O flagelo das chamas e a recorrência de eventos hidrogeomorfológicos intensos. O exemplo da bacia do rio Alva (Portugal)

August 29, 2017 | Autor: Luciano Lourenço | Categoria: Forest fire, Soil Erosion
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WATERLAT-GOBACIT Network Working Papers Thematic Area Series SATAD – TA8 - Water-related Disasters – Vol. 1 No 1 Valencio, Norma (Ed.)

ARTIGO 3 O flagelo das chamas e a recorrência de eventos hidrogeomorfológicos intensos. O exemplo da bacia do rio Alva (Portugal) Luciano Lourenço1 Adélia Nunes2 Resumo Com o presente trabalho pretende-se analisar a incidência e recorrência de incêndios florestais na bacia do rio Alva, assim como alguns eventos severos ocorridos na sua sequência, cuja resposta, tanto ao nível hidrológico como erosivo, afetou áreas muito para além dos limites do fogo. Procura-se, assim, inferir a importância que a destruição do coberto vegetal, conjugada com a ocorrência de chuvas intensas e concentradas, pode ter no desencadear ou na intensificação de processos hidrogeomorfológicos (cheias, inundações e erosão de solos), a seguir ao incêndio ou depois de mais de um ano após sua ocorrência. Palavras-chaves: Incêndios florestais, Cheias e inundação; Erosão de solos; Bacia do Rio Alva, Portugal. Abstract This work aims to analyze the incidence and recurrence of forest fires in the River Alva basin, as well as some severe events that often occur in their sequence. These events use to have hydrological and erosional impacts that affect areas far beyond the limits of the fires. The paper assesses the significance of the destruction of vegetation by fire, combined with the occurrence of intense and concentrated rainfall events, in triggering or intensifying hydrogeomorphic processes (floods, inundations and soil erosion) after the fires and even over one year after their occurrence. Keywords: Forest fires; Floods and inundations; Soil erosion, Basin of river Alva; Portugal

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Departamento de Geografia e Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 3004-530 Coimbra (Portugal). E-mail: [email protected]

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Introdução A bacia hidrográfica do rio Alva, à semelhança de vastas áreas do território continental português, tem sido afetada por grandes incêndios florestais, nestas últimas décadas. A passagem de fogo e a consequente incineração do coberto vegetal desencadeia alterações muito significativas na camada edáfica superficial, no ciclo hidrológico e nos processos erosivos que atuam ao nível da vertente. A destruição do coberto vegetal deixa o solo exposto ao impacte direto das gotas de chuva, reduz a sua capacidade de retenção e armazenamento de água em consequência da perda de matéria orgânica do solo, da diminuição da porosidade e do aumento de substâncias hidrofóbicas, gerando quantidades de escorrência muito maiores (Moody & Martin, 2001), as quais influenciam o caudal de base e as pontas de cheia nos canais fluviais (Ferreira et. al., 2010). Com efeito, as relações entre o fogo e as respostas hidrológica e erosiva são mediadas pela vegetação, pelas propriedades do solo e pelas condições climáticometeorológicas de uma determinada área. Apesar dos processos hidrológicos e erosivos que atuam ao nível do solo atingirem, em regra, o seu pico durante o primeiro ano após um incêndio, a “janela de perturbação” (window of disturbance) induzida pelo fogo pode perdurar, muito para além do fenómeno em si e, em termos hidrogeomorfológicos, desencadear processos com consequências catastróficas, também para além da área afetada pelo próprio incêndio. As cheias, inundações e intensos processos erosivos, provocados por chuvas concentradas de grande intensidade e/ou prolongadas no tempo, podem desencadear efeitos verdadeiramente danosos nas vertentes afetadas pelos incêndios (Cannon, 2005). Por vezes, estão, também, na origem de impactes significativos para além da área percorrida pelas chamas, causando sérios danos nas infraestruturas públicas e na propriedade privada, o que constitui um motivo de stresse para a população afetada. Em algumas circunstâncias podem levar à perda de vidas humanas.

Em termos metodológicos, partiu-se de alguns estudos anteriormente realizados (Lourenço, 1988, 2006 e 2007) para, agora, se caracterizarem os diferentes episódios pluviosos que estiveram na origem das situações erosivas então descritas e se analisarem _____________________________________________________________________________  WATERLAT-GOBACIT Research Network  

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Procura-se, assim, inferir, através de vários estudos de caso, a importância que a destruição do coberto vegetal, por ação do fogo, conjugada com a ocorrência de chuvas intensas e concentradas pode ter no desencadear ou na intensificação de processos hidrogeomorfológicos, com particular destaque para a ocorrência de cheias e inundação, assim como para o transporte de grandes quantidade de detritos (vegetais, cinzas, partículas e materiais minerais), imediatamente ou nos primeiros meses após o incêndio ou, até mesmo, decorrido mais de um ano depois da ignição do incêndio.

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Com o presente trabalho pretende-se analisar não só a incidência e recorrência de incêndios florestais na bacia do rio Alva, mas também alguns eventos severos ocorridos na sequência de incêndios, cujas implicações, tanto ao nível da resposta hidrológica como erosiva, não se limitaram à área percorrida pelas chamas, mas afetaram áreas muito para além dos limites dos incêndios.

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comparativamente com outras situações análogas registadas mais recentemente, com destaque para todas aquelas que afetaram praias e piscinas fluviais. A bacia do Rio Alva: breve caraterização A bacia hidrográfica do rio Alva, o principal tributário da margem esquerda do rio Mondego, ocupa uma área de aproximadamente 705 km2. Com uma altitude máxima de 1993 m, a que corresponde o topo da Serra da Estrela, e uma mínima de 40 m, na confluência com o Mondego, a bacia hidrográfica do rio Alva pode dividir-se em dois grupos (Lourenço, 1986): o Alva superior, a montante da povoação de Ponte das Três Entradas, o qual se subdivide em 2 tramos principais, a ribeira do Alva e o rio de Alvoco, e o Alva inferior a jusante daquela localidade.

Figura 1. Localização da bacia hidrográfica do rio Alva e seu enquadramento hipsométrico.

Estas bacias hidrográficas estão integradas nas Serras do Açor e da Estrela, que se encontram no conjunto montanhoso mais notável de Portugal, a Cordilheira Central. Ora, em termos climáticos, estas serras desempenham um importante papel de barreira para as _____________________________________________________________________________  WATERLAT-GOBACIT Research Network  

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Com uma configuração alongada (± 59 km de comprimento e 16 km de largura) é no seu flanco esquerdo que se localizam algumas importantes bacias, de ordem inferior, como sejam as das ribeiras de Folques, Coja, Pomares e Piódão. No presente trabalho dar-se-á particular ênfase às situadas a montante da localidade de Avô, designadamente às ribeiras de Pomares e do Piódão (afluente do rio Alvoco), bem como aos rios Alvoco e Alva, especialmente a montante da Ponte das Três Entradas, onde é conhecido por ribeira de Alva (Figura 1), por serem as que registaram maior recorrência não só de grandes incêndios florestais, mas também de manifestações hidrogeomorfológicas .

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Fonte: Gonçalves (2013).

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massas de ar húmido provenientes de Oeste, quer pela sua elevada altitude, quer pelo seu posicionamento geográfico, registando, assim, quantitativos de precipitação elevados, principalmente nas vertentes expostas a ocidente e a noroeste (Lourenço, 2006). Em termos médios, a precipitação ultrapassa 1600/1700mm, concentrando-se principalmente nos meses de Outubro a Maio, enquanto que os meses de verão, principalmente os de Julho e Agosto, assinalam quantitativos pluviométricos muito reduzidos, sendo classificados de secos. De acordo com a classificação climática de Köppen (1948) corresponde a um clima Mediterrâneo, tipo Csb3. No decurso do passado século, importantes mudanças, demográficas e socioeconómicas, afetaram as áreas de montanha em Portugal. Com efeito, a saída de elevados quantitativos de população, na procura de melhores condições de vida, conduziu à desestruturação do secular sistema produtivo, assente na complementaridade agrosilvo-pastoril. Com o êxodo da população, sobretudo jovem e adulta, abandonaram-se as terras agrícolas e verificou-se uma drástica redução no número de cabeças de gado. A título de exemplo, essa evolução da população e do número de cabeças de gado é particularmente visível em duas das freguesias4, Piódão e Pomares, que praticamente coincidem com duas as respetivas bacias hidrográficas da área de estudo (Figuras 3 y 4). O aumento de terras não cultivadas, a diminuição do consumo de combustíveis florestais, por diminuição do pastoreio e da utilização de estrumes (fertilizantes orgânicos) e da recolha de lenha, a par de uma política centrada na arborização, principalmente à base de pinheiros (Pinus pinaster), espécie altamente inflamável, favoreceram o aumento e a continuidade horizontal e vertical de biomassa inflamável, e, por conseguinte, a proliferação de incêndios florestais (Lourenço, 1991 e 1996; Rego, 1992; Moreira et. al., 2011; Nunes, 2012).

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A classificação dos climas proposta por Köppen usa um conjunto de siglas, designadas por fórmula climática, e que habitualmente se expressa por uma letra maiúscula, seguida de uma letra minúscula, exceto nos tipos B e E, em que se usam duas maiúsculas. Por vezes, acrescenta-se uma terceira letra minúscula, como é o caso, que caracteriza o subtipo climático.

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A freguesia corresponde à mais pequena unidade administrativa do território português, em que se subdividem os concelhos, também designados por municípios.

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Deste modo, o clima Csb é um clima temperado chuvoso, embora seco no verão, que corresponde ao clima temperado propriamente dito.

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Deste modo, a letra C identifica os climas temperados, em que a temperatura média do mês mais frio está compreendida entre 18ºC e -3ºC, ou seja, terá pelo menos um mês
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