O fim, positivado, da separação de poderes? O artigo 9, da Lei n. 13.300/2016

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O fim, positivado, da separação de poderes?

Eugenio Bulygin, em conhecido artigo intitulado "Los jueces ¿crean derecho?", discute a possibilidade de os juízes atuarem enquanto agentes produtores de normas. Já por oportunidade da apresentação inaugural do tema, observa que esta questão vem se revelando controvertida ao menos nos últimos duzentos anos, podendo ser identificados, segundo ele, três posicionamentos de traços mais fortes: a) o tradicional, de acordo com o qual o juiz se limita a aplicar a norma criada pelo legislador aos casos concretos; b) aquele segundo o qual o direito é o conjunto de todas as normas, gerais e individuais, sendo certo que os juízes criam estas últimas; e, por fim, c) a sua própria linha de pensamento, no sentido de que os juízes não criam as normas na maioria dos casos, mas o fazem apenas em situações excepcionais.
Realmente, o debate aludido por Eugenio Bulygin não é inédito, mas, por outro lado, encontra-se sempre revigorado, quer por decisões que ultrapassam a leitura tradicional da norma jurídica pelo Poder Judiciário, quer, como agora se pretende observar, pelo advento de Lei que por si só coloca em xeque esta distinção, tal como o faz a recém-publicada Lei nº. 13.300/2016 que, pretendendo regular o mandado de injunção e o mandado de segurança coletivo, autorizou o Poder Judiciário, no caso daquele instrumento, a emitir provimentos normativos de caráter geral e abstrato vigorantes até o advento de legislação em sentido formal (se é que isso ainda existe) dispondo sobre o tema tratado pelo writ. Vejamos com mais vagar a questão.
A Lei nº. 13.300/2016, em cuja ementa declara que "Disciplina o processo e o julgamento dos mandados de injunção individual e coletivo e dá outras providências", regulando o inciso LXXI do art. 5o da Constituição Federal, estabelece rito, legitimados, hipóteses de cabimento e efeitos tanto do mandado de injunção como do mandado de segurança coletivo. A legislação é bem-vinda, inclusive e principalmente porque explicita o funcionamento de duas garantias constitucionais muito importantes para o regular desenvolvimento da democracia. Aliás, considerando que a Constituição da República do Brasil é datada de outubro de 1988, a mencionada legislação já adveio com certo atraso, convenhamos. De todo modo, as ações que disciplina já vinham sendo utilizadas regularmente, sem prejuízo da ausência de legislação específica sobre o assunto.
O que causa espécie, no entanto, e demanda reflexão, é o texto do artigo 9º, que, ao tratar dos efeitos da sentença que declara a omissão legislativa, autoriza o Poder Judiciário a supri-la, podendo vir até mesmo a atribuir efeitos ultra partes ou erga omnes à decisão, que permanecerão com eficácia até o advento de lei que trate do assunto versado na demanda.
Em realidade, a legislação, no destacado artigo, não discrepou da mais atualizada jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acerca da eficácia da decisão proferida em mandado de injunção, que: i) admite a possibilidade de atribuição de efeitos concretos à decisão que reconheça a omissão legislativa; ii) agasalhando entendimento doutrinário a respeito, atribui à decisão proferida em MI a mesma eficácia erga omnes e o efeito vinculante próprio das ações que visam a aferição em tese da constitucionalidade de leis e atos normativos.
Ao que se pode perceber, a novidade não fica por conta da questão de fundo, já consagrada pela Corte de cúpula do sistema judiciário brasileiro, mas pelo fato de que existe, doravante ao advento da Lei nº. 13.300/2016, o reconhecimento pela via legislativa da possibilidade de o Poder Judiciário, no exercício de suas funções típicas, travestir-se de legislador, disciplinando algo em tese, com efeitos prospectivos e erga omnes, ultra partes ou de maneira individual, conforme o seu talante.
A questão pode ser abordada sob diversos matizes. Em primeiro lugar, pode ser reconhecida como algo nada inédito no cenário brasileiro, sobretudo no âmbito da Suprema Corte, que, por meio de sentenças aditivas, já estabeleceu a disciplina em tese de matérias em outras situações. De outro tanto, seria possível reconhecer nesta lei o reflexo da relativização do princípio da divisão dos Poderes já identificada em ambiente doutrinário. Em terceiro momento, minorando a polêmica, a opção adotada pela Lei pode consubstanciar a solução de casos excepcionais, alterando muito pouco no fluxo normal dos demais litígios.
Muitas outras formas de ver a problemática poderiam ser mencionadas, mas, empreendendo correlação entre as três alinhavadas acima e as possibilidade de criação judicial do direito destacadas no início deste texto por Eugenio Bulygin, possível visualizar que o nó górdio se situa, como sempre se encontrou, no questionamento acerca da possibilidade de a linguagem jurídica adotada em decisões judiciais ser meramente descritiva da legislação já existente, ou criativa; e, acaso configurada esta situação, se o seu viés criativo encontraria limites, ou seria o próprio limite da função jurisdicional.
Neste espaço, não será possível discutir a questão, sequer em nível propedêutico. Desta forma, gostaria apenas de deixar alguns questionamentos para futura abordagem:

1 – Qual, ou quais, será(ão) o(os) critério(s) utilizados para definição da eficácia meramente intersubjetiva, ultra partes, ou erga omnes da decisão proferida em mandado de injunção; e como justificar racionalmente esta escolha?
2 – A prevalecer a óptica consequencialista, como sói indicar a lei e a jurisprudência do STF, para definição do efeito a ser adotado na decisão, qual seria o seu embasamento de fundo; ou, em melhores termos, como o órgão judicante haverá de justificá-lo: a teor de sua visão da justiça, em nível mais epistêmico, ou meramente pragmático?
3 – Haveria algum modo de participação da sociedade neste processo de escolha, tal como nos recomenda a Justiça dialógica? E, acaso existente, qual o real peso da influência da sociedade no campo decisional?
4 – A compreensão da omissão ficaria adstrita às situações excepcionais em que inexista legislação tratando do assunto, ou poderia ser estendida também aos casos de imprecisões terminológicas, vaguezas ou indefinições semânticas existentes no corpo de legislação já existente?
5 – Qual a natureza do juízo acerca da eficácia da decisão a ser proferida: discricionário, ou vinculado em alguma medida?

Estas são algumas dificuldades iniciais que observo a respeito do artigo 9º da novel Lei nº. 13.300/2016. Todas, ao que se pode perceber pelo exposto ao longo do texto e, principalmente, de acordo com mencionado por Bulygin como ocorrente ao menos nos últimos duzentos anos, passam pelo mesmo questionamento: os juízes criam direito? Talvez outros duzentos anos ainda pouco representem para o desate final da questão...


BULYGIN, Eugenio. Los jueces ¿crean derecho? In: ISONOMÍA, n. 18,. Abr. 2003, p. 7-25.
Íntegra da lei pode ser acessada em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13300.htm. Acesso em 27 jun. de 2016.
Eis a redação aludida: "Art. 9o A decisão terá eficácia subjetiva limitada às partes e produzirá efeitos até o advento da norma regulamentadora. § 1o Poderá ser conferida eficácia ultra partes ou erga omnes à decisão, quando isso for inerente ou indispensável ao exercício do direito, da liberdade ou da prerrogativa objeto da impetração. § 2o Transitada em julgado a decisão, seus efeitos poderão ser estendidos aos casos análogos por decisão monocrática do relator.".
Decisão acerca do tema pode ser visualizada em www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDecisao.asp%3FnumDj%3D32%26dataPublicacao%3D19/02/2013%26incidente%3D4316196%26capitulo%3D6%26codigoMateria%3D2%26numeroMateria%3D11%26texto%3D4276460+&cd=2&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br&client=firefox-a. Acesso em 27 jun. de 2016.
O caso "Raposa Serra do Sol" é emblemático a este respeito, considerando que, para além da solução do caso concreto, mais de uma dezena de cláusulas gerais e abstratas foram previstas para disciplinar casos futuros de demarcações de terras indígenas.



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