticas culturais forjadas no dia-a-dia, práticas estas marcadas pela fluidez, pela mobilidade e pelo hibridismo, viria se sobrepor um discurso de poder que tentaria discipliná-las. Por esse motivo, as fronteiras seriam, em última análise, convenções arbitrárias manejadas por agentes de autoridade que, imbuídos da tarefa de agrupar o igual, o “próprio”, em oposição ao diferente, se converteriam nas sentinelas do front, isto é, em inspetores de costumes e comportamentos chamados continuamente a intervir para resguardar a “pureza”, a “limpidez” e a “integridade” das formas simbólicas responsáveis por sustentar a existência do “nós”. Daí advem o caráter estanque das fronteiras, pois, na concepção dos seus defensores, os porta-vozes encarnados em políticos, intelectuais, professores e sacerdotes, figuras de autoridade aos quais o grupo social – ou, melhor dizendo, uma parte dele – atribui a capacidade de dar vazão às suas convicções, expectativas e anseios, os traçados entre os grupos sociais adquirem uma materialidade incontestável, não obstante a sua ressonância imaginária. Categoria ambivalente, no entanto, a fronteira ao mesmo tempo em que repele, aproxima, pois o seu caráter estático é meramente ilusório, fruto de uma vontade de poder que, no seu afã de regular o fluxo da vida e de reforçar os códigos da mesmidade no confronto com a alteridade, ambiciona circunscrever os valores, crenças e práticas coletivas em compartimentos herméticos. Contra a lógica cartesiana do poder, que não tolera a transgressão dos interditos, trabalha o movimento dinâmico da vida, que não cessa de produzir formas culturais inovadoras mediante um processo contínuo de hibridização, distendendo, alargando e, no limite, dissolvendo as fronteiras traçadas pelo poder (Burke, 2006). Visto sob essa

2

Sobre a utilidade do emprego do conceito de fronteira no domínio dos Estudos Clássicos realizados no Brasil, recomendamos a consulta à obra Fronteiras e etnicidade no Mundo Antigo, uma coletânea de trabalhos apresentados no V Congresso da SBEC, em 2003. Organizado por Nobre, Cerqueira e Pozzer, a obra apresenta uma panorama das múltiplas possibilidades de aplicação dos conceito para a Antigüidade Oriental e Clássica. Ver ainda Chevitarese (2004).

88

ORÍGENES E A DEFINIÇÃO DAS FRONTEIRAS ENTRE O CRISTIANISMO... Gilvan Ventura da Silva; Carolline da Silva Soares

perspectiva, o cotidiano, a trama instituída por grupos e indivíduos em interação num determinado tempo e lugar sem a interferência repressora de um aparato institucional de poder, encerra uma notável capacidade de desafiar as fronteiras, de subvertê-las, embaralhá-las e, assim, gerar por si mesmo arranjos identitários novos e insuspeitos, arranjos esses que não se encontram previstos no script dos censores, dos doutrinadores ou dos conselheiros de qualquer natureza, dentre os quais incluem-se, sem dúvida, os integrantes da intelligentsia cristã. Partindo dessas considerações preliminares, nossa intenção, no presente artigo, é examinar as fronteiras existentes entre o judaísmo e o cristianismo no Alto Império com base na obra Contra Celso, de Orígenes. 2 Orígenes e o Contra Celso Quando se trata de demonstrar o quanto o judaísmo e o cristianismo eram, no Império Romano, sistemas religiosos que estavam ao mesmo tempo em diálogo e em concorrência, a obra Contra Celso desempenha, sem dúvida, um papel da maior relevância, uma vez que a intenção de Orígenes ao redigi-la era não apenas refutar as acusações do filósofo pagão Celso contidas na sua Alethes Logos (Doutrina verdadeira) acerca da suposta falsidade do cristianismo e de sua matriz, o judaísmo, as duas crenças monoteístas do Império que estariam pondo em risco a pax deorum, a concórdia entre deuses e homens, mas igualmente estabelecer a identidade dos próprios cristãos diante dos judeus. Por meio do Contra Celso, Orígenes não apenas afirma o caráter peculiar do cristianismo, como também, de certo ponto de vista, inventa a própria crença da qual é defensor num confronto direto com o judaísmo, negando assim a própria contribuição judaica para o cristianismo reconhecida por Celso. Acerca da carreira de Celso, não sabemos quase nada, sendo impossível definir com precisão a data e o local de seu nascimento, bem como a qual escola filosófica pertenceria. 3 Ao que parece, sua terra natal teria sido o Egito, embora nem mesmo esta informação seja segura. A Doutrina Verdadeira teria sido redigida provavelmente entre os anos 170 e 180, já em finais do governo de Marco Aurélio, momento em que se constata um acirramento do confronto entre cristãos e pagãos, tanto em termos físicos quanto em termos literários.4 Por esta época, ao que tudo indica, abundavam opúsculos, manifestos e panfletos escritos por pagãos e cristãos com o propósito de explicar

3 4

Para uma discussão mais detalhada acerca da tendência filosófica de Celso, ver Frede (1999) Uma das demonstrações mais conhecidas do desconforto nutrido contra os cristãos nesse momento é um episódio que ficou conhecido como a “Perseguição aos mártires de Lyon”, quando, por instigação da população local, o governador da Gália Lugdnensis, provavelmente apoiado num rescriptum de 176 contra aqueles que perturbavam a paz com a introdução de novos cultos, decidiu reprimir os cristãos, ocorrendo então diversos martírios. Cumpre assinalar que, na oportunidade, não observamos uma intervenção direta de Marco Aurélio no assunto (Blázquez, 1995).

89

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

e defender a crença que professavam, como nos permitem concluir as apologias, um gênero literário cujo ponto de partida remonta ao governo de Adriano, quando um cristão de nome Quadrato dedica ao imperador uma obra na qual expõe os fundamentos do cristianismo às autoridades romanas e refuta as críticas contra este credo elaboradas pelos autores pagãos, dentre os quais Celso foi sem dúvida um dos mais atuantes. Na composição da sua Doutrina Verdadeira, o filósofo demonstra ser um leitor bem informado do Antigo e do Novo Testamento, demonstrando ainda conhecer a trajetória das comunidades cristãs nos tempos apostólicos. Por essa razão, sua obra representa o primeiro ataque vigoroso ao cristianismo desferido por um membro da alta cultura greco-romana, o primeiro texto anticristão de grande envergadura elaborado por um intelectual pagão, o que nos permite avaliar a visibilidade que adquire, nesse momento, o cristianismo. Infelizmente, não possuímos o texto original da Alethes Logos, que só é conhecida por intermédio do Contra Celso, de Orígenes, um autor nascido em Alexandria, em 185 d.C., de família cristã, e que morreu em Tiro, por volta de 253 ou 254, devido aos maus tratos sofridos na prisão durante a perseguição de Décio. Ainda jovem Orígenes perdeu o pai, Leônidas, martirizado por ocasião da perseguição de Septímio Severo, e viu todos os bens de sua família serem confiscados pelo Estado romano, como era costume. Em virtude do extremo ascetismo que professava, optou pela castração em plena juventude. Viveu grande parte de sua vida vinculado à Escola de Alexandria, onde criou o Didaskaleion, um centro de ensino que oferecia aos alunos formação em filosofia e no conhecimento das Escrituras (Berardino, 2002). O Contra Celso, a refutação tardia de Orígenes à Alethes Logos, foi composta em meados do século III, mais precisamente em 248, sob o governo de Filipe, o Árabe, um ano antes da perseguição aos cristãos decretada por Décio. Em termos literários, a obra exibe grande complexidade, pois nela o autor não se limita a refutar ponto por ponto as acusações formuladas pelo filósofo – o que nos permite reconstituir, ainda que de modo parcial, o texto hoje perdido da Doutrina Verdadeira –, mas também empreende um ataque ao judaísmo e ao próprio paganismo. No momento em que Orígenes decide redigir o Contra Celso, o cristianismo encontrava-se já instalado nos estratos superiores da sociedade imperial, existindo cidades que contavam à época com uma expressiva população cristã (Franzen, 1996). 5 Não obstante as décadas iniciais do século III terem sido de relativa tranqüilidade, os cristãos estavam ainda longe de gozar do beneplácito imperial. Em todo caso, não devemos apressadamente supor, como o fazem alguns, a 5

90

Sob o governo de Cômodo (180-192) a hierarquia eclesiástica começa a sair da clandestinidade. A relação entre a Igreja e o Estado já se torna pública, como comprovam as apologias. A Igreja inicia então a oficialização de seus lugares de culto e de seus cemitérios apoiada nas estrutura dos collegia (Blázquez, 1995).

ORÍGENES E A DEFINIÇÃO DAS FRONTEIRAS ENTRE O CRISTIANISMO... Gilvan Ventura da Silva; Carolline da Silva Soares

existência de uma mobilização permanente do Estado romano desde pelo menos o governo de Nero com o propósito de erradicar o cristianismo. Todavia a situação de relativa tranqüilidade experimentada pelas comunidades cristãs no decorrer dos dois primeiros séculos do Principado não tardaria a ser rompida no contexto da assim denominada Anarquia Militar, um autêntico turning point no que se refere aos destinos do Império em sua fase tardia. A historiografia tende a considerar o assassinato de Severo Alexandre, o último membro da dinastia dos Severos, e a usurpação subseqüente de Maximino, o Trácio, em 235, como os marcos do início da Anarquia Militar, também denominada “Crise do Terceiro Século” ou “Período dos Imperadores-soldados”. Entre 235 e 284, data que assinala a ascensão de Diocleciano ao poder, o Império enfrentou inúmeros problemas de caráter político, social e econômico, incluindo o aumento da pressão dos bárbaros que, rompendo o limes, se lançam sobre os territórios romanos. Num intervalo de apenas meio século sucedem-se nada menos do que vinte imperadores, muitos deles reinando simultaneamente (Gonçalves, 2006). Além dos sérios problemas que comprometiam a governabilidade, os imperadores tiveram ainda de lidar com uma complexa crise religiosa, uma vez que, em Roma, as catástrofes e calamidades – guerras, pestes, mudanças climáticas, invasões, ataques de bandidos, guerras civis, crises sucessórias – sempre foram interpretadas como expressões da ira dos deuses que, insatisfeitos com o comportamento dos romanos, se negavam a protegê-los. Em tais circunstâncias, supunha-se, com freqüência, que algum ato ímpio ou inconseqüente havia rompido a pax deorum. No que diz respeito à Anarquia Militar, as rupturas que então se observam, em virtude da sua intensidade, foram capazes de proporcionar uma ampla transformação nas estruturas do Império, como sugerem os especialistas ao tratarem esse período como uma fase de mutação da Civilização Clássica rumo à Antiguidade Tardia (Carrié & Rousselle, 1999). Em termos culturais, talvez seja lícito supor que a sociedade imperial se encontrasse num momento de ruptura de paradigmas e de aguda crise identitária, com um impacto direto sobre os principais sistemas religiosos do Império. Como nos revelam, por um lado, diversos movimentos ascéticos que irrompem no período e dos quais o monacato talvez seja o mais expressivo, e, por outro, o acirramento da intolerância religiosa, esforçando-se o Estado romano não apenas em suprimir o cristianismo mediante a adoção de medidas restritivas de caráter geral, mas também em coibir o exercício da astrologia em todo o território do Império, como ocorre nos primeiros anos do governo de Diocleciano, a Anarquia Militar foi pródiga em transformações na sensibilidade religiosa, muito embora nem sempre essas evidências sejas levadas em conta pelos especialistas. A elaboração do Contra Celso é própria de um contexto em que a Igreja ainda não contava com uma ortodoxia estabelecida, ou seja, ainda não apresentava uma maior coerência em termos doutrinários ou disciplinares. Orígenes escreve numa conjuntura de crise, já antevendo a adoção de medidas mais rígidas contra o 91

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

cristianismo pelas autoridades imperiais e o aumento do sentimento anticristão por parte da população em geral, o que nos leva a conjecturar que o autor, quando compôs a obra, tinha como um dos seus principais propósitos resguardar a posição do cristianismo como um credo que não apresentava qualquer ameaça à ordem pública. Para além desse propósito inicial, um outro que ressalta claramente do texto do Contra Celso é o de estabelecer uma distância entre o cristão “genuíno” e seus contemporâneos judeus e judaizantes. Por esse motivo, Orígenes não apenas refuta as acusações de Celso, mas procura igualmente advertir os cristãos acerca do perigo das heresias e, sobretudo, acerca do “contágio” judaico dentro da Igreja proporcionado pelos judaizantes. 3 Os “cristãos da fronteira” Os assim denominados judaizantes se encontravam na zona fronteiriça entre o judaísmo e o cristianismo, convertendo-se, como descrito por Orígenes, numa ameaça para a integridade da Igreja. Na medida em que o cristianismo resulta de uma cisão interna do judaísmo, o problema das relações entre judeus e cristãos remonta às primeiras comunidades formadas sob a inspiração dos seguidores imediatos de Jesus, tornando-se com o tempo um agudo problema para as autoridades eclesiásticas, ciosas de impedir o contato dos seus fiéis com os judeus, tidos como uma fonte permanente de “contágio” e de “poluição” em virtude da sua condição de “deicidas” e de povo abandonado por Iavé. Não obstante esse esforço sistemático de separação executado por bispos, presbíteros e diáconos, mediante o exame das fontes disponíveis para o estudo das relações entre o judaísmo e o cristianismo no Império Romano é possível constatar uma aproximação entre cristãos e judeus que se estabelece no cotidiano, sobretudo nas regiões externas à Palestina, no território da Diáspora, onde os contatos entre ambos os grupos foi contínuo. Tal constatação nos obriga a reavaliar a trajetória do próprio judaísmo ao longo do Império Romano à luz de uma conexão estreita com o cristianismo. Muito embora a historiografia tradicional tenda a estabelecer uma data precisa para a “separação” entre ambos os sistemas religiosos, data esta ora situada após a destruição do Templo de Jerusalém, em 70, ora após a derrota de Bar Kochba, em 135, ou mesmo alhures, estudos mais recentes, no entanto, tem demonstrado que tal separação não se efetivou antes do século IV, uma vez que é clara a existência, no decorrer de toda a fase imperial, de grupos que se situavam na fronteira entre o judaísmo e o cristianismo e que eram genericamente qualificados como judaico-cristãos ou judaizantes. De acordo com um antigo modelo de interpretação das relações entre judaísmo e cristianismo no Império Romano formulado por Adolf von Harnack no final do século XIX, após a destruição do Templo teria ocorrido uma ruptura quase total entre as duas crenças, que doravante se encontrariam em franca concorrência. Essa é a tese do spätjudentum, do judaísmo do “declínio”, um judaísmo que se apresenta, no início do Principado, 92

ORÍGENES E A DEFINIÇÃO DAS FRONTEIRAS ENTRE O CRISTIANISMO... Gilvan Ventura da Silva; Carolline da Silva Soares

como um pálido reflexo do passado glorioso de Israel, constituindo um sistema de crenças completamente fossilizado, uma religião legalista desprovida de qualquer atrativo espiritual para os não-judeus. Assim sendo, o judaísmo teria muito pouco a contribuir para a dinâmica religiosa do Império, que passaria então a ser dominada pela ação missionária cristã, absolutamente inovadora e adaptada aos novos tempos. Para os adeptos desse modelo de interpretação, o judaísmo não seria mais do que uma religião moribunda, ultrapassada, que não exerceria nenhum poder de atração frente a outros meios religiosos, como os pagãos e, sobretudo, os cristãos, restringindo-se apenas aos judeus de nascimento (Silva, 2007). A partir do advento do cristianismo, o judaísmo deveria ser encarado como uma crença imersa num progressivo estado de esgotamento. Uma interpretação distinta e bastante influente acerca do assunto foi sugerida por Marcel Simon na obra Verus Israel, lançada em 1948 e considerada um marco na historiografia referente ao judaísmo antigo. Nesta obra, Simon se opõe frontalmente à tese defendida por Harnack de que o judaísmo imperial estaria na iminência de um colapso (Silva, 2008). Em sua opinião, a atuação dos líderes eclesiásticos nos primeiros dois séculos da Era Cristã foi motivada por um objetivo deliberado de confrontar o judaísmo, na medida em que este era forte o suficiente para atrair adeptos de outras crenças, incluindo os próprios cristãos, cujo legado judaico era bastante evidente. Não obstante a sua singular contribuição para o estudo do judaísmo no Império Romano, o Verus Israel compartilhava com o spätjudentum a suposição de que, em algum momento do Principado, teria ocorrido a cisão definitiva entre judeus e cristãos, sugerindo o autor a data de 135 – correspondente ao fim da revolta de Bar Kochba – como o marco da “repartição de caminhos”, o the parting of ways entre as duas religiões, como nomeiam os pesquisadores de língua inglesa. Há alguns anos, no entanto, os especialistas, estimulados pela hipótese de que durante muito tempo “judaísmo” e “cristianismo” talvez não tenham sido mais do que rótulos criados artificialmente pelas autoridades religiosas para lidar com uma realidade ainda bastante difusa e plural, tem demonstrado uma tendência a rever o modelo da “repartição dos caminhos”, propondo-se então o modelo dos “caminhos que não se separam”, o the ways that never parted. O que investigações recentes tem revelado é que, ao longo do Império Romano, a história do judaísmo e do cristianismo foi marcada tanto pela divergência quanto pela convergência, ao contrário do que afirmavam os defensores do spätjudentum, para quem somente a divergência seria possível (Silva, 2008). Levando-se em consideração que sob o Império foram produzidas variadas e múltiplas experiências religiosas que não podem ser facilmente classificadas como apenas judaicas ou cristãs, percebemos o predomínio, em muitas regiões, de uma realidade absolutamente sincrética e multifacetada. Dentre os historiadores comprometidos com a defesa da tese dos 93

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

“caminhos que não se separam”, um dos mais influentes é sem dúvida Daniel Boyarin (2004). Para Boyarin, assim como para Skarsaune (2007) e Reed & Becker (2007), o que prevalece no Império Romano até a fase tardia é uma situação de relativa permeabilidade entre judeus e cristãos, de modo que várias comunidades cristãs, de precedência judaica ou gentia, constituíam subgrupos dentro de um conjunto maior de comunidades religiosas afiliadas ao judaísmo. Um ponto de aproximação entre esses autores é a tendência a remeter a separação entre o judaísmo e o cristianismo para a fase tardia, quando a atuação francamente prócristã de Constantino conferiu aos bispos a capacidade de intervir, inclusive em termos legais, nas relações entre judeus e cristãos. Desse modo, a separação entre o judaísmo e o cristianismo foi um processo lento, finalizado apenas no decorrer dos séculos IV e V, período a partir do qual podemos nos referir ao judaísmo e ao cristianismo como religiões plenamente diferenciadas. Em se tratando das relações entre o judaísmo e o cristianismo sob o Império Romano, uma das abordagens mais úteis é aquela proporcionada pelos estudos de Wolfran Kinzig (1991). De acordo com o autor, a separação entre ambos os sistemas religiosos pode ser apreendida em quatro níveis distintos: 1) o doutrinal, vinculado, sobretudo, à cristologia. Neste nível, o eixo mais importante é representado pela figura de Jesus, cuja pretensão ao título de Messias antecipava já o estranhamento futuro entre judeus e cristãos. O Novo Testamento comprova que a separação em termos doutrinários aconteceu numa fase muito precoce, logo depois ou talvez antes mesmo da execução de Jesus; 2) o teológico, muito embora os cristãos tenham sido, no início, tributários dos judeus na formulação da sua teologia, uma vez que o cristianismo não possuía uma tradição teológica própria. Como os cristãos tomaram do judaísmo a doutrina do deus único e a cosmologia, reside aí por vezes a dificuldade em classificar alguns textos da fase imperial como sendo oriundos de meios cristãos ou judaicos; 3) o institucional, que ocorreu primeiro entre aqueles grupos de judeus que atribuíram alguma importância à pessoa de Jesus e aqueles que não lhe concederam nenhuma importância e que, depois, prosseguiu com a formação de duas associações distintas: a Igreja e a Sinagoga; e, 4) o da piedade popular, instaurado quando dois grupos concorrentes elaboram suas próprias tradições religiosas e as observam de modo exclusivo. É neste nível que Kinzig situa a existência de contatos cotidianos e estreitos entre judeus que a rigor se perpetuam até a Antiguidade Tardia. Em sua avaliação, foi justamente pelo fato de a piedade popular estimular a circularidade entre a igreja e a sinagoga que os judaizantes representaram o maior obstáculo à consolidação da ortodoxia cristã. Muito embora, no Império Romano, tenhamos notícia da existência de diversas comunidades híbridas que se situavam a meio caminho entre o judaísmo rabínico e o cristianismo paulino, dentre as quais podemos citar os nazoreus e os ebionitas, a maior ameaça à Igreja então nascente não provinha, em absoluto, desses grupos, mas dos judaizantes. A despeito da sua importância e recorrência, 94

ORÍGENES E A DEFINIÇÃO DAS FRONTEIRAS ENTRE O CRISTIANISMO... Gilvan Ventura da Silva; Carolline da Silva Soares

os judaizantes são, para os pesquisadores, uma categoria de difícil apreensão, já que constituída por indivíduos de origem judaica ou mesmo gentílica que, convertidos ao cristianismo, se sentiam de algum modo atraídos pelas cerimônias da sinagoga e pelas tradições judaicas, observando muitas vezes o jejum e o shabat e tomando parte nas festividades judaicas. Ao contrário do que é possível deduzir apenas por intermédio das informações transmitidas pelos Padres da Igreja, o contato entre as comunidades judaicas e cristãs no Império Romano foi múltiplo e duradouro, de modo que o ramo do cristianismo que terminou por ser qualificado como “ortodoxo” foi apenas uma das facetas de uma realidade muito mais complexa. 6 Diante de um contexto marcado pela existência de comunidades e indivíduos que transitam entre sistemas religiosos distintos, dando margem assim a todas as modalidades possíveis de hibridismo religioso, Orígenes intervém no sentido de estabelecer uma linha divisória entre o “nós” – os cristãos que se consideravam os fiéis depositários dos ensinamentos de Jesus – e os “outros”, os judeus, pagãos e hereges, convertidos em ameaças constantes à “pureza” da Igreja. Por meio de uma classificação binária responsável por fixar a fronteira entre o “nós” e os “outros”, 7 fronteira esta sempre instável e nunca hermética o suficiente para impedir os deslocamentos de parte a parte, Orígenes (II, V) ensaia distinguir os cristãos dos judeus nos seguintes termos: [...] nosso Jesus, ao ver que a conduta dos judeus não era digna dos ensinamentos proféticos, ensinou, por meio de uma parábola, que o “Reino de Deus lhes será tirado e confiado” aos que viriam da gentilidade. É por isso, de fato, que podemos considerar todas as doutrinas atuais dos judeus como fábulas e futilidades – pois não possuem a luz da inteligência das Escrituras – e as doutrinas dos cristãos como a verdade, aptas como são a educar e a exaltar a alma e o espírito do homem e a convencer de que eles têm uma “cidade”, não neste mundo de certa forma como os judeus da terra, mas no céu.

Orígenes estabelece assim, por um lado, uma suposta homogeneidade entre os cristãos e, por outro, sugere a existência de uma cisão absoluta entre estes e os judeus cujas raízes se conectam com o ministério de Jesus. Podemos afirmar que o autor se encontra imerso num movimento de fixação de fronteiras entre os dois sistemas religiosos, pois antes mesmo de tratar das características que definiriam os cristãos, se preocupa em afirmar a distância que os separa dos judeus. Em seguida, Orígenes refuta a acusação de Celso segundo a qual os cristãos, “como pessoas embriagadas que se agridem a si mesmas, manipularam o texto original

6

7

Não podemos, nesse aspecto, nos deixar iludir pela literatura Adversus Iudaeos, elaborada pelas lideranças cristãs que, pelo menos desde finais do século I, se empenhavam em provar que havia um fosso intransponível entre o judaísmo e o cristianismo (SILVA, 2008). As oposições binárias não expressam uma simples divisão do mundo em duas classes simétricas: em uma oposição binária, um dos termos é sempre privilegiado, recebendo em valor positivo, enquanto o outro recebe uma carga negativa (WOODWARD, 2000).

95

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

do evangelho três ou quatro vezes, ou até mais, e o alteraram para poder opor negações às críticas”. Eis o teor da sua reflexão: Dentre aqueles que manipularam o evangelho só conheço os partidários de Marcião, de Valentim e, me parece, de Lucano. Reconhecer a verdade disso não constitui razão de queixa contra nossa doutrina, mas contra os que ousaram falsificar os evangelhos. E como não se pode censurar a filosofia por causa dos sofistas, dos epicuristas, dos peripatéticos ou de quaisquer outros defensores de opiniões falsas, tampouco é razão de queixa contra o verdadeiro cristianismo a existência daqueles que manipulam os evangelhos e introduzem heresias estranhas ao sentido do ensinamento de Jesus (Con. Cels. II, XXVII, grifo nosso).

Orígenes, ao contestar os argumentos de Celso, ameniza o conflito ideológico existente em sua época entre as diversas comunidades cristãs do Oriente e do Ocidente em prol do argumento de que o cristianismo já se encontrava consolidado em termos doutrinais e litúrgicos, o que de modo algum correspondia à realidade. Partindo-se da hipótese de que as fronteiras entre cristãos e judeus continuaram fugazes até pelo menos o final do século IV, é difícil avaliar a repercussão do esforço de Orígenes em separar o cristianismo do judaísmo ao demarcar as diferenças entre cristãos e judeus. Nesse sentido, o próprio autor admite ter conhecimento, em seu tempo, da existência de grupos que ocupavam uma posição intermediária entre o cristianismo e o judaísmo, como se segue: Os que negam a providência não podem ser verdadeiramente filósofos, nem cristãos aqueles que introduzem ficções estranhas desacreditadas pelos discípulos de Jesus. Admitamos enfim que alguns aceitam Jesus, e é por isso que eles se gabam de serem cristãos, mas querem ainda viver segundo a lei dos judeus como a grande massa dos judeus (Con. Cels.V, LXI. Nesta passagem o grifo corresponde às proposições de Celso)

Conclusão O Contra Celso, como artefato textual empenhado numa construção retórica da realidade, contribuiu para o processo de distinção entre cristãos e judeus e para a edificação do que seria futuramente compreendido como “religião cristã”, razão pela qual podemos afirmar que a identidade cristã, assim como a judaica, foi textualmente construída. Como salienta Judith Lieu (2002), os textos não nos falam acerca da “realidade”, mas de como o “cristianismo” e o “judaísmo” se configuram como processos, como construções artificiais obtidas por meio de estratégias de poder que neles encontram um sólido suporte. Seja mediante a leitura em voz alta nas assembleias e nos espaços domésticos, prática corrente na Antiguidade, ou mediante a escrita, cultivada por cristãos letrados, observamos uma estreita simbiose entre o texto oral e o escrito que constitui a pedra angular da formação e circulação de ideias entre as inúmeras comunidades cristãs disseminadas por todo o Império. Considerando a diversidade dos gêneros literários 96

ORÍGENES E A DEFINIÇÃO DAS FRONTEIRAS ENTRE O CRISTIANISMO... Gilvan Ventura da Silva; Carolline da Silva Soares

apostólicos e o amplo volume de obras produzidas entre os séculos III e V, tornase evidente a intensa mobilização das lideranças cristãs no sentido de obter o monopólio do campo religioso. Intelectuais cristãos de prestígio, como Orígenes, empenharam-se em atividades missionárias de ensino e pregação e em múltiplos debates com os seus opositores pagãos e judeus com a finalidade de selecionar, excluir e incluir, isto é, reordenar um conjunto de práticas, doutrinas e valores morais que, na opinião deles, se encontrava por demais confundido e necessitava, portanto, de esclarecimento. Nesse movimento, foram responsáveis pela definição e redefinição da própria identidade cristã (Otero, 2004). É necessário, no entanto, que nos coloquemos em estado de alerta contra a opinião de Orígenes segundo a qual, em meados do século III, já nos encontraríamos diante de uma Igreja unívoca e de um cristianismo triunfante, responsável por submeter a oikoumene, como vemos enunciada no Contra Celso (I, III). Podemos supor que, ao formular tal opinião, Orígenes estivesse se referindo à súbita expansão das comunidades cristãs no século III. Isso não nos autoriza, no entanto, a concluir que o cristianismo, em seu tempo, já fosse uma realidade evidente. O esforço de Orígenes em estabelecer as fronteiras entre judeus e cristãos no bojo da sua refutação às críticas de Celso se fez por meio tanto da tentativa de consolidação de princípios comuns que unissem os cristãos quanto da negação de qualquer experiência que comportasse hibridismo ou sincretismo, como vemos no caso dos judaizantes. A coexistência de distintas orientações teológicas e de práticas religiosas múltiplas no interior das congregações vem apenas confirmar o movimento de dispersão das ideias e opiniões próprias da cultura cristã no Império Romano. Numa tentativa de organizar essa dispersão, temos um conjunto de textos formulados pela hierarquia eclesiástica que contribuem, em níveis diversos e com impacto variável no tempo e no espaço, para a fixação da identidade cristã, ou melhor, das identidades cristãs. Sabemos que os limites e confins, não importando a sua natureza, são, por definição, permeáveis; são forjados para excluir e, como ponto de contato, oferecem também oportunidades não só para a infiltração, mas também para o comércio e o intercâmbio. As fronteiras, desse modo, não são realidades estáticas, estanques, mas são dinâmicas, permeáveis, são locais de negociação. Quando aparecem enunciadas com clareza, como no Contra Celso, são artifícios de retórica que visam a disciplinar uma realidade múltipla, confusa, plural, constatação que não as torna menos eficazes. Seja como for, se a retórica constrói as fronteiras como entidades impenetráveis, podemos suspeitar de invasão e de penetração real. Podemos notar, sobretudo por meio da literatura eclesiástica, a existência de “projetos” concorrentes e conflitantes para a Igreja no século III, o que implicava seguramente percepções identitárias distintas. Acreditamos que a obra de Orígenes constituiu tão somente uma alternativa, dentre outras, visando a fixar as fronteiras entre o cristianismo e o judaísmo no Império Romano, como comprova o amplo repertório de textos que integram a literatura Adversus Iudaeos. 97

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

Orígenes, assim, é apenas um representante – embora um representante de peso, diga-se de passagem – de uma extensa linhagem de líderes religiosos que, atingidos pelo “medo” da violação da fronteira, se apressaram em enfatizar o ethos do cristianismo no confronto com uma alteridade difusa que, conforme as conveniências do momento e os interesses em disputa, poderia assumir uma face pagã, judaica ou herética. Referências Documentação primária impressa ORIGEN. Contra Celsum. Translated with an introduction and notes by Henry Chadwick. Cambridge: Cambridge University Press, 1953. Obras de apoio BERARDINO, A. (Ed.) Dicionário patrístico e de Antigüidades cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002. BLÁZQUEZ, J. M. Cristianismo primitivo y religiones mistéricas. Madrid: Cátedra, 1995. BOYARIN, D. Border lines: the partition of Judaeo-Christianity. Phialdelphia: University of Pennsylvania Press, 2004. BURKE, P. Hibridismo cultural. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006. CARRIÉ, J. M.; ROUSSELLE, A. L’Empire Romain en mutation: des Sévères à Constantin (192-337). Paris: Seuil, 1999. CARVALHO, M. M. de. As marcas da política na construção de uma identidade plural. In: FUNARI, P. P.; SILVA, M. A. de O. (Org.). Política e identidades no Mundo Antigo. São Paulo: Annablume, 2009, p. 9-13. CHEVITARESE, A. L. Fronteiras culturais no Mediterrâneo antigo: gregos e judeus nos períodos arcaico, clássico e helenístico. Politeia, v. 4, n. 1, p. 69-82, 2004. CHEVITARESE, A. L.; CORNELLI, G. Judaísmo, cristianismo e helenismo: ensaios acerca das interações culturais no Mediterrâneo Antigo. São Paulo: Annablume, 2007. FRANZEN, A. Breve história da Igreja. Lisboa: Presença, 1996.

98

ORÍGENES E A DEFINIÇÃO DAS FRONTEIRAS ENTRE O CRISTIANISMO... Gilvan Ventura da Silva; Carolline da Silva Soares

FREDE, M. Origen’s treatise against Celsus. In: EDWARDS, M; GOODMAN, M.; PRICE, S. (Ed.). Apologetics in the Roman Empire: Pagans, Jews and Christians. Oxford: Oxford University Press, 1999, p. 131-155. GONÇALVES, A. T. M. Os severos e a anarquia militar. In: SILVA, G. V.; MENDES, N. M. (Org.). Repensando o Império Romano: perspectiva socioeconômica, política e cultural. Vitória/Rio de Janeiro: Edufes/Mauad, 2006, p. 175-191. KINZIG, W. “Non-separation”: closeness and co-operation between Jews and Christians in the fourth century. Vigiliae Christianae, v. 45, n. 1, p. 27-53, 1991. LIEU, J. Impregnable ramparts and walls of iron: boundary and identity in Early Judaism and Christianity. New Testament Studies, n. 48, 297-313, 2002. NOBRE, C.; CERQUEIRA, F. V.; POZZER, K. M. P. (Org.) Fronteiras e etnicidade no Mundo Antigo. Pelotas: Editora da UFPEL, 2005. OTERO, U. B. Escrita e oralidade: formação de opinião e circulação de idéias entre cristãos. Anais do Ciclo de Debates do Lhia. Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, 2004. REED, A. Y.; BECKER, A. D. (Ed.) The ways that never parted: Jews and Christians in Late Antiquity and the Early Middle Ages. Minneapolis: Fortress Press, 2007. REVELL, L. Roman imperialism and local identities. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. SILVA, G. V. da. Representação social, identidade e estigmatização: algumas considerações de caráter teórico. In: FRANCO, S. P.; LARANJA, A. L.; SILVA, G. V. (Org.). Exclusão social, violência e identidade. Vitória: Flor e Cultura, 2004, p. 13-30. ______. A relação Estado-Igreja no Império Romano (séculos III e IV). In: SILVA, G. V.; MENDES, N. M. (Org.). Repensando o Império Romano: perspectiva socioeconômica, política e cultural. Vitória/Rio de Janeiro: Edufes/Mauad, 2006, p. 241-266. ______. A condenação dos judaizantes nos concílios eclesiásticos do século IV. Phoînix, v.14, p. 164-188, 2008. SIMON, M. Verus Israel: a study of the relations between Christians and Jews in the Roman Empire (AD 135-425). London: The Littman Library of Jewish Civilization, 1996. 99

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

SKARSAUNE, O.; HVALVIK, R. (Ed.) Jewish believers in Jesus: the early centuries. Peabody: Hendrickson, 2007. WOODWARD, K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, T. T. (Org.) Identidade e diferença. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 7-72. ZIENTARA, B. Fronteira. In: ROMANO, R. (Dir.) Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989, p. 306-317. v. 14.

100

A HISTÓRIA AUGUSTA E A CULTURA POLÍTICA SENATORIAL NO BAIXO IMPÉRIO Carlos Augusto Ribeiro Machado*

Resumo: O objetivo deste artigo é compreender a maneira como membros do senado romano enxergavam o campo político no Baixo Império Romano, com especial atenção nas suas atitudes frente à corte imperial. Historiadores já demonstraram que a História Augusta é uma coleção de biografias imperiais escritas entre o final do século IV e início do V, dentro de uma perspectiva senatorial e romana. Através da análise destas biografias, o artigo mostra que membros do senado romano tinham uma cultura política própria, vendo o mundo político no qual eles agiam a partir de suas próprias experiências e tradições. Unitermos: História Romana – Baixo Império Romano – Senado – Historiografia – História Augusta Abstract: The aim of this article is to understand the ways in which members of the senate conceived late Roman politics, with special emphasis on their attitudes towards the imperial court. As scholars have shown, the Historia Augusta is a collection of imperial biographies written at some point between the late 4th and the early 5th century, from a Roman and senatorial perspective. Through the analysis of these biographies, the article shows that late Roman senators had a specific political culture, seeing the political world in which they took part as defined according to their own experiences and traditions. Keywords: Roman History – Later Roman Empire – Senate – Historiography – Historia Augusta

* Laboratório de Estudos do Império Romano/USP

101

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

Ao narrar a tomada do poder imperial pelo César Juliano, Amiano Marcelino relata um fato no mínimo intrigante. Enquanto deslocava-se para enfrentar Constâncio II (batalha que nem chegou a ocorrer), o recém-aclamado imperador endereçou ao Senado de Roma uma mensagem com críticas ao seu inimigo e justificativas para seu comportamento. Quando tal mensagem foi lida na Curia, narra, a independência dos nobres foi manifestada, e todos exclamaram: “Demandamos reverência àquele que lhe fez [imperador]” (21.10.7). O que me interessa, neste breve relato, é o fato de o Senado, tradicionalmente visto como uma instituição sem importância no cenário político baixo-imperial, ter se pronunciado tão claramente a respeito de um assunto de tamanha importância (e que para muitos estaria além da sua jurisdição): a legitimidade de um ocupante do trono. O que permitia aos senadores pensar desta forma? Ou seja, qual era a visão do mundo político que os membros desta instituição possuíam? Quais eram os princípios a partir dos quais eles julgavam o que era legítimo ou não? Seria impossível responder a estas perguntas de maneira definitiva. Isso não as torna menos importantes – de fato, cabe ao historiador buscar estratégias para senão respondê-las, ao menos discuti-las. Acredito que possamos, assim, formar uma imagem mais coerente da ideologia e cultura política da aristocracia senatorial romana no século IV d.C. A História Augusta (HA), uma coleção de biografias imperiais compostas ao que tudo indica no final do século IV, é uma fonte que pode fornecer importantes pistas para responder a estas questões. Atualmente existe um consenso de que esta obra foi escrita por um autor desconhecido (escondido sob diferentes pseudônimos) sob influência – direta ou indireta – de membros da aristocracia senatorial.1 Meu objetivo, neste trabalho, é colocar as imagens de imperadores veiculadas por estas biografias em seu contexto de produção e circulação. Cada biografia coloca uma série de problemas, e a HA contém 33 vidas de imperadores que reinaram entre 117 e 284 d.C. Nesse trabalho irei lidar com quatro biografias: a do imperador Marco Aurélio, de seu co-imperador Lucio Vero, do usurpador Avídio Cássio e a do mau imperador Cômodo: quatro ‘tipos’, evidenciando a diversidade de situações envolvendo o poder imperial (Machado 2001). Desta forma, acredito, poderemos entender melhor não só a obra como também a cultura política senatorial que deu forma a ela. Não se trata, aqui, de tratar a HA como uma peça de propaganda política: as biografias destes imperadores, ao veicularem uma concepção do poder imperial, ajudavam a estabelecer as bases para a relação entre o Senado e o soberano. Isso 1

Para uma discussão recente deste texto e seu caráter, veja Machado (No Prelo). Para questões de autoria e datação, Cameron (No Prelo).

102

A HISTÓRIA AUGUSTA E A CULTURA POLÍTICA SENATORIAL NO BAIXO IMPÉRIO Carlos Augusto Ribeiro Machado

significa, também, que a HA não é apenas um quebra-cabeças literário, pois também contém uma tomada de posição política. Os seus efeitos objetivos não cabem na dicotomia instrumento político versus literatura. Ao narrar as vidas de Cômodo ou de Vero, com seus vícios, suas biografias não chegam a colocar o Poder Imperial em questão. A crítica à existência do Principado fica mais explícita, apenas, no relato da usurpação de Avídio Cássio. Ali é registrado o que poderia ser considerada uma reação “republicana” ao Império: a HA inventa uma relação com os Cassii, que haviam conspirado contra Júlio César, e como esse ódio ao sistema político criado por Otávio era herdado (Cassio 1.4). Será que o fato de a biografia inventar esta relação não significaria estar postulando a existência de uma alternativa senatorial ao poder adquirido pelos imperadores? As ações do próprio Cássio indicam que não se tratava disso: o fato de se proclamar imperador mostra que não havia um interesse em restaurar a República. Na verdade, apesar de o Senado se ver como sendo ligado a tradições republicanas, ao menos nesta biografia os senadores não são colocados como alternativa ao poder imperial. O próprio Avídio Cássio reconhecia o caráter inevitável da sucessão de um imperador por outro (Cássio 1.4). Reconhecer a figura do imperador como um elemento permanente do sistema político romano, ou então reconhecer a sua centralidade neste mesmo sistema, não representava uma postura singular. Na verdade, isso combina com o fato de o tutor de Graciano, o aristocrata gaulês Ausônio, em seu discurso de agradecimento ao imperador pelo consulado (em 378), dizer que em sua escolha o imperador assumiu o papel do povo de Roma, do Campo de Marte, da classe equestre, dos rostra e do Senado (Gratiarum Actio, 3). Vindo de um aristocrata membro da corte que jamais escondeu suas simpatias senatoriais, isso mostra que as instituições republicanas e/ou senatoriais não eram vistas como uma alternativa política que excluísse o poder imperial.2 Eram elas, na verdade, que podiam ser substituídas pela ação dos imperadores. A República, no entanto, não era restrita a uma idéia de antiquários: ao menos em uma passagem da biografia de Marco Aurélio é dito que ele agia com o povo como se em uma “cidade livre” (civitate libera, 12.1). O fato de essa passagem estar inserida em um trecho que fala do comportamento exemplar deste imperador mostra que além de um valor positivo, essa era uma qualidade pessoal. A HA recoloca, assim, o problema de como o poder é exercido, uma questão que, apesar de afligí-los desde a época de Augusto, não perdera a atualidade para os senadores e para os imperadores mesmo no final do século IV. Dizer que o imperador agia como em uma cidade livre significava mais do que simplesmente reconhecer uma qualidade pessoal. Uma das virtudes do reinado de 2

Sobre Ausônio e sua influência na corte, veja Sivan 1993.

103

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

Marco Aurélio estava, de acordo com sua biografia, em assimilar o Império a procedimentos republicanos. O fato de ser este um governante que frequentava o Senado (10.7), que restituiu poderes à ordem senatorial (10.1-2) e relutou em aceitar títulos honoríficos (9.1), permitia à aristocracia falar de uma realidade diferente daquela com a qual convivia.3 Ao contrário do que existia no século IV, nela o prestígio do imperador não estava em sua “invisibilidade” e no fato de permanecer isolado dentro do palácio, inacessível para a elite tradicional. Enquanto o cerimonial do final do século IV enfatizava o caráter sagrado dos imperadores e de seu poder (TEJA, 1993, p. 619), além da necessidade de mantê-los apartados dos súditos, o comportamento de Marco evidenciava suas raízes cívicas, tradicionais e aristocráticas. Isso não significa que os senadores contemporâneos da composição dessa biografia defendessem a diminuição do poder imperial. A diferença entre os dois extremos não está em alguma mudança na extensão desse poder (ou em sua capacidade de comando), mas na maneira como era exercido e apresentado - ou concebido. Estas duas questões, como o poder que os imperadores detém é exercido e como é apresentado, são intimamente relacionadas nas biografias de Marco Aurélio e de Cômodo. Aqui como em várias outras questões vemos a contraposição do filho ao pai, o que permite à obra fazer um diálogo entre concepções opostas. O fato de uma concepção ser atribuída a um ou a outro, no entanto, mostra que estas concepções não eram vistas da mesma forma, mas diferenciadas entre a boa e a má. De acordo com a narrativa de sua vida, quando soube de sua adoção por Antonino Pio, Marco não se entusiasmou, mas ficou triste; e quando perguntado porque reagia assim, enumerou para sua família os males inerentes ao poder (Marco 5.1-4). O próprio sonho que teve na noite de sua adoção indica sua concepção do poder imperial: sonhou que tinha ombros de marfim, capazes de sustentar um grande peso (5.2). Às vésperas de alcançar o poder máximo, Marco - ou ao menos aquele que é descrito na biografia - o caracteriza como um peso, um fardo a ser carregado, e não como um benefício herdado. A tristeza de Marco Aurélio não era fruto de motivações pessoais ou de alguma atitude “republicana”, mas de um ideal filosófico estóico que era compartilhado pelas elites. Tomar o poder imperial como um servitium significava governar em favor de outros, mais especificamente das elites romanas - ou, para sermos ainda mais claros, dos senadores.4 Essa não era uma idéia exclusiva do século IV, e nem mesmo dos senadores: já em seu 1o discurso, Sobre a realeza (21), Dião Crisóstomo observara que o verdadeiro rei deveria saber que, por sua posição, era 3

4

O comportamento de Marco Aurélio, tal qual descrito em sua biografia, se adequa à imagem do civilis princeps: veja Wallace-Hadrill 1982. Como explicita Plínio, em seu panegírico a Trajano: Cf. Hidalgo de la Vega 1995: 110-111.

104

A HISTÓRIA AUGUSTA E A CULTURA POLÍTICA SENATORIAL NO BAIXO IMPÉRIO Carlos Augusto Ribeiro Machado

o responsável pelas maiores preocupações, devendo se dedicar antes aos trabalhos duros que aos prazeres. É importante observar como a biografia faz do reinado de Marco a explicitação de uma concepção do poder imperial que tem seu fundamento no consenso entre as elites imperiais - ou, mais especificamente, senatoriais. É para elas que o imperador governava, era através do casamento - com o dote - ou da adoção, tradicionais mecanismos de aliança e perpetuação destas elites, que o poder imperial chegou a ele e, talvez o mais importante, era do consentimento delas que dependia para continuar governando. Isso pode ser visto com clareza em algumas cartas e diálogos citados na biografia de Avídio Cássio. Em uma carta (inventada), Vero avisou Marco das intenções usurpadoras de Cássio, que em sua opinião era ávido pelo trono (Cássio, 1.5-9). Em sua resposta, Marco disse que não deviam fazer nada contra seu general, pois se ele merecesse mais afeição e sua vida fosse mais útil para o Estado do que a de seus filhos (de Marco), então Cássio deveria ser o imperador (Cássio, 2.8). Mais tarde, após a derrota da tentativa de usurpação, ao ser questionado por sua indulgência com os revoltosos, Marco disse que o modo como viveu sua vida e adorou os deuses impediria que a usurpação fosse bem sucedida. Além disso, observou, todos os imperadores que foram assassinados mereceram esse destino, enquanto nenhum usurpador havia conseguido derrubar Augusto, Trajano, Adriano ou Antonino Pio (Cássio, 8.2-6). De acordo com o Marco da biografia, assim, a continuidade do reinado de um imperador dependia de sua eficácia (definida de um ponto de vista senatorial) como governante. Era isso o que prevenia usurpações, e não o emprego do exército ou de um serviço de informação. A derrubada de imperadores possuía, assim, uma justificativa moral e política, justificativa essa que enfatizava o consentimento das elites. Dessa forma, o Império não era uma propriedade do príncipe, mas destes mesmos grupos, que o assistiam no governo. Essa não deixa de ser uma questão curiosa, uma vez que as usurpações não eram feitas sem o apoio destas mesmas elites. Justamente a segunda metade do século IV foi ocasião para vários destes levantes, sendo que os senadores romanos chegaram a se envolver em alguns. A tentativa de Eugênio e Arbogasto, relacionada ao assassinato do imperador Valentiniano II, é um exemplo: não só foi reconhecida em Roma em 393, como teve o envolvimento direto de algumas das principais famílias senatoriais (Matthews 1990: 238-248). Parece duvidoso pensar que algum imperador - especialmente no século IV - concordaria com a idéia de que a manutenção de seu poder dependia da aprovação do Senado. Isso permite observar, no entanto, que ao menos para alguns dos agentes políticos da época a aprovação senatorial não era uma questão puramente formal. 105

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

Aí está outro problema do reinado de Cômodo, cujas ações podem ser vistas como uma “apropriação” não só política mas também cosmológica de todo o Império. Além de esse imperador ter governado de acordo com seus interesses privados, arrasando com os recursos imperiais, duas ações foram extremamente significativas: sua decisão de renomear a cidade de Roma “colônia Comodiana”(Cômodo, 8.6-9) e a reforma do calendário, com a renomeação dos meses do ano com títulos que eram do imperador (11.8-9). É possível observar, assim, como enquanto as ações de Marco Aurélio são conformadas por uma etiqueta aristocrática, as de Cômodo, ao deixarem de lado os limites impostos por essa etiqueta, podiam expor abertamente as realidades do poder imperial. A distinção que estamos fazendo entre a aristocracia senatorial e a corte não significa que estes fossem os únicos agentes importantes na política deste período. O mundo político baixo imperial era muito mais complexo, e precisa ser considerado – mesmo que de um ponto de vista específico. Na verdade, as relações entre os diversos agentes políticos não eram livres da influência das políticas de cada imperador que viveu no século IV. Estas políticas variavam, de acordo com a organização do sistema político, em alguns momentos beneficiando um grupo e em outros beneficiando outro. O mais importante, no entanto, é observar que apesar de haver uma clara tendência no sentido do esvaziamento do poder do Senado romano, por exemplo, em nenhum momento algum agente foi definitivamente excluído da competição política. O significado mais imediato disso, para os senadores romanos como para os demais integrantes deste campo, é que a concorrência ficaria mais e mais acirrada. Nesse sentido é importante analisar como a HA, sendo produzida a partir de um determinado ponto de inserção neste campo, caracteriza a concorrência politica na qual se insere e na qual insere o poder imperial. Se é óbvio que reconhecem o papel mais importante dos imperadores, ainda falta ver como suas biografias definem outros agentes dentro deste campo. É isso que vamos fazer agora, considerando quatro agentes que têm maior destaque nestes textos: o povo de Roma, o exército, a corte e o Senado. a) O Povo É possível observar um padrão no relacionamento entre os imperadores e o povo da cidade de Roma nas biografias em questão: é aos primeiros que cabem todas as iniciativas. A biografia de Marco diz que cultivava a boa vontade do povo (8.3), cuidava do aprovisionamento público (11.2), demonstrava bondade, cuidando do funeral dos mortos na peste (13.6); ao mesmo tempo, Marco se preocupava com a opinião pública, chegando a responder às insinuações de pantomimos (23.7). Não é por acaso que o povo de Roma entrou em pânico com a sublevação de Cássio, e depois comemorou sua morte (Cássio, 7.7-9). O povo aparece, assim, como um agente digno da atenção imperial, mas sempre de forma passiva. No 106

A HISTÓRIA AUGUSTA E A CULTURA POLÍTICA SENATORIAL NO BAIXO IMPÉRIO Carlos Augusto Ribeiro Machado

máximo, reage com piadas e protestos no circo, e nunca de forma efetiva: quando Cômodo ordenou o massacre das pessoas que assistiam a uma de suas exibições, foi porque achou que riam dele, e não por medo de uma ação política efetiva. Com a expressão “ação política efetiva”, estamos nos referindo por exemplo à narrativa que Herodiano faz da derrubada de Cleandro: aí, o povo se revolta, e chega a enfrentar uma repressão armada (1. 12.5-9). Uma vez que o autor da HA tinha acesso à obra de Herodiano, a omissão dessa passagem pode ser reveladora: faz com que o povo não seja um agente político dotado de iniciativa, mas apenas objeto da ação do imperador. b) O Exército A narrativa das biografias em questão reduz a participação do exército quase exclusivamente às guerras. O exército não é ativo políticamente, não aparece como um agente capaz de exprimir sua vontade ou suas concepções a respeito do governo em Roma. Em guerra, é mostrado - como também o povo - sob as ordens dos imperadores, a despeito de no século IV as forças armadas terem exercido um papel fundamental na escolha e na legitimação de seus líderes. Nestas biografias, a única participação política dos soldados - de forma mais ativa - é na tentativa de usurpação de Avídio Cássio. Dessa forma, os militares não tinham apenas sua importância diminuída. Quando agiam - e o faziam ligados à tentativa de usurpação contra um bom imperador - era de forma ilegítima, e esse é um dado extremamente importante para a compreensão de como os senadores viam o mundo em que viviam. Assim como acontece com o envolvimento da plebe urbana nos acontecimentos, a maneira como o exército é apresentado contrasta de forma evidente com as realidades da política imperial no século IV, período em que seu envolvimento na elevação de imperadores era fundamental. A própria recorrência das tentativas de usurpação, nesta época, servia para colocar o exército no centro da vida política - defendendo ou atacando. c) A Corte5 Assim como o exército aparece atuando diretamente na biografia do usurpador, a corte possui mais poder na biografia do mau imperador. Sua atuação, assim, é diminuída através desta associação. Isso fica mais claro através da comparação entre as vidas de Marco Aurélio e de Cômodo. No caso do Imperador-filósofo, a corte aparece a partir do momento em que este começa a se aproximar da dignidade imperial: assim, é dito que após se casar com a filha de Pio, Marco recebeu cargos e passou a ser influente na corte do pai. Apesar disso, diz a vida, era objeto de insinuadores que pretendiam derrubá-lo (Marco, 6.6-10). Os imperadores deviam 5

Sobre a definição da corte como um ‘agente’ político, veja mais recentemente Winterling 2009: 79112.

107

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

tomar cuidado com aqueles que os cercavam: Marco, por exemplo, proibia que seus procuradores fossem arrogantes (Marco, 7.1-2). Por outro lado, diminuir a pompa da vida na corte significava diminuir a distância entre o seu estilo de vida e o da aristocracia. Permitiu, assim, que homens ricos fizessem banquetes com a mesma pompa dos banquetes imperiais (17.6-7). Mesmo assim, a corte em seu reinado ainda recebia críticas: é dito que sob Marco e Vero libertos como Geminus e Agaclytus tinham grande influência (29.1-2). Será Lúcio Vero, no entanto, que terá sua corte mais estreitamente associada ao uso de libertos, possuidores de uma influência que só terminará após sua morte, quando demitidos por Marco (Vero, 9.3-6). A biografia de Marco, assim, dá atenção aos limites que o imperador impõe à corte e às pessoas que permite participarem dela. Isso o diferenciará ainda mais de seu filho, cujos critérios serão muito diferentes. Em primeiro lugar, porque Cômodo não aceitava boas pessoas para aconselhá-lo (Cômodo, 2.6-7). Talvez por isso sua biografia caracterize a corte em seu reinado como um local de devassidão, onde banquetes de suntuosidade inigualável eram costumeiramente realizados. É uma corte, também, perigosa: Cômodo morre vítima de uma conspiração entre um prefeito e uma concubina (Cômodo, 17.1-2). O maior problema nesta biografia, no entanto, é que o próprio imperador permitiu e incentivou o acúmulo de poder por seu pessoal na corte. Evitando aparecer em público e usando um liberto como intermediário (5.1-3), permitia aos cortesãos que o cercavam angariar influência. De Perennis é dito que usou o poder que acumulou para cometer assassinatos e violar leis, tornando-se uma ameaça para a elite romana (5.6). O fato de, segundo sua biografia, Cômodo ser preguiçoso para os assuntos públicos e administrativos piorava ainda mais esse quadro, permitindo que outros aproveitassem para se enriquecer ilegalmente (13.7). Ao contrário de seu pai, Cômodo pode ser criticado por ter escolhido maus elementos para participar de seu reinado. Além disso, ao invés de colocar limites aos excessos da corte, quando renuncia ao poder acaba com a possibilidade de fazer isso. A corte, assim, aparece como uma instituição - ou um agente - poderosa, capaz de influir nos rumos do império. Sua ação, no entanto, depende da omissão do mau imperador. Não por acaso, será esse mesmo imperador quem irá se afastar do Senado, o que acaba criando uma oposição entre estes dois agentes. d) O Senado Cômodo e Marco Aurélio também são opostos no relacionamento que adotam com a Cúria romana. Diferentemente do que é feito com a corte, é a biografia de Marco que dá mais espaço aos senadores, realçando seu respeito por eles. Elevou à ordem senatorial um grande número de seus amigos, ajudou os senadores empobrecidos, conferiu privilégios jurídicos aos senadores e assistiu às sessões do 108

A HISTÓRIA AUGUSTA E A CULTURA POLÍTICA SENATORIAL NO BAIXO IMPÉRIO Carlos Augusto Ribeiro Machado

Senado quando esteve em Roma (Marco, 10.1-9). Como se isso não bastasse, aproveitou suas idas à cúria para prestar contas de seus atos e agradecer pela colaboração dos senadores (20.2-4) e chegou a decretar que nenhum senador seria executado em seu reinado (25.6). Em contraste, as medidas de Cômodo realçam seu desrespeito por essa instituição: além de odiar o Senado e os senadores (Cômodo, 2.9), demitiu os colaboradores de seu pai, insultou os homens mais honrados e lhes deu cargos inferiores à sua dignidade (3.1-4). Além disso, a primeira conspiração contra este imperador serviu de pretexto para a execução de vários senadores e membros das elites provinciais (5.12-14). Com isso, fica claro que o mau imperador deixava de cumprir sua parte na manutenção do acordo entre as elites senatoriais de que falamos acima. Durante o Alto Império, nas relações entre o Poder Imperial e o Senado, cabia ao primeiro zelar pela perpetuação do segundo: seja através de doações, nomeações, e até mesmo da elevação de novos membros à ordem senatorial (Talbert 1984: 52). Um dos elementos que fazia do imperador o agente político mais poderoso era o fato de ter acesso direto a recursos como terras, soldados, o tesouro, a burocracia e, porque não dizer, a honras que os demais agentes só podiam atingir através dele. A gerência destes recursos é um dos elementos que definem a relação destes imperadores com os senadores: Marco Aurélio é mostrado como um bom distribuidor de honras e cargos, fortalecendo a posição social de seus “pares”.6 Cômodo, por sua vez, ao distribuir insultos e desonras, fazia das elites imperiais meros súditos, privilegiando a posição da corte. É revelador que a biografia de Marco, ao tratar destas questões, deixe de enfatizar o fato de a maior de todas as honras ser dada pelo bom imperador à pessoa mais indigna de todas: justamente seu filho. No século IV ainda era o imperador o único elemento capaz de definir quais outras forças seriam rebaixadas ou valorizadas, e como seriam hierarquizadas. No caso da biografia de Cômodo, estar ligado à corte enfatizava os aspectos nefastos do Poder Imperial. O fato de a ligação deste Poder com o exército e com a plebe não entrar em questão nestas biografias é relevante: ao que tudo indica, neste caso era a corte que preocupava os senadores. É importante observar que nas biografias analisadas o Senado não permanecia passivo, à mercê da boa vontade imperial: em determinados momentos sua ação é mostrada como sendo determinante. É o caso, por exemplo, da tentativa de usurpação de Cássio: “Antonino não ficou muito perturbado pela revolta, e nem maltratou seus queridos. O Senado declarou Cássio inimigo público e seus bens foram confiscados e incorporados ao Tesouro público.”(Marco, 24.8-9). A atuação dos senadores também foi importante no reinado de Cômodo: foram implicados 6

Sobre estas questões, veja discussão em Winterling, 2009, p. 48-52.

109

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

em uma conspiração - o assassino teria dito que a adaga que seria utilizada para matar o imperador havia sido enviada pelo Senado (4.2) -, o que serviu de pretexto para que vários entre eles fossem assassinados. Outras formas de ação, mais sutis, também aparecem: é com sarcasmo que os Senadores reagiram à iniciativa de renomear a capital do império “colônia comodiana”, chegando inclusive a se chamarem “comodianos” (8.6-9). Antes disso já haviam dado ao imperador o nome “Pio”, por ter feito cônsul um amante de sua mãe, e “Felix”, após ter executado Perennis (8.1). Foi após o assassinato de Cômodo, no entanto, que o Senado agiu de forma mais clara: por sua exigência e do povo, o cadáver do imperador foi atirado no Tibre (17.4),determinou que suas inscrições (que a biografia diz terem sido colocadas em monumentos construídos por outros) fossem apagadas (17.6), que suas estátuas fossem derrubadas e seu nome apagado dos arquivos (20.1-5). Os senadores são colocados, assim, como guardiães da ordem imperial - defendem o bom imperador contra o usurpador e atacam e deslegitimam o mau imperador. Para isso, podem inclusive apagar a memória de Cômodo. Isso faz do Senado um elemento essencial na instituição e preservação do Império: basta comparar a ascensão de Marco ao trono com as de Vero, Cômodo e Cássio. Enquanto Marco chegou a ser forçado pelos senadores a assumir o poder imperial (7.5), os outros o fizeram de formas diversas: Vero foi designado por Marco (7.6), Cássio tentou tomar o poder com uma usurpação e Cômodo herdou o trono. Comparado aos agentes políticos com os quais concorre, então, o Senado se distingue por ser considerado o único legítimo - ou seja, é de suas ações políticas que nasce a boa ordem. A inatividade do povo, a ilegitimidade da ação do exército com a usurpação são importantes para desqualificá-los. Apesar de ter seu poder e sua capacidade de influência junto aos imperadores reconhecidos, a corte também é desqualificada como agente legítimo. Não é exagero dizer que a HA exerce, assim, um papel de grande importância: ao apresentar para seus leitores um tal quadro, no qual o Senado é valorizado, influi na conformação das relações entre corte e cúria. Fornecendo uma visão “adequada” (do ponto de vista senatorial) do campo político, procura legitimar a ação política do meio no qual foi produzida. É importante observar que, em nenhum momento, as biografias destes imperadores expõem claramente uma teoria política: os julgamentos de valor, as opiniões políticas e as críticas ao poder imperial ficam dispersos entre as vidas analisadas. Isso contribui, em nossa opinião, para reduzir ainda mais o caráter “propagandístico” que alguns autores procuraram atribuir à obra. O que a HA faz é lidar com questões políticas que, apesar de importantes, preexistem a sua composição: os limites do poder imperial e a forma de exercê-lo, a forma de ascensão ao trono, o lugar dos diversos agentes no campo político, o comportamento dos imperadores, entre outros temas, já haviam sido colocados por outros escritores. 110

A HISTÓRIA AUGUSTA E A CULTURA POLÍTICA SENATORIAL NO BAIXO IMPÉRIO Carlos Augusto Ribeiro Machado

Não são apenas preocupações políticas que estas biografias imperiais têm em comum com os escritores contemporâneos: é interessante observar que possuem até mesmo uma linguagem em comum. O que se observa, pela leitura de panegíricos por exemplo, é a existência de uma mesma tendência, também visível em retratos e imagens em geral: o desenvolvimento de uma linguagem cada vez mais simbólica. No século IV, retratos e relevos imperiais passaram a mostrar os imperadores como “tipos”, cada vez menos individualizados, mais preocupados com a representação de virtudes do que com o sujeito histórico (L’Orange, 1972). É essa tendência para a des-historicização e a abstração que também pode ser vista nos panegíricos do século IV, nos quais apesar de a História do Império ter grande destaque, os acontecimentos aparecem por causa e de acordo com seu valor simbólico. Um bom exemplo disso se encontra no relato que Claudiano fez da usurpação de Eugênio e Arbogasto, e da posterior viagem de Honório para o Ocidente. Vemos aí o desfilar de figuras mitológicas, de acontecimentos espetaculares e a constatação de que apesar de a vitória militar ter sido obtida por Teodósio, foi a própria existência de seu filho que garantiu os revezes naturais que abalaram o exército dos usurpadores (Claudiano, Panegirico pelo 3o consulado de Honorio, 63-125). O relato da usurpação, então, visa ilustrar o caráter sobrenatural do jovem imperador. Apesar de a HA seguir uma ordenação cronológica em sua narrativa, é possível observar em seu relato acontecimentos que aparecem como símbolos de determinadas qualidades ou virtudes dos biografados. As biografias dão mais importância a retratar o biografado do que a narrar a sua vida passo a passo: fatos e opiniões aparecem por seu potencial em demonstrar um determinado tipo. Se existe uma linguagem política (ou, para sermos mais específicos, uma forma de falar sobre a política) específica do IV século, estas biografias partilham dela. Isso pode ser visto pela própria maneira como são “apropriados” os imperadores do passado: segundo a “personagem” Júlio Capitolino (o pretenso autor da vita de Marco Aurélio), seu biografado teria sido tomado como modelo por Diocleciano na vida e e na clemência (Marco, 19.12). Esta transformação dos imperadores em modelo e sua associação política com outros soberanos também aparece em fontes de proveniência diferente. Ausônio, por exemplo, comparou Graciano a Trajano e Marco Aurélio, dizendo que foi mais grandioso que um sem deixar um filho que anulasse seus benefícios como o outro (Ação de Graças pelo Consulado, 16). Mas a HA possui uma importante particularidade, no entanto: ela não apenas utiliza modelos, como também os (re)cria. Narrando a biografia de Marco Aurélio, por exemplo, seu autor encontra espaço de manobra suficiente para criar ambivalências e criticar sua personagem de uma forma que seria impossível para um panegirista ou um retratista. Símbolos, modelos e imagens têm, devido às suas próprias especificidades, um conteúdo e um efeito 111

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

prático fundamental para a compreensão da vida política nesse momento. É importante entender, nesse sentido, o contexto em que estas biografias se inserem. A construção de diferentes imagens de imperadores na biografia de Marco Aurélio e, depois, na biografia de Cômodo, não deve obscurecer o fato de que existem alguns princípios comums a todas. Como vimos, o imperador na HA é, em grande medida, definido em função do Senado. Além disso, as falhas no caráter ou no comportamento das personagens da biografia servem para humanizá-las, o que não significa torná-las desprovidas de elementos sobre-humanos. Estes elementos, no entanto, estavam ligados à capacidade do governante de realizar benefícios como os divinos. Uma vez que dependia do comportamento e das medidas tomadas no governo, portanto, esse caráter sobrenatural não era unicamente inerente ao soberano, mas dependia também de sua vida no plano humano. Em um campo político como o do Baixo Império romano, no qual as disputas não se davam dentro de um quadro institucional somente, era a afirmação de slogans que identificava e diferenciava os agentes políticos (como argumentou Giardina 1985: 314). Moedas de bronze cunhadas durante o reinado de Teodósio, por exemplo, dão um grande destaque a temas militares em seus tipos: mostram-no pisando em um inimigo subjugado (RIC, IX, p.245, no. 25b); também aparece sobre uma embarcação segurando um estandarte e um globo em cada mão e tendo um inimigo aos seus pés (RIC, IX, p.186, no.61b). Teodósio também aparece em um tipo vestido com um uniforme militar, puxando um inimigo pelos cabelos e portando um estandarte - no reverso, a inscrição é GLORIA ROMANORUM (RIC, IX, p.104, no.45b). O fato de outras moedas trazerem representações “pacíficas” de Teodósio não deve esconder o fato de que uma das representações que esse imperador havia escolhido para divulgar de si tinha tons militares. É essa, aliás, a que aparece na base de seu obelisco no Hipódromo de Constantinopla (Hannestad 1988: 337). A imagem dos imperadores que aparece na HA é diferente da que foi usada em cunhagens e relevos imperiais, o que indica que estas diferenças tinham conteúdo político importante. Não é nossa intenção, aqui e no que segue, esgotar essa questão. Nosso interesse é, na verdade, apontar - ainda que de forma necessariamente superficial - para algumas questões que permitem um melhor entendimento da História Augusta. Isso acontece também no caso dos fragmentos das Histórias, de Eunápio: aí são atacados moralmente tanto os imperadores quanto os cristãos7 , e especialmente Constantino e Teodósio são considerados os responsáveis pela

7

É curioso observar como o cristianismo permanece ausente das considerações de nossa fonte. Em nossa opinião, isso é devido ao fato de que, para os membros do Senado romano, as distinções religiosas, apesar de importantes, não impediam partilhar de concepções comuns do campo político.

112

A HISTÓRIA AUGUSTA E A CULTURA POLÍTICA SENATORIAL NO BAIXO IMPÉRIO Carlos Augusto Ribeiro Machado

situação que o império enfrentava. Aí, especialmente o estilo de vida dos imperadores é atacado, com todo o desperdício que a vida na corte gera. Apenas o imperador Juliano é elogiado por Eunápio (3.18), o que no entanto não significa que ele estivesse preocupado em humanizar os imperadores. O que se observa em sua obra é que justamente a ênfase nos aspectos tradicionais, republicanos, que é determinante na construção da representação dos imperadores em nossa fonte, recebe menos importância. As concepções que aparecem em Eunápio estão mais próximas, na verdade, das dos Césares de Juliano: podemos ver, nesta última obra, a valorização de elementos próprios dos imperadores, sendo o caráter sobrenatural da realeza tomado como um dado. Assim, no mito que é aí narrado, todos os imperadores - mesmo os maus - comparecem ao banquete organizado por Rômulo com os deuses, mesmo que alguns fiquem barrados na porta8. Chama a atenção o fato de que nesta narrativa seja realizada uma competição na qual os deuses são os árbitros, para a escolha do melhor imperador, e o escolhido seja justamente Marco Aurélio (335,C). O motivo para essa escolha é não só a sabedoria deste soberano, mas o fato de ele ter adotado como princípio imitar os deuses. Assim, apesar de nem Juliano e nem Eunápio advogarem algum tipo de rebaixamento do Senado, é interessante ver que nas representações que os imperadores têm em suas obras aquela instituição não tenha grande importância. Ao contrário, a autoridade e a legitimidade do poder imperial são inerentes a esse poder, dependendo no máximo de sua relação - que “naturalmente existe” - com os deuses. Não por coincidência, ao falar de sua obra Eunápio diz que trabalhou usando informações recebidas de seus amigos, e que todos concordavam que o apogeu do século IV havia sido justamente o reinado de Juliano (Eunápio, 1,1). Mostra pertencer, portanto, à mesma elite intelectual pagã e oriental da qual fizera parte aquele imperador, o que explica suas concordâncias. Talvez a imagem mais interessante seja a que emerge da leitura de panegíricos compostos nesta época. No panegírico lido e composto para Teodósio em 389, Pacato o associa à Vitória (VIII,2), à Fortuna (IX,1), à moderação e sobriedade (chegando a dizer que a corte é sóbria e frugal como uma escola espartana, XIII,4 - exatamente o contrário do que as Histórias de Eunápio afirmam sobre este imperador (9,46-55)), aos bons conselheiros e à generosidade. As associações feitas por Pacato também podem ser encontradas em outros panegíricos, como mostrou Manuel Rodríguez Gervás em um estudo sobre o que chamou de propaganda política imperial, no qual ainda listou as virtudes que aparecem nos panegíricos do século IV: aequitas, castitas, concordia, conseruator, clementia, disciplina, felicitas, fides, fortuna, honor, honestior, iustitia, indulgentia, 8

Hidalgo de la Vega, 1995, p. 249, chamou a atencao para o carater sobrenatural da realeza nas obras de Juliano.

113

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

libertas, liberalitas, liberator, modestia, moderatio, pax, pietas, prouidentia, prudentia, pudor, restitutor, salus, securitas, spes, temperantia, uictoria e uirtus (Gervas, 1991: quadros 4-8). Além destas, em seu panegírico para Honório, Claudiano ainda o elogia por ser devotado à cidade de Roma e reverente ao Senado (Panegírico pelo 4o consulado de Honório, 504-507): em suma, no que se refere às qualidades enumeradas nestas passagens, nada as diferenciava em princípio da representação que aparece na HA. É a maneira como estas qualidades são ordenadas que serve para diferenciar estas concepções. Mesmo que apareça como uma instituição digna do respeito imperial nos panegíricos, o Senado não é de forma alguma o elemento mais importante na definição do Poder Imperial. Na verdade, os panegíricos mostram os imperadores como um produto da corte imperial, por serem descendentes de imperadores, ou por terem um contato mais íntimo com o sobre-humano. O respeito às tradições, a participação no Senado, a ciuilitas, em suma, não definem o soberano: trata-se, como já tivemos a oportunidade de observar, de concepções políticas alternativas às que são adotadas na HA. O fato de os panegíricos mencionarem tantos elementos que também aparecem nas biografias imperiais nos permite perguntar qual seria o alcance destas representações. Afinal, mesmo que fossem produzidas e circulassem dentro de um mesmo grupo (o que não acontecia) o diálogo entre elas seria prejudicado, até mesmo pelo fato de exprimirem concepções políticas diferentes. Isso pode ser bem visto nas Relações de Símaco, exatamente por causa do contexto de sua produção: escritas por um dos mais importantes membros do Senado romano, eram endereçadas aos imperadores Valentiniano II e Teodósio. Símaco ocupa uma espécie de meio termo, incorporando em seu discurso elementos das imagens que os imperadores divulgavam de si, sem no entanto deixar de reordená-los a partir de suas próprias concepções políticas. Ao agradecer por sua liberalidade (Rel. 7), ao elogiar as vitórias militares de Teodósio sobre os Sármatos e os espetáculos triunfais realizados em Roma (Rel. 47) e ao agradecer pelo cuidado que os imperadores demonstravam com a antiga capital do Império, cumulando-a de presentes e privilégios (Rel. 9), por exemplo. Mais interesante é o fato de agradecer à sua nomeação para o cargo de Prefeito da Cidade, observando que os bons magistrados são feitos pelo bom favor dos imperadores, e que é das virtudes destes que vêm as de todos os magistrados (Rel. 1.2). Mais do que isso, quando se referia à vontade divina do imperador (numinis uestri) como a fonte de seus favores (Rel. 2.1), Símaco mostrava reconhecer a existência de elementos sobrenaturais no Poder Imperial. Todavia, é justamente a maneira como esse autor caracteriza o Senado e sua posição perante os imperadores que permite diferenciar a imagem que estes têm 114

A HISTÓRIA AUGUSTA E A CULTURA POLÍTICA SENATORIAL NO BAIXO IMPÉRIO Carlos Augusto Ribeiro Machado

nas Relações das que têm em outras fontes. Em primeiro lugar, porque na opinião de Símaco é ao Senado que cabe o papel de guardião das tradições romanas; mais do que isso, cabe a essa instituição vigiar o poder imperial (Rel. 3.2), e é exatamente isso o que advoga estar fazendo em sua 3a relação, na qual pede a restituição do altar da Vitória à Cúria. Posteriormente, reclama da intervenção de funcionários imperiais em sua administração da prefeitura urbana (Rel. 23). Pior do que isso, reclama ele, a intervenção se dá em assunto que já havia sido debatido pelo Senado. Símaco mostra que o Senado também honra o imperador (Teodósio), por exemplo fazendo estátuas equestres de seu pai (Rel. 9.4). O Senado, assim, aparece retribuindo os favores imperiais mesmo que em algumas ocasiões fizesse doações levado pelo costume (Rel. 13). O mais interessante, no entanto, é a afirmação de que é seu dever reverenciar e amar os imperadores, mas que o ideal é que os sentimentos sejam merecidos (Rel. 7.3). Podemos, assim, observar duas características que diferenciam as Relações de Simaco dos panegíricos (por exemplo): em primeiro lugar, por mostrar um Senado que não só é atuante, mas que tem um papel importante na manutenção da ordem - e que não gosta de intervenções indevidas; em segundo lugar, por observar que nem sempre os imperadores merecem a aceitação pelo Senado. Assim, apesar de incorporar elementos de representações alternativas dos imperadores (ou mesmo da auto-imagem imperial), é possível perceber nestes textos uma concepção política própria, senatorial. A principal diferença entre a maneira como essa concepção aparece aí e a maneira como aparece na HA é devida ao fato de Símaco estar se endereçando a outros agentes políticos, em especial ao mais influente de todos. A HA, por sua vez, apesar de não ser restrita a um único grupo, de ter uma circulação difusa, é endereçada de forma mais direta aos senadores. A representação que ela veicula do Poder Imperial é toda própria, específica em meio às que circulavam no período. O que chama a atenção nestas biografias, aliás, é exatamente o papel preponderante que é atribuído ao poder senatorial: é de acordo com ele que se formula uma etiqueta que é herdeira da idéia de civilis princeps. Como observou André Chastagnol (1994: CLI), as biografias da HA exaltam a influência do Senado, exagerando o papel político e jurídico da Assembléia. Isso não significava, apenas, uma forma de paganismo ou de nostalgia republicana, mas - o que é mais importante - uma forma de reafirmar uma teoria a respeito do sistema político romano que já havia sido formulada desde a época de Otávio, portanto desde a fundação do Império. Longe de contestar, os senadores do final do século IV - como os seus predecessores já o tinham feito - aceitavam não apenas o principado, mas até mesmo suas bases carismáticas. A divindade de Marco Aurélio não só é aceita como defendida em sua biografia. O que se condena são justamente os exageros que expõem a assimetria que existe nesse mundo, rompendo dessa forma com as práticas e convenções que definem a visão senatorial 115

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

do mundo político. Não é apenas o fato de Cômodo ter sido divinizado que incomoda aos senadores, mas o fato de ele mesmo ter se declarado deus. Apesar de não se limitar a isso, um dos efeitos da HA é diminuir a sacralidade do poder imperial, mesmo que para isso tenha de ridicularizá-lo. O humor e o escândalo, a exposição dos mecanismos corruptos de governo do império tornam os imperadores sujeitos a críticas. Keith Hopkins (1978: 198) chamou a atenção para como as anedotas e mitos sobre os imperadores eram uma verdadeira “moeda política”, circulando por todo o império, e reforçando um aspecto ou outro de um poder que, de outra forma, permaneceria quase sempre distante. Nesse sentido, pode até ser que as estórias sobre os amantes de Faustina, sobre o envolvimento de Marco na morte de Vero ou sobre as torpezas de Cômodo não fossem de conhecimento da maior parte da população do Império. O fato de virem associadas em biografias de imperadores, juntamente com fatos que eram sabidamente verdadeiros, no entanto, lhes dava um efeito política e moralmente devastador. Afinal de contas, a honra era um elemento importante na imagem do político romano. Além de atentarem contra esse “capital” (servindo-se do ridículo como uma arma política, portanto), essas estórias ainda serviam para - dessacralizando - aliviar as tensões inerentes ao convívio, em um mesmo campo político, entre elementos tão hierarquizados quanto o poder imperial e o Senado. Tornam possível para uma instituição que vinha sendo ameaçada pelo fortalecimento de agentes concorrentes, pela sua renovação cada vez mais rápida e desagregadora (por acentuar as hierarquias dentro da ordem) e pelo seu progressivo distanciamento do controle do império continuar existindo política, cultural e socialmente. Apesar de não inovar, a HA é importante porque não se limita a informar seus leitores sobre os imperadores do passado. O que ela também faz é fornecer um esquema interpretativo para a compreensão desse passado, e para o lugar dos imperadores e senadores nele. Interpretando o passado, as biografias dos imperadores criam o esquema cognitivo que permite interpretar inclusive a realidade política presente. Um esquema segundo o qual o papel e a atuação do Senado são valorizados no campo político, sendo através da associação com eles que o poder imperial é definido. Não só os seus concorrentes são desvalorizados: apesar de reconhecer a posição incontestavelmente mais forte dos imperadores, eles são dessacralizados. O quadro que analisamos não é o mesmo em todas as biografias da HA, e essa é uma questão que deve ser levada em conta. Como deve ter ficado claro para o leitor, o conjunto que escolhemos não se preocupa muito com as relações do Poder Imperial com o exército, por exemplo. É improvável que as biografias referentes ao século III, como a de Maximino ou a de Galieno (imperadores aos quais fizemos referência no primeiro capítulo, por sua vinculação com os militares), assumissem a mesma perspectiva. Isso não significa, no entanto, que a maneira como o Poder 116

A HISTÓRIA AUGUSTA E A CULTURA POLÍTICA SENATORIAL NO BAIXO IMPÉRIO Carlos Augusto Ribeiro Machado

Imperial era representado teria de mudar; em nossa opinião, as biografias de Marco, Vero, Cássio e Cômodo são bastante representativas para todo o conjunto. Do ponto de vista senatorial, passava-se então de uma idade de ouro para uma idade de ferro. A História Augusta se insere, assim, no movimento de “autodefesa” de classe analisado por Sergio Roda (1993: 648): diante dos acontecimentos, da ascensão de novos concorrentes no campo político e da própria reformulação que a ordem senatorial conheceu neste período era necessário defender as prerrogativas sociais e políticas de que gozava. Sua inserção aí, no entanto, possui especificidades importantes. A obra não só define um lugar privilegiado para o Senado frente aos demais agentes políticos, como ainda o justifica, mostrando ser um elemento estruturante para o Poder Imperial. Assim, é posta em circulação uma forma toda particular de ver o mundo político. Ancorada na valorização do passado e de seu conhecimento, na valorização da tradição e da civilidade, essa visão define o Poder Imperial a partir de sua relação com o Senado. O fato de haver a intenção de por essa ideologia em circulação (manifesta pelo ato de escrita da obra) não significa, no entanto, que seja um produto do cálculo político, simplesmente. Em primeiro lugar, porque os senadores efetivamente acreditam no que dizem. Em segundo lugar, porque sua maneira de ver o mundo não ultrapassa os limites que lhes são impostos por sua posição social e seus interesses políticos. Podemos dizer que sua ideologia é, portanto, incorporada (ou naturalizada), além de ser um produto de sua inserção em um determinado grupo. Mais do que isso, a participação em uma instituição reforçava e salientava ainda mais a especificidade dessa ideologia. É importante observar, neste sentido, que as biografias de Marco Aurélio, Lúcio Vero, Avídio Cássio e de Cômodo não legitimam o poder imperial. O que elas fazem é estabelecer determinados critérios a partir do qual esse poder será julgado: só então os senadores decidirão se é legítimo ou não. A legitimidade do soberano (mas não da ordem política ou social), assim, permanece fluida, dependendo das circunstâncias e do momento político - mais importante do que isso, da correlação de forças dos diversos agentes. Afinal de contas, os senadores romanos não buscaram elaborar, no século IV, nenhuma teoria geral da legitimação, e muito menos algum conceito imanente para isso. Na prática, no entanto, o problema era percebido, podendo ser inclusive explicitamente colocado ao Imperador reinante. Assim é que, na oração em que agradece a Graciano pela nomeação para o consulado, Ausônio observa que os fora e as basilicae, por todo o Império, foram tomados não só por assuntos jurídicos, mas também por manifestações religiosas, votos de bem estar pelo Imperador. O mais importante disso, no entanto, é que tais demonstrações não são devidas a uma divindade inerente ao soberano, mas aos favores que este confere a todos (Ausônio, Gratiarum Actio, 1). O próprio Símaco reconhece e expressa esse problema muito bem, como já vimos, ao dizer que ao 117

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

mesmo tempo em que é seu dever reverenciar e amar os imperadores, é melhor quando estes sentimentos são merecidos (Rel. 7.3). Observa-se, assim, uma dupla limitação para o exercício do Poder Imperial. Uma primeira, objetiva, devida às dificuldades de administração do império, que levavamno a depender em certa medida dos aristocratas que, possuidores de grandes propriedades, de inúmeros clientes e influentes nas regiões onde ficavam suas terras, podiam agir como intermediários. Existem também limitações subjetivas, ligadas ao reconhecimento da legitimidade do detentor daquele poder. O Imperador romano, como qualquer governante, não podia impor o reconhecimento de sua autoridade como sendo legítima. Tudo o que podia fazer era tentar convencer seus súditos (tanto através da divulgação de slogans quanto da distribuição de donativos), dos mais poderosos aos mais humildes, de que isso era verdadeiro. A isso estão ligadas as representações de si que veiculava, através de moedas, retratos ou panegíricos. O fato de que, por ser um atributo subjetivo, a legitimidade do poder precisa de consenso entre as partes envolvidas torna esse limite mais grave para os soberanos. Afinal, em uma sociedade como a baixo-imperial, onde conviviam interesses quase sempre diversos, esse consenso sempre permanecia fluido. Nesse sentido, a História Augusta pode ser entendida como um indício (mas também um reforço) da relativa autonomia do Senado romano. Mesmo os elementos da ideologia imperial que estão aí presentes (e vimos, no último capítulo, que não eram poucos, como as virtudes imperiais, por exemplo) são reelaborados conforme os interesses dessa instituição, e imbuídos de novos sentidos. Estas biografias imperiais mostram que o Senado romano, no final do século IV, era capaz não só de produzir, mas também de por em circulação imagens de si e do Imperador que lhes eram próprias. A partir daí, afirmar que a cúria romana era incapaz de influir politicamente nessa época é um grave erro, a não ser que se advogue uma insustentável separação entre a ação política e a ideologia que a informa. Mais importante do que isso, no entanto, é o que sugerem as ações de Teodósio I ao visitar Roma em 389. Sua visita se dava logo após a vitória sobre uma tentativa de usurpação que partiu do Oeste, comandada por Máximo, e que resultou na morte de seu colega no Ocidente, Graciano. A esta tentativa, vários membros eminentes da ordem senatorial, entre eles o próprio Símaco, ofereceram seu apoio. Não espanta que a visita do Imperador vitorioso fosse esperada com apreensão. Em Roma, no entanto, o último imperador a reinar simultaneamente sobre todo o Império visitou o Senado e a casa de aristocratas. Buscava, dessa forma, recompor suas relações com os senadores. Reconhecia com o seu próprio comportamento, além disso, que existiam outros critérios políticos, além da força, através dos quais a política poderia operar. Através de práticas e de construções ideológicas, assim, a vida política no final do século IV se mostra mais complexa e fluida do que nos acostumamos a pensar. 118

A HISTÓRIA AUGUSTA E A CULTURA POLÍTICA SENATORIAL NO BAIXO IMPÉRIO Carlos Augusto Ribeiro Machado

Referências a) Documentação: Amiano Marcelino, Ammianus Marcellinus, 2v. (trad. J.Rolfe), Cambridge: Harvard University Press/ London: William Heinemann, 1986. Ausônio, Ausonius, 2v. (trad.Hugh G. Evelyn White), Cambridge: Harvard University Press/London: William Heineman, 1988. Claudiano, Claudian, 2v. (trad. Maurice Platnauer), Cambridge: Harvard University Press/ London: William Heinemann, 1922. Dião Crisóstomo, Dio Chrysostom, 5v. (trad.J.W.Cohoon), Cambridge: Harvard University Press/ London: William Heinemann, 1949. Eunápio, “Histories”, in: BLOCKLEY, R.C. (ed. e trad.), The Fragmentary Classicising Historians of the Later Roman Empire, vol.2, Liverpool: F.Cairns, 1981, pp.2-150. Histoire Auguste: les empereurs romains de IIe et IIIe siècles (trad. A.Chastagnol), Paris: R.Laffont, 1994. Juliano, The Works of the emperor Julian, vol.2(trad.Wilmer C.Wright), Cambridge: Harvard University Press/ London: William Heinemann, 1959. Panégyriques Latines, 3v. (trad. E.Galletier), Paris: Les Belles Lettres, 1955. Roman Imperial Coinage, vol.IX: Valentinian I - Theodosius I (ed. J.W. Pearce), London: Spink and Sons, 1951. Símaco, Prefect and Emperor: The relationes of Symmachus, A.D. 384 (trad. R.H.Barrow), Oxford: Clarendon Press, 1973. b) Bibliografia: BROWN, P., Corpo e Sociedade - O homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo (trad.port.), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990. CAMERON, A. The Last Pagans of Rome, Oxford: Oxford University Press, No Prelo. CHASTAGNOL, A. “Introduction Générale”, in: Histoire Auguste: les empereurs romains de IIe et IIIe siècles, Paris: R.Laffont, 1994, pp. VII-CLXXXII. 119

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

COHEN, H. Description Historique des Monnaies Frappés sous l’Empire Romain, vol.8, Paris: Rollin & Feuardant, 1892. GERVÁS, M. J. R. Propaganda Política y Opinión Pública en los Panegíricos Latinos del Bajo Imperio, Salamanca: Universidad de Salamanca, 1991. GIARDINA, A. “L’Impero e il tributo”, RFIC, 113(3), 1985, p. 307-327. HANNESTAD, N. Roman Art and Imperial Policy, Aarhus: Aarhus University Press, 1988. HIDALGO DE LA VEGA, M. J. El Intelectual, la Realeza y el Poder Político en el Imperio Romano, Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 1995. HOPKINS, K. “Divine Emperors or the Symbolic Unity of the Roman Empire”, in: Conquerors and Slaves, Cambridge: Cambridge University Press, 1978, p.197242. MACHADO, C., Imperadores Imaginarios: Politica e biografia na Historia Augusta, SP: Dissertacao de mestrado apresentada a USP, 1998. ______. “Imperadores em construcao: modelos imperiais na Historia Augusta”, Phoinix, 7, 2001, p. 93-114. ______. “Entre frivolidade literária e sátira política: a História Augusta”, in: S. Rebel, C. Beltrão e F. Joly (Orgs.), Intelectuais e o Poder no Império Romano, Rio de Janeiro: Nau, No Prelo. MATTHEWS, J. Western Aristocracies and Imperial Court, A.D. 364-425, Oxford: Clarendon Press, 1990. L’ORANGE, H.P. Art Forms and Civic Life in the Later Roman Empire, Princeton: Princeton University Press, 1972. PERCIVAL, J. “Tacitus and the Principate”, G&R, 27(2), 1980: 119-133. RODA, S. “Nobiltà burocratica, aristocrazia senatoriale, nobiltà provinciali”, in: Storia di Roma, T.III, v.1, Torino: Einaudi, 1993, pp.643-673. SIVAN, H. Ausonius of Bordeaux: genesis of a gallic aristocracy, London: Routledge, 1993. SPEIDEL, M.P. “Commodus the God-Emperor and the Army”, JRS, 83, 1993, p. 109-114. 120

A HISTÓRIA AUGUSTA E A CULTURA POLÍTICA SENATORIAL NO BAIXO IMPÉRIO Carlos Augusto Ribeiro Machado

STAROBINSKI, J. “Exil, Satire, Tyrannie: les Lettres Persanes”, in: Le remède dans le mal - Critique et légitimation de l’artifice à l’âge des Lumières, Paris: Gallimard, 1989, p. 91-121. TALBERT, R. J. The Senate of Imperial Rome, Princeton: Princeton University Press, 1984.. TEJA, R. “Il cerimoniale imperiale”, in: Storia di Roma, T.III, v.1, Torino: Einaudi, 1993, p. 613-642. WALLACE-HADRILL, A. “Ciuilis Princeps: Between citizen and king”, JRS, 72, 1982, p. 32-48. WINTERLING, A. Society and Politics in Imperial Rome. Oxford: Wiley, 2009.

121

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

122

O IMPÉRIO E SUAS DIVERSIDADES: ROMANOS, SASSÂNIDAS E GERMANOS NO SÉCULO IV Cláudio Umpierre Carlan*

Resumo: o artigo começa com uma descrição do mundo romano após a Tetrarquia, com a luta pelo poder entre Constantino e, mais tarde, Licínio. Analisamos as questões políticas relativas ao mundo romano durante o período. Enfatiza-se nessa discussão, a importância do uso de uma variedade de fontes: iconográficas, arqueológicas e textuais. Usando como fonte iconográfica a coleção numismática do acervo do Museu Histórico Nacional / RJ, utilizamos a imagem como uma fonte de propaganda, legitimando o poder imperial. Unitermos: moeda, império, iconografia, poder, símbolo. Abstract: the paper aims at studying the Rome History just before Constantine ruled the Empire, considering that Constantine is considered as a direct heir of his four predecessors. Scholars are mostly interested in social and economic aspects, relegating to a secondary role the raw material and even the ideological concerns, so important ideologically. The numismatic collection stored at the National Historical Museum at Rio de Janeiro, Brazil, serves to show how images were used as propaganda for imperial rule. Keywords: coins, empire, ideology, power, symbol.

*

Professor Adjunto de História Antiga da Universidade Federal de Alfenas (Unifal / MG). Doutor em História Cultural pela Unicamp. Pesquisador Associado ao Grupo de Pesquisa Arqueologia História da Unicamp.

123

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

Introdução O Império Romano no Século III Com à morte do Imperador Alexandre Severo, assassinado por seus soldados no ano de 235, tem início em Roma um período conhecido como a crise do século III. A crise atinge todos os níveis do Império; político, social e econômico, produzindo uma forte pressão dos povos germanos, considerados “bárbaros”, pelos romanos. Em um primeiro momento, ocorreu uma Anarquia Militar (235 – 268), os imperadores eram nomeados por seus soldados, sendo assassinados logo depois. Alguns chegaram a governar poucos dias. As legiões nomeavam seus generais como imperadores, na esperança de receber uma recompensa. Cada legião, cada exército era fiel ao seu comandante. Quando o comandante não fazia o prometido era assassinado pelos seus legionários. Segundo relatos da época, alguns imperadores eram nomeados pela manhã e mortos a noite. A outra fase é dos Imperadores Ilírios (268 – 284), caracterizada por um grupo de governantes, originários da Ilíria (atual Europa Oriental, perto da Albânia). Na tentativa de resolver os problemas socioeconômicos criados durante a Anarquia Militar, eles tentaram realizar uma série de reformas. Entre os anos de 238 e 285, 19 imperadores tentaram, em vão, governar. Porém, não conseguiram atuar de forma ativa com o Senado. Roma entrava em uma crise institucional, nunca vista anteriormente. No meio desse caos, era necessária uma série de reformas urgentes, para salvar o debilitado Império. Tetrarquia: Diocletiani et Collegarum Após o assassinato do imperador Numeriano (283-284), Caius Aurelius Valerius Diocles Diocletianus, Diocleciano (245 – 313), filho de um liberto (ex-escravo) da Dalmácia (litoral da Croácia), nascido perto de Salona (hoje Split ou Spalato, cidade e porto da Croácia) foi proclamado imperador por seus soldados. Para evitar um fim igual ao de seus antecessores, tratou de apoiar-se em elementos de sua confiança e do mesmo mundo social. Com Diocleciano, tem início um dos programas de reformas mais importantes da História Romana, com o advento da restauração do Império. O Estado foi transformado em uma monarquia absoluta, em que o imperador possuía à autoridade máxima, baseada na escravidão, na servidão dos camponeses livres, na burocracia 124

O IMPÉRIO E SUAS DIVERSIDADES: ROMANOS, SASSÂNIDAS... Cláudio Umpierre Carlan

estatal e no exército. Como modelo, Diocleciano copiou as monarquias orientais, nas quais tudo o que cercava o rei era considerado sagrado1 . No ano de 286, Diocleciano inicia uma série de reformas que, por algum tempo, restaura a ordem. Inicialmente é instalada uma diarquia (governo de dois) ao lado de Maximiano (285/286-305), amigo pessoal e colega de armas. O sistema de diarquia é ampliado para tetrarquia. Para evitar futuras revoltas, escolhe elementos da mesma origem e camada social: Galério (305-311), seu adjunto, guardara gado nos Cárpatos; Maximiano antigo colega de armas; Constâncio Cloro ajudante de armas de Maximiano. A idéia original de Diocleciano partia do princípio de que o Império era muito grande para uma só pessoa governar. Então, ele teve o bom senso de dividir o poder, entre pessoas de sua confiança criando, assim, a tetrarquia. Nessa mesma idéia, achava que ninguém poderia ficar eternamente no poder. Então, criou meios para que o seu governo e de Maximiano tivessem um fim. Assim, nesse sistema, os imperadores principais, Augusti, só poderiam governar durante 20 anos. Ao término desse tempo, o poder era passado aos seus auxiliares, os Césares. Esses, por sua vez, passariam à função de Augustus e escolheriam outros dois Césares2.

(Acervo do Museu Histórico Nacional / Rio de Janeiro. Foto Cláudio Umpierre Carlan). Moeda de bronze cunhada durante o período da tetrarquia. Esse dupondius, do tamanho da nossa moeda de 1 real, serviu de base para a reforma monetária de Diocleciano. Foi fabricada entre os anos de 304 e 305, na cidade de Alexandria. A “cara” ou anverso, representa o busto do Imperador Diocleciano, laureado, com a titulação de augusto (IMP DIOCLETIANVS PF AVG). Na “coroa” ou reverso, a imagem de Júpiter, principal deus romano (IOVICO – N S CAES / ALE), com o globo, símbolo do poder, à esquerda e o paragonium à direita. 1

2

Nessas monarquias o rei pode ser considerado um deus, ou a reencarnação do deus, caso do Faraó; ou simplesmente um representante do deus na Terra (sacerdote), como Patesi na região da Mesopotâmia ou o Xá da Pérsia. Os governantes romanos serão influenciados pelo modelo persa. Mas, apesar disto, a maioria dos imperadores serão coroados Faraó do Egito (comum desde a conquista do Egito no século I a. C.). O último Faraó oficial, Juliano II, imperador romano de 361 a 363. Seriam dois augustos: um para Ocidente e outro para Oriente, auxiliados por dois césares. O sonho de Diocleciano era o retorno ao Principado (séculos I e II), por isso, associou o nome do fundador, Augusto (majestoso em latim), ao poder. Criando assim, um novo título imperial.

125

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

Aliado a esses fatos, ocorre uma inversão do eixo político. Roma passou para um segundo plano após a oficialização das novas capitais: Aquilea e Tréveres (Trier, atual Alemanha), no ocidente, Sírmio e Nicomédia (Iznit, atual Turquia) no oriente. Essa suposta divisão do poder, por que Diocleciano continuou sendo o Augustus com maior prestígio, produziu uma série de resultados satisfatórios. Em 297, Galério, no baixo Danúbio, expulsa os godos3 . No ano seguinte, consegue uma importante vitória contra os persas sassânidas4 , ampliando a fronteira romana para o Curdistão. Diocleciano massacrou uma revolta em Alexandria, derrotando o usurpador Domicio Domiciano; Constâncio I, ou Cloro (que, em latim, significa claro) recuperou a Bretanha das mãos de Alecto (outro usurpador); e Maximiano pos fim a uma rebelião na Mauritânia. Os tetrarcas tentavam demonstrar à população que os tempos do Principado, ou seja, do apogeu do Império, estavam de volta. Não apenas uma nova ordem, mas o retorno à antiga. Num período de crises e revoltas, a união e amizade entre os governantes eram fundamentais para estabilidade de Roma. Foram realizadas uma série de monumentos que representa essa união. Essas obras serviam como uma espécie de propaganda política da época. Os tetrarcas abraçados, vestindo uniforme militar, representando a união e amizade a favor do Império, afinal, segundo eles mesmo, trabalhavam pela salvação do já decadente mundo romano.

(Referência Cláudio Umpierre Carlan, agosto de 2007) Representação dos tetrarcas, na praça de São Marcos, Veneza, Itália. Escultura feita em pórfiro, saqueada de um palácio bizantino (Istambul, Turquia) por mercadores venezianos, em 1204 (Quarta Cruzada). Durante muito tempo acreditava-se tratar de cavaleiros medievais. 3

4

Os godos, povos “bárbaros” de origem Germânica, invadiram o império no século IV. Eram divididos em Visigodos (godos do oeste) e Ostrogodos (godos do leste). No século V, os visigodos estabeleceram seu reino na Península Ibérica (Portugal / Espanha). Sassânida, nome da dinastia que governou a Pérsia (atual Irã), entre os séculos III e VI. Durante esse período foi uma potência rival dos romanos.

126

O IMPÉRIO E SUAS DIVERSIDADES: ROMANOS, SASSÂNIDAS... Cláudio Umpierre Carlan

Diocleciano permitiu a recuperação da agricultura, do comércio, do artesanato, continuando uma necessária reforma administrativa iniciada pelo Imperador Probo (232-282), dividindo o Império em 96 províncias, que se reuniam em 12 dioceses5 (regiões); importantes mudanças fiscais e monetárias; revitalizou, ou tentou revitalizar, a antiga religião romana. As Reformas Durante o governo de Diocleciano, foi realizada uma série de reformas militares e econômicas, dando um cuidado especial ao comércio, essencial para o controle do Império. Desde os tempos mais remotos, o abastecimento da cidade de Roma era uma regra a ser seguida por todos os imperadores. Começam a surgir questões que aparecem os excessos de arbitrariedade por parte de Diocleciano: a reformulação da annona, imposto sobre a produção agrícola anual fortalecimento das classes dos curiales (habitantes do mesmo povoado); e fixação dos agricultores, colonos ou arrendatários nas terras que cultivassem, proibindo-lhes abandoná-las. Os trabalhadores urbanos deveriam permanecer em suas profissões, transmitindo-as a seus descendentes. Institua-se assim, um sistema de classes até então desconhecido em Roma, com o objetivo de manter imobilizada a estrutura econômica do Império. A profissão tornara-se hereditária, passando de pai para filho. Para garantir o controle do exército, evitando as revoltas e guerras civis, Diocleciano realiza uma série de reformas nas legiões: aumenta o efetivo militar permanente de 350.000 para algo em torno de 400 a 500 mil homens; institui uma força móvil, agindo, rapidamente quando necessário, em várias regiões; separação dos limitanei, homens de fronteiras, que formavam milícias locais. Sua formação foi proibida pelo Imperador. Os tetrarcas não aceitariam uma força não-oficial pararela à sua. E o aumento do efetivo militar, tanto para enfrentar os persas sassânidas, quanto os invasores germânicos. Na parte econômica, podemos destacar a eterna luta da Tetrarquia em deter a inflação. A mais conhecida foi o Edito de Preços (Edictum Diocletiani et Collegarum de praetiis rerum venalium), tentativa de estabelecer o preço máximo e mínimo, entre os diversos bens básicos (inclusive na prostituição). Em outras palavras, uma espécie de congelamento de preços e salários, ainda muito em voga pela nossa tradicional classe política. Como hoje, não forneceu resultados favoráveis, estimulando o contrabando e a corrupção. 5

Diocese era a divisão judicial das províncias ou território de uma cidade. Hoje, é o território sob a influência de um bispo (Igreja Católica).

127

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

A Última Grande Perseguição No campo religioso, Diocleciano queria as divindades romanas fossem cultuadas na sua integra, além do fortalecimento do culto a pessoa do Imperador. Durante o governo de Décio (imperador de 249 a 251), ocorreu uma grande perseguição aos cristãos. Nesse período, o império vivia uma grave crise militar, e o Imperador necessitava reafirmar a tradicional lealdade aos deuses. O Estado não poderia permitir um grupo que não aceitasse ou não fizesse parte dessa política. Os habitantes do império precisavam fazer sacrifício aos deuses, para que esses deuses, fundadores de Roma, voltassem a ajudá-las. Logo após o assassinato de Décio, o cristianismo viveu um longo período de paz. Essa turbulência foi de suma importância para a Igreja Cristã, pois seu papel de evangelização cresceu nas províncias orientais do Império e em algumas zonas ocidentais do Mediterrâneo. Foram 50 anos de paz e prosperidade para os cristãos. Até que Diocleciano, durante o seu governo, organizou a última perseguição a eles (303-313), pondo fim nessa suposta felicidade. Uma mudança brusca, acerca da qual a maioria dos historiadores tem uma explicação pessoal. Mas, como não é o nosso objetivo discutir as várias correntes que analisaram esse período, ficaremos com a tradição cristã, segundo a qual Diocleciano cedeu às insistências de seu genro e César, Galério, segundo Lactâncio6 . Galério, como desculpa, acusou os cristãos de colocarem fogo no palácio imperial em Nicomédia7 . O primeiro edito de perseguição, datado do dia 23 de fevereiro de 303, ordenava o fechamento das igrejas, a entrega das escrituras e uma ordem ao clero que fossem feitos sacrifícios aos deuses. Até esse momento, só foram afetadas as autoridades eclesiásticas, mas outro edito, no mesmo ano, estendeu a obrigação do sacrifício a toda a comunidade cristã. Com a recusa dos cristãos, as autoridades militares fizeram cumprir as ordens imperiais. Na realidade, a perseguição não foi tão terrível. Em alguns locais, como no Ocidente governado por Maximiano, ou nas regiões sob autoridade de Constâncio I ou Cloro, pai de Constantino, a perseguição foi mais branda. Constâncio Cloro, por exemplo, multava os cristãos em um valor simbólico. Apenas para cumprir a ordem imperial, pois o valor da multa não era estipulado pelo Império. Maximiano obrigava os 6

7

Lúcio Cecílio Firmiano Lactâncio (245 ou 250 – 325), originário da África, era cristão e ensinava retórica latina em Nicomédia, professor de Crispo, filho mais velho do Imperador Constantino I, o grande. LACTÂNCIO. De Mortibus Persecutorum. Paris: Ed. J. Moreau, 1954, p. 138.

128

O IMPÉRIO E SUAS DIVERSIDADES: ROMANOS, SASSÂNIDAS... Cláudio Umpierre Carlan

cristãos a entrarem no Templo de Júpiter, chegando a ponto de muitos serem carregados nos braços pelos legionários, sem violência física. Uma vez lá dentro, eram libertados. Cumpriam as ordens, mas não diziam como. No Oriente, entretanto, foi mais violenta. A esposa e filha de Diocleciano, Prisca e Valéria, cristãs convictas, morreram na última fase da perseguição. Fim da Tetrarquia e o início da Guerra Civil. O ano 305 marcou o final da primeira tetrarquia com a renúncia dos Augusti Diocleciano e Maximinano. Dessa forma, os dois césares ascenderam à categoria de Augustus, e dois oficiais ilírios foram nomeados seus auxiliares. A segunda tetrarquia ficou formada com: Constâncio Cloro e Severo II (ou Severo Augusto), no ocidente; Galério e Maximino Daia (ou Daza), sobrinho de Galério , no oriente. O grande problema criado por essa ordem de sucessão era a situação dos filhos, legítimos ou não, dos governantes. Constantino, filho de Constâncio Cloro e Helena, (mais tarde Santa Helena), e Maxêncio (filho de Maximiano) não aceitaram ser afastados do poder. O próprio Maximiano não aceitou o afastamento, retornando, em 306, ao cenário político. Constâncio Cloro caiu enfermo, morrendo no ano de 306. Constantino, se encontrava a seu lado em Eboracum (atual York). As tropas leais a seu pai, como também o general de origem germânica, Croco, proclamaram-no imperador. Simultaneamente, Galério proclamou Severo, César ocidental, como augustus e sucessor de Constâncio Cloro. Ainda em 306, em Roma, Maxêncio era também proclamado imperador, e Maximiano, seu pai, retornava à vida pública, reclamando o título imperial. O primeiro a cair foi Severo, assassinado por suas tropas. Constantino e Maximiano, seu sogro, realizaram um acordo político. Ao final de 307 havia quatro augusti Constantino, Maximiano, Galério, Maxêncio - e um César, Maximino Daia . Iniciava assim uma nova guerra civil8. Em 310, Diocleciano tenta uma mediação, porém a situação estava ainda mais confusa, com 7 imperadores: Constantino, Maximinano, Galério, Maxêncio, Maximino, Licínio (amigo de Diocleciano) e Domicio Alexandre, proclamado 8

Severo II, ou Severo Augusto, governou apenas dois anos, de 305 a 307. Licínio, cunhado de Constantino, derrotou Maximino Daia no Oriente, assassinando-o logo depois. Com a vitória de Constantino e Licínio, o Império foi dividido entre os dois, logo depois da assinatura do Edito de Milão (313), dando liberdade de culto a cristãos e pagãos. Mas essa sociedade não durou muito.

129

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

Imperador por suas tropas, na África. Aos poucos, começam a desaparecer alguns candidatos: Galério morreu de causas naturais, Domicio é assassinado por ordem de Maxêncio e, seu pai, Maximiano, convidado a se suicidar por Constantino, escolhendo o enforcamento. Diocleciano ficou apenas observando o fim do sistema político que ajudou a criar. Chamado várias vezes para retornar ao poder, mas sempre recusou. Vivendo os últimos anos de sua vida só, em sua propriedade, na atual Croácia, dedicando ao cultivo da uva e vegetais. Considerações finais Desde o século III, povos germânicos começaram a invadir as fronteiras do Império, procurando novas terras. Os imperadores do período aceitaram pacificamente. Trabalhavam como colonos e agricultores, protegendo as fronteiras, com uma força militar própria e praticamente independente, comandada por seus chefes. Foram aceitos em um sistema de federado9. Aos poucos, começaram a ser assimilados ao exército romano. Seus líedres chegaram a atingir as mais altas funções imperiais, chegando a controlar o governante. Diocleciano foi o primeiro imperador romano a abandonar Roma como capital, exercendo o governo a partir da cidade grega de Nicomédia, na Ásia Menor (Turquia). Organizou o Dominato, uma monarquia despótica e militar, de tipo helenística. Ainda influenciado pelas ideias orientais, o Princeps converteu-se em Dominus, isto é, em amo, senhor ou governante absoluto. O imperador tornava-se “senhor e deus” e todos que eram admitidos em sua presença eram obrigados a ajoelhar-se e beijar-lhes a ponta do manto real. A elite civil foi derrotada pelos militares e o Senado por uma nobreza burocrática.

9

Federado, foederati, termo comum utilizado desde a República. Era uma tribo, sujeita a um tratado, não sendo colônia e não tinham direito a cidadania romana. Em caso de necessidade, enviavam soldados para as legiões, demonstrando lealdade ao Império. A palavra federado é a raiz do termo de Federalismo.

130

O IMPÉRIO E SUAS DIVERSIDADES: ROMANOS, SASSÂNIDAS... Cláudio Umpierre Carlan

(Acervo do Museu Histórico Nacional / Rio de Janeiro. Foto Cláudio Umpierre Carlan). Moeda de Constâncio II, filho e herdeiro político de Constantino I, o grande, como Dominus (legenda DN CONSTANTIVS PF AVG). No reverso, dois soldados, armados de armadura, com as cabeças voltadas para o centro. Acima do estandarte notamos a presença do algarismo I (provavelmente representando alguma legião romana). A legenda demonstra a importância do exército no quarto século, GLORIA EXERCITVS. No exergo ou linha de terra, identificamos as iniciais PAR, pertencente a primeira casa monetária de Arles, cunhada entre os anos de 337 e 340, denominada AE 4. As duas últimas letras do exergo estão danificadas. Existem 50 variantes, desta peça na coleção. Porém, ocorre uma diferença quanto ao símbolo localizado no lábaro. Nesta peça identificamos o I (única na coleção). Em outras localizamos o Y, 0, P.

O Império foi dividido em quatro regiões administrativas. Em 293, cada imperador escolheu um sucessor: Diocleciano apontou Galério e Maximiano, Constâncio Cloro. A partir de então passaram a existir quatro imperadores, dois deles com o título de Augusto (augustus) e dois com o título de César (caesar). Constâncio Cloro e Galério foram proclamados Césares. Os césares eram chefes militares capazes de governar e proteger o império, adotados como filhos pelos Augustos, casados com suas filhas, a quem sucederiam em caso de morte, incapacidade provocada pela velhice ou decorridos vinte anos de seus governos. O descontentamento do outros herdeiros, como Constantino e Maxêncio, levou o Império a uma nova Guerra Civil. Agradecimentos aos colegas da UNESP / Franca e a UNIMONTES, em especial as professoras Margarida Maria de Carvalho e Márcia Pereira da Silva, pela oportunidade de trocarmos ideias, a Pedro Paulo Funari, André Leonardo Chevitarese, José Remesal – Rodríguez, Ciro Flamarion Cardoso, Maria Beatriz Florenzano, Vera Lúcia Tostes, Rejane Vieira, Eliane Rose Nery. A responsabilidade pelas idéias restringe-se ao autor. 131

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

Fontes a) NUMISMÁTICA Acervo Numismático do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro. Diocleciano, Galério, Maximiano, Constâncio Cloro, Constantino I e Constâncio II. Medalheiro de Número 3;Lotes Números: 11 ao 16, dando um total de 748 peças. Moedas de Bronze dos seguintes Imperadores, Augustos e Césares: b) IMPRESSAS AMIANO MARCELINO. Historia (Rerum Gestarum Libri). Edición de Maria Luisa Harto Trujillo. Madrid: Akal, 2002. EUSEBIUS PAMPHILI, Bispo de Cesaréa. De Vita Constantini. V. 7. Lib. I. Leipzig: Texto da Edição I. A. Heikel, 1902. LACTÂNCIO. De Mortibus Persecutorum. Paris: Ed. J. Moreau, 1954. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Relatórios anuais de 1934, 1960, 1966 e 1967. texto datilografado. c) DICIONÁRIOS / ENCICLOPÉDIAS / CATÁLOGOS / ANAIS ANAIS DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. VOLUMES 1 / 27. Rio de Janeiro, 1940 / 1995. ASKEW, Gilbert. The Coinage of Roman Britain. London: B.A. SEABY LTDA, 1967. CATÁLOGO LOS AVREOS ROMANOS 196 A.C – 335 D.C. Por Xavier Calico, miembro de La Internacional Associatión of Professional Numismatics. Barcelona, 2002. GREIMAS, Algirdas J. e COURTÉS, Joseph. Dicionário de Semiótica. Tradução de Alceu D. Lima, Diana L. P. de Barros, Eduardo P. Cañizal, Edward Lopes, Ignacio A. Silva, Maria José C. Sembra, Tieko Y. Miyazaki. São Paulo: Editora Cultrix,1979. JUNGE, Ewald. The Seaby Coin Encyclopaedia. Second impression with revisions. London: British Library, 1994. MUSEU NACIONAL D´ARTE DE CATALUNYA. Guia del Gabinet Numismàtic 132

O IMPÉRIO E SUAS DIVERSIDADES: ROMANOS, SASSÂNIDAS... Cláudio Umpierre Carlan

de Catalunya. Dirigida por Marta Campo. Barcelona: MNAC, 2007. THE ROMAN IMPERIAL COINAGE. Edited by Harold Mattingly, C.H.V. Sutherland, R.A.G. Carson. V. VI, VII, VIII. London : Spink and Sons Ltda, 1983. Referências ARNAUD, Pascal. Le Commentaire de Documents en Histoire Ancienne. Paris: Belin Sup, S/D. CHARTIE, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand, 1990. DONDIS, Donis A. Sintaxe da Linguagem Visual. Tradução Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. FLOR, Fernando R. de La. Emblemas Lectures de La Imagem Simbólica. Madrid: Alianza Editorial, 1995. FLORENZANO, Maria Beatriz B. Numismática e História Antiga. In: Anais do 1º Simpósio Nacional de História Antiga. João Pessoa, 1984. FUNARI, Pedro Paulo Abreu e CARLAN, Cláudio Umpierre. Arqueologia Clássica e Numismática. Coleção Textos Didáticos n. 62. Campinas: IFCH / UNICAMP, 2007. FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Grécia e Roma: vida pública e vida privada. Cultura, pensamento e mitologia, amor e sexualidade. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2002. GREENWELL, Willian. The Electrum Coinage of Cyzicus. London: Rollin and Feuardent, 1887. HUNT, Lynn. A Nova História Cultural. Tradução de Jefferson Luís Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1992. JENKINS, Keith. A História Repensada. Tradução Mário Vilela. Revisão Técnica Margareth Rago. São Paulo: Contexto, 2001. PASTOUREAU, Michel. Coleurs, images, symboles. Études d´Histoire et d´Anthropologie. Paris: Léopard d´Or, 1988. VIEIRA, Rejane Maria Lobo. Uma grande coleção de moedas no Museu Histórico Nacional ? In: Anais do Museu Histórico Nacional, volume 27, Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 1995.

133

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

134

REGIONALIDADE E HISTÓRIA: REFLEXÕES SOBRE REGIONALIZAÇÃO NOS ESTUDOS HISTORIOGRÁFICOS MINEIROS* Marcos Lobato Martins**

Resumo: O artigo apresenta discussão teórico-metodológica sobre a questão da regionalização nos estudos historiográficos, tomando Minas Gerais como estudo de caso. São abordados aspectos relativos às dificuldades e cuidados que as regionalizações do espaço construído por sociedades do passado envolvem, bem como critérios que podem contribuir para a definição de escalas e recortes regionais que escapem dos anacronismos. Dessa forma, o trabalho avalia algumas propostas de regionalização empregadas no estudo de processos históricos nas Minas Gerais oitocentistas. Unitermos: Regionalização – Historiografia – Minas Gerais Abstract: This paper presents theoretical and methodological discussion about regionalization in historic studies, with Minas Gerais as one case. It approaches difficulties and cautions relative to cuts the constructed space for past societies, as well criterions for scales definition and regional cuts that escape of the anachronism. This paper evaluates regionalization propositions employed in the historic process research of nineteenth-century Minas Gerais. Keywords: Regionalization – Historic studies – Minas Gerais

* Versão ampliada de trabalho apresentado no XVI Encontro Regional de História, promovido pela ANPUH-MG, em julho de 2008. ** Professor do Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal de Alfenas, MG. Doutor em História Econômica pela USP. E-mail: [email protected]

135

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

Em entrevista publicada na Revista de História da Biblioteca Nacional (n. 29, p. 49), no mês de fevereiro de 2008, o historiador Caio César Boschi afirmou: “Costumo ouvir, e às vezes com uma carga de ironia, que os mineiros só produzem historiografia regional. Não tenho desdouro por isso e não creio que seja um pecado”. O professor tem inteira razão, justamente porque os pesquisadores mineiros, como ele mesmo completou, tratam de temas específicos ousando nas formas interpretativas e nas abordagens, de modo que suas pesquisas têm servido de parâmetro ou subsídio para a compreensão de outras partes do Brasil. Entretanto, pode-se culpar os historiadores mineiros por um pequeno pecado. Ao praticarem história regional, eles têm dedicado pouquíssimo tempo à reflexão teórica sobre os conceitos de “região” e de “lugar”, bem como sobre seus empregos na historiografia recente. Tem sido negligenciada a tarefa de refletir sobre a questão da regionalização, que também cabe ao historiador, uma vez que ele, além de lidar com recortes temporais, frequentemente precisa definir escalas e escolher critérios para elaboração de recortes espaciais. Por isso mesmo, há um calcanhar de Aquiles na história regional feita pelos mineiros: a utilização de recortes regionais saídos praticamente do senso comum e/ou determinados pelas atuais referências políticoadministrativas empregadas pelos órgãos governamentais. O objetivo deste trabalho é apresentar análises e proposições sobre a questão da regionalização na historiografia mineira referente aos séculos XVIII e XIX. O que se quer é passar em revista procedimentos influentes de regionalização, apontando suas contribuições e seus limites para a compreensão das dimensões regionais na trajetória mineira. E, também, sugerir alguns critérios para a produção de recortes regionais baseados em informações, representações e processos coevos à realidade investigada, enfatizando o Norte/Nordeste de Minas Gerais da virada do século XIX para o XX. As regiões artificiais: o predomínio do recorte político-administrativo No decurso do século XIX e durante boa parte do século XX, sob a poderosa influência do IHGB (Instituto Histórico e Geográfico do Brasil), os estudos de história regional consagraram-se sob a forma de corografias, monografias municipais e regionais, que misturavam história, tradição e memória coletiva. Esses trabalhos tomavam como seu fundamento espaços bem recortados politicamente, que eram estudados em si mesmos. O relacionamento do “nacional” com o “regional” e o “local” era reduzido à descrição de impactos de grandes acontecimentos da história do país nos espaços sub-nacionais. A narrativa, a seleção e o encadeamento dos fatos, a referência recorrente a determinados tipos de personagens, tudo isso objetivava mostrar que a região é o resultado do protagonismo de figuras extraordinárias. Muitas vezes, os corógrafos tenderam a 136

REGIONALIDADE E HISTÓRIA: REFLEXÕES SOBRE REGIONALIZAÇÃO... Marcos Lobato Martins

considerar as regiões e seus povos como dotados de características definidas e perenes. As corografias alcançaram padrão formal estereotipado. Traziam descrições fisiográficas das regiões, exposições da fauna e da flora, inventários dos recursos naturais. Em seguida, havia relatos das atividades econômicas; por último, os autores das corografias elaboravam efemérides e pequenas biografias de pessoas destacadas da história regional ou local. Sabe-se hoje que o conjunto de corografias do período mencionado possuía defeitos graves. O primeiro deles é a frágil ou inexistente articulação entre geografia e história; outro era o modo como elas relacionavam as dimensões “micro” e “macroespaciais”. Um terceiro defeito era o viés laudatório das narrativas, antes de tudo exercício de exaltação dos feitos das elites regionais e locais. De qualquer modo, as corografias tornaram naturais, por assim dizer, os recortes político-administrativos nas pesquisas históricas. Nem mesmo o pleno funcionamento de cursos de pós-graduação em História, a partir dos anos 1970, alterou profundamente a situação. É verdade que os pesquisadores ampliaram o trabalho com temas e acervos documentais regionais, preocupando-se com a construção de bancos de dados variados e com a “história ao microscópio”, conforme a conhecida expressão de Pierre Goubert (1992). Todavia, mesmo Pierre Goubert escreveu que a história local é aquela “que diz respeito a uma ou a algumas aldeias, pequenas ou médias cidades (...) ou a uma área geográfica não maior que a unidade provincial comum” (idem, p. 45). O grande mestre francês ainda raciocinava em termos do county inglês, do contado italiano, da land alemã e do pays francês, isto é, divisões político-administrativas, em geral inadequadas para a apreensão das dinâmicas que produzem as multifacetadas realidades regionais. Exemplo hoje clássico de trabalho que empregou regionalização inspirada exclusivamente em critérios de ordem política é o livro de John Wirth (1982), sobre a política mineira na Primeira República. Wirth recortou o estado com base nas grandes circunscrições eleitorais existentes na primeira década do século XX. A escolha faz certo sentido para a análise de questões político-partidárias e da dinâmica eleitoral, mas dificulta a apreensão dos processos socioeconômicos que influíam sobre as decisões e o comportamento político das elites dirigentes mineiras. Ademais, sobre as linhas demarcatórias das circunscrições eleitorais, cruzavam relações de parentesco e de negócios e afinidades resultantes de formações culturais similares (os “bacharéis” não pensavam nem agiam como os egressos da Escola de Minas de Ouro Preto). Nesse ponto, é bom recordar as pesquisas de Cid Rebelo Horta (1956) sobre as famílias dominantes em Minas Gerais, que sublinharam o papel central de clãs na formação de sub-regiões mineiras, uma vez que os sistemas de clãs se estendiam além de suas bases municipais para formar 137

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

grupos de poder por zona, caracterizados por padrões distintos de ligações com outros clãs políticos. Curiosamente, pesquisadores como Roberto Borges Martins (1980) e Douglas Cole Libby (1988), cujas contribuições para o estudo das singularidades da economia regional oitocentista são fundamentais, propuseram subdivisões do espaço mineiro praticamente coincidentes com as regiões de planejamento empregadas pelo governo do estado nas décadas de 1980 e 1990. Assim, a região-mercado de Minas Gerais das primeiras décadas do século XIX, baseado na agricultura de abastecimento escravista e numa gama diversificada de setores de transformação artesanais e industriais, com vinculações à plantation do Sudeste, foi dividida por ambos da seguinte forma: Metalúrgica – Mantiqueira, Zona da Mata, Sul, Oeste, Triângulo Mineiro, Alto Paranaíba, São Francisco – Montes Claros, Paracatu e Jequitinhonha – Mucuri – Doce (anexo 1). Nessa regionalização, São João Del Rei e Barbacena pertencem à mesma região de Ouro Preto, Mariana e Sabará, o que dificulta a percepção de que as áreas do Campo das Vertentes estavam muito mais articuladas ao Rio de Janeiro. Por outro lado, Diamantina e Serro, ao serem postas dentro da região Jequitinhonha – Mucuri – Doce, correm o risco de verem obscurecidas as enormes similaridades de seus processos de povoamento e trajetória econômico-social em relação às zonas circunvizinhas de Ouro Preto e Sabará. Diamantina e Serro são parte do antigo centro minerador, exatamente como Mariana, Sabará, Caeté e Ouro Preto. Também é o caso de questionar porque o vasto Termo de Minas Novas foi incluído, na regionalização proposta por Martins e Libby, numa única região. Certamente a vizinhança imediata de Minas Novas articulava-se ao antigo Tijuco; porém, as porções a jusante da foz do rio Araçuaí eram zonas de mata fechada e botucudos, que constituíam espaço diferente e bastante isolado em relação a Minas Novas, mantendo interações fracas com as terras baianas por meio do rio Jequitinhonha (RIBEIRO, 1996). Como falar de Zona da Mata antes de 1850-1870? Essas poucas objeções mostram que as regionalizações propostas por Martins e Libby lidam com unidades sem identidade e, também, que elas são incapazes de apreender diversidades espacialmente representativas. As regiões dos viajantes: a atenção aos fluxos demográficos e comerciais Em meados da década de 1990, veio a público o trabalho de Clotilde Andrade Paiva (1996) que examina a natureza da economia e da sociedade das Minas Gerais oitocentistas. Lançando mão do Recenseamento de 1831/32 e das narrativas de viajantes estrangeiros, a pesquisadora se dedicou a examinar, entre outras questões, as configurações regionais mineiras. 138

REGIONALIDADE E HISTÓRIA: REFLEXÕES SOBRE REGIONALIZAÇÃO... Marcos Lobato Martins

Os critérios empregados para a definição das unidades regionais foram fatores físicos, demográficos, econômicos, administrativos e históricos, conferindo maior peso aos dados econômicos percebidos pelos viajantes. Tomando por base a versão inglesa da carta de Minas Gerais, que acompanha o relato de viagem de Hastings (1886), a regionalização proposta por Clotilde Paiva tem as seguintes regiões, num total de dezoito: Diamantina, Intermediária de Pitangui – Tamanduá, Mineradora Central Oeste e Sudeste, Vale do Alto – Médio São Francisco, Araxá, Médio – Baixo Rio das Velhas, Mineradora Central Leste, Sudoeste, Sul Central, Mata, Extremo Noroeste, Sertão, Minas Novas, Paracatu, Triângulo, Sertão do Alto São Francisco e Sertão do Rio Doce (anexo 2). A regionalização do espaço mineiro oitocentista proposta por Clotilde Paiva representa avanço importante na maneira como a questão é tratada no âmbito da historiografia mineira. Essa proposta pode ser um divisor de águas, na medida em que possui méritos notáveis. O primeiro deles é o de ater-se a um conjunto amplo de dados coevos, submetidos a cuidadoso tratamento que elimina o acidental e o idiossincrático. Outro mérito da proposta é valorizar apropriadamente os fatores demográficos, econômicos e comerciais, o que garante historicidade aos recortes regionais obtidos. As unidades espaciais tornam-se, por isso mesmo, mais aderentes ao desenho complexo da sociedade do passado que se investiga. Noutros termos, a tessitura regional da Província surge como algo dinâmico, resultante do cruzamento das dimensões espacial e temporal. O que significa dizer que as unidades regionais não se distinguem tanto por suas características naturais, mas por serem espaços socialmente construídos a partir da materialização das relações sociais1 . Salientase ainda que a regionalização proposta por Clotilde Paiva lida com unidades concebidas como abertas, porque atravessadas por fluxos populacionais e mercantis, realçados em sua dinamicidade. Contudo, há limites na proposta em tela, decorrentes tanto da natureza das fontes empregadas quanto das escolhas metodológicas feitas pela pesquisadora. Na construção da regionalização, foram desconsideradas diversas variáveis cujo impacto sobre a experiência vivida da sociedade mineira oitocentista não é desprezível. Variáveis cuja relevância na discussão teórica sobre regionalização tem sido ressaltada nas últimas décadas. Trata-se de levar às últimas conseqüências o rumo posto pelo pensamento geográfico, para o qual a região é espaço natural, político, técnico e cultural. Assim, redes de relações sociais e alguma forma de consciência de pertencimento (nos “nativos”) são indicadores da existência dinâmica de recortes espaciais. Ora, as redes relacionais e familiares, as redes clientelísticas e os regionalismos políticos do Oitocentos mineiro certamente escaparam aos 1

É precisamente nessa direção que vai a discussão de Ilmar Rohloff de Mattos (1990) sobre o que constituía uma região no espaço colonial.

139

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

viajantes estrangeiros – e tudo isso foi decisivo para a formação do espaço provincial. Um único exemplo dá conta da importância dessas variáveis na compreensão do processo de formação dos espaços regionais mineiros no século XIX. O trabalho de Mônica Ribeiro de Oliveira (2005), que investiga a constituição do sistema agroexportador cafeeiro na Zona da Mata, entre as décadas de 1780 e 1870, põe em relevo as redes econômicas, sociais e políticas entre famílias de grandes proprietários dos Termos de São João Del Rei e Barbacena e as de “cafelistas” pioneiros em Santo Antônio do Paraibuna (atual Juiz de Fora), Mar de Espanha e Rio Preto. Até 1850, as áreas das Vertentes-Mantiqueira e da porção sul da Zona da Mata estavam integradas, por meio de um processo de “transbordamento” (demográfico e de capital mercantil) que partia da antiga região aurífera e incorporava a fronteira agrícola como estratégia de reprodução social. Elas constituíam um único espaço em expansão, uma região mineira ampliada. O que significa dizer que, distinguir Vertentes-Mantiqueira e Zona da Mata, tratandoas como regiões distintas, no período 1780-1850, implica em distorcer o processo histórico de formação do espaço regional em torno do Caminho Novo. Por outro lado, a regionalização proposta por Clotilde Paiva também não considera variáveis associadas ao imaginário das populações. Variáveis cuja apreensão não pode ser feita por meio de fontes como listas nominativas e relatos de viajantes estrangeiros, que foram compulsadas pela pesquisadora. Como ensinou a Geografia Humanista, a região também é espaço vivido, de maneira que não se pode desconsiderar a cultura dos habitantes (FRÉMONT, 1976). Os aspectos simbólicos e identitários, o imaginário dos moradores e as percepções dos “nativos” são dados relevantes para a construção de regionalizações. O mesmo vale para os elementos fisiográficos que caracterizam as bases naturais sobre as quais ocorrem os processos históricos2 . Tudo isso deve ser agregado aos dados econômicos, comerciais e demográficos utilizados na regionalização proposta por Clotilde Paiva. Esforço nessa direção empreenderam Alexandre Mendes Cunha e Marcelo Magalhães Godoy (2003), em trabalho que propôs regionalização específica para a transição entre o século XVIII e XIX. Variáveis fisiográficas, demográficas e econômicas foram combinadas com categorias de percepções do espaço setecentista, de modo que o território da Capitania é recortado em áreas de “minas” (espaço dos núcleos mineradores e terras contíguas), “matas” (zonas habitadas por indígenas e praticamente desconhecidas) e “campos” (áreas de pecuária nos campos abertos do Sul e no cerrado do centro-oeste e norte).

2

Uma breve e bem feita recapitulação do pensamento geográfico sobre o conceito de região pode ser encontrada em Sandra Lencioni (1999).

140

REGIONALIDADE E HISTÓRIA: REFLEXÕES SOBRE REGIONALIZAÇÃO... Marcos Lobato Martins

Redes de cidades nos séculos XVIII e XIX? Se a proposta acima mencionada é promissora e requer aperfeiçoamentos, não há muita coisa positiva a dizer sobre a voga recente de aplicar a Minas Gerais dos séculos XVIII e XIX, a golpes de machado, o conceito de rede de cidades, com o fito de iluminar a conformação espacial da Capitania e da Província. Tal ferramenta, específica da análise regional contemporânea, que caiu no gosto de economistas e geógrafos estudiosos do passado mineiro, tem gerado bom número de trabalhos apresentados em congressos e seminários recentes3 . Na Geografia, os estudos sobre redes urbanas ganharam grande visibilidade a partir das contribuições de Christaller (1966), Losh e Brian Berry. O conceito de “rede de cidades”, associado à “Teoria do Lugar Central”, focaliza a existência de conjuntos estruturados de cidades, nos quais se destacam relações econômicas constantes e significativas e aspectos funcionais, níveis de hierarquia e graus de influência entre as localidades. Nessa perspectiva, a importância de um núcleo urbano é determinada pela oferta de “bens e serviços centrais”, isto é, aqueles produzidos e ofertados em poucos pontos para serem consumidos em espaços maiores, bens e serviços mais raros e especializados, de alcance espacial e mercados mínimos amplos. Assim, numa rede de cidades ocorre a dependência entre núcleos urbanos e complementaridade entre as estruturas produtivas dos lugares que compõem a rede. Para Christaller, a maior interdependência entre as cidades-membros do sistema gera maior interação humana entre as cidades. Empregando o método de Ward e de análise de cluster sobre dados censitários de profissões, volume de cartas e impressos chegados a agências de correio, número de estabelecimentos comerciais nos distritos e de escravos associado ao comércio, pesquisadores (RODARTE, 1999; SIMÕES e RODARTE, 1998; RODARTE, PAULA e SIMÕES, 2004) afirmam que a rede de cidades mineira estava concentrada, até o início do século XIX, na antiga área mineradora, sendo que os pólos urbanos principais desse período foram Ouro Preto e Serro. Entretanto, ao iniciar-se a segunda metade do Oitocentos, a polarização urbana moveu-se para o sul, em decorrência das mudanças econômicas associadas principalmente à expansão cafeeira. Os principais pólos tornaram-se, então, Juiz de Fora e Mar de Espanha. A despeito dessa alteração, o interior mineiro teria preservado a estrutura urbana da primeira metade do século XIX.

3

A título de exemplo, citam-se: VELLOSO e MATOS, 1988; RODARTE, 1999; RODARTE e SIMÕES (1998); RODARTE e GODOY, 2006; RODARTE, PAULA e SIMÕES, 2004.

141

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

Os cálculos econométricos de Rodarte (1999) tomam os profissionais liberais, comerciantes4 e artesãos como indicadores para a análise do nível de centralidade de cada lugar, resultando na seguinte hierarquia de cidades: na década de 1830, Ouro Preto e Serro seriam de nível 1, mais alto, de centralidade; de nível 2, médio, seriam Campanha, Diamantina, Caeté, São João Del Rei, Barbacena, Santa Luzia, Itabira e Mariana; de nível 3, menor centralidade, seriam Januária, Minas Novas, Grão-Mogol, Paracatu, Araxá, entre outras. Já na década de 1870, as cidades de nível mais elevado de centralidade seriam Juiz de Fora e Mar de Espanha; de nível 2, Rio Pardo de Minas, Grão-Mogol, Serro, Pitangui, Itabira, Ouro Preto, Mariana, Formiga, São João Del Rei, Barbacena, Pouso Alegre, Campanha, Baependi, Itapecirica, Lavras, Conceição do Serro, Bagagem. Qual o sentido histórico destes cálculos e resultados? Eles bastam para demonstrar que os habitantes de áreas rurais e núcleos urbanos menores realmente se deslocavam frequentemente para buscar serviços/produtos ofertados por advogados, médicos, farmacêuticos, professores, artistas, sapateiros, pedreiros, entalhadores etc. residentes nas cidades de “maior centralidade”? E o que significa, em termos do processo histórico regional, dizer que Grão-Mogol e Rio Pardo de Minas possuíam nível de centralidade maior do que Diamantina e Montes Claros na década de 1870? Considerando que Diamantina tornara-se sede de Bispado, ganhara indústria de tecidos, possuía colégios, imprensa ativa e sede regional de correios, além de ser cabeça de distrito eleitoral, não parece razoável considerar que seus habitantes tivessem menor acesso à informação especializada (relativa a preços, tecnologia, etc.) do que moradores de Grão-Mogol e Rio Pardo. Analogamente, por que considerar São João Del Rei e Campanha no mesmo patamar de importância de Formiga, Baependi ou Pouso Alegre na segunda metade do século XIX, seja como centros de comércio atacadista ou de concentração de informações?5 Se a atenção ficar limitada à formulação clássica da “Teoria dos Lugares Centrais”, para a qual rede de cidades implica em interdependência e especialização, é o caso de se perguntar: quais seriam e como surgiram dependências e complementaridades entre a freguesia de Rio Pardo, criada em 1760, quase na fronteira com a Bahia, e o Arraial do Tijuco (atual Diamantina), lugares que integrariam, segundo Velloso e Matos (1988), a periférica rede de cidades do Vale

4

5

No trabalho citado, a categoria “profissionais liberais” incluiu juristas, advogados, médicos, farmacêuticos, professores, notários/escrivães, artistas, parteiras, etc. A categoria “artesão” destaca trabalhadores da construção civil, de couro e peles, de vestuário e fabricantes de sapatos. Allan Pred (1979), autor em que se apóia Rodarte (1999), considera como medidas mais expressivas e determinantes do nível de centralidade de um lugar no sistema de cidades a sua posição no comércio inter-regional e no fluxo de informações relevantes para tomada de decisões dos agentes econômicos.

142

REGIONALIDADE E HISTÓRIA: REFLEXÕES SOBRE REGIONALIZAÇÃO... Marcos Lobato Martins

do Jequitinhonha no século XVIII? Que diferenças econômicas e sociais, na divisão de trabalho e na especialização produtiva, poderiam ser indicadas entre Grão Mogol, Itacambira, Minas Novas, Serro e Chapada do Norte, em meados do século XIX? As populações rurais vizinhas de “lugares urbanos” como Berilo, Salinas, Itinga e Jequitinhonha, recorriam continuamente a esses núcleos para se abastecer, comprar roupas e sapatos, dar à luz filhos com o auxílio de parteiras ou resolver questões legais e administrativas? Curiosamente, na documentação cartorial de Diamantina (período 1870-1930), principalmente nos livros de registro de notas que contêm informações sobre estatutos, contratos e transações (compras/vendas) das grandes lojas e armazéns locais, não encontrei referências para o século XIX de intermediações comerciais, financeiras e formação de sociedades envolvendo diamantinenses e homens de negócio do Serro, Grão-Mogol, Ouro Preto e mesmo Juiz de Fora (MARTINS, 2004). O que a documentação examinada revela é o contato direto dos grandes negociantes diamantinenses com o Rio de Janeiro, a existência de procuradores residentes na Corte a serviço dos assuntos comerciais e financeiros dos diamantinenses e, reciprocamente, de agentes no antigo Tijuco a serviço de firmas cariocas. Fica a impressão de que, para muitos pesquisadores, a simples existência de aglomerações de casario em pontos específicos do território, trilhas transitáveis por pessoas e muares e movimento de mercadorias transforma-se na trama inconteste, e auto-evidente, de uma rede de cidades ou sistema de cidades, que mutuamente se influenciam, se hierarquizam e se especializam funcionalmente. Não há dúvida de que a expansão das fazendas e do comércio, apoiada na dinâmica da mineração, levou a processo de urbanização nas Minas Gerais. Mas não se está confundindo a pulverização de núcleos urbanos e de caminhos com a formação de amplíssimas redes de cidades? Os estudos centrados na idéia de “rede de cidades”, ao privilegiarem a utilização de métodos lógico-matemáticos e a identificação de variáveis quantificáveis, fazem tabula rasa do passado. Ora, a multiplicação de vilarejos no correr do século XIX em Minas Gerais parece não ter implicado o reforço de um processo urbano de produção social do espaço, e nem mesmo a intensificação da própria vida urbana nesses núcleos. É o caso de recordar a célebre passagem escrita por Saint-Hilaire, em 1819, ao visitar Araxá: Durante a semana a maioria das casas de Araxá fica fechada. Seus donos só ali aparecem aos domingos, para assistirem à missa, passando o resto do tempo em suas fazendas. Só permanecem nas cidades, nos dias de semana, os artesãos – alguns dos quais bastante habilidosos – as pessoas sem profissão, alguns comerciantes e as prostitutas. O que acabo de dizer aqui pode ser aplicado praticamente a todos os arraiais da Província de Minas (SAINT-HILAIRE, 1974, p. 130).

143

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

O trecho citado chama atenção para o fato de que, em diversas partes de Minas Gerais, tanto no século XVIII quanto no XIX, o processo de ocupação do território transcorreu com os “lugares urbanos” exercendo papel secundário, mesmo que eles participassem da trama de caminhos e de rotas abertas na clandestinidade. Além dos “lugares urbanos” terem sido muito acanhados, havia também graves dificuldades de transporte e comunicação entre eles e enormes dificuldades de assalariamento da população livre. Nessas condições, como falar em rede de cidades, conceito que sugere espaços marcados por profunda diferenciação econômica, interdependência e especialização produtiva? Por outro lado, a existência de fluxos comerciais inter-regionais, bem como de vinculações externas em certas áreas de Minas não significa que, para a ampla maioria da população, tanto o abastecimento quanto a oferta de serviços deixaram de ser resolvidos nas próprias localidades, majoritariamente em trocas vicinais. Muito menos que a experiência vivida dos mineiros escapasse a um círculo espacial restrito, centrado na fazenda ou na pequena aglomeração urbana. Afinal, como demonstrou Ângelo Carrara (1997, p. 132), a produção de subsistência, que garantiu o abastecimento de diversas áreas da Capitania/Província e gerou fortunas ao ser exportada para Rio de Janeiro e São Paulo, era feita por grandes unidades agropecuárias, cabendo a poucos titulares a quase totalidade da produção mercantil de gêneros alimentícios. Ora, esse é mais um indício que implica na inadequação da imagem de caminhos transitados continuamente por uma multidão diferenciada de pessoas que demandavam núcleos urbanos para realizar trocas e resolver problemas variados, passando, sucessivamente, de arraiais a distritos, vilas e cidades. O quadro espacial tanto da Capitania quanto da Província de Minas Gerais está mais próximo da conformação espacial integrada por “células” do que de um sistema de cidades extenso, diferenciado e complexo. Território composto por células que conservariam alto grau de autonomia econômica, social e cultural, quanto mais afastadas estivessem dos caminhos principais. Manchas de populações adensadas e mais integradas, com mercados mais dinâmicos, em torno de Ouro Preto, Mariana, Sabará, Serro/Diamantina e na antiga Comarca do Rio das Mortes, compreendendo núcleos situados nas margens do Caminho Novo.6 E também vastos espaços submersos nos localismos, a exemplo da realidade fornecida por Minas velha, “no circuito de vida desacelerada do Nordeste”, no coração da Bahia, situada em região montanhosa e semideserta, plantada pela aventura mineradora do século XVIII e estudada, na década de 1950, por Marvin Harris (1956). Sobre o trabalho de Harris, Fernand Braudel (1992) escreveu uma belíssima resenha, na 6

No interior dessas manchas mais dinâmicas, pode-se admitir a existência de um centro que assume a condição de acessar e sujeitar, de uma forma ou outra, a economia e a vida de outros núcleos urbanos. Um exemplo seria São João Del Rei comandando redes mercantis que cobriam porções do sul e do centro-oeste mineiro (GRAÇA FILHO, 2002).

144

REGIONALIDADE E HISTÓRIA: REFLEXÕES SOBRE REGIONALIZAÇÃO... Marcos Lobato Martins

qual aponta outro exemplo de área à margem das “linhas de povoamento suficiente e dos sistemas de trocas alimentadores”: a zona de Ubatuba no litoral paulista, na década de 1940. Enfim, no interior das Minas Gerais oitocentista, havia numerosas “quase-ilhas”, afastadas, frequentemente incomunicáveis, algumas delas estagnadas, sobrevivendo na reiteração cotidiana das tradições ancestrais. Espaços em processo de diferenciação, nos quais emergiram “economias regionais” dotadas de centralidades locais a partir do avanço gradual da complexificação econômica. Ao invés da ideia de rede de cidades, que remete à visão de uma economia regionalizada e internamente especializada, deve-se pensar muito mais em termos de espaços econômicos distintos que possibilitam exercícios de regionalização. As regiões de paisagens naturais: as bacias hidrográficas entram em cena Na década atual, estudos inspirados na História Ambiental trouxeram novo aporte para a questão da regionalização na historiografia mineira. Trata-se do trabalho com regiões naturais, delimitadas com base em ecossistemas, em critérios caracterizadores de paisagens naturais tidas como bastante homogêneas. A pesquisa de Ricardo Ferreira Ribeiro (2006 e 2007), que buscou construir uma história ambiental e uma etnoecologia do sertão mineiro, representa bem essa tendência. O pesquisador discute as descrições das paisagens do Brasil Central, especialmente aquelas produzidas pelos naturalistas estrangeiros, para analisar o lugar do cerrado no imaginário brasileiro. Em seguida, examina a trajetória de formação do “sertão mineiro” e o universo do sertanejo, considerado herdeiro de tradições culturais milenares. Na investigação, lugares tão distintos, e distantes, como o Alto Jequitinhonha e o Triângulo Mineiro são esquadrinhados para revelar o perfil do “sertão mineiro”, que o pesquisador assevera ser diferente dos sertões do Nordeste e do Centro-Oeste. Claramente, o cerrado é alçado à condição de categoria regionalizadora, que englobaria processos geohistóricos singularmente específicos. O “sertão mineiro” recobra, por isso mesmo, sua força mítica, tal como na literatura, ao preço de perder força explicativa: o Jequitinhonha e o Triângulo nunca tiveram processos de ocupação e desenvolvimento suficientemente similares para serem metidos dentro de um único recorte regional, ainda que baseado em critérios naturais. O problema está no fato de que um grande bioma, caso do cerrado, comporta espaços com múltiplas diferenciações internas. Paisagens naturais e paisagens culturais devem ser sobrepostas, senão existirá o risco de não se compreender a rica diversidade dos sertões. Na perspectiva histórica, pelo menos no decurso dos séculos XVIII e XIX, o Sertão da Farinha Podre (Araxá) guarda continuidade e similaridade com o interior goiano; porém, ele é muito distinto das áreas de cerrado nos rios das Velhas e Paraopeba, cujas vinculações políticas 145

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

e econômicas com a região mineradora de ocupação mais antiga sempre foram marcantes. O trabalho de Haruf Salmen Espíndola (2005) sobre o Sertão do Rio Doce acaba preso aos limites postos pela noção de bacia hidrográfica. O autor se debruça sobre a riqueza dos recursos naturais no referido vale e as dificuldades que a mata impôs à colonização, descreve o processo de ocupação, ressaltando as relações tensas e conflituosas entre índios, militares, colonos pobres e missionários. Ao apontar para o conceito de territorialidade, Haruf Espíndola abre a possibilidade de ultrapassar a regionalização por bacia hidrográfica. Isso porque, no decurso do século XIX, além do Vale do Rio Doce, grandes porções dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri experimentaram processos idênticos de conquista e exploração econômica, sob idênticas injunções de ordem geopolítica. No entanto, na prática, o autor se ateve indistintamente às superfícies cujas extensões hoje correspondem à mesorregião de planejamento do Rio Doce. O que é problemático, uma vez que as terras das cabeceiras dos rios Santo Antônio, Piranga e Piracicaba, que formavam a porção leste do Termo de Mariana, estavam desde meados do século XVIII integradas ao complexo econômico da área central mineradora. Por conseguinte, fica difícil tomar a totalidade da bacia do Rio Doce como uma só região histórica. Para muitos propósitos de pesquisa histórica, tanto os recortes regionais baseados em ecossistemas quanto em bacias hidrográficas são excessivos, grosseiros, inadequados. A existência de especificidades internas às bacias hidrográficas, relacionadas às interações entre atributos naturais e dinâmicas histórico-culturais, implica grande diversidade de cenários para cuja compreensão é útil aplicar o conceito de “paisagem global”, proposto por Georges Bertrand (1971). O importante é que o tempo da natureza seja sobreposto ao tempo do homem, de maneira que a definição de recortes espaciais deve ser feita partindo-se de relações dos elementos físicos entre si e desses com os elementos socioeconômicos, tendo em vista os objetivos da pesquisa e a escala de estudo7 . Ademais, o uso de regionalizações baseadas em ecossistemas e bacias hidrográficas para estudar a espacialidade de processos históricos nas Minas Gerais dos séculos XVIII e XIX carrega indisfarçável cheiro de anacronismo, uma vez que autoridades e habitantes dessas épocas não representavam, por meio dessas categorias, os diferenciados espaços mineiros. Um exemplo é útil para aclarar as considerações feitas imediatamente acima. No Projeto “Diagnóstico socioambiental da bacia do Mucuri em Minas Gerais”, realizado pelo IGA (Instituto de Geociências Aplicadas de Minas Gerais), estudei 7

Aplicação interessante dessa proposta para o estudo das paisagens e do problema hídrico no Vale do Jequitinhonha é a tese de Vanderlei de Oliveira Ferreira (2007).

146

REGIONALIDADE E HISTÓRIA: REFLEXÕES SOBRE REGIONALIZAÇÃO... Marcos Lobato Martins

os grandes delineamentos dos processos de ocupação e de formação socioeconômica no Nordeste do estado (MARTINS, 2009). Para a superfície que corresponde à porção mineira da bacia hidrográfica do Mucuri, que abrange atualmente 16 municípios, elaborei proposta de regionalização concernente ao período 1890-1950. Ela combina variáveis ambientais, econômicas, sociais e culturais, levantadas a partir de visitas de campo e documentação cartorária local. A ideia-chave é a de que, ao longo dessas décadas, as bacias do Mucuri e do Jequitinhonha estavam fortemente interligadas, constituindo praticamente um mesmo complexo econômico. Uma macrorregião marginal no cenário mineiro e brasileiro, quase inteiramente voltada para a agricultura de abastecimento local, fragilmente inserida em circuitos comerciais de longo curso. Uma macrorregião que conservou altíssimos índices de população rural, de analfabetismo, de violência política e no campo, de deficiências na infraestrutura e nos equipamentos públicos urbanos. Numa escala mais reduzida, a superfície da bacia do Mucuri foi dividida, tomando como referência a primeira metade do século passado, em duas regiões, cujas características estão sumariadas na tabela abaixo: Tabela 1 – Regiões do Mucuri no período 1890-1950

O elo entre as duas regiões era a Estrada de Ferro Bahia-Minas, cuja operação fazia convergir pessoas e mercadorias, originárias das duas regiões, para o maior núcleo urbano do Nordeste de Minas Gerais: a cidade de Teófilo Otoni. Sede 147

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

administrativa do Mucuri, polo de comércio e serviços, Teófilo Otoni proporcionava certa coesão às populações dispersas pelo “Mucuri antigo” e pelo “Mucuri novo”, embora não lhes conferisse identidade cultural única. Ao contrário, o “Mucuri antigo” estava culturalmente mais próximo das antigas áreas mineradoras do centro mineiro, enquanto o “Mucuri novo”, por assim dizer, era mais abaianado. Ainda que provisória e “grosseira” (na escala dos recortes que propõe), esta regionalização para a bacia do Mucuri, elaborada com a finalidade de analisar processos históricos ocorridos no Nordeste de Minas Gerais entre as décadas de 1890 e 1950, busca principalmente superar certo apego, atualmente tão ao gosto dos formuladores de políticas de desenvolvimento e ambientalistas, a ecossistemas, regiões climáticas, bacias hidrográficas. Não há razão para reproduzir a atuação dos naturalistas, quando elaboraram sua geografia das plantas, de olho apenas na fisionomia dos espaços, nas características físicas dos lugares. Considerações finais Para o historiador, o importante é que o procedimento de regionalização não produza anacronismo. Para pensar e regionalizar o espaço construído por sociedades do passado, é preciso levar a sério a historicidade das formações espaciais. Devem ser reunidos dados coevos sobre a produção/percepção do espaço. O que significa dizer que o historiador precisa abandonar o apego aos recortes oficiais, baseados numa territorialidade meramente política (estados, mesorregiões, municípios). No âmbito da historiografia mineira, observa-se nos últimos anos avanço promissor na discussão sobre os conceitos e métodos de regionalização, que coloca a tendência irreversível de ultrapassagem do apego às divisões político-administrativas do espaço mineiro. Entre os estudiosos da história de Minas Gerais, aumenta a preocupação com a historicidade das formações espaciais, o que tem levado a pensar o espaço do passado em conexão estreita com dados físicos, naturais, ecológicos, e dados sociais, culturais, simbólicos. Aumenta a preocupação com a compreensão de como esses dados se relacionaram nas diversas épocas, de que maneira geraram fluxos, estruturas, linhas de organização, identidades geográficas e político-culturais. Ao construir regionalizações referentes ao passado mineiro, o pesquisador deve procurar compreender que, além dos laços exclusivamente materiais, representados pelas trocas comerciais e sistemas produtivos, havia outros tipos de elos tão ou mais importantes entre as populações e comunidades mineiras, cuja força desempenhava papel central na construção dos recortes regionais. Conjuntos de interações diversas – relações de família, alianças políticas entre chefes locais, geografia dos poderes, tramas das manifestações culturais, percepções coletivas – sustentaram trocas e doações enoveladas, capazes de conformar regiões. Há 148

REGIONALIDADE E HISTÓRIA: REFLEXÕES SOBRE REGIONALIZAÇÃO... Marcos Lobato Martins

também os atributos naturais e as expectativas sociais relacionadas, por exemplo, à reprodução ampliada dos negócios e vidas familiares, que possuem relevância no processo de regionalização, dependendo do objeto de estudo que o pesquisador tem em mãos. Os possíveis recortes não devem ter a pretensão de alcançar elevada precisão e limites rígidos. Certa dose de flexibilidade na regionalização é necessária, em razão do fato de que o historiador frequentemente lida com fontes lacunares, imprecisas e com bases de dados pouco sistemáticas. Permanece o fato de que há diversos modos e amplitudes espaciais para elaborar regionalizações. Cabe ao historiador, diante de seu objeto específico de estudo, decidir-se criteriosamente sobre o caminho a seguir. O que se impõe é o esforço de conhecimento, reconstrução e interpretação de processos históricos (e suas manifestações espaciais) que possibilita a melhor compreensão da evolução da sociedade e de sua intrínseca pluralidade. Referências BERTRAND, Georges. Paisagem e geografia física global: esboço metodológico. In: Cadernos de Ciências da Terra, n. 13, Instituto de Geografia da USP, 1971. BRAUDEL, Fernand. No Brasil baiano: o presente explica o passado. In: Escritos sobre a História. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 219-233. CARRARA, Ângelo Alves. Agricultura e pecuária na Capitania de Minas Gerais (1674-1807). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1997. (Tese de doutorado) CHRISTALLER, Walter. Central Places in Southern Germany. New Jersey: Prentice-Hall Inc., Englewood Cliffs, 1966. CUNHA, Alexandre Mendes; GODOY, Marcelo Magalhães. O espaço de Minas Gerais: processos de diferenciação econômico-espacial e regionalização nos séculos XVIII e XIX. In: Anais do Congresso da Associação Brasileira de Pesquisadores de História Econômica, 2003. ESPINDOLA, Haruf Salmen. Sertão do Rio Doce. Bauru, SP: EDUSC, 2005. FERREIRA, Vanderlei de Oliveira. Paisagem, recursos hídricos e desenvolvimento econômico na Bacia do Rio Jequitinhonha, em Minas Gerais. Belo Horizonte: IGC/UFMG, 2007. (Tese de Doutoramento) FRÉMONT, Armand. La región, espace vécu. Paris: PUF, 1976. GOUBERT, Pierre. História local. História & Perspectivas, Uberlândia, n. 6, 149

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

jan./jun. 1992, p. 45-57. GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. A Princesa do Oeste e o mito da decadência de Minas Gerais: São João del Rei (1831-1888). São Paulo: Annablume, 2002. HARRIS, Marvin. Town and Country in Brazil. Nova Iorque: Columbia University Press, 1956. HORTA, Cid Rebelo. Famílias governamentais de Minas Gerais. In: Segundo Seminário de Estudos Mineiros. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1956. p. 45-91. LENCIONI, Sandra. Região e Geografia. São Paulo: Edusp, 1999. LIBBY, Douglas Cole. Transformação e trabalho em uma economia escravista: Minas Gerais no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1988. MARTINS, Marcos Lobato. Achegas à história do Mucuri. Belo Horizonte: IGA, 2009. 35 p. (Relatório técnico “Diagnóstico socioambiental da bacia do Mucuri, eixo temático: Geohistória) MARTINS, Marcos Lobato. Os negócios do diamante e os homens de fortuna na praça de Diamantina, MG: 1870-1930. São Paulo: FFLCH-USP, 2004. (Tese de Doutoramento) MARTINS, Roberto Borges. Growing in silence: the slave economy of nineteenthcentury Minas Gerais, Brazil. Nashville: Vanderbilt University, 1980. (Tese de doutoramento) MATTOS, Ilmar Rohloff. O tempo saquarema: a formação do Estado Imperial. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1990. OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Negócios de famílias: mercado, terra e poder na formação da cafeicultura mineira – 1780-1870. Bauru, SP: Edusc; Juiz de Fora, MG: FUNALFA, 2005. PAIVA, Clotilde Andrade. População e economia nas Minas Gerais do século XIX. São Paulo: FFLCH – USP, 1996. (Tese de doutoramento) PRED, Allan. Sistemas de cidades em economias adiantadas. São Paulo: Zahar, 1979. RIBEIRO, Eduardo Magalhães. Lembranças da terra: histórias da gente do Jequitinhonha e Mucuri. Contagem, MG: Cedefes, 1996.

150

REGIONALIDADE E HISTÓRIA: REFLEXÕES SOBRE REGIONALIZAÇÃO... Marcos Lobato Martins

RIBEIRO, Ricardo Ferreira. Sertão, lugar deserto. O cerrado na cultura de Minas Gerais. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. RIBEIRO, Ricardo Ferreira. Florestas anãs do sertão – o cerrado na história de Minas Gerais. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. RODARTE, Mário Marcos Sampaio. O caso das minas que não se esgotam: a pertinácia do antigo núcleo central minerador na expansão da malha urbana da Minas Gerais oitocentista. Belo Horizonte: CEDEPLAR/UFMG, 1999. (Dissertação de mestrado). RODARTE, Mário Marcos Sampaio e GODOY, Marcelo Magalhães. Pródromos da formação do mercado interno brasileiro: um estudo de caso das relações entre capital mercantil, rede de cidades e desenvolvimento regional, Minas Gerais na década de 1830. In: Anais do XII Seminário sobre a Economia Mineira. Belo Horizonte: CEDEPLAR/UFMG, 2006. RODARTE, Mário Marcos Sampaio; PAULA, João Antônio de Paula; SIMÕES, Rodrigo Ferreira. Rede de cidades em Minas Gerais no século XIX. In: História Econômica & História de Empresas. São Paulo: Hucitec/ABPHE, v. 7, n. 1, 2004, p. 7-45. SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem às nascentes do Rio São Francisco. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1974. SIMÕES, Rodrigo Ferreira; RODARTE, Mario M. Sampaio. Sistemas de cidades em Minas Gerais no século XIX. 1988. (mimeo.). VELLOSO, André e MATOS, Ralfo. A rede de cidades do Vale do Jequitinhonha nos séculos XVIII e XIX. In: Anais do VIII Seminário sobre a Economia Mineira. Belo Horizonte: CEDEPLAR/UFMG, 1988. v. 1, p. 195-227. WIRTH, John. O fiel da balança: Minas Gerais na confederação brasileira – 1889/1937. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

151

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

ANEXO 1 Regionalização para Minas Gerais oitocentista proposta por Douglas C. Libby

Fonte: LIBBY, Douglas C. Transformação e trabalho em uma economia escravista. Minas Gerais no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 32

152

REGIONALIDADE E HISTÓRIA: REFLEXÕES SOBRE REGIONALIZAÇÃO... Marcos Lobato Martins

ANEXO 2 Regionalização de Minas Gerais proposta por Clotilde Paiva para meados do século XIX

Fonte: PAIVA, Clotilde e GODOY, Marcelo. Território de contrastes. In: Anais do X Seminário sobre a Economia Mineira. Belo Horizonte: CEDEPLAR/UFMG, 2000.

153

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

154

IMPRENSA, ESPAÇO PÚBLICO E CULTURA POLÍTICA

Lincoln de Abreu Penna*

Resumo: Este artigo trata das relações entre os periódicos cariocas, as atitudes características de seus cidadãos e um lugar aonde se desenvolveram os traços do cotidiano da então capital da República. Ao estabelecer essa integração o autor se ocupa dos conceitos de pequena política e de cultura política, ambas repensadas com base na leitura da fisionomia de um espaço público em processo de modernização e embelezamento, desde o início do século vinte. Unitermos: Brasil República, Cultura Política, Imprensa, Espaço Público Abstract: This article deals with relations between the journals in Rio, the characteristic attitudes of its citizens and a place where the features of the daily life of the former capital of the Republic has developed. In establishing this integration the author focuses on the concepts of small policy and political culture, both reconsidered based on the reading of the appearance of a public space in the process of modernization and beautification since the beginning of the twentieth century. Keywords: Brazil Republic, Polotical Culture, Journals, Public Space

*

Graduado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1968), Especialista em Europa Meridional pela Universidade de Toulouse-França (1970), Mestre em História pela Universidade de Toulouse-França (1970) Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (1994). Atualmente é professor titular da Universidade Salgado de Oliveira - UNIVERSO.

155

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

Na contramão do título principio com o conceito de Cultura Política. Seu emprego no campo da História tem sido freqüente. Esta constatação, por si só, mereceria uma reflexão, mesmo superficial, por quem considera sua presença na interpretação histórica um importante instrumento de esclarecimento a respeito de determinadas situações a merecerem análises por parte dos historiadores. Mais ainda se a este conceito se encontra relacionados os de Imprensa e Espaço Público. Independente de interpolá-los, para efeito desse estudo, é notória a quase absoluta interdependência que os três termos aqui juntados sugere. Neste sentido, é possível dizer-se que a Cultura Política está presente nos outros dois tanto quanto ambos se inserem naquele. Mas se há uma evidente relação entre eles, o mesmo não se pode dizer no que respeita a clareza dos usos que se fazem a respeito deles, principalmente no que se refere à Cultura Política, razão pela qual começo por este um exercício de esclarecimento sujeito, naturalmente, a reparos. Em primeiro lugar, não é possível separá-los com vistas a explicitar o sentido da expressão que se converteu num conceito operacional no campo das Ciências Sociais. Cultura e Política separadamente nada têm a ver com Cultura Política. Ou melhor, este último não deve ser entendido como o somatório, a junção, dos dois vocábulos em separado, muito embora tome emprestado o universo de sentido abarcado pelos dois, de cuja junção ocorreu num dado momento para deixar patente o parentesco entre eles. As contribuições dos antropólogos e psicólogos para a elaboração do conceito de Cultura Política não podem ser ignoradas. O crescente intercâmbio entre as ciências em geral, e particularmente no âmbito das Ciências Humanas, fez aproximarem estudos e estudiosos, objetos e métodos, cujos usos não estão mais restritos a territórios de conhecimentos particulares. No caso da História, a desenvoltura da História Social, por exemplo, abrigou inúmeras técnicas e procedimentos inexistentes até meados do século próximo passado. E a incorporação desses recursos só fez ampliar os horizontes do conhecimento da História. O mesmo passaria a acontecer com a História Política e as demais especialidades históricas. Assim, as idéias conceituais de campo político, de Bourdieu (1989), por exemplo, ou de capital simbólico, do mesmo autor, iriam mais recentemente, no último quarto deste século vinte, propiciar formas novas de abordagem da problemática histórica, com grande enriquecimento para a cultura historiográfica atual. Todavia, se a História incorpora tais contribuições derivadas de áreas afins do conhecimento, sua utilização pressupõe um tratamento rigoroso. Não se deve introduzi-las à linguagem histórica de maneira mecânica, automática, sem submetêlas ao crivo interpretativo dos historiadores. E o caso do conceito de Cultura Política é exemplar, porquanto os autores mais citados dessas áreas afins empregam o conceito de modo distinto daquele que, a meu ver, deve ser aplicado nos estudos históricos. Há uma tendência dominante nesses autores, a exemplo dos psicólogos 156

IMPRENSA, ESPAÇO PÚBLICO E CULTURA POLÍTICA Lincoln de Abreu Penna

Almond e Verba (1986) e do antropólogo Serge Berstein (1992), a conceberem a Cultura Política como representações próprias a determinados indivíduos ou comunidades de interesse. Para os historiadores, a idéia de representação obedece a um processo de construção que o sentido etimológico do vocábulo não contempla necessariamente. A busca dessa essência mais profunda faz lembrar a sentença segundo a qual temos ciência quando superamos o dado imediato, quando a aparência primeira é transformada para que se tenha ciência de sua aparição. O questionamento de um conceito a luz de um interesse movido pelo conhecimento é algo indispensável no exercício da função do historiador, sobretudo porque a História, como se sabe se serve dos conceitos alheios, das ciências afins. Assim, as representações são construções históricas, passíveis de serem apreendidas de acordo com o conhecimento das condições de sua produção. Daí, no entanto, serem elas associadas à Cultura Política tem significado preciso para as ciências que trabalham com o princípio da alteridade, como a psicologia e a antropologia, cada qual a sua maneira. Em ambas, as representações são valores a identificarem crenças, trejeitos e formas de manifestação, representativas de indivíduos ou coletividades. Tem, dessa maneira, um parentesco com a idéia de visão de mundo e, em parte, também com o de ideologia. No caso da História, uma Cultura Política não deixa de ser uma representação. Contudo, a idéia de prática me parece ser mais apropriada do que representações. Senão vejamos. Quando se cogitam a integração dos vocábulos cultura e política para compor o conceito indivisível do conceito formador, o de Cultura Política, se está a integrar um fazer em sua dupla dimensão, a de um hábito recorrente, típico, e uma leitura da realidade, ou ainda uma forma característica de expressar esse hábito de ler os dados da realidade. Assim, Cultura Política ainda que carregue consigo valores e representações se medem precisamente pelo modo de fazer as coisas nas relações sociais. E esse modo é informado por um conjunto de representações que permite que se perceba o que se quer perceber, mas não é apenas a capacidade de decifrar a realidade somente. É, para que se aplique o sentido de Cultura Política, o modo de fazer a leitura ou a interpretação que deve – para o historiador – ser o elemento de realce a destacar. No estudo que se propõe a partir de uma crônica da Cidade do Rio de Janeiro será possível aprofundarmos mais sobre esse detalhamento relativo ao que se está aqui considerando por Cultura Política. Aliás, tanto na concepção antropológica quanto psicológica é igualmente possível aplicar-se esse conceito. Todavia, tentaremos dotá-lo dessa especificidade do historiador, sem, naturalmente, desqualificar o seu emprego no sentido de representação puramente, embora, como já se adiantou, ele não é descartado pelo historiador, mas complementado com o de prática. E é 157

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

sobre esse complemento, ou melhor, sobre essa conjugação entre representação e prática que trataremos a seguir. As representações podem ser mensuradas multiplicadamente. Elas expressam manifestações que tipificam a maneira de ser de seres, individuais ou coletivos, mas em todas elas há sempre um fazer. E este fazer é o que chamo de prática. A prática do fazer, quando se reproduz sistematicamente transforma-se em referência do observador. E, com isso, se está diante de uma Cultura Política. Como não existe nenhuma possibilidade de se observar qualquer representação ou manifestação dela decorrente sem a observação de seu modo de fazer a representação; e no caso da História isso é absolutamente verdadeiro, a interação indissociável entre representação e prática se impõe para efeito de compreensão do conceito que opera exatamente essa dimensão do modo de pôr em prática as várias formas de representação do real. O exemplo de sua aplicabilidade será verificado nesse estudo, cuja origem foi um ensaio publicado na imprensa e seu locus o Espaço Público da capital da República, ainda dos tempos da Primeira República, a Cidade do Rio de Janeiro. Além do conceito de Cultura Política será empregado também o de Pequena Política, que teve originalmente sua menção em Gramsci,1 que a entendia como a política menor em contraposição às dimensões macro e mais dignificantes da Política. Porém, aqui a tomamos como sua dimensão mais diminuta, mais cidadã, na acepção mesmo de ações que digam respeito ao cotidiano dos cidadãos, não tendo, portanto, nenhuma conotação menos nobre ou menos edificante. Assim, a contraposição que fazemos é entre os cenários das grandes decisões, ambientadas nos ambientes do Estado e de suas instituições, e a do Espaço Público, entendido como o lugar privilegiado do comportamento político das individualidades, geralmente sem eira nem beira, dos transeuntes e de seus tipos distintos, mais pela variedade do que pelo figurino. Á época distintos eram os que possuíam um modo de ser exemplar, e não um modo de ser próprio, característico. Se a Cultura Política é indicativa de uma prática das representações, o Espaço Público é o lugar no qual essas manifestações acontecem, e a Imprensa o veículo e instrumento de registro desse encontro. É por essa razão que a reavaliação do conceito de Cultura Política se torna necessário. Afinal, não seria tão corriqueiro estar se analisando esses registros dos periódicos sem a devida menção ao que ocorre no Espaço Público, objeto e lugar privilegiado das representações de Cultura Política, em especial daquela que iria definir o caráter mesmo da Cidade e de seus cidadãos.

1

Além de Os Cadernos do Cárcere, obra referencial de Gramsci, ver LIGUORI (2007).

158

IMPRENSA, ESPAÇO PÚBLICO E CULTURA POLÍTICA Lincoln de Abreu Penna

Seguindo o sentido inverso do título cabem ainda algumas considerações a respeito do conceito de Espaço Público. Ele se aplica como lugar preferencial do exercício da cidadania, seja no seu aspecto formal, aquela que está ligado a expressões como urbanidade ou civilidade, atributos de cidades minimamente ordenadas segundo preceitos caros à civilização, seja no que se refere à convivência com o outro. Neste último, o conceito se reveste de uma qualidade advinda do acatamento e cumprimento de normas de boa vizinhança, da coexistência dos contrários, enfim de elementos típicos de uma relação social marcada por comportamentos democráticos. Ora, como entender o Espaço Público no Rio de Janeiro das três primeiras décadas do século vinte? Era extremamente reservado aos indivíduos que integravam um patamar elevado da hierarquia social, alheios às mazelas que assolavam o populacho e ciosos de seus privilégios. Se a febre modernizadora tomou conta desse segmento social num dado momento isto se deu em virtude do desplante, de uma auto estima das elites dominantes da capital da República, certa de que poderiam reproduzir os monumentos edificantes da civilização a se espraiar pelos quatro cantos do mundo. Assim, a soberba e o desprezo pelo povo eram atitudes típicas dos encarregados da ordem e do embelezamento do Espaço Público. Ordem para não se alterar as estruturas dominantes, e embelezamento para o desfrute dos poderosos. Logo, a concepção de Espaço Público tinha um forte sentido de lugar vigiado, daí as inúmeras interdições e as muitas posturas que se sucederam umas as outras, de modo a vigiar e punir os contraventores dessa ordem. Mas Espaço Público é, independentemente da intervenção normativa do Estado como detentor da poder público, um lugar de cidadania. E é essa relação potencialmente conflituosa entre o poder instituído e os impulsos libertários do indivíduo, que confere à idéia de Espaço Público um caráter espacial. É nele que se desenvolvem as mais variadas formas de manifestações de interesse coletivo. Nesse embate entre o poder e seus mecanismos de coação, nem sempre civilizado, tende a crescer a cidadania, síntese capaz de fazer conviver as diversidades sociais, culturais e políticas. E é na sabedoria de administrar essas diferenças que faz surgir o sentido de metrópole. Externar opiniões é um subproduto dessas realidades que a modernidade produz historicamente. E como a Imprensa se situa nesse panorama, sendo o veículo de produção e veiculação de opiniões? É evidente que existem dois planos para se tratar de seu papel. O plano no qual ela figura como um instrumento grandemente beneficiado pela industrialização. E neste plano, os aspectos técnicos e tecnológicos sobressaem, porque ela é uma das conseqüências das inovações introduzidas pela Revolução Industrial, que se alastra mundo afora. Neste plano, a Imprensa é um fator progressista, porque independentemente de suas orientações políticas e ideológicas, 159

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

ela difunde a informação. Depois de uma fase ainda artesanal, a Imprensa tornase empresarial com as vantagens e desvantagens inerentes a essa situação. Uma dessas desvantagens se encontra no peso cada vez maior das opiniões veiculadas para o seu público leitor, normalmente fruto de concepções que vão ao encontro das forças que operam o poder. Surge, dessa maneira, a grande imprensa, aquela cuja missão será a de dar apoio a medidas de ordem e de restrições derivadas dos poderes públicos. O financiamento dessa Imprensa por parque de interesses econômicos que transitam nas esferas do poder público, transforma os periódicos em forte instrumento de massificação de notícias do interesse dos governantes. Traduz, por assim dizer, a Cultura Política dominante, presente especialmente no Espaço Público, completando a tríade necessária do exercício do poder. Em todos esses três componentes desse ternário sagrado da ordem está presente o conteúdo ideológico, elo responsável por essa integração de vocábulos, cuja relação pode ser observada no ensaio transcrito abaixo. Através dele será possível tecer outras considerações sobre essa questão. O Misterioso Sr. Peixoto O homenzinho se chama Peixoto. É um preto magro já idoso e contínuo do Conselho Municipal. No seu pescoço esquelético, um doiman mal abotoado deixa ver as armas douradas do Município. O Sr. Peixoto é, incontestavelmente, funcionário público. O seu andar, as suas ocupações além do seu uniforme azul, revelam a sua função. Seu andar é vagaroso, suas ocupações são poucas e o seu uniforme está eternamente desabotoado. Não se pode preencher mais dignamente o cargo de contínuo do Conselho Municipal! Mas, apesar de seus hábitos preguiçosos de funcionário, o Sr. Peixoto tem olhos mais preguiçosos ainda – tem olhos de poeta! O Sr. Peixoto anda pelos corredores do Conselho Municipal como quem sonha, como quem entra por uma floresta, ouvindo o canto dos pássaros e o rumor das flores caindo... Tem olhos de poeta. Mas não faz versos. Bravos! Menos um. Mas o que faz então o magro e simpático Sr. Peixoto, com o seu olhar de sonhador, além de servir café e o almoço aos srs. Intendentes? Um instante. Vejamos a cena. Duas horas da tarde. Diante do Conselho Municipal, isto é, por enquanto, diante do Liceu de Artes e Ofícios, descem duas moças. Duas moças, quase meninas! Duas dessas pequeninas e interessantes criaturas que parecem ter saído de um figurino parisiense para tentar os nossos olhos de carioca. Dois tipos que eu chamaria de “pirulitos”. Tipo de moda – pequenino e magro. Rapidamente os dois “pirulitos” dirigem-se para o saguão do Liceu, atrás da escada, no mesmo local memorável onde está há bem poucos dias a arte vermelha de Di Cavalcanti fazia o burguês soltar gritinhos de pavor! Aí os dois “pirulitos” esperam. São mesmo dois “pirulitos”, dois verdadeiros “bombons” femininos. Uma das duas criaturas consola a outra. - Deixa estar, meu bem, o Sr. Peixoto, vem já e vai salvar a situação... As lágrimas nos olhos, a outra, nervosamente, espera.

160

IMPRENSA, ESPAÇO PÚBLICO E CULTURA POLÍTICA Lincoln de Abreu Penna

O Sr. Peixoto não tarda, porém, a chegar. Lentamente, como um profeta, ele desce as escadas. Pouco depois está atrás dos degraus de ferro, em conchavo com as duas moças. Silencioso ele escuta e vai aprovando com a sua cabeça preta. Como um clínico toma conhecimento do caso. Faz o seu diagnóstico. O caso? Ele é sempre o mesmo. É um caso de amor. Criaturinhas daquela idade não tem outro. É sempre a mesma e eterna história de um namorado que desapareceu, de um homem que não as quer mais, de uma outra mulher que lhes roubou o marido ou o amante de, meu Deus não sei o que, que as fez infeliz, a ela e aos seus pequeninos corações! (JORNAL DO BRASIL, 1923, p.5)

O relato acima ilustra uma faceta do Rio da Primeira República. A cidade convivia com práticas sociais responsáveis pela aparição de tipos que iam de encontro às aspirações das classes dominantes de dotarem o centro da cidade de uma aparência de civilização. A noção de contravenção firmava-se à medida que prosperava o processo de embelezamento iniciado pelas reformas urbanísticas do prefeito Pereira Passos e concluídas - no que concerne às grandes intervenções públicas da época - com o desmonte do Morro do Castelo, pelo então prefeito Carlos Sampaio (KESSEL, 2001, p. 126). E uma dessas práticas era a coexistência de figuras muito características da vida carioca, como a do intermediário dos amores alheio, e ao mesmo tempo conselheiro delicado para os seguidos casos de desilusão amorosa. Para aquelas elites das elites, isto é, para os ideólogos das classes dominantes, além do problema da falta d água a infernizar o cotidiano dos cariocas havia uma calamidade maior, a crescente prostituição. Não bastasse a presença de uma zona do meretrício a exigir o recato necessário, e as caçadoras de amores passageiros a vagarem pelas ruas mais movimentadas do centro da cidade, era preciso conviver com a promiscuidade entre os pirulitos e os homens aventureiros, muitos dos quais detentores de cargos públicos. E dentre eles, naturalmente, se encontravam também os intendentes do Conselho Municipal. A relação entre esses três elementos que dão título ao conteúdo desse artigo tem como lócus a cidade do Rio de Janeiro na Primeira República (1889-1930). Os jornais e revistas continham em suas matérias fartas referências ao espaço público que se ia modificando no compasso da filosofia do progresso e da ânsia do embelezamento, cosmético necessário para dar atestado ao impulso progressista tão acalentado. E por intermédio dessa interação imprensa e espaço público se encontravam presente uma cultura política a dar substrato ao modo de ser do carioca. A idéia de espaço público, àquela época, se encontrava associada à promiscuidade, porquanto os preceitos estéticos e civilizatórios dominantes eram excludentes. O povo devia ter o seu lugar, jamais se imiscuir com a urbanidade remodelada dos cidadãos de primeira classe, tal qual pensavam os donos do poder. Mas, a revelia desses valores caros ao extrato superior da hierarquia social vigente, 161

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

prosperavam os tipos sociais a afrontarem os poderosos, e coube à imprensa o registro desses instantes. Com isso, tornou possível essa relação entre público e o privado, e o jogo das transgressões a se reproduzirem no espaço público. Não seria nenhum exagero retórico dizer-se que ao longo do período compreendido por este estudo esses três elementos se firmaram como atores coletivos. A imprensa ganhara com a República a diversidade de orientações e tendências raramente presente na época do Império. Da mesma forma em tempo algum o espaço público foi ao mesmo tempo tão reverenciado e sujeito as tantas intervenções como tão mal falado em razão de interferências que se fizeram ao largo da consulta aos seus habitantes. E, por fim, a identidade carioca se já se fazia perceptível antes foi, por certo, nesse período robustecido pela profusão de tipos sociais a se afirmarem na mão e na contramão das classes dominantes e de seus conceitos de moralidade. Acresce a esses elementos a particularidade do caso carioca. A leitura do espaço urbano e de seus cidadãos foi fundamentalmente uma construção desenvolvida pela observação no próprio espaço público, vale dizer, nas ruas. Ao contrário de outras metrópoles, o Rio foi objeto de um olhar que se fez no ambiente do comportamento de uma cidadania ainda às voltas com certas normas e, por isso mesmo, também com certas transgressões. Estas não aparecem em função das sucessivas medidas adotadas em paralelo àquelas saneadoras da modernização urbanística, mas atropeladas pelo excessivo volume de dispositivos com vistas à disciplina dos seus habitantes, de modo a tentar discriminar modos de conduta como se essa preocupação indicasse sinais de progresso e civilidade. A irreverência incumbiu-se de dotar o exercício de flanar pelo espaço público um toque essencialmente caro aos habitantes da capital, de um país mergulhado no caldeirão de suas contradições. Neste cenário, despontava o embate entre o cultivo da tradição e o frenesi da modernidade, idéia de progresso levada ao cubo por uma geração que no limiar do século XX deslumbrara-se com os grandes centros metropolitanos do mundo ocidental europeu e americano. E esse traço de irreverência esteve como nunca expresso na imprensa, notadamente naqueles periódicos que se assumiam abertamente como de opinião, cuja essência de suas idéias se originava do humor. Era o caso do jornal de Aparício Torelly, A Manha.2 Nele, costumes e críticas desfilavam com elegância e talento próprio aos editorialistas identificados com o gosto dos leitores imersos numa metrópole em

2

O título desse periódico, Torelly, ou melhor, o Barão de Itararé, título que adotou de uma batalha que não houve, parodiou o grande jornal da época, A Manhã, tirando-lhe o circunflexo e dando o sentido matreiro ao seu jornal. Depois do Estado Novo, ele, Torelly, seria eleito vereador da cidade pelo Partido Comunista do Brasil (PCB), cuja legenda seria cassada em 1947.

162

IMPRENSA, ESPAÇO PÚBLICO E CULTURA POLÍTICA Lincoln de Abreu Penna

construção e, sobretudo, numa cidade que se tornara cosmopolita. Irreverência e ironia demonstradas na nota editada em seu jornal. Regime Comunista Um vespertino desta capital deu uma notícia estranhando que os intendentes comunistas Octávio Brandão e Minervino de Oliveira tivessem comparecido ao Conselho Municipal trajando elegantíssimos ternos novos. Esse fato, porém, nada tem de esquisito, pois qualquer pessoa, mesmo o pequeno burguês, poderá fazer roupas nessas condições, pagando-as em 10 prestações na CAPITAL. É esse, aliás, o regime ideal para o qual está evoluindo a extrema esquerda: - o comunismo dentro do “capitalismo” (A MANHÃ, 1930, p. 2).

A loja CAPITAL, objeto da sátira do Barão, vestia o cidadão. Não chegava a ser um refrão. Tinha a função de dotar os cavalheiros que circulavam pelo espaço público de um vestuário decente para as normas impostas pelo poder público aos habitantes da cidade. A exigência do traje “passeio completo” não se aplicava apenas aos intendentes, mas igualmente a todos os que fluíam pelas ruas e as novas avenidas que se abriram após as intervenções urbanísticas do inicio do século vinte. Assim, bons negócios esse comércio de roupas auferiu com a exigência a visar, na realidade, o cidadão daquele definido pelas autoridades policiais de vadio. Decorre daí que a vadiagem era configurada como contravenção, e como tal, foi pretexto para ações persecutórias junto aos setores populares, alvos preferenciais e sistemáticos dos agentes da ordem urbana. Diferentemente da malandragem, a presença de desocupados perambulando pela cidade não estava necessariamente associada ao desemprego, pois esta figura só acontece quando se constitui um mercado formal de trabalho. O Rio crescia e, portanto, as ocupações também acompanhavam esse ritmo progressivo de expansão dos serviços, em particular. Por isso, a vadiagem por vezes se misturava à malandragem como opção existencial. Mas o malandro possui códigos inerentes à função que desempenhava distintamente dos desocupados, normalmente entregues ao alcoolismo, droga permanente das classes populares, e as depressões provocadas por situações as mais diversas. A saúde pública, naquele Rio das primeiras décadas da República se ocupava especial e obstinadamente apenas com as doenças sexualmente transmissíveis. Para os arautos dessa política, a promiscuidade era um indicador característico de nosso baixo índice de civilização. Mas esse tipo de crítica às autoridades não era muito freqüente. O que a imprensa desdenhava era a situação de descaso diante do palavrório dos representantes da administração pública, fossem os parlamentares ou os homens que desempenhavam os cargos executivos. Havia, é claro, uma sensação de menosprezo para quem assim também procedia, uma vez alçado à condição de intendente ou prefeito de uma cidade, que ganhara uma fisionomia alegre, a semelhança de sua gente, mas carente dos serviços públicos essenciais. A matéria abaixo, do jornal Archivo 163

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

Vermelho (1921) sintetiza bem essa sensação. Saibamos administrar. Menos palavras e mais ação. Basta de opressões, basta de misérias e imitações! (...) O Congresso e o Conselho Municipal, em vez de decretarem impostos, que encarecem a vida e vexam os contribuintes, podia perfeitamente decretar a reforma dos quadros de funcionários, criar um código administrativo, determinar-lhes as obrigações de modo positivo, para serem um pouco lógicos... - Ou são todos imbecis, ou todos são ladrões (...).(ARCHIVO VERMELHO, 1921, s.p.)

É curioso como a “grande política” na Primeira República manifestava, através de seus mais dignos representantes, certo desdém em relação à opinião pública. Talvez em virtude de a força dessa opinião não ter alcançado um efetivo destaque na vida das instituições e, em particular, nos restritos e nada transparentes poderes da República. Do Conselho dos intendentes à Câmara dos Vereadores as práticas políticas só se modificaram em relação ao tamanho dos apetites, sempre vorazes, na busca de mais prestígio e influências nada republicanas. Coube, sem dúvida, à imprensa a tarefa de zelar por conta própria e de seus abnegados trabalhadores da informação, pois caso contrário à visão que os contemporâneos desses diversos períodos históricos de mais de quarenta anos de regime republicano seria hoje tão-somente oficial. Dessa maneira, os registros históricos sob a forma de manchetes, editoriais, artigos assinados ou de colaboradores eventuais, proporcionam uma visão mais próxima de realidades cuja construção fora fruto de uma historiografia nem sempre interessada em retratar as muitas faces de uma cidade e de seu povo. E mais do que os registros de fatos que vieram com o tempo a informar e definir as circunstâncias de certos processos políticos, a imprensa abrigou o povo em suas mais variadas dimensões, mesmo quando por vezes certas componentes estereotipadas tomavam conta de articulistas mais ciosos de valores tradicionais. Independente da vertente política e ideológica dos periódicos da época, a capacidade revelada pelos trabalhadores da notícia superava eventuais atitudes preconceituosas. Isto ficou evidente no relato do senhor Peixoto, como ficou da mesma forma a maneira como eram tratados os tipos populares tão ao gosto de cronistas como João do Rio. É dele o uso do termo flanar, galicismo que o próprio autor definia na mais precisa síntese: “Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem.” (ANTELO, 2008, p.31) A ingenuidade conjugada com a inteligência prática tornava o tipo que seduzia o cronista uma das primeiras alegorias humanas do carioca. Da rua, João do Rio formulou a sua mais concisa e bela definição. “A rua é a civilização da estrada.” (ANTELO, 2008, p.40) Sem dúvida, o traço urbano a ligar 164

IMPRENSA, ESPAÇO PÚBLICO E CULTURA POLÍTICA Lincoln de Abreu Penna

pontos de interesse dos usuários faz da estrada uma rua e desta uma pequena estrada a conduzir pessoas a seus destinos e a criar, ao sabor das circunstâncias aleatórias, destinos flagrados em seus momentos de aparição não prevista. Contudo, o traço das ruas não é um dos traços frios, retilíneos, de curvas esporádicas, mas transformam as idas e vindas em destinos orientados pelo gracejo de se percorrer itinerários nem sempre os mesmos. Os tipos sociais eram bastante variados. O que tinham de comum certamente era a prazerosa mistura da fraternidade humana em meio à adversidade da vida com o gosto da boa e saudável sacanagem. É o espírito de tirar sarro com o semelhante assemelhado em tudo, sem livrar a cara dos mais bem situados numa estratificação que começara rígida no passado escravocrata e viera a conhecer a mobilidade de uma desigualdade crescente. Todavia, homens como o senhor Peixoto sabiam conviver com a inteligência prática sem perder a ternura de uma solidariedade necessária para as suas consulentes. É provável que o servidor Peixoto fosse filho ou neto de escravos libertos antes ou durante a legislação abolicionista que antecedeu em pouco à instauração do regime republicano. Mais provável ainda é que tenha se vinculado à família de homens influentes na política e como decorrência dessa proximidade veio à nomeação para o exercício de funcionário subalterno do Conselho Municipal. Com mais probabilidade ainda manteve laços de camaradagem com sua gente, pretos, mestiços e imigrantes moradores dos cortiços e casas de cômodos espalhadas pela cidade a conviver com o clima de uma modernidade a todo o vapor. E que nesses ambientes tenha conhecido os tipos próximos ou já entregues à marginalidade, na qual a contravenção é um meio caminho. Não se apurou nos registros não muito confiáveis de então o prenome desse servidor, mas não é difícil imaginar tratar-se de alguém que preferiu adotar o nome de seu padrinho político. O uso do sobrenome dava até bem pouco tempo certo ar de nobreza, mesmo em plena República. Ao contrário do maior cronista da cidade, cuja adoção do nome de João do Rio tinha o propósito de tornar-se um dos tipos populares, dispensando o pomposo nome de batismo, o mesmo não era comum aos que ascendiam a postos de confiança dos poderosos de plantão. Por outro lado, ao anunciar-se e ao ser designado por quem quer que fosse como senhor Peixoto, dava a ele e a quem assim agia o tom de respeitabilidade nunca dispensável, sobretudo nessa relação entre dominadores e dominados. A dependência quase sempre obstinada do subalterno para qualquer serviço faz lembrar a dialética do senhor e do escravo de Hegel (1987), para quem há uma relação mútua de dependência. E nisso deve ter-se esmerado o nosso Peixoto. Com a convivência adquirida com os dois lados de uma escala social acentuadamente desigual, aprendera a tecer e costurar relações, não sendo, 165

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

portanto, surpreendente que realizasse com desenvoltura o papel de conselheiro dos “pirulitos”, algumas das quais envolvidas em casos amorosos com intendentes mais ousados para os padrões de sua época, ou quem sabe, típicos representantes da hipocrisia reinante. A República aboliu legal e praticamente a perseguição à prostituição (ARAÚJO, 1993), circunscrevendo sua prática ao terreno da contravenção podendo deslocarse livremente, não obstante manterem-se sob permanente assédio da polícia, que agia em mão dupla, pois as intimidavam para em seguida oferecerem “proteção”. Mas, ao contrário, essa promiscuidade entre as prostitutas e os policiais resultaria em constantes violências e violações de direitos humanos em decorrência da relação estabelecida e prosperada com o consentimento velado do poder público. O crescimento da violência e os primeiros sinais de desordem urbana, a agredir os padrões de civilidade e de posturas necessárias ao bom convívio cidadão, ensejaram o surgimento de uma imprensa voltada a cobrir a criminalidade em suas mais amplas e diversas manifestações. Assim, o periódico Archivo Vermelho, fundado pelo jornalista Silva Paranhos, deu início aos jornais e revistas que iriam se especializar no registro dos acontecimentos brutais de uma cidade acolhedora, porém excessivamente violenta. Essa publicação circulou entre os anos de 1918 e 1922, e teve como redator-chefe durante os seus primeiros números o advogado trabalhista Evaristo de Moraes, já respeitado tribuno, cuja presença na revista foi marcada por dois fatos. O primeiro, a publicação dos capítulos do livro que editaria logo depois, Reminiscências de um rábula, verdadeiro diário de cunho fático e emocional a amenizar as páginas e fotos escabrosas que a folha publicava. O outro fato foi a inclusão dos temas políticos e sindicais, especialmente os registros do movimento operário de orientação, à época, anarquista e anarco-sindicalista. Em seu primeiro editorial é dito que, ao contrário da fantasia dos escritores (...) nesta revista quinzenal, ele (o povo) assistirá a passagem de tipos reais, de criminosos que vivem ou viviam entre nós, na nossa sociedade. Assassinos, ladrões, cáftens, estelionatários, desvirginadores, os criminosos políticos, ratoeiros, falsários, sedutores, os que perturbam a felicidade dos lares alheios, os que fazem do amor o caminho para chegar à fortuna, os espancadores, os que maltratam menores, os aberrados de toda espécie – todos eles diante dos leitores, sejam plebeus ou nobres, ricos ou paupérrimos passarão entre as imagens deste caleidoscópio que jamais sacrificará os interesses da verdade. (ARCHIVO VERMELHO, 1918, p.1)

A enumeração dos tipos sociais é reveladora das ocupações com que contavam os excluídos ou os que se excluíam para melhor exercê-las. Como só acontece em todo o processo de acumulação capitalista, as taras sociais tendem a se multiplicar e costumam frutificar ao sabor das conveniências mais ou menos acentuadas das autoridades e 166

IMPRENSA, ESPAÇO PÚBLICO E CULTURA POLÍTICA Lincoln de Abreu Penna

seus “podres poderes”. O Rio de Janeiro expressava no limiar do século vinte a infernal combinação da modernidade com a socialização da miserabilidade provocada pela avalanche dos oportunistas, de cima ou de baixo da pirâmide social. A malandragem era da mesma forma comum aos mais variados segmentos sociais. A ladroagem comia solta em baixo, a fazer proliferar os pequenos furtos e as técnicas dos punguistas, e em cima, sob o manto protetor da impunidade. Roubavase de todo jeito e por razões que por vezes beirava a inusitada condição de julgarse tão ou mais capaz dos que praticavam esses golpes a torto e a direita. Da mesma forma que o malandro era respeitado pela ousadia de suas ações, num desafio à ordem estabelecida, também os políticos convencionais, egressos de família tradicional, buscava aparecer junto aos seus como o mais esperto, o que obtinha mais vantagens junto à máquina pública. Essa cultura política3 prosperou ao longo do tempo, criou inúmeros subterfúgios e se mantêm como um traço do caráter nacional. Em seu meio, no entanto, há de se registrar outras práticas, certamente mais discretas, mas, sobretudo plenas de humanidade e solidariedade ilustrada neste pequeno ensaio pela descrição dos gestos do servidor Peixoto. Sem a autoridade da qual se revestem os representantes do povo, instados constitucionalmente a protegê-los, e tampouco detentor de recursos em condições de arrancar vantagens ilícitas e imorais, o senhor Peixoto foi, de fato, um representante legítimo do povo sofredor, cheio de esperanças e pronto para festejar as pequenas e triviais conquistas amorosas e existenciais. É um exemplo marcante da pequena política que se trava no cotidiano dos espaços públicos de uma cidade e de sua gente. Por fim cabe uma observação a propósito da imprensa como fonte documental. Sendo fonte e objeto de pesquisa, o periódico é acima de tudo um registro de comportamentos de época. Nele é possível a presença e a convivência da pequena e da grande política. Em suas páginas há espaço para as duas. A maneira de retratá-las define o papel que cumprem como veículos da informação e não conseguem mascarar os conteúdos ideológicos através dos quais forma uma opinião e a emite aos seus leitores. O curioso é que o relato que ilustra esse ensaio foi extraído do Jornal do Brasil (1923, p.5), precisamente no dia em que se inaugurava, por sinal, a nova sede do Conselho Municipal.4 3

4

Entendo, finalmente, por cultura política um conjunto de práticas sedimentadas e características de uma comunidade, uma classe ou uma formação social, dependendo da dimensão de abordagem que se proponha a fazer quem assim a emprega. Mais tarde batizada pelo povo de Pedro Ernesto e, finalmente, formalizado pelo Projeto de Resolução do deputado Gama Lima, por ocasião do funcionamento da Assembléia Legislativa do então Estado da Guanabara.

167

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

Em meio à festa a envolver as figuras mais destacadas da grande política lá se encontravam o nosso personagem síntese da pequena política e os seus tipos populares a emoldurar e dar alguma graça aquele cerimonial cercado de suspeição por todos os lados. Neste dia especialmente o servidor Peixoto servira muitos cafezinhos a muitas personalidades, mas por certo estava com sua atenção voltada para as meninas impedidas pela ação da polícia de participarem de perto daquele cenário majestoso dos comensais do orçamento público incapazes de assistirem ás classes populares. Ostentação e despudor para com o povo, eis a tônica da grande política. Exposição das carências e apetite pela vida, ainda que amarga, eis o traço da cultura política. A dos desvalidos e explorados. Fontes ARCHIVO VERMELHO. Rio de Janeiro, 16 de jan.-31 de jan. 1918, p. 1. n.1. ARCHIVO VERMELHO. Rio de Janeiro, 13 de Jul. 1921. A MANHA. Rio de Janeiro, 05 Jun. 1930. JORNAL DO BRASIL. Rio de Janeiro, 22 Jul. de 1923. Referências ABREU, Maurício. Evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IplanRio / Zahar Editores, 1987. ALMOND & VERBA apud BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Brasília: 2 ed. Editora Universidade de Brasília /Gráfica Hamburg Ltda, 1986. ANTELO, Raul (Org.). João do Rio. A Alma Encantada das Ruas (crônicas). São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ARAÚJO, Rosa Maria de. A vocação do prazer. A cidade e a família no Rio de Janeiro republicano, Rio de Janeiro: Rocco, 1993. BERSTEIN, Serge. L‘ historie et la culture politique. Vintième Siècle – Révue d! Histoire, jul-sept. 1992. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989. CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi, São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 168

IMPRENSA, ESPAÇO PÚBLICO E CULTURA POLÍTICA Lincoln de Abreu Penna

CHALLOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim. O cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. São Paulo: Brasiliense, 1986. COARACY, Vivaldo. Memórias da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1965. COSTA, Luís Edmundo da. O Rio de Janeiro do meu tempo. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1938. KESSEL, Carlos. A vitrine e o espelho. O Rio de Janeiro de Carlos Sampaio. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2001. LIGUORI, Guido. Roteiros para Gramsci. Tradução de Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2007. MORAES, Evaristo de. A questão das prostitutas. Rio de Janeiro, s/ed., republicado em 1987. PENNA, Lincoln de Abreu. O progresso da ordem. O florianismo e a construção da república, Rio de Janeiro: Sete Letras, 1997. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983.

169

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

170

COMUNICAÇÃO PROJETO MULHERES E VIOLÊNCIA NO NORTE DE MINAS (1980 – 2007) Cláudia de Jesus Maia* Regina Célia Lima Caleiro**

A temática da violência contra as mulheres entrou na ordem do discurso sobretudo a partir do final da década de 1970, como resultado de ampla mobilização e denúncia do movimento feminista. Aos poucos, ela ganhou visibilidade por meio da publicização da situação de opressão das mulheres, a criminalização das violências sofridas, a denúncia dos assassinatos de mulheres “por amor” e “em defesa da honra”, e principalmente a transformação da “violência doméstica” praticada no âmbito privado em uma preocupação pública, política e do Estado. Em decorrência dessa visibilidade houve um aumento bastante significativo da sensibilidade social e ações políticas com relação à ampliação dos direitos femininos. Iniciativas governamentais em sintonia com a construção da cidadania e respondendo às pressões feministas, propiciaram a criação de Conselhos da Condição Feminina e das Delegacias de Defesa da Mulher – hoje Delegacia de Crimes contra a Mulher – a partir da década de 1980. Nos anos de 1990, conforme ressalta Elaine Reis Brandão, a violência contra as mulheres se consolidou como uma questão de Direitos Humanos (Brandão, 1998). Em 2003 foi criada a Secretaria Especial de Políticas Públicas para as mulheres, ligada à presidência da República, bem como inúmeros fóruns de debates de caráter nacional e internacional. A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, de 1994, realizada em Belém do Pará, é um exemplo dessa motivação social, onde diversos países da América Latina se reuniram para discutir as razões

* Doutoras em História, professoras do curso de graduação em História da Unimontes, respectivamente coordenadora e participante do Grupo de Pesquisa Gênero e Violência (CNPQ).

171

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

da violência e propor mecanismos para combatê-la. Para prevenir, punir e erradicar as várias formas de violência contra as mulheres; foram criadas também Casas de Abrigo, Centros de Apoio Psicológico e Social, especialmente nos grandes centros urbanos do país, dentre outras iniciativas. Entretanto, passadas mais de três décadas das mobilizações feministas, e apesar das conquistas institucionais e políticas, a violência física e psicológica, a coação e a tortura, a chantagem emocional, o terrorismo misógino – conforme denominação de Bosch e Ferrer (2002) –, ainda constitui uma perversa realidade para muitas mulheres. Os avanços sociais, culturais e legislativos não impediram que as práticas violentas continuassem a acontecer, nem mesmo no âmbito de algumas leis, como a 9.099/95 mais conhecida como a Lei dos Juizados Especiais Criminais. Nela a violência contra as mulheres, que abarcava cerca de 70% dos procedimentos presentes nesses Juizados, teve sua carga criminógina reduzida ao pagamento de multas e cestas básicas. Os números da violência física e sexual contra as mulheres no Brasil ainda são alarmantes. De acordo com Durães e Moura (2004, p.30-31) a cada quatro minutos uma mulher é agredida. Dentre essas agressões, 70% dos casos tendem a ser praticados dentro dos lares, sendo que, 65% por integrantes do próprio núcleo familiar, maridos ou companheiros em sua maioria. Apesar do fluxo de pesquisas desenvolvidas nas universidades do país, a região norte do estado de Minas Gerais, tradicionalmente conhecida como lócus de atraso e pobreza, as questões relacionadas à violência contra as mulheres carece de estudos mais aprofundados. Embora a região, principalmente Montes Claros, frequentemente seja apontada como local de altos índices de violência contra mulheres, não havia dados ou análises mais específicas disponíveis aos pesquisadores e aos organismos governamentais que pudessem contribuir, por exemplo, para elaboração de políticas públicas. Da mesma forma, não havia dados e análises sobre a atuação das Delegacias de Crime contra a Mulher da região e sobre o processo histórico de sua implantação e funcionamento. Em Montes Claros, maior cidade da região norte-mineira, a Delegacia foi criada em 1987, dois anos após a implantação das Delegacias de Mulheres no Brasil. Recentemente a delegacia foi desativada, a princípio devido à falta de uma “titular mulher” para o cargo de delegada – quando da aposentadoria da delegada – e finalmente porque a cidade se tornou sede de Departamento. Em decorrência dessa mudança será criada a Delegacia de Repressão aos crimes contra a família, que segundo informações abrangerá os crimes de violência doméstica. Não obstante, a criação da Defensoria Pública, com o Núcleo em Defesa da Mulher em Situação de Violência, em 2005, revela que o problema no município adquiriu dimensões preocupantes para os poderes legislativo e judiciário. A Defensoria de Montes Claros surgiu de convênio celebrado entre a Prefeitura Municipal, Governo de 172

PROJETO MULHERES E VIOLÊNCIA NO NORTE DE MINAS (1980 – 2007) Cláudia de Jesus Maia; Regina Célia Lima Caleiro

Estado através da Secretaria Especial de Política para as Mulheres e Governo Federal, a segunda criada no estado precedida apenas pela de Belo Horizonte. Em Janaúba, a delegacia, criada em 2000, ainda está em funcionamento, mas de forma precária, sem espaço próprio e contando com apenas uma escrivã e a delegada que também responde por outras delegacias. Na presente pesquisa, nosso objeto de investigação circunscreveu-se especificamente à violência contra as mulheres e o processo histórico de implantação e funcionamento de órgãos públicos de “combate” a esta violência, como as Delegacias regionais de crime contra a mulher, a Defensoria Pública estadual e o Juizado Especial Criminal, no Norte de Minas Gerais. O lócus da pesquisa abrange as cidades de Montes Claros e Janaúba no período de 1980 a 2007. O corpus documental analisado foram processos criminais, Boletins de Ocorrência das Delegacias, termos Circunstanciados do Juizado Especial Criminal de Montes Claros nos quais as mulheres figuram como vítimas e notícias de jornais locais. Essa última fonte, com a finalidade de compreender a construção de representações sobre a violência de gênero que circularam na região e produziram sentidos diversos que, muitas vezes, foram utilizados na defesa dos agressores e para justificar atos violentos. Quanto ao objetivo geral a pesquisa foi direcionada para a análise da violência de gênero no norte de Minas Gerais a partir dos imperativos sócio-econômicos e culturais, enfatizando a violência contra as mulheres e a atuação das Delegacias de Crime Contra a Mulher e da Defensoria Pública no período de 1980 a 2007. Para os objetivos específicos buscamos: Identificar e analisar os tipos de violência perpetrada contra as mulheres no norte de Minas; Analisar os motivos e/ou causas descritas na documentação; Caracterizar o perfil sócio-econômico do agressor e da vítima; Comparar os índices e indicadores da violência contra as mulheres na região antes e após a criação da Delegacia Especializada de Crime contra a Mulher, assim como após a implementação dos Juizados Especiais Criminais em 1997 e o início da efetivação da Lei Maria da Penha. Analisar a violência contra mulheres como parte das construções sociais de gênero; Analisar a construção de representações sociais sobre a violência de gênero por parte das mulheres vítimas, 173

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

Analisar os discursos da violência contra mulheres na imprensa local e a produção de representações sobre as mulheres vítimas; Historicizar o processo de implantação/desativação das DRCM de Montes Claros e Janaúba; Analisar o papel e a atuação das DRCM e da Defensoria Pública na região. O recorte cronológico nos permitiu visualizar e analisar a violência contra as mulheres em três momentos distintos: o período de implantação das Delegacias; a criação dos Juizados Especiais Criminais, que através da Lei 9.099/95, abarcou em sua grande maioria os crimes de lesões corporais cometidos contra mulheres e por fim o início da implementação da Lei 11.349/06, mais conhecida por Lei Maria da Penha. Foram analisados também os discursos da imprensa norte-mineira, predominantemente masculina, sobre a violência contra as mulheres e a criação destes órgãos de “combate” a violência bem como da legislação. Também foram utilizadas como fontes, relatos de História de Vida de mulheres vítimas de violência nas relações de gênero com ênfase nas etapas de suas vidas onde se destacam as circunstâncias da violência sofrida. Os depoimentos foram colhidos preferencialmente a partir dos atendimentos no Hospital Universitário Clemente Farias em Montes Claros, que é referência para atendimento a mulheres vítimas de violência. Consideramos que o resultado extremamente positivo da pesquisa consiste na produção de um livro, que será lançado no próximo ano. Também produzimos um banco de dados, em forma de CDs, e disponibilizados à comunidade de pesquisadores e órgãos governamentais por ocasião de um seminário com pesquisadores, autoridades e a comunidade local para discutir a violência de gênero na região e apresentar os resultados da pesquisa. Por fim, importa ressaltar que a presente pesquisa contou com apoio da FAPEMIG e é mais um fruto do trabalho que vimos desenvolvendo no âmbito do Grupo de Pesquisa Gênero e Violência da Universidade Estadual de Montes Claros. Esse grupo atua desde o ano de 2006 e reúne pesquisadores e alunos com o objetivo de pesquisar, divulgar e disponibilizar o resultado de suas pesquisas a todos que se interessam pelas questões sociais de sujeitos que devem ser reconhecidos em suas particularidades e na plenitude da sua cidadania.

174

PROJETO MULHERES E VIOLÊNCIA NO NORTE DE MINAS (1980 – 2007) Cláudia de Jesus Maia; Regina Célia Lima Caleiro

Referências BOSCH, E.; FERRER, V. A. La voz de las invisibles. Las víctimas de un mal amor que mata. València: Cátedra, 2002. BRANDÃO, E. R. Violencia conjugal e o recurso feminino a polícia. In: BRUSCHINI, C.; HOLANDA, H. B. Horizonte plurais: novos estudos de gênero no Brasil. São Paulo: Ed. 34, 1998. DURÃES, S. J.; MOURA, J.M. Alguns tipos de violência contra as mulheres em Montes Claros/MG: análise de indicadores da Delegacia de Repressão aos Crimes contra a Mulher (1998-2002). Unimontes Científica. Montes Claros, Unimontes, v.6, n.2, p. 29-38, jul./dez. 2004.

175

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

176

NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE ORIGINAIS

Informações gerais A Revista “Caminhos da História” propõe-se a publicar trabalhos na área de História, inéditos, em português, de autores (discentes, docentes e funcionários) da UNIMONTES ou outras Instituições na forma de: artigos; resenhas; traduções de artigos recentes (prazo de 2 anos da primeira publicação), de interesse relevante e acompanhadas de autorização do autor(es) e da revista em que o mesmo foi originalmente publicado; comunicações; entrevistas de reconhecido valor acadêmico. Somente serão aceitas, quando houver, uma resenha, uma tradução, uma comunicação e uma entrevista em cada edição. Apresentação dos originais Os trabalhos deverão ser entregues em duas vias, constando apenas em uma delas a identificação do(s) autor(es), e em um CD; apresentados em letra 12, fonte Times New Roman, espaço um e meio, folha A4, margens 2,5 cm, versão Word for Windows 7.0 ou inferior, de dez a vinte laudas para os artigos e traduções, até oito para as entrevistas, até cinco para as resenhas e três para as comunicações. A Revista aceita contribuições em fluxo contínuo. Estrutura do trabalho Os artigos e traduções deverão obedecer à seguinte seqüência: Título; 177

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

Nome do autor (somente em uma das cópias impressas) - deve vir à direita da página, acompanhado das referências acadêmicas do autor informadas em nota de rodapé. A remissão dessa nota deve ser feita pela utilização do símbolo asterisco (*); já que as remissões numéricas são reservadas as notas explicativas; Resumo; Abstract; Unitermos; Keywords; Texto - usar para as citações, bem como para as referências a autores o sistema autor-data de acordo com as atuais normas da ABNT; Citação textual (caso haja) - até três linhas devem ser colocadas no corpo do texto entre aspas; com mais de três linhas devem vir destacadas do texto, em espaço simples; Notas de rodapé (caso haja) - devem ser colocadas ao pé da página. As remissões para o rodapé devem ser feitas por números, na entrelinha superior; Fontes (caso haja) - devem vir antes das Referências Bibliográficas, listadas por arquivos ou locais em que se encontram; Tabelas e figuras (caso haja) - devem ser numeradas consecutivamente, encabeçadas por título e conter legenda informando a fonte de consulta; Referências Bibliográficas - somente as que constarem do corpo do texto, de acordo com as normas ABNT/última versão. As resenhas e comunicações dispensam o resumo e os unitermos. As entrevistas não obedecem as normas da estrutura do artigo, pois devem seguir a forma pergunta-resposta. Obs.: Trabalhos entregues fora das normas ou sem revisão de português não serão analisados. Da publicação Os textos entregues à publicação serão apreciados por pareceristas anônimos: membros do Conselho Consultivo e professores do corpo docente da UNIMONTES ou de outra Instituição Universitária (especialista no tema proposto pelo artigo, desde que não seja o autor do mesmo), convidado para este fim. Os textos voltarão aos autores caso seja necessário alguma alteração. Para tais casos, o trabalho final deverá ser novamente entregue em duas vias e em um disquete, de acordo com as normas informadas anteriormente. A Comissão Editorial, baseada nos pareceres recebidos, selecionará os trabalhos que serão publicados; os que não forem selecionados podem ser retirados pelo autor no Departamento de História da UNIMONTES, ou requisitados por correspondência, no prazo de 02 (dois) meses após o recebimento do parecer. Após tal prazo os mesmos serão destruídos. Critérios de Seleção Escolha do tema, no caso de edições temáticas (dossiês) Relevância do tema Coerência do artigo Contribuição historiográfica 178

NORMAS PARA ENVIO DE ORIGINAIS E SUBMISSÃO DE ARTIGOS E CONTRIBUIÇÕES

Direitos Os autores dos trabalhos aprovados terão direito à um exemplar da edição em que constar sua publicação. Caso haja mais de um autor para o mesmo trabalho, cada um terá direito a um exemplar. O (s) autor (es), ao submeterem o trabalho à análise, automaticamente cedem os direitos de publicação à Revista, em sua versão impressa e/ou eletrônica. Nos artigos com mais de três autores, apenas o primeiro nome constará nos créditos como autor; os demais serão nominados como colaboradores em nota de rodapé. Os trabalhos publicados não serão remunerados em nenhuma hipótese. Os trabalhos devem ser enviados para o Departamento de História da UNIMONTES. Endereço: Revista Caminhos da História Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES Campus Universitário “Prof. Darcy Ribeiro” Centro de Ciências Humanas - CCH - Prédio 2 - Depto de História Av. Dr. Rui Braga, s/n - Vila Mauricéia 39401-089 - Montes Claros - MG Todos os casos não previstos serão analisados pela Comissão Editorial que, dentre outras atribuições, ficará encarregada de informar aos autores da possibilidade da publicação, contra os quais não caberá recurso. Contatos e informações pelo e-mail: com cópia: Site da revista: Editores: Marcos Fábio Martins de Oliveira e Regina Célia Lima Caleiro (Unimontes); Carlos Antonio Aguirre Rojas (Unam-México); Márcia Pereira da Silva (Unesp-Franca)

179

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

EDIÇÕES ANTERIORES Para adquiri-las entre em contato com a UNIMIX (Livraria Unimontes) ou pelo e-mail: [email protected]

CAMINHOS DA HISTÓRIA

Montes Claros

v.14, n.2

p.1-210

2009

APRESENTAÇÃO.................................................................................................................................................................................................... DOSSIÊ MICHEL FOUCAULT: MÚLTIPLAS POSSIBILIDADES ENTRE LUZES E SOMBRAS: MICHEL FOUCAULT, UM PENSADOR PÓS-MODERNO?- Durval Muniz de Albuquerque Júnior.............. FOUCAULT E A IDÉIA DE HISTÓRIA NA ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA - Hélio Rebello Cardoso Jr. ......................................................................... FOUCAULT, CRIAÇÕES LIBERTÁRIAS E PRÁTICAS PARRESIASTAS - Margareth Rago; Priscila Piazentini Vieira.................................. A MEDICALIZAÇÃO DA SOCIEDADE E A CRITICA DE FOUCAULT - Rita de Cássia Marques............................................................................ QUE HISTÓRIA É ESTA? - Tania Navarro Swain.................................................................................................................................................... UMA ANALÍTICA FOUCAULTIANA DO CONCEITO DE ANORMALIDADE A PARTIR DOS CONTOS DE EDGAR ALLAN POE EM HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS - Alex Fabiano Correia Jardim...................................................................................................................... ARTIGOS JARDINS BOTÂNICOS E AMBIENTALISMO NO BRASIL - Sandra Farto Botelho Trufen e Lincoln Etchébèhere Júnior........................... SIMBOLISMO POLÍTICO: UMA LEITURA DO PODER NA EUROPA MODERNA - Renato da Silva Dias............................................... EDUCAÇÃO PARA A PAZ NO CONTEXTO GEOPOLÍTICO MUNDIAL - Clemente Herrero Fabregat......................................................... A SEGUNDA GRANDE GUERRA SOB O OLHAR DO MAJOR MARTIN DREWES - César Henrique de Queiroz. Porto; Igor Gustavo Dias; Júlio César Guedes Antunes.............................................................................................................................................................................. RESENHA HISTORIOGRAFIA E “INTELECTUAIS BRASILEIROS” - Diogo da Silva Roiz........................................................................................................

CAMINHOS DA HISTÓRIA

Montes Claros

v.14, n.1

p.1-193

5 11 29 43 59 77 95 117 139 159 189 203

2009

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................................................................... 5 DOSSIÊ TEMÁTICO O IMAGINÁRIO DA REALEZA: MATRIZES HISTÓRICAS E FUNDAMENTOS SIMBÓLICOS DO PODER MONÁRQUICO (IDADE MÉDIA E ÉPOCA MODERNA) Organização: Marcos Antônio Lopes.............................................................................................................................................................................. 7 CARLOS MAGNO, O RITO DA SAGRAÇÃO E O MITO - Viviane Cunha............................................................................................................... 15 A MÍSTICA MONÁRQUICA E A SUSTENTAÇÃO DA REALEZA: O PODER RÉGIO E PAPAL EM JOHANNES QUIDORT Alexandre Pierezan............................................................................................................................................................................................................. 21 A REALEZA CRISTÃ IBÉRICA: TRÊS IMAGENS DO PODER RÉGIO NO SÉCULO XIII - José D’Assunção Barros....................................... 35 À SOMBRA DO REI: VALIMENTO E FAVORITISMO RÉGIO NO PENSAMENTO POLÍTICO IBÉRICO Ricardo de Oliveira......................................................................................................................................................................................................... 51 O CÍRCULO MÍSTICO DA REALEZA SAGRADA: ALGUNS ASPECTOS HISTORIOGRÁFICOS Marcos Antônio Lopes.................................................................................................................................................................................................... 69 SOBRE A ERA DOS REIS: DUAS INTERPRETAÇÕES DO ABSOLUTISMO- Renato Moscateli.......................................................................... 83 ARTIGOS A INQUISIÇÃO CRUZA O OCEANO Ana Raquel Portugal.......................................................................................................................................................................................................103 OS RETRATOS DO SÃO FRANCISCO E A POPULAÇÃO RIBEIRINHA VISTA POR TEODORO SAMPAIO Márcia Pereira da Silva, Crhistophe Barros dos Santos Damázio................................................................................................................................115 O CONCEITO DE HISTÓRIA PARA HEGEL Marcus Baccega...........................................................................................................................................................................................................133 RELAÇÕES INTERGOVERNAMENTAIS E O MODELO DE ALOCAÇÃO DE RECURSOS NO ENSINO FUNDAMENTAL PÚBLICO Bruno Lazzarotti Diniz Costa..........................................................................................................................................................................................147 COMUNICAÇÃO SERTÃO VIOLENTO: CRIMES NO TERMO DA VILA DE MONTES CLAROS DE FORMIGA (1832-1840) Carla Maria Junho Anastasia...........................................................................................................................................................................................171 RESENHA STEVENS, Cristina M. T. ; SWAIN, tania navarro A Construção dos Corpos. Perspectivas feministas. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2008 Maria Elizabeth Ribeiro Carneiro.....................................................................................................................................................................................185

CAMINHOS DA HISTÓRIA

Montes Claros

v.13, n.2

p.1-174

2008

ORDENAMENTOS JURÍDICOS: AS CORTES E AS IMPOSIÇÕES À NOBREZA LAICA E ECLESIÁSTICA NO REINADO DE D. JOÃO II (1481-1495) – Celso Silva Fonseca..................................................................................................................................................................... ADMINISTRAÇÃO CAMARÁRIA E COMÉRCIO NA VILA RICA DO SÉCULO XVIII: OS ALMOTACÉS E AS CORREIÇÕES, 17541777 – Tarcísio Rodrigues Botelho e Patrícia Ferraz Abdo......................................................................................................................................... ESTADO, IGREJA E MOVIMENTO OPERÁRIO NO FINAL DO SÉCULO XIX E PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX Lincoln Etchebèhére Júnior e Leonel Mazzali......................................................................................................................................................... O NACIONAL-DESENVOLVIMENTISMO, BRASÍLIA E OS CANDANGOS – Laurindo Mékie Pereira e Jones Martins Ferreira........... TEMPO, HISTÓRIA, MEMÓRIA: CONSIDERAÇÕES SOBRE UMA QUESTÃO METODOLÓGICA – José Evaldo de Mello Doin, Arrovani Luiz Fonseca e Humberto Perinelli Neto................................................................................................................................................... MICHEL FOUCAULT E A CRÍTICA AO SUJEITO CONSTITUINTE: DIÁLOGOS COM A TEORIA FEMINISTA Cláudia J. Maia e Alex Fabiano Correia Jardim..................................................................................................................................................... OS LUGARES E SEUS SIGNIFICADOS NA METRÓPOLE – Célia Maíra da S.Estrella................................................................................. VENENOS DA SEDIÇÃO: INTOLERÂNCIA, CÓLERA, FANATISMO – Marcos Antônio Lopes................................................................... O FIM DO HOMEM CORDIAL NO ARRAIAL DO ÃO – Telma Borges da Silva e Rogério Macedo Ramos................................................... ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL E POLÍTICAS DE SAÚDE NO BRASIL – Murilo Fahel................................................................................... CULTURA, MODERNIDADE E URBANIZAÇÃO: A TRAJETÓRIA DE RIBEIRÃO PRETO NA “BELLE ÉPOQUE” (1897-1920) Rodrigo Ribeiro Paziani, Fábio Augusto Pacano, Marco Aurélio de Sousa Lombardi................................................................................................

180

7 23 41 59 71 81 91 103 117 127 145

Para receber periodicamente informações sobre as nossas publicações e onde adquiri-las, basta preencher este cupom e enviá-lo à EDITORA UNIMONTES: Campus Universitário Prof. Darcy Ribeiro, s/n - Prédio da Biblioteca Central - Montes Claros-MG - Cep: 39401-089 - C. Postal: 126 Telefone:(38)3229-8210 Fax:(38)3229-8211

Nome: ............................................................................................................. Endereço: ........................................................................................................ Cidade: ....................................................Estado: .......................................... Fone: ....................................... Fax: ....................................... CEP.:..... .............. e-mail:............................................................................................................. Livro que o(a) atende: ....................................................................................

181

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA v. 15, n. 1

182

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.