O fim do mundo não é o fim do futuro (As Hiper Mulheres)

June 13, 2017 | Autor: Mariana Ruggieri | Categoria: Queer Theory, Donna Haraway, Amerindian Perspectivism, Beatriz Preciado
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O fim do mundo não é o fim do futuro (Texto apresentado no Congresso Corpos que (se) Importam, IBILCE – UNESP, 2015)

Mariana Ruggieri

String Figures – ou os jogos de barbante, como cama de gato – são, para Donna Haraway, uma forma de fabulação especulativa (Speculative Fabulation), signos potentes, a uma vez materiais e semióticos, em suma, um modelo de criação de um mundo, uma performance cosmológica onde importam quais nós enodam nós (which knots knot knots), dado que nós somos apenas variações de nós. No filme As Hiper Mulheres1, que é ao mesmo tempo um documentário e uma ficção onde as personagens fazem o papel de si próprias, as mulheres de uma aldeia Kuikuro no Xingu se empenham em resgatar os cantos do ritual Jamurikumalu, cujo aprendizado se dá pela leitura da métrica inscrita por meio de nós nas cordas de palha de buriti (embora seja importante dizer que essas fitas coexistam com as inscrições nas fitas de áudio cassete remanescentes do último ritual, no início da década de 80). É por meio da realização do ritual exclusivamente feminino que as mulheres viram espíritos e é devido às filmagens que “a gente não vai morrer mais, a gente vai sobreviver, o tempo todo”. Depois de um hiato de trinta anos, o esposo de Taihu pede ao seu sobrinho2 que se encarregue de preparar o ritual de Jamurikumalu para que ela possa cantar pela última vez antes de morrer – ela se explica: “é que tenho muita vontade de cantar.” O verbo “cantar” anima quase a totalidade das conversas antes de passarmos aos cantos propriamente ditos na segunda parte do filme. Uma jovem índia avisa: “hoje à tarde preciso cantar; me chamaram para cantar.” Kanu, que junto com a sua mãe, Ajahi, é a única que sabe os cantos, encontra-se doente – colocando o acontecimento do ritual em risco – e perplexa: “eu estava bem, afirma”, ao que outra responde “é verdade, você estava até cantando”. Em outro momento, Ajahi, certa de que sua filha está sob algum feitiço, se lamenta: “a gente poderia estar cantando juntas”, porque cantar, nos termos ali colocados, não se trata de cantar sozinha, fica muito claro ao decorrer do 1

Filme de 2011, dirigido por Tacumã Kuikuro, Carlos Fausto e Leonardo Sette, com uma equipe de câmera e som exclusivamente kuikuro. 2 É interessante que o mito que se ritualiza tem como centralidade a figura feminina, mas quem dirige, patrocina, é “dono” – segundo as suas palavras, traduzidas – da festa, é o homem, que tem como função acumular grande quantidade de alimento e trazer e receber convidados de outras partes do Xingu.

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filme – sozinhas elas cantam o tempo inteiro – mas da qualidade intensiva do canto agenciado coletivamente em um rito. O ato de cantar só é plenamente realizado se for na companhia de outras mulheres. Parece-me que existem duas narrativas entrelaçadas no filme, ora correndo paralelamente, ora se encontrando; de um lado a história de recuperação e registro desse acervo cultural espalhado entre os escombros do fim do mundo vivenciado pelos indígenas que resiste e não cessa de ressurgir (uma menina diz do seu pai, mestre de cantos: “os cantos ficam voltando para dentro do meu pai”; Ajahi para uma menina: “quando a gente acorda à noite lembrando do canto, aí é que a gente aprende”); de outro lado a narrativa do mito Jamurikumalu que é encenado no ritual, onde as mulheres superam os homens, não de modo a instaurar a homogeneidade do feminino, mas de modo a incorporar, literalmente, elementos masculinos interditados às mulheres fora do espaço ritualístico e rasurar a divisão masculino/feminino. Sobre o primeiro ponto, porque bastante evidente, me limito a dizer que a última cena do filme sintetiza o reavivamento de certas práticas culturais, Kanu deitada na rede entoando uma melodia junto com uma menina ainda impregnada do ritual recémrealizado, que se concentra, atenta aos movimentos do lábio da mulher mais velha; uma cena que contrasta bastante com o início do filme – diante da prostração de Kanu, era um pai que passava à filha alguns cantos do Jamurikumalu que ainda guardava em sua memória. Em um vídeo dos bastidores das gravações, Kanu, aponta para a barriga da mãe: “É aqui que ficam os cantos, olhem só. Se perguntamos sobre os cantos, a barriga dela vai esvaziando e passando pra nossa”. As mulheres retomam, portanto, o conhecimento sobre os seus próprios cantos, atualizam suas histórias e seus mundos (“O canto do Jumurikumalu não fala de uma pessoa específica. Não fala de fatos que aconteceram nem de namoros. Mas tem um significado na língua dos povos do passado”), e a voz aguda da jovem kuikuro cantando com, aprendendo o(s) nós, anuncia que pode haver futuro e que esse futuro não pode existir sem a participação ativa das mulheres, que seus jogos de barbante devem servir como dispositivos para o mundo por vir. Mas há também outro futuro em jogo, o futuro que se permite entrever na origem do mito Jamurikumalu, o qual conta a transformação das mulheres em Itaõ Kuẽgü, as hiper mulheres, seres extraordinários. O ritual rememora e atualiza no 2

parêntese cerimonial uma possibilidade imaginada, que é também uma alternativa ao presente. Concluida a cerimônia do iponhy (iniciação masculina marcada pela furação da orelha) do filho do chefe Magija, os homens decidiram partir para a pescaria para procurar alimento para seus filhos. Iriam passar cinco dias na beira do igarape no meio do mato. Passaram-se muitos dias, as mulheres esperando-os em vão na aldeia. Eles lá no mato estavam se transformando em hiper-queixadas, nasceram neles pelos e dentes, ficaram enormes. Agijakuma, a esposa de Magija, mandou seu filho Kamatahirari, recém-iniciado, até o igarapé para ver o que estava acontecendo. Kamatahirari viu os pais se transformando em hiper-queixadas. Os homens-queixadas o chamaram e quiseram alimentá-lo com parte do peixe pescado que Kamatahirari guardou dentro de uma flauta e levou para a aldeia. Chegou à noite e contou para a mãe tudo o que tinha descoberto. Agijakuma cozinhou o peixe e o levou para o meio da aldeia convocando todas as suas irmãs. Nossos esposos estão se transformando em hiper-queixadas, são monstros, enquanto nós os estamos esperando. Partilharam e comeram o peixe no meio da aldeia no lugar dos homens e depois gritaram: Vamos dançar, vamos festejar, não queremos mais nossos esposos e eles não nos querem mais. Enquanto cantavam durante toda a noite, elas iam se transformando em HiperMulheres. Amanheceu e elas já eram Hiper-Mulheres, comiam folhas, insetos, picaram seus clitóris com formigas venenosas, os lábios de suas vaginas incharam e, protusos, eram visíveis entre as pernas. Cantavam os cantos jamurikumalu. Os homens escutavam lá do meio da mata, perplexos. As Hiper-Mulheres cantavam no teto do kwakutu, a casa dos homens, tocavam kagutu, as flautas proibidas. Os homensqueixadas resolveram voltar à aldeia. Aproximaram-se pelo caminho principal, onde se chocaram com o cortejo das mulheres agressivas, enfeitas com os adornos masculinos (brincos, joelheiras, braçadeiras, cintos). Com dentes de peixe-cachorro golpearam a sangue os homens, com os clitóris amarrados com fios vermelhos dançaram ainda percorrendo o círculo das casas. Por fim, após ter transformado o único homem da aldeia, o jovem Kamatahirari, em tatu, seguiram-no por debaixo da terra. Na superfície os homens ainda conseguiam ouvir seus cantos. As Hiper-Mulheres percorreram caminhos subterrâneos, subiam de vem em quando até a superfície aparecendo nas aldeias, encantando outras mulheres. Apesar do desespero dos homens que tentavam segurá-las, muitas delas se juntaram às Jamurikumalu - Minhas irmãs, deixemo-los 3

sentindo nossa falta!, diziam as que lideravam. Na beira de um igarapé jogaram fora seu uluris, que se transformaram em peixes, jogaram na água os filhos homens, que se transformaram em peixes. Levaram somente as meninas destinadas a permanecerem todas juntas. Esfregaram seus corpos com casca de pequi e ficaram cobertas de espinhos. Foram-se cada vez mais longe, atravessando rios, o campo, dançando onde não tem mais gente, além do mundo dos caraíbas. Ficara num lugar cercado por águas, os homens tentaram em vão persegui-las. Deixemos nossos esposos cansados de tanto nos esperar! Vamos comer tudo o que é proibido, comer anta, veado, todos os bichos! Lá ficaram de vez tocando as flautas kagutu3. Quando as mulheres executam os cantos do Jamugikumalu, elas estão configurando uma espécie de campo de ressonâncias com este itseke (espíritos). Kanu, depois de liderar o ritual diz: “eu já virei espírito”. Os homens que assistem ao ritual também concordam: “Itseke! É realmente pintura de Hiper Mulher. Olhe lá, é itseke mesmo”. Não se trata de uma representação, mas de um mergulho em um ponto de vista, o ponto de vista das Hiper Mulheres. E talvez bastasse dizer que esse ponto de vista é o ponto de vista de uma utopia feminina em que se deflagra a inversão da ordem social onde as mulheres se apropriam de tudo aquilo que caracteriza os homens – seus adornos, suas ferramentas, seus espaços, suas lutas – excluindo-os de sua convivência, utilizando-os somente para fins reprodutivos, matando-os em seguida. Isso seria, no entanto, simplificar uma narrativa de fim de mundo – e seria necessário refletir se de uma mera inversão poderia surgir um outro mundo ou, ainda, se apenas operando uma troca entre os signos de poder estaria dada a garantia de sobreviver ao fim do mundo. Mais do que exaltar as diferenças sexuais – que são exaltados a todo momento no cotidiano Kuikuro, inclusive nos cantos Tolo, e também, por exemplo, no fato do pajé afirmar que Kanu não pode ser curada por estar menstruada: “Se curo mulher menstruada, não fico bem depois. Dá muito cansaço no corpo” –, as Hiper Mulheres parecem borrar as fronteiras cotidianas entre os sexos – (poderíamos aqui falar em gênero? e separar sexo e gênero para resolver os nossos problemas teóricos não seria uma reinscrição da separação natureza/cultura?) – e desfazer a premissa ontológica 3

Segundo Bruna Franchetto, em transcrição do mito na realização anterior do ritual em 1982 no texto. "Mulheres entre os Kuikuro".

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que faz diferirem os homens das mulheres. É interessante notar que no mito não existem hiper homens, isto é, os homens não existem enquanto seres extraordinários que habitam o espaço do devir, ou seja, não é possível, enquanto homem, diferir de si; ao contrário, estes se transformam em hiper queixadas. As mulheres, no entanto, são pura diferença e, por isso, podem se deixar adentar, enquanto mulheres, na esfera cosmológica do hiper, o que não quer dizer, porém, que se tornem mais femininas, mas, ao contrário, evidenciam, desde o ponto de vista de Hiper Mulheres, que a masculinidade não é mais do que uma construção prostética, que basta uma picada de formiga para que o clitóris se transforme em pênis. É preciso sempre ter cuidado para não reforçar categorias ontológicas – a mulher como pura diferença é também resultado dos discursos biopolíticos. Se a mulher não é (Lacan), ela vive fora do circuito tautológico, isto é, não há um “é” imperativo a priori que condiciona a sua existência, a mulher não existe; mulher é um devir possível; é possível devir mulher, mas tão somente desde a perspectiva de um grau zero masculino em relação ao qual a mulher se constitui como diferença. Dentro desse estratagema lógico, girar em falso torna-se inevitável, principalmente se não houver o mesmo tipo de esforço crítico sobre os pressupostos da fundação do sujeitohomem. Não é incomum que a mulher seja situada, inclusive e principalmente dentro de algumas correntes feministas, em relação análoga à natureza, o seu corpo entregue à intervenção masculina que tem domínio sobre a tecnologia. Mas isso acaba nos levando a retroceder sobre o próprio argumento, pois resulta dele que o feminino seria o resultado artificial de toda uma série de procedimentos tecnológicos de construção, enquanto o masculino, que não necessitaria submeter-se ao seu próprio poder tecnológico, aparece agora como paradoxalmente natural. A masculinidade resultaria assim em um estado permanente da natureza, enquanto a feminidade estaria submetida a um processo incessante de construção e modificação. O problema dessa linha de raciocínio é que consolida o senso comum de que a tecnologia vem a modificar uma natureza dada, no lugar de pensar a tecnologia como a produção de uma natureza. Talvez o maior esforço das tecnologias de gênero não seja a transformação das mulheres, senão que a fixação orgânica de certas diferenças. Durante o período em que têm sua existência determinada pela ação e o tempo do rito, as mulheres kuikuro não estão imitando as hiper mulheres, que por sua vez 5

não estão imitando homens – transformando-se em homens – e sim rascunhando uma zona de indiscernibilidade. Mais do que buscarem a concretude de uma forma, as mulheres que cantam tornam-se o índice visível e audível dessas possibilidades imaginadas, que são as Hiper Mulheres e o seu universo invisível e silencioso, mas de alguma forma contíguo, onde a diferença sexual perde a sua linha divisória clara4. Esse novo outro mundo fundado pelas Hiper Mulheres, atualizado e realizado a cada ritual no mundo de cá, escreve o corpo – o sexo – como um conjunto de práticas e técnicas sobre as quais é possível intervir, pois o que se apresenta como dado já é desde sempre uma intervenção. O que já aconteceu antes poder vir a acontecer de novo.

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Um pouco antes do ritual, há um eclipse lunar, momento capturado no curta “O dia em que a lua menstruou.” Quando há eclipse, diz-se que a lua menstrua e a escuridão que a toma é resultado de seu sangue. Os Kuikuro se valem de uma série de dispositivos para não serem contaminados. Ao final, o diretor pergunta a três kuikuros mais velhos o motivo por qual a lua menstrua. As respostas são inconclusivas, mas apontam para a instabilidade da diferença sexual: uma mulher explica que quem menstrua é a filha da lua, um homem explica que é a lua, homem, quem menstrua e uma outra mulher explica que a lua menstrua quando está mulher.

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