O Fosso Consciente

October 10, 2017 | Autor: Bruno Bernardes | Categoria: Portugal (History), Portugal
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O Fosso Consciente in Nova Águia, nº 9 2012 Bruno Gonçalves Bernardes

Entre surpresas e constantes vive o Homem e é de crer, como Schrödinger, que duas realidades opostas constituem um paradoxo. No entanto, tal como o Homem a história é paradoxal porque múltipla e divergente. Uma sucessão de planos verticais e horizontais que se entrecruzam e correlacionam; a história é, pois uma múltipla história porque contada de vários planos, com diferentes olhares, sentidos, interesses, divergências e convergências. Dizia-nos António Sérgio na primeira metade do século passado que "supusemos que todo o progresso económico estava em construir estradas e caminhos-de-ferro (...) Não pensámos que as facilidades da viação, se favoreciam a corrente de saída dos produtos indígenas, favoreciam igualmente a corrente de entrada dos forasteiros, determinando internacionalmente condições de concorrência para que não estávamos preparados." Regra simples mas penetrante na consciência histórica e na cultura nacional e que encontra em todos nós um sôfrego saudoso. Desde cedo aprendemos a alimentar a nossa identidade nacional com a memória dos Descobrimentos, epopeia cantada, fenómeno sintetizador do nosso espírito no qual entre a emergente Europa moderna fomos os primeiros. Desde cedo nos apaixonámos pelas estórias de coragem e determinação numa catarse nacional que teve, a partir do século XIX a celebração de uma narrativa, a qual devemos a Herculano e Oliveira Martins e às dezenas de obras que nos têm socializado no labirinto da saudade. A nossa história de construção enquanto Estado e nação resume-se ao que Adriano Moreira chamou de gestão de dependências para reutilizar palavras de Jean Monnet. Gestão que acontece primeiramente no contexto da ibéria e que tem depois um segundo plano europeu e, finalmente, global. Essa gestão de dependências deixa de ser apenas ibérica em 1373 quando é assinada a aliança britânica e Portugal, se está fora da guerra dos cem anos pela sua situação geográfica, para ela é trazida em Aljubarrota quando a estratégia de guerra pré1

moderna arrasa o avanço da cavalaria e empurra as forças inimigas para a armadilha do quadrado. O projecto do infante de libertar a Europa dos intermediários da rota do Levante e do monopólio das cidades italianas é o projecto que nos traz para a gestão de dependências globais. Seríamos os primeiros a contestar Aristóteles sem precisar de ciência. No entanto, uma vez descoberta a Índia ficámos sem trabalho. Com a entrada de holandeses, franceses e ingleses o projecto do infante não teve continuação e a Europa foi por aqui entrando. Será por isso que Agostinho da Silva dirá que o Portugal do final do século XVI se empequenece e apenas se mantém grandioso naquilo que guarda de feudal. Seria pois 1580 o tempo de viragem, o trauma colectivo que se inspirou e materializou nas mortes de Camões e D. Sebastião. O final do século XVI é a confirmação do nosso desígnio geopolítico. Expulsando e matando judeus, humanistas e homens de ciência expulsámos também tudo o que construiu o pensamento ocidental. A aliança com a coroa espanhola, antes de ser um acto de perda de independência é um acto de pertença ao anti-mundo da modernidade, um finca-pé às formas de produção capitalista como maneira de reforçar os valores cristãos. É por isso que vence a inquisição, é por isso que Damião de Góis é visitado pelas dúvidas e frustradamente tenta encontrar um equilíbrio entre cristãos e protestantes, é por isso que Vieira tenta resgatar um projecto geopolítico e é por isso que Verney chega à conclusão que as universidades portuguesas do século XVIII mais não fazem do que rejeitar os princípios do método científico. A introdução da modernidade em Portugal acompanha também a nossa história económica e encontra no século XVII os primeiros sinais do nosso paradoxo. Luís de Meneses é uma das vítimas desse paradoxo que mais tarde se materializa em Methuen através da famosa lei das vantagens comparativas, vantagens essas que cedo melhoravam as condições da Inglaterra e nos enfraqueciam na balança de dependências europeias. Aliás a liberdade soberana conquistada em 1640 acaba por ser também um marco da gestão de dependências às quais Portugal se votou até 1945 no plano das potências coloniais. Melhoradas as finanças com o ouro brasileiro pouco ou nada se fez para dotar Portugal de estruturas de competição e mesmo com Fontes Pereira 2

de Melo a iniciativa industrial sempre se pagou com os custos altíssimos da gestão da dívida externa. É aliás este paradoxo que Herculano tenta explicar através da história da inquisição, análise que é continuada pela geração de 1870 e que abunda na historiografia, filosofia e literatura portuguesas do século XX. O fosso consciente a que as nossas vidas são hoje de novo votadas pode bem ser produto de uma tendência observada na história. Poderíamos dizer que tal como os indivíduos, parece que as nações gostam de reviver o que lhes traz temor, dor e angústia; porque tal como o escravo encontra conforto na sua situação também nos pode parecer que nações inteiras encontram a catarse na repetição do mesmo sofrimento saudoso. Narrativa construída, logo fica fácil adivinhar o futuro. No entanto, as condições que produzem os fenómenos alteram-se ou perdem significado e é de crer que o futuro de Portugal terá necessariamente de passar pelo ajustamento à qual a Europa se vê agora votada. Mas não deixará de ser um duplo ajustamento, pois que se continuamos a gerir a nossa dependência teremos necessariamente de gerir a nossa diferença, também garante da riqueza mestiça que nos faz portugueses e que nos distingue dos outros pela projeção do nosso passado no futuro. Mas uma vez no fosso consciente é tempo de reavaliar esperanças, sugerir ação onde antes existia saudade e incutir saudade do futuro onde antes existia ação.

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