O futuro não é uma melhoria do presente; é outra coisa - Coleccção Agitanç@s

June 5, 2017 | Autor: Teresa Cunha | Categoria: Globalization, Third Sector, Estado, Critical Science
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Número: 41 Título: O futuro não é uma melhoria do presente; é outra coisa Autor@: Teresa Cunha Data: 2007 Palavras-Chave: Estado, Terceiro Sector, Ciência Crítica, Globalização Referência(s): www.ajpaz.org.pt/agitancos.htm

Acção para a Justiça e Paz (AJPaz) Rua São João - 3130-080 Granja do Ulmeiro – Portugal [email protected] - www.ajpaz.org.pt (T) 239642815 - (F) 239642816 - (TMV) 96 2477031

O futuro não é uma melhoria do presente; é outra coisa. 1 Reinventar a Emancipação Social

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Palavras de Elsa Triolet.

ÍNDICE2 Abertura___________________________________________________________________ 4 1- A ruptura do contrato social moderno está aí. _______________________________ 6 2- O terceiro sector como espaço público não estatal de afirmação do princípio da comunidade_______________________________________________________________ 14 2.1- O terceiro sector: a oitava maior economia do mundo de hoje!____________ 17 2.2- As ONG como nódulos da rede da governação global! _____________________ 21 3- Entre a virtude e o vício__________________________________________________ 27 3.1- O Fórum Social Mundial de Porto Alegre: uma experiência cosmopolita_____ 29 3.2- Uma ONG de base pode também ser cosmopolita ________________________ 32 4- Onde fica a terceira margem do rio da democracia sem fim, ou por outras palavras, a poro’roka da democracia participativa? ____________________________ 40 5- Conclusão ______________________________________________________________ 46 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS _______________________________________________ 49

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A primeira versão deste ensaio data do final do ano de 2002 e constituiu-se como um trabalho para o Seminário do professor Boaventura de Sousa Santos ‘Reinventar a Emancipação Social’. Ao fazer a revisão do ensaio para publicação tenho consciência do seu carácter datado e das inúmeras questões que poderiam e deveriam ser tematizadas, se escrito hoje. Contudo, parece-me que pode, ainda assim, constituir uma reflexão útil e que os termos centrais da análise parecem pertinentes e actuais. Por este motivo apresento-o apenas um pouco mais cuidado mas respeitando as suas origens.

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Abertura

Nos discursos realistas não cabem as utopias. As utopias são sempre coisas marcadas por impossibilidades metodológicas, pela sua dimensão ou pela sua intangibilidade no presente. Nelas se encerra uma maneira visionária de olhar o mundo que não se compatibiliza com a necessidade de o reduzir a uma qualquer totalidade controlável ou pelo menos previsível e transparente, isto é, compreensível para a nossa razão. Este nosso tempo, de eternos presentes fugazes e inquietos, a já chamada instantaneocracia, não permite pensar qualquer acção ancorada criticamente no passado e de olhos postos num futuro que não seja a sua mera repetição ou melhoria do que já conhecemos (Santos, 2001: 12 ). O poder deste tempo ‘sem tempo’ faz com que cada momento do presente se reduza a uma reacção ao estímulo, de imediato ultrapassado por um outro momento, sendo por isso mesmo, uma acção conformada e irremediavelmente desactualizada. Por isso as utopias representam e são certamente, uma outra temporalidade ainda que convivam com esta pressa, este esgotamento radical de sentido de momentos pretensamente totalizantes de sentido. De uma forma sobressaltada de viver e pensar, que tende a negar permanências, lealdades, acções generosas porque não se alimentam apenas de resultados imediatos, pode-se considerar que as utopias, ou como diz Boaventura de Sousa Santos, as heterotopias, podem ser a outra coisa com a qual havemos de construir um futuro que cuida, desde já no presente, de si mesmo. As heterotopias em vez de nos lançarem para uma quimera longínqua e incapaz de pensar uma mudança radical, elas são os horizontes concretos mais consistentes da imaginação do futuro que colectivamente precisamos de construir e tornar valioso porque é realmente pouco, frágil e necessário (ibid: 24). É à procura de essa outra coisa que é um futuro marcado por uma imaginação epistemológica cosmopolita e fértil, por uma consciência antecipatória (ibid:26) que se forma no amplexo das heteropias do presente, que se pretende elaborar um ensaio sobre o terceiro sector. Teresa Cunha Outubro de 2007

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Numa primeira fase procurar-se-á traçar um breve quadro compreensivo, das rupturas que vivemos do contrato social moderno no presente sistema mundo; o Consenso de Washington, ou seja, o consenso sobre o Estado fraco no fornecimento dos bens públicos, o pré-contratualismo e o pós-contratualismo que daí são decorrentes e, por fim, os problemas que se põem para pensar uma acção política intencional da comunidade, reforçada por espaços e tempos divergentes e alternativos. Em seguida procurar-se-á apresentar o terceiro sector como uma realização do princípio da Comunidade, em face do Estado e do Mercado mas marcado por uma ambiguidade importante. Essa ambiguidade será analisada por um lado, pela força económica que é, a sua importância no âmbito da geração de emprego, bem estar social e de distribuição de riqueza em determinados espaços de vulnerabilidade e, por outro lado através das suas relações de poder com o(s) Estado(s) muitas vezes marcadas por dependência face aos interesses mais ou menos obscuros do projecto neo-liberal que se procura impor. Esta análise procurará ao mesmo tempo, identificar alguns dos eixos da crise que o terceiro sector vive no seu interior e algumas das energias e poderes que poderão constituir-se numa renovação da sua importância social e política alternativa. Assim, discutir-seão algumas das potencialidades e alguns dos problemas e constrangimentos que o terceiro sector incorpora ou enfrenta hoje, na prossecução dos objectivos de uma comunidade cosmopolita, plural, democrática e apostada na emancipação social. Procurar-se-á ver as ONG como produtos modernos com ambições pós-modernas, que se movem entre formas de autoritarismo social e processos profundos de emancipação; entre o controlo democrático e a prevalência de uma consciência tecnocrata; entre auto-narrativas épicas e demagógicas como modo de ser mas também de parecer e uma profunda reflexividade crítica colectiva; entre a proximidade e as lealdades às suas comunidades e projectos de mudança o seu progressivo esvaziamento político até se serem coisas abstractas e fugazes de presenças e ausências; entre as relações de trabalho e poder hierárquicas e uma democracia interna e externa intensa e densa. Na quarta parte deste ensaio, tentar-se-á enunciar algumas condições para um aprofundamento democrático do terceiro sector e das suas capacidades enquanto modo de produção de relações sociais locais, nacionais e transnacionais emancipatórias, de acções políticas resistentes e transformadoras do conformismo actual que as desigualdades abismais da sociedade contemporânea preconizam e instalam. Teresa Cunha Outubro de 2007

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1- A ruptura do contrato social moderno está aí. Nas últimas duas décadas, importantes movimentos e acontecimentos revelaram as marcas profundas que as rupturas anunciadas e depois acontecidas no nosso Mundo Vêm deixando. Hoje, essas marcas já se transformaram em significantes e significados de uma transição paradigmática que ocorre nas relações nos, entre e para lá dos Estados Nacionais nascidos da modernidade e de Vestefália. O espaço-tempo moderno criou-se na imaginação de uma comunidade identitária de sentido total, vinculada a um espaço-território, culturalmente homogéneo, herdeiro de uma história-tempo comum e partilhada por todos os elementos que se constituem como uma colectividade, marcada por fronteiras adversarias a outros espaço-tempo com os quais só a confrontação conflitual ou defensiva é possível. Nesta narrativa moderna vestefaliana, o Estado é o garante dos bens públicos, visto como modo da interpretação legítima da vontade geral e garantia do bem-estar colectivo. Segundo Boaventura de Sousa Santos (Santos, 2002: 11), os bens públicos que o Estado moderno se propôs garantir e fornecer são: a legitimidade da governação, o bem-estar económico e social, a segurança e a identidade nacional. Este contrato porém, não está isento de relações antinómicas porque a ‘vontade comum’ não é percebida de igual forma por todos os indivíduos, nem por todos os segmentos sociais, classes ou grupos, de um mesmo espaço-tempo nacional, por muito ‘homogeneizado’ que tenha sido pela ideologia constitutiva do contrato. A autonomia da/o cidadã/ão, que se corporiza sobretudo nos direitos individuais civis e políticos, e os bens comuns que se traduzem pelos direitos sociais e económicos, digladiam-se dentro do Estado moderno desde a sua origem. A tensão entre a justiça social e irredutibilidade do indivíduo ao grupo, trouxe para dentro deste contrato lutas e resistências que produziram instituições e corpos normativos que determinam os modos e as condições de inclusão e exclusão. Estes processos de regulação estatal são mais ou menos poderosos, submetem ou articulam-se com os outros dois princípios do contrato social moderno: a comunidade e o mercado. A socialização da economia, a nacionalização da identidade e a politização do Estado são as formas institucionais que estas tensões foram produzindo. O EstadoProvidência nos países centrais e o Estado-Desenvolvimentista na periferia e na semiperiferia são talvez, as concretudes mais explícitas dessa institucionalidade e normatividaTeresa Cunha Outubro de 2007

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de nascida no seio do conflito dos diferentes interesses e tensões, dentro do Estado-nação moderno (ibid: 11-12). Estes modos de regulação não determinam apenas o que e quem está incluído ou excluído do contrato, dentro do espaço-tempo nacional, eles incluem estratégias de coerção e repressão dentro do Estado-nação e fundam e produzem simultaneamente, sistemas de eliminação (etnocídio e epistemicídio) da/o ‘Outra/o’, da/o não pertencente ao mesmo espaço nem ao mesmo tempo. Esta regulação determina e legitima modos de classificação de ‘estrangeira/o,’ de bárbara/o’, de ‘incivilizada/o’, fornecendo todos os instrumentos necessários à valoração positiva ou negativa a sua presença, ausência e até o seu desaparecimento de qualquer horizonte de contacto. No entanto, nem um contrato social tão severo para com o que lhe é estranho e que o determina como sendo a/o ‘Outra/o’, nem de um ponto de vista filosófico se pode obter a total possibilidade de eliminação da/o ‘Outra/o’ que, como o pharmakon resiste e reaparece contra a nossa vontade quando pensamos estarmos livres dele e da instabilidade que ele provoca, (Stengers I, 1996). Nesta impossibilidade filosófica, social e normativa se inscrevem uma parte das rupturas a este modelo de contrato social e se abre o caminho à transição que hoje enfrentamos e que pode vir a ser porventura, uma mudança radical do nosso mundo. Ainda que a sociedade pensada pelo Consenso de Washington, que se apresenta como um clímax do liberalismo que a modernidade iniciou, tenha criado as condições e os instrumentos político-económicos para que a/o ‘Outra/o’ se liofilize e se des-realize, face à hegemonia do mercado sobre o Estado e a comunidade, fortalecendo e implementando o princípio de acumulação e a sua naturalização como único modo de ser, pensar, estar e existir socialmente, a/o ‘Outra/o’, aquilo que desestabiliza, que resiste ao império do pensamento e modo de ser únicos e nos impede, no limite, de morrer irrompe numa nova configuração de diferentes e profundas problemáticas e ‘turbulências’. E é aqui, nesta necessária trubulência que pode radicar uma reflexão nova e uma prática política diferente e que nos impedirá de aceitar a morte anunciada pela ditadura de um crescimento sem heterotopias. O primado do mercado sobre a comunidade e o Estado procura reduzir sistematicamente, a acção sócio-política do Estado, propicia a completa mercantilização dos modos de produção e do exercício do poder público privatizando, isto é, retirando do âmbito dos

bens e interesses comuns, todos os segmentos das relações sociais possíveis. Esta despoTeresa Cunha Outubro de 2007

O Futuro não é uma melhoria do presente; é outra coisa. 8 Reinventar a Emancipação Social litização da acção do Estado e da acção da comunidade requerida pelo neo-liberalismo traduz-se também pela máxima fragmentação dos ‘bens’ e ‘serviços’, tornando-os objectos de uma avaliação fundada em termos de eficácia e custo-benefício de tipo empresarial, criando as condições e os argumentos para que se instalem, no senso comum societal, múltiplas desconfianças sobre a capacidade do sector estatal de continuar a garantir os bens públicos e os bens colectivos que antes providenciava ou estava em vias de assegurar aos seus cidadãos e cidadãs, ao mesmo tempo que cria um conformismo resistente e paralisante no seio da comunidade, que se vê cada vez menos capaz de mudar realmente qualquer coisa Nos últimos vinte anos, o neo-liberalismo protagonizou a transnacionalização dos mercados e das finanças, acompanhada de uma capacidade fantástica de fazer ‘viajar’ o pensamento interessante e interessado num determinado tipo de encurtamento de distâncias, pondo em contacto antípodas em tempo real e em consequência, encurtando de modo simbólico e real as lealdades, as capacidades de resistência e de auto-determinação em diferentes escalas. O mesmo neo-liberalismo logra perseguir, ‘localizar’, fixar no anonimato e tentar eliminar, tudo e todas/os que não podem e ou não querem acompanhar o seu impulso radicalmente predatório produzindo aquilo a que chamamos hoje, os processos da globalização hegemónica (Santos, 2001b: 34). Aquilo que são os múltiplos fenómenos que associamos à globalização hegemónica expressam-se de algum modo nas estatísticas que mostram sem relutância, as disparidades e o quase não sentido da distribuição (ou ausência dela) da riqueza no mundo. Entre 1960 e 1997 a diferença de rendimento entre os países agravou-se de forma dramática: se em 1960 essa diferença era de 30 para 1, nos finais da década de 90 a relação era da ordem 74 para 1 3. Os números que o PNUD

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reúne e sistematiza nos seus relatórios

anuais, demonstram exactamente, que o fosso entre os países ricos, ou melhor dizendo, entre as elites dos países ricos e de alguns países empobrecidos, a maioria da população do mundo, é cada vez mais pobre e vulnerável. Isto é quer dizer que a acumulação da riqueza é exponencial para uma reduzidíssima faixa de população, enquanto que a pobreza e a miséria mais absoluta alastram inexoravelmente, atingindo regiões, grupos e pessoas antes tidas como salvaguardadas, por um bem-estar conquistado por décadas de

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A este propósito, ver o artigo SANTOS, B.S., (2001), «Os processos da globalização», in «Globalização: Fatalidade ou utopia?, Porto, Edições Afrontamento, p. 37-42 4 Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Teresa Cunha Outubro de 2007

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lutas e, aparentemente consolidado por relações suficientemente democráticas entre Estado e capital. Esta situação parece configurar uma anomalia extraordinária ou um bloqueamento fundamental no sistema de redistribuição da riqueza através de disfunções graves dos mecanismos da socialização da economia garantida pela acção do Estado. Esta anomalia, pode ser pensada como um comportamento desviante, ou então, como o surgimento de um outro tipo de relação que des-socializa intencionalmente a economia, a desvincula das necessidades sociais das comunidades nacionais e outras, introduzindo novas formas de injustiça, não só expandidas à escala planetária, como de novo tipo. Hoje, a pobreza já não pode ser pensada ou entendida como a simples proletarização das relações de trabalho; é a completa hetero-determinação do ‘destino’, é a impossibilidade de acesso a bens e recursos, é a incapacitação para a resistência é a descaracterização, enfim, é a máxima e múltipla vulnerabilidade de cada vez maiores e diversificados sectores e grupos sociais. Cada vez mais são os sinais de que ninguém está verdadeiramente protegida/o, nem pelo lugar onde nasceu, nem pelos direitos que se ‘acostumou’ a ver garantidos pelas leis nacionais ou internacionais, pela motivação pessoal para o desempenho no trabalho ou das funções públicas, pelo mérito, pelo esforço ou pela sua qualificação. Parece ser evidente que o fosso se aprofunda sobretudo, entre os países afluentes, ricos e centrais e a semi-periferia e a periferia do sistema-mundo. Mas como dentro de cada nó do sistema–mundo, há um centro e muitas periferias e semi-periferias a dinâmica disjuntiva, disruptiva é aplicável em diversas escalas produzindo «zonas selvagens» e «zonas civilizadas», intocáveis entre si, incomunicáveis e mutuamente excludentes a que alude Boaventura de Sousa Santos (Santos, 2002: 33) no seu texto «Reinventar a Democracia» e que são produtos inequívocos desta lógica de máxima acumulação de riqueza para alguns por um lado e de vulnerabilização sem fim da maioria, por outro. O mesmo autor esclarece esta situação de ruptura do contrato social nascido da modernidade ocidental com dois conceitos que me parecem de grande utilidade para a discussão que aqui se ensaia e que são: o pré-contratualismo e o pós-contratualismo. Nos países centrais do sistema-mundo, o formato do contrato social proporcionado pelo Estado-providência sustentava um conjunto de benefícios sociais, associados à noção de direitos de cidadania, que incluíam o rendimento através do trabalho e a sua protecção (como forma de exercício da dignidade individual e, por outro lado, a prestação de um Teresa Cunha Outubro de 2007

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serviço para a colectividade), a educação para todas/os, a saúde para todas/os, o apoio a grupos cuja vulnerabilidade individual e social é maior, como idosos, crianças, deficientes, etc. Neste contrato social moderno de que o Estado-providência é a forma de maior sucesso, criaram-se e sustentaram-se expectativas sociais de progressiva inclusão num determinado bem-estar pessoal e social e que hoje se argumenta não poderem ser mantidas face às novas exigências do capitalismo globalizado. O contrato começa assim a ser denunciado pelo Estado e algumas das suas mais importantes cláusulas deixam de ser cumpridas. Esta ‘incapacidade’ de o Estado prover e garantir certos direitos, nomeadamente os sociais e económicos, atinge cada vez mais importantes sectores das sociedades contemporâneas: mulheres, desempregadas/os de longa duração, deficientes, jovens sem qualificação, migrantes, entre outros. Estamos assim numa fase de pós-contratualismo, isto é, grupos anteriormente incluídos no contrato não o estão mais e provavelmente vão permanecer excluídos e sem possibilidades ou perspectivas de retorno à situação contratual precedente. Os benefícios que o Estado-providência fornecia e os direitos garantidos, como resultado de lutas e de dinâmicas de alargamento e inclusão de mais direitos individuais e colectivos nos termos de contrato esvanecem-se neste presente atingido pela primordialidade da mercantilização e do lucro. Nos países da periferia e da semi-periferia o processo de globalização neo-liberal desemboca numa situação diferente quanto ao modelo de Estado. O Estado-

desenvolvimentista é a realização menos sucedida da ideia do progresso iluminista e parece ter sido reservada aos países do sul, aos países colonizados ou não detentores de capital tecnológico suficiente que lhes permitisse atingir a inclusão no grupo dos países centrais

no

tempo

imposto

pelo

crescimento

capitalista

liberal.

Este

Estado-

desenvolvimentista, inscrito desde sempre numa ideia de futuro permanentemente em fuga para um lugar inatingível, nunca se tornou capaz de providenciar os bens sociais que a ideia de progresso perfilhada ou imposta prometia. Os benefícios prometidos pela adopção e aproximação ao modelo de desenvolvimento dos Estados centrais, caracterizam-se nestes Estados, por estar permanentemente em «vias» de acontecer, no tal futuro em fuga. Os Estados periféricos e semi-periféricos, comprometeram-se pela via do discurso das hegemonias instaladas no poder, a fornecer um nível de bem-estar social nacional que nem no passado, no presente e muito menos no futuro, poderão alguma vez conseguir. No planeta contemporâneo da globalização hegemónica de aprofundamento das desigualTeresa Cunha Outubro de 2007

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dades sociais as populações que nunca foram no passado beneficiárias, tornaram-se já excluídas do seu próprio ‘sonho’ de desenvolvimento e bem-estar, antes de alguma vez o terem sequer tocado. A esta situação, designa Boaventura de Sousa Santos, précontratualismo (ibid: 24) e permite compreender melhor o enorme fosso estrutural que existe entre a expectativa e a realidade em que vivem milhões e milhões de pessoas, sem a mais pequena capacidade de resistência à degradação progressiva do seu estado de vulnerabilidade. Estes dois conceitos ajudam a tornar mais inteligível a profundidade da ruptura, que embora se processe diferenciadamente, é talvez a coisa mais global do nosso tempo. Como dizia no Fórum Social Mundial de Porto Alegre (2002) Rigoberta Menchú, a pobreza

é a coisa mais global que existe no nosso mundo. A discussão sobre a pobreza e as suas causas e consequências, ou por outras palavras, o pré e o pós contratualismo como sinais da crise do Estado-nação saído da modernidade é, do meu ponto de vista, muito importante não apenas no sentido em que ela abre janelas de compreensão sobre a falência das promessas modernas que estão sancionados nas promessas do contrato político-social mas também sobre as promessas da ciência e da tecnologia que também prometiam ser capazes de resolver muitas coisas, incluindo a pobreza generalizada que a mesma modernidade gerou. Mas porque a pobreza não é só a falta de rendimento, não é somente a impossibilidade de acesso à riqueza, ela é a epifania de um mundo e de uma ordem política democrática de baixíssima intensidade que coabita dramaticamente com relações sociais autoritárias e que, no limite, se constituem em modos relacionais e societais de tipo fascista - totalitárias, excludentes e autocráticas que não deixam escolha nem alternativas. Por imposição deste novo tipo de fascismo, desta vez social e disseminado à escala mundial, nem indivíduos nem grupos e comunidades de indivíduos têm poder para decidir sobre as suas próprias vidas e destinos. Este fascismo social que convive com bastante naturalidade com a democracia liberal representativa, parece ser condição para a realização da máxima acumulação de riqueza de alguns, preconizada pelo mercado global neo-liberal, formando um perigoso e dramático vicioso círculo entre desigualdade e uma determinada forma de globalização. As consequências desta nova centralidade do princípio do mercado (trânsito sem limites de capitais financeiros, redes de produção e de consumo) nas sociedades contem-

Teresa Cunha Outubro de 2007

O Futuro não é uma melhoria do presente; é outra coisa. 12 Reinventar a Emancipação Social porâneas, são inúmeras e complexas. Considerarei três problemas principais dentro da complexidade do assunto que penso poderem ser úteis para o propósito deste ensaio. A primeira é a fragmentação e privatização (até das relações sociais antes julgadas salvaguardadas como por exemplo, as relações do afecto 5), induzida pela mercantilização societal e que retira o sentido da acção colectiva e sobretudo esvazia de sentido qualquer causa utópica que ultrapassa e critica necessariamente a temporalidade instantânea da eficácia inscrita na lógica da obtenção do máximo rendimento (leia-se lucro) no menor espaço de tempo possível. A segunda questão é a instabilidade provocada pela disputa da legitimidade e do monopólio do uso da violência e do direito. Confundindo os inimigos com as vítimas, desorientando as acções de intencionalidade solidária e de cooperação a turbu-

lência nas escalas cria estranhamento, desfamiliarização, surpresa, perplexidade e invisibilização (ibid:19). Esta turbulência conduz ao sentimento generalizado de impotência que por sua vez gera passividade e conformismo. Finalmente, a visão de que o Estado é essencialmente uma entidade parasitária, incapaz, absorvente ineficaz de recursos, corrupto no limite, tende a esconder que a desregulação do Estado moderno, pressupõe um outro Estado forte de outra maneira, capaz de enunciar os seus novos objectivos e de promover as suas novas institucionalidades e novas sociabilidades, segundo uma aparência de esbatimento, esboroamento das suas fronteiras e funções. O primeiro problema que estas questões levantam, prende-se sobretudo com a impossibilidade de agir para mudar, de reivindicar um espaço de resistência, de luta, de alternativa e de diferença. A fragmentação supõe a apologia do individual sobre todas as coisas, da hierarquia sobre a responsabilidade recíproca. É muitas vezes mesmo, a ausência de qualquer comunicabilidade entre fragmentos e por isso, de qualquer possibilidade de diálogo. O solipsismo subjacente à lógica da máxima acumulação, em que todas as partes (fragmentos) são concorrentes entre si, inimigos entre si no limite, é estruturalmente excludente. Deste modo a mercantilização neo-liberal do mundo pode atingir de forma dramática, o ethos vital da humanidade numa convocação à inimizade a/o ‘Outra/o’ – a não ser que a/o ‘Outra/o’ seja uma mera subserviência, uma mera repetição, no limite uma melhoria deste presente. Os fragmentos apresentam-se como temporalidades todas simultâneas, porém paralelas que nunca se cruzam e mesmo quando se cruzam fazem-no

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Veja-se a título de exemplo o reinvenção do dia de S. Valentim. Teresa Cunha Outubro de 2007

O Futuro não é uma melhoria do presente; é outra coisa. 13 Reinventar a Emancipação Social através de passagens inferiores ou superiores, num movimento permanente de desencontro. A mesma paralelização de referências, que se transformam em tensões caóticas de poderes e de legitimidades dispersos ou melhor, disseminados dentro de um sistema, em que a unidade de análise que é o Estado-nação com as suas fronteiras convencionadas há trezentos anos, de pouco ou nada serve à compreensão da complexidade crescente das novas fronteiras provocadas pela exclusão social ou por novas concepções de intimidade e de exterioridade. Esta pulverização de interesses particulares, de ‘localismos’ exacerbados, parece ser capaz muitas vezes de eliminar do horizonte societal agendas de intervenção baseadas em interesses mútuos, em consentimentos mútuos e de capacitação recíproca. Este mundo hobbesiano e radicalmente egoísta onde qualquer paz, qualquer emancipação só pode ser vivido na irredutibilidade individual e adversarialmente à/ao ‘Outra/o’ é, extremamente, angustiante. Numa transição, novos e velhos elementos estão em contacto e em tensão permanente e isto pode fazer julgar erradamente que a ausência de sentido político do espaço público estatal pode esvaziar também o espaço público não estatal e a sua acção transformadora e emancipatória. Seria um erro grave, tomar como pressuposto epistemológico, a diabolização do mercado ao ponto de renunciar a ver, a conhecer, a pressentir, a descobrir, a encontrar as outras maneiras de existência e de experiência que já estão aí apesar da hostilidade da globalização neo-liberal. Este mundo, que ao mesmo tempo é sujeito e objecto de todas as pressões exercidas por uma globalização dos mercados financeiros6, do desaparecimento de fronteiras para o trânsito livre de estratégias de acumulação de riqueza e de poder geo-estratégico, do primado da comunicação inter-objectiva, que privilegia mais o objecto que serve de interface ou mediação do que os termos e os conteúdos da comunicação, este mesmo Mundo é sujeito e objecto de novas energias que radicam a sua força na indisciplina ao pensamento único e normalizador e que se traduzem por novos movimentos e novas práticas que se podem constituir como novos termos de um novo contrato social em construção. É nas tensões produzidas por este debate, que pretendo olhar para o terceiro sector, para as ONG, como terreno fértil de contradições próprias do nosso tempo de transição, entre constrangimentos e variadas e fortes possibilidades de fazer avançar um novo contrato contra-hegemónico, emancipatório e libertário. 6

O tal da «bolha» que pode transformar um incidente de uma bolsa de capitais financeiros local numa tragédia de tamanho planetário Teresa Cunha Outubro de 2007

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2- O terceiro sector como espaço público não estatal de afirmação do princípio da comunidade Nascido de uma lógica de confrontação com o Estado, para assegurar direitos ou mais direitos (por exemplo, as lutas protagonizadas pelos movimentos operários e os movimentos feministas ao longo do século XX) ou pela lógica da compensação, fornecendo uma rede social de apoio quando o Estado estava e permanecia ausente, o terceiro sector, constituiu-se como um largo conjunto de organizações sociais, de natureza e acção diversificadas e que se fundam na ideia originária de autonomia positiva, face ao Estado e ao mercado. Desde o século XIX que grupos organizados fora do espaço estatal e do mercado, com uma lógica não lucrativa, de associação voluntária e privada segundo um princípio de governabilidade horizontal e solidária (Santos, 1999: 17), surgem e desenvolvem experiências mutualistas de auto-governo e de intervenção social. A este conjunto de organizações sociais que se corporizaram em formas bastante diversas, desde sindicatos, mutualidades, associações cívicas, movimentos de reivindicação sectorial, etc, convencionou-se chamar o terceiro sector, ou ainda, o sector não lucrativo, o sector independente, a sociedade civil, a economia solidária, e cada vez mais as Organizações Não Governamentais (Salamon, Anheier, 1999: 9). Este espaço não estatal de participação pública, é pois, a afirmação do princípio da comunidade face ao mercado e ao Estado segundo dinâmicas de confrontação/compensação, resistência e superação dos problemas e constrangimentos que estes originam. Este foi e tem sido considerado, o espaço do exercício de uma cidadania positiva, isto é, acção intencionalizada por interesses e responsabilidades colectivos, de modo a eliminar ou a superar os malefícios, ou pelo menos, os problemas provocados pelo carácter predatório ou injusto do mercado e a ineficácia do Estado. A acção colectiva, horizontal e potencialmente reguladora do Estado e do mercado, através da participação activa e organizada da comunidade, é constitutiva da história da própria modernidade e configurou, ao longo do século vinte, por exemplo, as enormes lutas de operários, mulheres, minorias étnicas, de auto-determinação nacional, entre muitos outros. A crise do Estado-providência no norte afluente, ou seja, nos países centrais do sistema-mundo da contemporaneidade, o colapso do modelo socialista do leste europeu, o desapontamento sucessivo das sociedades do sul, há décadas «em vias de desenvolviTeresa Cunha Outubro de 2007

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mento» e que nunca viram chegar o bem-estar e a riqueza prometida, a crise ecológicoambiental, os conflitos disseminados à escala global, com o seu cortejo de insegurança, vulnerabilidade e destruição, são razões necessárias e suficientes para muitas/os para entender a re-emergência e pujança, nos finais do século vinte, das organizações deste espaço público não estatal, como principais protagonistas da esperança de poder agir sobre este nosso mundo, sobre os erros do mercado, da ciência e do Estado e sobre as suas consequências. Apesar de este argumento ser um postulado de grande confiança, parece-me útil procurar ver com um pouco de mais atenção e detalhe as condições da re-emergência do terceiro sector no final do século passado. O aparecimento de um número enorme de novas organizações não governamentais, durante as últimas duas décadas está com certeza, vinculado ao questionamento das funções atribuídas ao Estado e à mercantilização crescente da sociedade. No entanto, esse ressurgimento não é fruto nem está realmente ligado a qualquer luta generalizada contra o Estado ou contra o mercado, como se assistiu com a criação dos movimentos internacionais operários ou os movimentos internacionais pelos direitos civis e políticos feministas mas procura sobretudo responder aos problemas, trazidos pelo enfraquecimento das funções redistributivas e sociais do Estado-providência, funcionando muitas vezes como

amortecedores sociais dos impactos provocados por crescentes situações de exclusão, como explica Boaventura de Sousa Santos (1999: 24). No sul no entanto, o crescimento do terceiro sector deve-se menos à iniciativa local de re-organização das comunidades segundo esta fórmula de compensação, mas é sobretudo uma resposta pragmática para a captação das ‘ajudas’ vindas do norte, que começa sobretudo com as políticas de cooperação internacional para o desenvolvimento estabelecidas pelas agências internacionais das Nações Unidas e alguns dos Estados ricos do norte a partir dos anos oitenta. Os Estados e agências internacionais doadores ao decidirem privilegiar as organizações sociais em detrimento dos actores estatais, criam as condições para que múltiplas associações e organizações, com as características das do norte, mas sem a mesma história de imbricação social e de práticas de reivindicação e negociação com o(s) Estado(s). O norte rico e central explica a sua estratégia de reforço deste terceiro sector do sul usando no seu discurso vários argumentos nos quais se destacam a quase «natural» tendência para a corrupção dos aparelhos dos Estados do sul e por isso a possibilidade de juntar eficácia com Teresa Cunha Outubro de 2007

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confiabilidade. A cultura de prestação de contas surge nas relações internacionais e marca em grande parte o discurso e a prática destas relações de cooperação norte-sul ainda que desigualmente porque a prestação de contas exigida e exigível aos países receptores de ajuda não encontra uma equivalência efectiva relativamente às políticas de redistribuição de riqueza pressuposta nos programas de erradicação da pobreza e desenvolvimento que presidem à retórica e às emanações políticas e orçamentais das grandes agências para o desenvolvimento. Porém, o que interessa reter de momento é que as ONG foram a resposta organizativa no sul, para a captação de recursos vindos de fora, para ‘ajudar’ ao desenvolvimento do sul, empobrecido e envolvido em permanentes tensões ‘endógenas’ das sociedades nacionais. (ibid: 23-25) Apesar desta ambiguidade, isto é, ser ao mesmo tempo a nova possibilidade de emancipação social face à desregulação na nossa contemporaneidade e fruto de circunstâncias calculadas pelos consensos impostos pela nova figuração do neo-liberalismo, o certo é que as expectativas quanto à capacidade das ONG de serem protagonistas relevantes de uma mudança social e cultural do final do século, parece confirmar-se pelo menos ao nível do senso comum, quer no «norte rico» quer no «sul pobre». Produtos da ordem inter-estatal moderna como referi acima e herdeiras de uma lógica de confrontação/compensação, as ONG são encaradas contraditoriamente hoje ora como profetas/fazedoras de um mundo melhor ou então, como diabos à solta que ninguém controla. É nesta contradição que se inscreve uma parte importante do debate sobre o terceiro sector. É assim admissível que estejamos perante um quadro mestiço, de vários tipos de organizações não governamentais; algumas preenchendo requisitos de democratização forte e de auto-determinação intensa das comunidades onde e com quem actuam (locais, nacionais e mesmo transnacionais) e outras, que cumprem missões de resposta compensatória mínima necessárias aos novos imperativos do mercado e do Estado, num contexto de um mercado global e canibalista. Tendo em consideração esta mestiçagem e ambiguidade que perpassa o debate sobre as ONG e a sua função no século que começa, gostaria em seguida, de usar alguns dados sobre a dimensão e a importância atribuída ao sector não lucrativo nos nossos dias, para poder traçar de maneira mais consistente, uma possibilidade de compreensão dos problemas presentes na discussão sobre as ONG antes de avançar, no sentido de identifiTeresa Cunha Outubro de 2007

O Futuro não é uma melhoria do presente; é outra coisa. 17 Reinventar a Emancipação Social car as potencialidades e os obstáculos e os seus modos de revalorização e superação, respectivamente. 2.1- O terceiro sector: a oitava maior economia do mundo de hoje! O terceiro sector, apesar de desigualmente distribuído a sul e a norte, sendo herdeiro de condições políticas e sociais diversas e tendo diferentes condições de realização das funções que lhe são atribuídas, são no seu conjunto, uma enorme força económica e responsável por altíssimas taxas de criação de emprego e de riqueza. Num estudo comparado entre 22 países do mundo7, pode-se ler nas principais conclusões do estudo: -

Se o sector não lucrativo nestes 22 países se pudesse separar da economia nacional, o conjunto de riqueza produzida e gerida dentro dele corresponderia à oitava economia do mundo, sendo as suas transacções estimadas em pelo menos 1.1 triliões de dólares americanos por ano;

-

Em 1995 gerou 18.8 milhões de empregos, ou seja 5% do total de emprego excluindo a agricultura, 9.2% do emprego no sector dos serviços e 30% do emprego público; (Salamon, Anheier, 1999: 11)

Esta dimensão em termos económicos e sociais, está porventura longe de corresponder a um poder de decisão política equivalente, faz contudo perceber que estamos perante um sector que possui um grau de infra-estruturação capaz de mobilizar ou de paralisar, um bom segmento do mercado actual de emprego, pelo menos nesses países. Isto pode sugerir também, do meu ponto de vista, articulações aprofundadas de complementaridade ou de pura substituição no providenciamento dos ‘bens públicos’. Estas conclusões não são no entanto, inequívocas para mostrar a complementaridade ou a subsidiariedade entre os sectores. Elas são úteis porque ajudam à problematização das relações existentes entre lógicas aparentemente opostas. Os estudos mostram também claramente que as áreas de intervenção das organizações sociais não lucrativas dos países analisados não são as mesmas. Na América Latina, por exemplo, o terceiro sector ocupa-se mais da educação e as razões aduzidas são que o Estado não fornece, ou fá-lo de forma insuficiente, esse tipo de bens. Nessas condições as populações socorrem-se dos serviços prestados pelas ONG e outras entidades privadas sem fins lucrativos, nomeadamente as congregações religiosas. No entanto, na 7

Países Baixos, Irlanda, Bélgica, França, Reino unido, Espanha, Áustria, Finlândia, República Checa, Hungria, Eslováquia, Roménia, Argentina, Peru, Brasil, Colômbia, México, Austrália, Israel, Estados Unidos da América e Japão. Teresa Cunha Outubro de 2007

O Futuro não é uma melhoria do presente; é outra coisa. 18 Reinventar a Emancipação Social Holanda, Japão e EUA, o terceiro sector é bastante mais actuante na área da saúde e a explicação dada é idêntica: a saúde naqueles países é privada e portanto inacessível a muitas/os, as/os que já estão fora do contrato social e por isso, o terceiro sector na saúde, funciona como a rede social de apoio existente para os mais vulneráveis 8. Em ambos os argumentos está presente um não-dito: a crise do Estado-providência e o fim do sonho desenvolvimentista sempre definido pela ausência de um serviço público estatal. Nuns casos pode configurar uma situação de pré-contratualismo, como seja, nos países do sul que nunca conheceram um serviço nacional de educação gratuita e de acesso universal ou de um sistema de reformas e de outros benefícios sociais congéneres e que nas circunstâncias actuais não podem esperar aceder-lhes e de pós-contratualismo nos países do norte, onde cada vez mais pessoas nascem, vivem e morrem fora da possibilidade de inverter ou transformar a sua vulnerabilidade social, numa reivindicação ou obtenção de uma inclusão substantiva na sociedade onde residem. Dois modos de precarização da dignidade humana e da cidadania. Torna-se significativo reter que o argumento do discurso explicativo, é em qualquer dos casos o consenso do Estado fraco, incapaz, ineficaz, legitimando a acção do terceiro sector e esvaziando a responsabilidade colectiva e portanto pública, no exercício destas funções e esta não é uma questão inocente e de pouca importância, a vários níveis. Gostaria de chamar a atenção para duas características que informam este conservadorismo sem, no entanto esquecer que muitas outras estão imbricadas nestas. Em primeiro lugar, revela um conservadorismo no que se refere à distribuição sexual do trabalho e das funções sociais re-dividindo o público e o privado reforçando de um outro modo, o papel das mulheres na esfera do privado subalterno. Em segundo lugar, este conservadorismo político é sobretudo visível nas consequências práticas que este argumentário produz: a função de cuidar que antes se atribuía à família ou às comunidades de proximidade e onde as mulheres exerceram sempre o seu estatuto de zeladoras subalternas e silenciosas, é agora assegurado por ONG inundadas de mulheres na base e nos segmentos intermédios, proporcionando todos os argumentos que se quiserem aduzir sobre uma nova naturalização de carácter essencialista do valor do cuidado feminino. Por isso, a construção política das ONG a partir da legitimação oferecida pela ideia do Estado fraco oferece, sem dúvida, um 8

Aliás proliferam organizações não governamentais de apoio ao chamado 4º Mundo, ou seja, as populações urbanas e peri-urbanas das grandes metrópoles europeias e americanas do norte que, sem abrigo, sem emprego, sem qualificações e sobretudo sem qualquer expectativa de retorno a uma situação de inclusão social, se tornam num fenómeno cada vez mais visível e são encaradas como extremamente problemáticas social e politicamente. Teresa Cunha Outubro de 2007

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novo locus de resistência, luta e de construção de uma nova narrativa libertária feminista para as mulheres de hoje. Para além deste questionamento outros problematizam mais ainda esta reflexão. As tradições de assistência e caridade, veiculadas pelas igrejas cristãs (católica romana ou evangélicas) produzem culturas diferenciadas de construção de redes de apoio social e são referidas como elementos a ter em consideração na avaliação do perfil do terceiro sector, em cada um dos países estudados. Parece assim, ser aceitável estabelecer uma ligação entre o terceiro sector e a sua forma particular de intervenção social num dado espaço, tendo como pano de fundo as reminiscências mais ou menos abundantes das práticas sociais assistenciais e filantrópicas de tipo cristão. Não se pode concluir se esta ligação se dá a montante, ou seja na imaginação cultural de organizar o sector não lucrativo de um determinado país, ou a jusante, isto é, na própria constituição da rede do terceiro sector, com associações ligadas mais ou menos explicitamente às igrejas. Esta

cordão umbilical esborrata-se na medida em que as ONG e as organizações religiosas que as podem eventualmente inspirar, não se epifanizam nem do mesmo modo nem sob as mesmas regras e atributos. Daí que se pode dizer que existe uma possível ligação entre a tradição cultural religiosa ocidental e o perfil de intervenção de muitas organizações contemporâneas do terceiro sector. No que diz respeito à proveniência das receitas do terceiro sector, a situação também é diversificada e significativa para este debate. No geral, 47% das receitas do terceiro sector são geradas através do pagamento de inscrições e taxas e da comercialização de alguns segmentos dos serviços prestados; 42% são subsídios estatais ou fundos públicos disponibilizados pelos governos ou organizações internacionais. Apenas 11% das receitas provêm de doações privadas de carácter filantrópico. A tradição do modelo de subsidariedade relativamente ao Estado é mais forte na Europa e por isso o terceiro sector depende muito mais dos subsídios públicos para viver do que nos outros países. Na América Latina (mercado-pequeno sector não lucrativo-pequeno) e nos EUA (mercado-grande sector não lucrativo-grande) o terceiro sector depende efectivamente de um espectro de mercado para o qual fornece serviços e que o atrai inevitavelmente, para uma maior mercantiliza-

Teresa Cunha Outubro de 2007

O Futuro não é uma melhoria do presente; é outra coisa. 20 Reinventar a Emancipação Social ção das suas relações (ibid: 18). Na Europa central e de leste é a ajuda filantrópica através de fundações que predomina 9. A origem das receitas demonstrada pelo estudo realizado, pode ajudar a explicar a ambiguidade em que esta «economia social» se move: entre a possibilidade de se tornar subsídio-dependente e por isso, funcionar como linha avançada de uma progressiva falha do sector público estatal e através disso, ser um travão ou uma descaracterização das lutas sociais por mais direitos e maior participação política das comunidades nas decisões orçamentais públicas, ou na ausência de apoios públicos, se aproxima da lógica mercantilista, tornando-se numa espécie de vendedor de feira de produtos baratos, aos quais não se reivindica qualidade mas sim a faculdade de adormecer a necessidade. Em primeiro lugar não só revela a força económica enorme em que se transformaram, nos últimos tempos, as associações privadas sem fins-lucrativos, a diversidade regional da sua acção, a sua diferença organizacional, mas também que, em alguns países o terceiro sector se tornou num parceiro activo dos governos e dos sectores dos negócios e noutros, estas organizações permanecem frágeis e com um futuro incerto, com uma capacidade de intervenção diminuta, como parece ser claro acontecer em alguns países da América Latina. Apesar de todas as notas de ambiguidade ou de inconsistência Lester Salamon e Helmut Anheier concluem em favor do terceiro sector dizendo que este é

cada vez mais visto não como um luxo mas uma necessidade para toda a gente no mundo inteiro e que estas instituições podem dar expressão às preocupações dos/das ‘cidadãos/ãs’

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, tornar os governos responsáveis, promover a comunidade, responder a

necessidades e, em geral, promover a qualidade de vida. (ibid: 25). Esta confiança na economia social, terceiro sector, nas associações sem fins lucrativos, enfim, nas ONG que operam no espaço público não estatal, pode ser determinante para não liquidar à partida, todo o potencial emancipatório contido na sua acção e que ainda não está totalmente comprometido pelos problemas já identificados.

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Neste ensaio a geografia analítica não inclui a Ásia e a África pelo que muitas questões ficarão necessariamente em aberto e que serão objecto de trabalho em estudos posteriores. 10 Alteração da minha responsabilidade. Teresa Cunha Outubro de 2007

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2.2- As ONG como nódulos da rede da governação global! Prosseguindo a minha tentativa de compreender melhor, quais os espaços políticos ocupados pelo terceiro sector, quais os problemas que essa ocupação levanta e quais as potencialidades que gera inicio uma análise das relações institucionais e políticas que o terceiro sector mantém e que são parte essencial desta problemática. Parece-me seguramente significativo, no âmbito da advocacia pelas ONG, ter em conta, as suas relações com as Nações Unidas por representarem, neste mundo, um nó de indiscutível valor na tentativa de governação transnacional. Os postulados de confiança proferidos em favor das ONG são também aparentemente muito visíveis no seu relacionamento institucional com a ONU entendida como um patamar privilegiado de governação global. Ao utilizar as informações contidas no Relatório do Secretário Geral da ONU sobre as ONG, apresentado à 53ª sessão da Assembleia Geral, em finais de 1998, está escrito que a acção dos actores não estatais

tornou-se numa dimensão essencial da vida pública em qualquer lugar do mundo e um factor de mudança internacional. É afirmado com clareza que as Nações Unidas não querem nem podem iniciar o seu processo de reestruturação interna sem ter em linha de conta esta nova realidade, ou seja, as ONG. No relatório o Secretário Geral revisita todos os órgãos e agências da ONU para afirmar que todas/os desenvolveram processos de colaboração avançados com ONG de todo o mundo, e que a participação delas, ao nível formal e informal nos trabalhos e nas decisões da Organização aumentou significativamente, nas últimas duas décadas. É apontada que é realmente ampla a participação do sector não governamental nas Cimeiras promovidas pelas Nações Unidas nos últimos anos e que cada vez mais um elevado número de ONG adquirirem estatuto consultivo junto dos vários órgãos e agências da Organização. A título de exemplo, o Secretário-Geral diz que o Conselho Económico e Social acreditou 1350 ONG em 1999 enquanto que em 1948 apenas 41 tinham um estatuto consultivo. Também para as sessões plenárias da Assembleia Geral que tratam de assuntos de especial interesse para a sociedade civil em geral, são dadas acreditações às ONG para poderem participar nelas de forma activa. Ele lembra que, para discutir a Teresa Cunha Outubro de 2007

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implementação da Agenda 21, foram acreditadas 1000 ONG para que pudessem participar plenamente na sessão especial da Assembleia Geral em Junho de 1997. No que concerne às agências especializadas das Nações Unidas, o relatório revela que junto à UNICEF há pelo menos 191 organizações não governamentais, especializadas nos assuntos ligados à criança e família, com estatuto consultivo. Também o Programa das Nações Unidas Para o Desenvolvimento mantém estreita colaboração, partilha de informação e dados com um número importante de ONG que se dedicam ao desenvolvimento. Em resposta às solicitações deste tipo de organizações, o PNUD criou um Comité de Ligação para facilitar e desenvolver as relações já existentes. Também a FAO, o ACNUR e o Banco Mundial têm uma política de estreita cooperação operacional com as ONG especializadas em cada um dos sectores. Esta cooperação operacional chega a ser desenhada e implementada em conjunto participando as ONG nos diferentes níveis do processo de decisão. O relatório refere mais à frente, que os campos de maior cooperação institucional entre a ONU e as ONG são o desenvolvimento, a assistência humanitária, a informação pública e campanhas em defesa de algumas temáticas especiais como por exemplo: ambiente, paz, segurança, desenvolvimento, racismo, narcotráfico, saúde reprodutiva, pobreza e biodiversidade. Esta presença das ONG ao mais alto nível institucional no seio da ONU, o intercâmbio de informação e conhecimentos técnicos, os mecanismos de facilitação das relações inter-institucionais e de mútuo reconhecimento, são tão importantes que levaram à tomada de várias decisões de ordem inter-governamental, para a avaliação do contributo do terceiro sector na acção da ONU e de que este relatório é um resultado. Mas as medidas são variadas e são processadas a diferentes escalas. No seio do próprio Secretariado das Nações Unidas foi criado o departamento de ‘Coordenação dos Assuntos Humanitários’ que chama, em momentos de crise as ONG necessárias para responder aos problemas de forma imediata e eficaz. Para além deste departamento, foi criado o Inter-Agency Stan-

ding Committee que é um órgão de decisão política, composto não só por agências da ONU, tais como o ACNUR, FAO e a OCHA mas também a Cruz Vermelha Internacional, O Crescente Vermelho Internacional e mais três consórcios de ONG internacionais: O ‘InterAction’ (que envolve mais de 150 organizações privadas sem fins lucrativos especializadas em desenvolvimento e assistência humanitária), o ‘International Council of Voluntary Agencies’ (que congrega no seu seio 100 ONGD’s sediadas em África, Ásia, Pacífico, EuroTeresa Cunha Outubro de 2007

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pa, América Latina e América do Norte) e o ‘Steering Committee for Humanitarian Response’ que é uma das maiores ONG do mundo, na área da emergência e auxílio humanitário. Ao nível financeiro, só a título de exemplo, o ACNUR, para além das parcerias operacionais que manteve em 1997 com cerca de 500 ONG, financiou 443 organizações não governamentais, 931 projectos em 131 países de todo o mundo. O total do financiamento concedido nesta área foi, naquele ano, da ordem de 272 milhões de dólares americanos. O IFAD criou um Fundo especial para garantir um subsídio anual individual de 75 mil de dólares para apoio directo às ONG que trabalham com o micro-crédito à agricultura nas regiões consideradas as mais pobres do planeta. No trabalho para a «redução da pobreza’ o Banco Mundial, não só reconhece o trabalho realizado pelas ONG como destina, desde meados da década de 90, cerca de 50% do seu orçamento ao financiamento directo das organizações que se especializaram neste tipo de projectos Destas informações, penso ser útil, para já, assinalar três coisas: - Em primeiro lugar o espaço ocupado pelas ONG, ao nível inter-governamental que representa a ONU não é apenas de troca de informação e de colaboração informal mas é de colaboração na decisão política, muitas vezes, ao mais alto nível. O tipo de ‘participação’ ou ‘colaboração’ financeira, em alguns sectores, teve um crescimento muito significativo nos últimos anos o que deixa pensar que a ele está vinculado um certo tipo de poder de pressão no mínimo e de decisão no máximo, no desenho e implementação de projectos, exercido pelo sector não lucrativo; - Em segundo lugar este ‘espaço ocupado’, atravessa toda a estrutura da Organização, desde os departamentos especializados, as Agências e Programas até aos Órgãos de Gestão, como o Secretariado e a Assembleia Geral. Isto pode querer dizer pelo menos duas coisas, a saber: o trabalho das ONG é de tal forma relevante, interessante, pertinente e sério que se torna indispensável incluir os seus contributos aos mais diversos níveis de governação global e/ou, pode também querer dizer, que o terceiro sector é poderosíssimo, não só do ponto de vista económico, como mostra o estudo referido anteriormente, mas é também poderoso em termos políticos, sendo este espaço ocupado na ONU a manifestação inequívoca deste poder. - A terceira coisa, e que me parece não ser totalmente inesperada, é o facto de a cooperação, política, institucional, operacional, de comunicação e de transferência financeira, entre as ONG e a ONU, se concentrar nas áreas da Assistência Humanitária e do Teresa Cunha Outubro de 2007

O Futuro não é uma melhoria do presente; é outra coisa. 24 Reinventar a Emancipação Social Desenvolvimento (que nos últimos três anos se disse primeiro ‘erradicação da pobreza’ e depois ‘combate à pobreza’). Este deslizamento do princípio do direito ao serviço para o princípio do alívio parece-me bastante interessante e significante para esta análise. Esta transição pode fazer pensar que o primado já não é a irredutível dignidade humana operacionalizada em códigos de conduta e princípios normativos reciprocamente reconhecidos mas passa a ser dado a uma espécie serôdia de caridade, fundada numa ética assistencialista que não pretende tocar o fundo do problema mas apenas actuar ao nível dos seus sintomas. E como os sintomas têm muito mau aspecto, é preciso aliviar; aliviar talvez em primeiro lugar, os nossos olhos e a nossa consciência11 através da grandiosidade das campanhas, dos meios e dos recursos postos nesse ‘alívio’. Este trânsito funda-se ainda no mesmo conformismo paralisante da crise normativa e institucional do Estado moderno e da despolitização do Estado e a consequente proliferação de múltiplos legisladores (Santos, 2002: 18) que produzem esta desordem hipervisível no incomensurável sofrimento de enormes massas de pessoas humanas, sujeitas a qualquer tipo de violência e mediadas pela especulação da comunicação de massas. As causas da violência e do sofrimento destas multidões de seres humanos, são estruturais. Sabe-se que a violência não pode ser resolvida só, ou sobretudo, com mais polícia, ou missões militares de imposição ou manutenção da paz, muitas vezes arriscadas e totalmente ineficazes e escandalosamente onerosas. Ela tem a ver com as profundas desigualdades sociais, económicas e políticas geradas por um modelo de desenvolvimento ao qual foi roubado a sua humanidade (Freire, 1975); é a violência que decorre dos permanentes genocídios, dos epistemicídios, dos sistemas de hiper exclusão e da mercantilização de quase tudo. Da ausência quase total de qualquer expectativa de uma tão larga faixa de pessoas e grupos, torna possível qualquer explosão de violência, a qualquer escala e de quase todas as dimensões. E se para a comunidade internacional o resultado é de horror então a mesma comunidade internacional (ONG incluídas) não tem conseguido mais do que re-inventar à exaustão medidas cosméticas na mesma proporção. A assistência humanitária, tornou-se um fim em si mesma, simulacro de uma generosidade em si mesma fátua, que apenas atrasa por um pouco mais a morte inevitável ou no mínimo, alivia prolongando o sofrimento da extrema indignidade. 11

Quer o relatório quer a minha própria observação só pode ser feita a partir do tal «norte rico» porque é ele que menos suporta «ver» a pobreza porque sabe que é a imagem invertida do nosso bem-estar, no espelho do sistema-mundo. Teresa Cunha Outubro de 2007

O Futuro não é uma melhoria do presente; é outra coisa. 25 Reinventar a Emancipação Social E porque estão as ONG no coração da concretização deste deslizamento do compromisso pela cidadania ampla e inclusiva e a aceitação progressiva da degradação da irredutibilidade da dignidade humana em múltiplas ‘terras de ninguém’? Este é um assunto interessante e curioso porque nem um discurso realista, baseado nos mais mesquinhos interesses económicos ou de estatuto o explicam. Em primeiro lugar porque há a evidência empírica que muitas ONG e pessoas voluntariamente se arriscam e perdem tudo, até a sua própria vida, intervindo e acreditando poder salvar da miséria humana e da morte milhares de pessoas, com um profundo sentido de justiça global. Por outro lado, um discurso angélico e simplista torna-se também inaceitável porque se sabe que estas operações são extremamente caras e que envolvem meios humanos e logísticos importantes e difíceis de obter e coordenar. Politicamente estas operações são delicadas, não prescindem de competências de negociação sofisticadíssimas e de poderes de pressão elevados. Assim, quem participa nelas obtém, necessariamente, uma credibilidade e também meios, absolutamente indispensáveis para fazer uma carreira de sucesso. Para qualquer ONG, para intervir activamente no jogo político, nacional, internacional e se for o caso, transnacional, tem que conhecer os discursos, as práticas e os termos de negociação da hegemonia política que sanciona, ou não, tais operações. Esta análise não pode então, fundar-se numa generalização sobre a bondade ou a maldade «natural» das ONG. Ela precisa de ser vista à luz de critérios mais adequados e mais democráticos. Tentarei fazê-lo mais tarde. A segunda arena de actuação privilegiada é o desenvolvimento. É neste campo de actuação que mais facilmente podemos encontrar relações de tipo neocolonialista, entre as ONG do Norte a operar ou a cooperar com as do Sul, de colonialismo interno12 ou de colonialidade13, usando a terminologia proposta por Boaventura de Sousa Santos, no seio das ONG do Sul mas podemos ver também um campus de oportunidades e de inversão do

status quo, no que respeita ao desenvolvimento, aos seus modelos teóricos e às acções empreendedoras de alternativas

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Ou seja, o continuum entre as relações sociais no quadro de poder colonial e um quadro político de pós-colonialismo. Ou seja manter no, senso comum e nas práticas sociais relações de tipo colonialista, ou seja, a replicação das relações colonialistas internamente, não superando a antinomia entre colonizado e colonizador, apenas mudando os protagonistas. Ver, entre outros, Enrique Dussel e Eduardo Langer. 14 Grande parte das propostas alternativas e emancipatórias têm como principais protagonistas organizações sem fins lucrativos: sindicatos, organizações ambientais, de defesa dos direitos indígenas, entre outras. Muitas vezes é visível através dos textos que produzem ver a cooperação estreita entre as ONG e comunidades de cientistas que colaboram para produzir conhecimentos mutuamente qualificadores e úteis socialmente. 13

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Os contributos das ONG são importantíssimos nesta área e as Nações Unidas, não são apenas um instrumento dos Estados poderosos do centro do sistema-mundo. Nela trabalham pessoas e grupos de pessoas que vão criando oportunidades, rupturas, novas experiências, recuperando vozes, coligindo números em estatísticas assombrosas e fazedoras de opinião. Mais uma vez esta relação forte com o poder de decidir e fazer, é portadora de uma ambiguidade que tanto pode alimentar a esperança pela auto-determinação e a felicidade como a tragédia da exclusão. O relatório do Secretário Geral da ONU afirma também que as ONG têm uma capacidade única para reunir apoio público em torno de uma causa, fazer aumentar a consciência e o conhecimento dos problemas mais importantes do mundo e advogar internacionalmente por causas diversas com considerável êxito. Ele diz ainda que as ONG são fiáveis porque prestam contas localmente, fazem avaliações e apreciações dos problemas com independência e isenção, reúnem um conjunto notável de conhecimentos especializados nas suas áreas de interesse, são capazes de ser leais aos seus compromissos e disseminam de forma eficaz a informação. Aponta ainda a flexibilidade na acção, o alto grau de compromisso e participação pessoal e a proximidade às comunidades locais como potencialidades altamente positivas do sector não lucrativo. Esta enunciação, não foge ao que normalmente se associa serem as principais características do terceiro sector. Este enunciado tem também outra característica em comum com as análises correntes sobre a questão pois é apresentado em termos dicotómicos: de uma lado a ‘sociedade civil’ próxima das pessoas e o Estado (ou os Estados) longe; a ‘sociedade civil’ flexível e o Estado (ou os Estados) burocrático; a fiabilidade da ‘sociedade civil’ e a corruptibilidade do Estado (ou dos Estados). Esta forma de anunciar e denunciar, a incompatibilidade entre a «natureza» do Estado e a «cultura» das ONG pode estrangular a lucidez necessária para converter, estrategicamente, umas e outros em movimentos, organizações, associações de práticas e interesses, que nos conduzam a uma outra realidade e não apenas a uma melhoria cosmética e redutora do nosso presente. Por outro lado o relatório não deixa de elencar dificuldades e constrangimentos das e do trabalho com as ONG. Um primeiro conjunto de dificuldades prende-se com a quantidade e diversidade das organizações do terceiro sector: existe um enorme número de organizações não governamentais e uma enorme diferenciação entre elas, quer em termos de cultura e modo organizacional quer de áreas de interesse e ainda de tamanho. Em Teresa Cunha Outubro de 2007

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seguida fala-se da debilidade organizacional da maioria das ONG, nomeadamente as que são de base local ou que actuam localmente, a sua dependência económica que mina a sua independência ideológica e operacional e sua própria sustentabilidade a médio e a longo prazo. Refere-se ainda que as divergências e rivalidades entre as ONG são um considerável obstáculo à cooperação e ao diálogo institucional no seio da ONU e ao nível da cooperação inter-institucional. Ao nível das negociações inter-governamentais, as posições de contraste e por vezes até de conflito, entre as ONG e os governos, tornam muitas vezes insustentável, a colaboração. Apesar destes dois conjuntos de proposições analíticas se fundarem em parâmetros avaliativos de tipo ocidental, propostos por pessoas e organizações, digamos assim, pouco preocupados com questões de diálogo intercultural e mostrarem um clara predominância das ONG ocidentais e do norte, nos processos de decisão e nos lugares de poder, e por isso não incluem uma visão do sector a partir do sul, não ocidental e não judaico-cristã, estamos perante um quadro que nos permite pensar que, as ONG a nível global têm um peso económico e político considerável, são canais de comunicação privilegiados com as sociedades, ainda têm um estatuto de confiabilidade elevado, actuam em qualquer lugar do planeta, em diferentes escalas participando nas estruturas de governação global, disseminadas na «desordem normativa» actual quer a norte, quer a sul. No entanto devemos manter uma hermenêutica da suspeita intensa relativa aos termos desta discussão dicotómica entre as ‘boas’ e as ‘más’ ONG. Esta abordagem empírica e epistemológica é absolutamente inadequada para a análise da importância social e política do terceiro sector nos tempos de múltiplas e poderosas globalizações: as que tendem a aprisionar em «zonas selvagens» maiorias de pessoas excluídas e a salvaguardar em «zonas civilizadas» uma pequena minoria de beneficiários quase absolutos e outras qualidades de globalizações que procuram alternativas concretas, para tempos e espaços concretos e que pretendem na diversidade das perguntas manter a diversidade das respostas. Na imbricação, na articulação ou na oposição destas forças presentes na bifurcação a que assistimos, estão as ONG interpretando e agindo de forma complexa, o nosso mundo. 3- Entre a virtude e o vício

Teresa Cunha Outubro de 2007

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Decorrem da análise feita até agora algumas ideias que podem ajudar a prosseguir esta reflexão, que se move entre a argumentação epistemológica e a convicção militante de que o conhecimento, a epistemologia só deixa de ser pura estética, rigor mortis se tiver uma causa social assim como a acção sem a reflexão e o conhecimento é apenas uma

brincadeira de crianças. Produtos das lógicas fundadas pela modernidade ocidental, as organizações não governamentais e sem fins lucrativos, espalharam-se por todo o mundo a ritmos, com motivações e com utopias diferentes. Entre a possibilidade de serem as «testas de ferro» das políticas do pensamento único e a virtude de serem as principais fazedoras de um outro futuro, as ONG movem-se por entre discursos e narrativas sobre o nosso mundo que às vezes se antagonizam e outras vezes se dicotomizam apenas. Raramente os produtos são consensos robustos mas parece ser perfeitamente aceitável que elas estão por todo o lado e são provavelmente o rosto visível das muitas e diversas alternativas experimentadas, depois do que foram os grandes movimentos internacionalistas operários e feministas da primeira metade do século XX e os movimentos pelos direitos cívicos e anticoloniais dos últimos cinquenta anos. Hoje, são sem dúvida, uma parte importante dos novos movimentos sociais (NMS) que reinterpretam as novas contradições e condições sociais do nosso mundo pós-moderno. Eles movem-se entre posições conservadoras (da preservação das riquezas naturais, e do purismo intocável original das comunidades culturais, por exemplo) até posições alternativas extremamente avançadas de reivindicação de novos lugares, espaços e tempos de habitalidade humana e das suas interacções com o mundo e a natureza. Elas estão a con-gerar um novo ethos de novas práticas sociais, ainda disperso em discursos múltiplos, em justaposições programáticas, em coligações temporárias, e numa desordem contestatária ora táctica ora estratégica. Usando duas narrativas, referenciadas a dois tipos de experiência diferentes, e procurando re-intrerpretar o espectro analítico usado atrás, procurarei recuperar, de uma forma mais concreta, as possíveis virtudes e vícios do terceiro sector no contexto actual das globalizações.

Teresa Cunha Outubro de 2007

O Futuro não é uma melhoria do presente; é outra coisa. 29 Reinventar a Emancipação Social 3.1- O Fórum Social Mundial de Porto Alegre: uma experiência cosmopolita15 O Fórum Social Mundial de Porto Alegre é um ‘movimento de movimentos’, envolvendo algumas dezenas de milhar de pessoas que reclamando todas, a possibilidade de uma mudança paradigmática e fazem-no reivindicando também a sua autonomia e a sua especificidade. Perto de 60 000 pessoas de 150 países encontraram-se em Porto Alegre, no Estado do Rio Grande do Sul no Brasil, no início de 2002 para, através das centenas de oficinas (800), promovidas pelas organizações presentes, as dezenas de conferências e outros actos públicos, discutirem e manifestarem posições distintas mas que convergem nas utopias que se encerram no slogan adoptado: «Um Outro Mundo é Possível». Na verdade o ambiente durante todos os dias e noites do Fórum, parece descontraído mas preocupado, no sentido mais filosófico da palavra, em discutir profundamente e com toda a seriedade as propostas que as agendas locais, nacionais e transnacionais põem em cima da mesa. Havia uma mistura muito própria de ócio e negócio no campus da PUC16 e em todos os outros lugares da cidade de Porto Alegre onde aconteciam, simultaneamente seminários, exposições, concertos e encontros. Dezenas de oficinas e conferências decorriam enquanto artistas faziam os seus espectáculos nos passeios das ruas, muitas tendinhas se instalavam para vender produtos de toda a parte, cozinheiras cozinhavam, mulheres ou sindicatos promoviam manifestações. Passavam-se abaixoassinados, cantavam-se velhas e novas canções e os termos de água quente para o chimarrão iam circulando ao sabor do gosto das/os muitas/os gaúchas/os que estavam presentes. Gente famosa e anónima, velhas/os e novas/os e de todas as idades, artistas e monjas, ecologistas e feministas, políticas/as e pastoras/es. Toda a gente se movia por ali, encontrando motivos para participar nesta ou naquela iniciativa. A cidade de Porto Alegre também se mobilizou para receber toda aquela gente: hospedagem solidária para quem não tinha recursos, frotas de taxistas e autocarros disponíveis e com itinerários suplementares, restaurantes a preços especiais. Muitas festas, manifestações e esplanadas multicolores e ao som de todas as línguas, o bom humor foi espalhando um toque de um cosmopolitismo, diferente daquele que se encontra nos «under ground» ou no metro de Paris ou 15

Este capítulo tem como base empírica o Fórum Social Mundial que teve lugar em 2002 na cidade de Porto Alegre no Brasil. Por este motivo as propostas analíticas devem ser lidas tendo em consideração esta datação. Tenho consciência que passados cinco anos muitos outros elementos e problemas devem ser considerados para tornar esta leitura mais pertinente e actualizada. 16 A Pontífica Universidade Católica Teresa Cunha Outubro de 2007

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Nova Iorque, e deu à cidade, para além de tudo mais uma agitação saborosa, tensa mas sem ser agressiva. A organização do Fórum foi extremamente eficaz sem se tornar burocrática e milhares de voluntárias/os jovens, que se reconheciam apenas pela sua camiseta, estavam sempre a postos para informar sobre mais ou menos tudo. O conjunto das propostas que entraram para o programa do Fórum é significativo e é um excelente exercício, consultar o jornal que foi publicado em português e inglês e que tem 72 páginas, com a descrição dos assuntos, lugar, hora e organização responsável por cada iniciativa. Este simples exercício descritivo leva-nos a uma primeira constatação: o FSM é já uma ecologia de sentidos. Afinal o movimento foi manifestamente de inclusão, procurando não ter uma atitude sectária perante as propostas das organizações participantes. O critério de inclusão é apenas a subscrição da Carta de Princípios do FSM. Talvez fosse fácil porque quem foi até Porto Alegre, de uma maneira ou de outra acredita que «um outro mundo é possível» e acredita que esse mundo possível difere daquele que temos, fundamentalmente na distribuição da riqueza, na consideração de que são inalienáveis os direitos de cada ser humano e de cada comunidade na sua íntima relação com a cultura e a natureza. Apesar de uma espécie de convergência pragmática, no que diz respeito ao que se tem de mudar e em que sentido global, a diversidade era a principal característica do FSM e por isso a sua riqueza. A paz, a arte, a agricultura, a comida, a água, as minorias, as questões indígenas, a economia, tudo se tornou, durante aqueles dias, nuclear para tratar do futuro recusando a lógica da pura e necessária regulação de tudo pelos mercados financeiros de Paris, Frankfurt, Nova Iorque e Tóquio. O imaterial emergiu e não apenas os preços dos mercados, as linhas dos gráficos das evoluções ou involuções das economias e de como chegar primeiro às riquezas, às matérias primas, à propriedade, tomou conta da realidade material concreta. O FSM não produziu até agora, nem certezas nem leis. Aponta caminhos, reconhece experiências, reivindica algumas soluções possíveis. Ele é um movimento social que tem a emancipação como sua principal heterotopia e sabe que a ecodiversidade da democracia é talvez o primeiro e mais necessário passo para mudar alguma coisa de forma consistente. Mas para além do encontro, das trocas, da festa, da acção política, quais as limitações do FSM, que problemas, que perguntas nos obriga a formular e que dificuldades devem ser enunciadas. Teresa Cunha Outubro de 2007

O Futuro não é uma melhoria do presente; é outra coisa. 31 Reinventar a Emancipação Social Uma simples observação conjugada com uma análise da literatura distribuída pela organização do Fórum mostram que há pouca participação das Ásias e das Áfricas. Porto Alegre é longe e é caro e a globalização ainda não democratizou o mundo de tal forma que se vençam facilmente os obstáculos da mobilidade entre fronteiras e preços dos transportes. Precisa-se então, de fazer deslocar o FSM, de o globalizar mais em termos geográficos, métodos, visões, formas de mobilização e acção social e política. Precisa-se de levar o FSM para lugares de maior acesso àqueles continentes do planeta e apostar em outros modos de participação, mais criativos e mais inclusivos. Por outro lado valerá a pena questionar-se sobre se o FSM é ou pode ser uma resposta consciente, lúcida e militante ao que querem fazer de nós sem permissão nem consentimento: massas de pessoas sem trabalho, sem dignidade, sem protecção legal, sem a possibilidade e o poder de auto-determinação. É minha hipótese que esta configuração de movimento de movimentos, de ausência de um pensamento profético que nos projecte para uma escatologia tão prometida quanto improvável, teimando em actuar e pensar o presente, talvez esta centralidade da diversidade seja já, em si mesma, um mundo outro. Uma outra visão de vida colectiva a nível planetário que de forma titubeante se esteja a congeminar ou então talvez seja a requisito para uma nova reflexividade sobre o mundo e portanto um pressuposto diverso da acção que pode minar o império do pensamento úni-

co que agora nos quer esmagar. Mas tenho como acertado e sensato que o entusiasmo, a esperança e os processos que estão presentes no FSM e nos movimentos temáticos, continentais e regionais que se lhe seguiram, não nos podem contentar demasiado e por isso fazer-nos parar ou afrouxar a determinação de pensar e fazer usando o que Paulo Freire dizia ser a dialogicidade da libertação (Freire, 1975). Não podem muito menos, evitar o exercício contínuo de uma crítica aguda, sempre necessária, para que se possam compreender os perigos e armadilhas colocadas aos Novos e Velhos Movimentos Sociais17 e a esta possibilidade de impacto global de um movimento de movimentos também global, por alternativas radicais. É preciso manter o horizonte da Democracia de alta intensidade e da Paz no topo das agendas de qualquer modo de ser Fórum Social Mundial, num 17

Tenho consciência da instabilidade que perpassa o texto ao utilizar, numa primeira fase, os termos ONG e Terceiro Sector e numa segunda fase passar a utilizar com maior frequência Movimentos Sociais e Organizações. Esta distinção conceptual não foi trabalhada neste texto sendo-o num texto que apresento em seguida. Embora essa instabilidade possa ser portadora de alguma ambiguidade ou falta de um extremo rigor teórico, ela não impede a/o leitora/or, do meu ponto de vista, de compreender que me refiro a todas as organizações que não sendo governamentais nem empresariais ou com fins lucrativos fazem parte do espectro complexo e ambivalente que o contrato social moderno suscitou. Teresa Cunha Outubro de 2007

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amplexo de diálogo e humildade perante os desafios que a cada momento, pessoas e sociedades enfrentam e precisam de vencer, não através do aniquilamento da/o ‘Outra/o’ mas para inventar novas sínteses de ‘bem comum’, de ‘casa comum’, de ‘mesa comum’ e de ‘esperança comum’. 3.2- Uma ONG de base pode também ser cosmopolita Qualquer projecto e utopia de mais e melhor democracia supõe a participação da comunidade, configurada, por exemplo nas ONG, na construção de um espaço público, no sentido de uma subjectividade marcada por relações de cooperação e solidariedade, no governo das coisas públicas e no qual, as relações de produção de poder e do exercício desse poder devem ser enformadas de práticas de uma democracia de alta intensidade. Porém podem ser identificadas algumas constelações de problemas ou de obstáculos que as ONG devem considerar sempre e atentamente, para tentar construir soluções ou respostas numa perspectiva crítica e sob a utopia de uma Democracia Sem Fim. A reflexão que se segue refere-se sobre a minha própria prática enquanto militante e dirigente duma organização sem fins lucrativos com base local e articulações nacionais e internacionais. Como as Organizações Não Governamentais, são entidades que gozam das ambiguidades acima analisadas, ou seja, produtos modernos com ambições pós-modernas, elas não são geradas (directamente) e geridas pela administração pública, ou seja, pelos Estados e neste sentido, gozam do «privilégio» e da reputação de poderem agir de forma independente e desinteressada, sem terem que se sujeitar às pressões e interesses considerados inerentes à luta pelo poder de governar, à luz do senso comum, sempre corrupto ou corruptível. Ao mesmo tempo, em grande medida nalgumas regiões do mundo, nomeadamente na Europa, elas são mantidas através de financiamentos dos Estados ou por organismos transnacionais que ainda operam, no âmbito duma lógica eminentemente estatal ou inter-estatal, como por exemplo, a União Europeia, o Conselho da Europa e a ONU. Por outro lado, apresentam-se a intervir em territórios e em problemas eminentemente sociais e políticos (educação, saúde, desenvolvimento, assistência humanitária, narcotráfico, biodiversidade, pobreza, direitos das mulheres) que não são de todo, incon-

Teresa Cunha Outubro de 2007

O Futuro não é uma melhoria do presente; é outra coisa. 33 Reinventar a Emancipação Social tamináveis ou desinteressantes, por diferentes razões, aos projectos de qualquer Estado ou governo e são claramente domínios de interesse para o mercado. Estes dois problemas a que o terceiro sector se vê permanentemente confrontado, a dependência do Estado ou mercado e a manipulação política da acção pública não estatal tornam-se bastante evidentes quando um Estado ou um conjunto de Estados, fazem surgir, através do Estado fraco, da liberalização da economia e da noção minimalista de democracia (Santos, 2002: 26-27) múltiplas formas de ONG, de forma regulada e controlada18. As chamadas IPSS19 ou alguns sectores dos movimentos juvenis, ou ainda muitas das associações para o desenvolvimento local no caso português, parecem-me um bom exemplo desta indução política, causa e consequência da estratégia neoliberal que está instalada de forma cada vez mais inequívoca na sociedade portuguesa. Muitas vezes estas associações intervêm com um mandato difuso e sem uma verdadeira estratégia de participação de baixo para cima, que decorre da artificialidade da sua própria emergência enquanto associação de interesses comuns, radicados na horizontalidade de relações entre as partes e dando o primado à acção da comunidade sobre o Estado e o mercado. Outras ainda, têm mandatos precisos mas porque são emanações de redes de poderes já existentes (as IPSS ligadas às igrejas cristãs, nomeadamente a católica romana e misericórdias são disso um bom exemplo), retomam património, benefícios fiscais e novas ascendências sobre as comunidades. Alguns argumentos têm servido mutuamente e publicamente para a consolidação desta progressiva desarticulação entre a acção política e a intervenção social que se traduz ambiguamente e sem explicações nos discursos contemporâneos por «reforço da sociedade civil» ou por «complementaridade entre a acção do Estado e da sociedade civil». O termo e o conceito desta ambiguidade foi encontrado: sociedade civil. É com o obscurecimento desta entidade propositadamente difusa que o rompimento entre o social e o político se vai consolidando e a reorganização dos poderes que gerem as ‘coisas’ públicas e as ‘coisas’ privadas se vai produzindo. Usa-se e abusa-se das dicotomias entre estes espaços e tempos organizacionais, esvaziando as suas articulações virtuosas os seus conteúdos de confrontação e resistência e reforça-se a retórica dominante diluindo em 18

É claro para mim que se trata de uma política marcadamente liberal, que nunca viu com bons olhos que os direitos de 2ª geração, os sociais e económicos, fizessem parte do conjunto de garantias a serem promovidas, asseguradas e fiscalizadas pelos Estados, de forma a exercer um controlo positivo sobre a lógica predatória e canibalista do mercado, considerando a comunidade como a beneficiária, por excelência, desses mesmos direitos. 19 Instituições Privadas de Solidariedade Social Teresa Cunha Outubro de 2007

O Futuro não é uma melhoria do presente; é outra coisa. 34 Reinventar a Emancipação Social labirintos argumentativos a potência de um lugar e de uma temporalidade (múltipla e diversa como o são as comunidades) que se podem tornar deste modo simultaneamente, de liberdade ou de potencial regulação antidemocrática. O labirinto argumentário hegemónico elabora-se em torno de velhos e conhecidos pressupostos retóricos, tais como: a capacidade das ONG de fazerem coisas com menos dinheiro e com maior grau de eficácia porque possuem o capital da participação de várias/os actores e actrizes sociais, contam com trabalho voluntário, estão mais próximas das comunidades a quem dirigem a sua intervenção, têm múltiplas competências adquiridas no terreno e pela experiência de resolução de problemas e são catalisadoras da generosidade intrínseca do «bom cidadão»20. Até aqui a minha/nossa experiência não traz nada de novo. Todos estes argumentos podem ser simultaneamente verdadeiros e falsos porque já sabemos que nesta transferência para as ONG, de responsabilidades, competências e dinheiro, se pode construir a acção emancipatória de uma reciprocidade cada vez mais ampla e inclusiva ou uma espécie de promoção do remendo social e do autoritarismo político. Podemos ver na geografia do terceiro sector a operacionalização político governamental do chamado «reforço da sociedade civil» e as contradições e perversões que esta gera. Existem de facto uma quantidade considerável de ONG cujas existências mais longas ou mais curtas, com bases mais locais ou mais abrangentes, com culturas mais comprometidas socialmente ou mais particulares, que são hoje mantidas e financiadas substancialmente pelo Estado e que por motivos diferentes se já afastaram muito, das dinâmicas associativas de baixo para cima, quer nas suas práticas quer na sua forma de entender as suas próprias finalidades. Sujeitas aos ‘contratos-programa’ impostos pelas políticas sociais do Estado, elas vão-se ‘desviando’ das suas preocupações fundadoras de prestação mútua de apoio, reivindicação de mais direitos e de luta por maior e mais bem estar, lazer e dignidade para as suas comunidades. Muitas destas organizações não governamentais vão plasticamente modelando a sua existência num trânsito entre as suas origens de tipo pré-contratualista, isto é, tentando dar resposta aos problemas que o Estado e o mercado não resolveu nunca, para formas de exercício pós-contratualista, ou seja, prestando-se a serem a emanação da lógica de amortecimento das explosões sociais que a exclusão aca-

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Como o próprio Kofi Annan reconhece no seu Relatório à Assembleia Geral da ONU Teresa Cunha Outubro de 2007

O Futuro não é uma melhoria do presente; é outra coisa. 35 Reinventar a Emancipação Social ba sempre por provocar assumindo a precariedade societal dos nossos dias, como finalidade existencial própria, sem crítica nem demanda ideológica e política. Por outro lado, cada vez mais nos confrontamos com organizações do terceiro sector que usam sem rebuço o elogio do pobre e de uma acção assistencialista, politicamente neutra, como forma de exercício de uma cidadania a que se chama sempre solidária. Contudo, muitas vezes é minha convicção que esta ‘assistência à pobreza’ pretende assentarse na naturalização da sua existência e as relações sociais que presidem à injustiça que a produz e a que esta solidariedade responde sem fim nem finalidade social de mudança estrutural. Eu estou persuadida que estamos perante diversas formas de autoritarismo social que enformam em grande medida, os discursos assistencialistas/caritativos do nosso panorama associativo e estou convicta que não somos impunemente herdeiras/os das relações fascistas que o regime de Salazar nos legou e que impregnam e marcam bastante, ainda hoje, a nossa imaginação social e organizacional, com um romantismo bacoco acerca da pobreza e da assistência social e sobretudo a delegação na ‘autoridade’, qualquer que ela seja, a capacidade de pensar e construir uma sociedade diferente. Para além do que já mencionei acima vejo problemas a outros níveis como seja a própria natureza das principais receitas e a forma de gestão deste dinheiro. O dinheiro público (e até privado) de que vivem e gerem as organizações carece ainda de um controlo democrático e não regulatório-burocrático21 quer por parte das entidades/pessoas financiadoras, através de procedimentos adequados à dimensão e à intervenção das organizações, quer por parte das comunidades que são as verdadeiras destinatárias em princípio, desses meios financeiros e da sua aplicação. Os contratos programa são raros e muitas vezes inadequados, o sistema de prestação de contas é eminentemente burocrático e não produz por isso, conhecimentos relevantes de práticas de boa gestão

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. Por falta de

flexibilidade e de uma visão qualitativa da gestão e da intervenção a médio e longo prazo 21

A burocratização da prestação de contas administrativo-financeiras tem sido na última década um dos principais instrumentos de controlo político e operacional assim como de inviabilização de experiências consideradas mais arrojadas e desviantes das políticas centralistas do poder público. Veja-se, por exemplo e a este propósito, o sistema de elegibilidade para o financiamento, o reembolso de despesas e, complementarmente, a situação económica-financeira dos sectores associativos de intervenção independente, territorializada e comprometidos com as mudanças concretas e materiais das populaces com quem trabalham. 22 As subvenções atribuídas são submetidas por regras contabilísticas inadequadas e que emanam das práticas administração pública; as partes ou «tranches » são pagas sempre com atraso exigindo medidas de esforço de tesouraria que obrigam as associações a compromissos quase sempre comprometedores da qualidade final das suas acções, as exigências na justificação documental das despesas promove a fraude por pressupor uma capacidade absolutamente inapropriada de geração de receitas próprias para co-financiar as acções não se tratando na maioria das vezes de um requisito de cooperação mas sim de espartilho orçamental, senão veja-se a título de exemplo, os contratos –programa o Instituto Português da Juventude. Teresa Cunha Outubro de 2007

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e dos impactos que a acção das ONG deve ter, as boas práticas têm dificuldade em se consolidarem numa cultura organizativa frágil e ainda incapaz de construir um conhecimento reflexivo e prático do qual se poderá arrancar, com mais ousadia e mais inovação, uma acção emancipatória da sociedade/comunidade portuguesa. A contínua condição de quase indigência económica da maioria das associações portuguesas, grandes e pequenas, torna-as reféns de um espírito, acção e pensamento conservadores. Uma manifestação desse conservadorismo que toca quase o espírito da não confrontação pela sobrevivência, pode ser ouvido nos discursos para dentro mas sobretudo para fora, da maioria das/os responsáveis pelas ONG, nomeadamente as grandes ONG (que têm muito mais dinheiro a perder). Os seus discursos em pouco se distinguem das retóricas governamentais ou partidárias; nas narrativas sobre o poder, no enunciado das prioridades, na concepção dos orçamentos, as linguagens de umas e de outros confundem-se. Um dos instrumentos mais significativos para ver como esses discursos são construídos, são os processos de financiamento e de prestação de contas sobre o dinheiro público atribuído às ONG. Uma análise mesmo superficial aos formulários, procedimentos e processos de candidatura a subvenções e à prestação de contas, poderá facilmente demonstrar como a lógica da corruptibilidade, a que as ONG pareciam, e muitas vezes reclamavam estar ‘imunes’, facilmente se pode transformar numa prática discursiva de negociação, baseada em pressupostos inflacionados sobre a auto ou hetero (depende de quem fala mas os conteúdos podem ser idênticos) vitalidade necessária para construir uma solução que responda a uma determinada necessidade, identificada por algum procedimento administrativo e cuja legitimidade radica numa lógica qualquer de cima para baixo. Acertar a realidade com as actividades das ONG e com as prioridades estabelecidas pelo governo ou pelos programas da União Europeia, descobrir as palavras-chave dos filtros dos programas informáticos de análise de candidaturas, tornam-se muitas vezes, infelizmente, na verdadeira obsessão e finalidade social das ONG. Esta clara cooptação discursiva é o primeiro passo para uma mudança qualitativa na acção independente das ONG. Mas perante as ameaças de cooptação e de manipulação a mudança, pode no entanto, assumir um carácter de radicalização para uma posição de participação do princípio da comunidade no projecto de criação de sociabilidades alternativas ao modelo neo-liberal. Isso tem sido visível no curto mas muito interessante cami-

Teresa Cunha Outubro de 2007

O Futuro não é uma melhoria do presente; é outra coisa. 37 Reinventar a Emancipação Social nho do Fórum Social Português 23. Por isso os discursos, as palavras não são indiferentes e não são só uma forma de conhecimento são também uma forma de existência. Por outro lado e apesar das dificuldades materiais objectivas penso que o estilo de auto-vitimização por vezes predominante e de queixume das ONG em Portugal deveria substituir-se pelo desenvolvimento de novos modos de dizer as lutas, as reivindicações, as articulações entre interesses comuns com as suas parcerias associativas e institucionais assim como assumir linguagens substantivas e não tanto adjectivas e vazias de conteúdo político. As narrativas devem saber dizer o que são as coisas que realmente se querem, se fazem e como se fazem e não ser apenas, declarações de intenções, auto-relatos trágicos, às vezes profundamente fúteis e hipérboles sobre a auto-indispensabilidade social e que pouco ou nada dizem sobre si nem sobre a sociedade e os horizontes utópicos que as fazem existir e porventura avançar, juntamente com os seus projectos. Por oposição às narrativas da desesperança e da inutilidade da acção do nosso tempo (sobretudo aquela acção que se projecta no futuro já espera impaciente pelas mãos fazedoras dos seus rostos), podem e devem as ONG, criar narrativas da resistência e de possibilidades reais e concretas, consubstanciadoras de tantas alternativas quanto as imaginações podem fazer emergir. Um outro modo de repolitzar a acção das ONG em Portugal pode ser o reforço do vínculo dos sujeitos, individuais ou colectivos, às suas histórias acontecidas e para acontecer, no sentido de quem toma, de facto, nas suas mãos o seu próprio ‘destino’. Se o vínculo se desfaz há outras maneiras de ‘inventar’ finalidades sociais. Elas auto-geram-se em procedimentos tecnocráticos, numa participação transformada em activismo quase autotélico e acéfalo. Vemos isso por exemplo facilmente, na estruturação de uma equipa de trabalho que só se encontra para discutir os detalhes técnicos do que se vai fazer em seguida. O porquê e para quê são perguntas incómodas e irreais: estão escritas segundo os cânones administrativos, nas folhas de rosto dos pedidos de financiamento. Podemos ver isso no orçamento duma associação em que muitas vezes, uma parte substancial dos recursos são gastos num corpo ‘técnico’ cuja causa «emancipatória» se resume, em grande medida, em saber de cor ‘em que lado da gaveta se arruma aquele papel’

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. A trans-

formação, a criação, a inovação, a acção tornam-se muitas vezes em subsídios pobres ou 23 24

veja-se a propósito a «Declaração de Coimbra» e as actas da reunião plenária do FSP de 21 de Setembro de 2002 Na verdade, a minha observação atenta e participada, ao longo de vinte e cinco anos, de associações e organizações do terceiro sector em Portugal e na Europa de tantas/os técnicas/os leva-me a não poder evitar amargura contida nesta ironia Teresa Cunha Outubro de 2007

O Futuro não é uma melhoria do presente; é outra coisa. 38 Reinventar a Emancipação Social empobrecidos duma máquina que se mantém sem nenhuma verdadeira estratégia e relevância social. As ONG transformam-se (quantas vezes!) em agências de viagens de uma elite de representantes altamente qualificados, numa ‘comunidade’ de profissionais das ‘grandes causas’, cada qual na sua plataforma e federação, exigindo mais do que tudo a sua especialidade e indispensabilidade num combate claramente paroquial. Ao identificar este obstáculo, a tecnocratização e o consequente afastamento das ONG das suas comunidades e da construção dos processos em regimes de co-operação e co-habitalidade, privilegiando sempre a participação nos diferentes níveis de acção, como uma finalidade primordial, é neste obstáculo que não hesito em procurar lugares de resistência, de ruptura e de transformação também. Identifico e anuncio apenas um e o seu modo de operar a mudança. A um desses lugares de ruptura chamo-lhe lealdade e as ONG parecem reunir condições para colocar de novo na moda, uma lealdade mas de um novo tipo, ou seja, um projecto, uma ideia, uma ou várias utopias, pelas quais se está disposta/o a lutar, a fazer sacrifícios pessoais e colectivos. Um tipo de lealdade que se apoia e se aprofunda na construção de redes de troca de certezas e incertezas com as pessoas que fazem os seus próprios projectos com mais e intensa liberdade, para maior e melhor bem-estar para o maior número de pessoas possível com mais afectos e mais solidariedades, mais festa e mais sabores. Estas são coisas que a agenda da lealdade e da verdadeira proximidade social e afectiva restaura, magnetizando a participação de diversas energias, utopias e vontades.25 Outro lugar de ruptura e portanto de repolitização do campus das ONG diz respeito à intensidade e densidade democráticas. A ausência de participação conduz à falta de controlo democrático (interno e externo) sobre os discursos, recursos e práticas e tende a silenciar potenciais efeitos perversos de uma ideologia e realidade que se apresenta como a utopia possível, ou como diz Freire em inéditos viáveis, como a justiça e da solidariedade. Essa ausência de controlo democrático produz a ausência da consciência sobre as diferenças entre o que é trabalho voluntário e trabalho precário, organizações sem fins lucrativos e organizações de gestão perdulária. É a participação democrática de todas/os as/os que se associam à ‘causa’ da ONG, a todos os níveis, que reinventa a sabedoria dos debates pela justeza das decisões e das práticas subsequentes.

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Como escreve o Professor Boaventura: o pensamento utópico tem o duplo sentido: reinventar mapas de emancipação social e subjectividades com capacidade de os usar Teresa Cunha Outubro de 2007

O Futuro não é uma melhoria do presente; é outra coisa. 39 Reinventar a Emancipação Social É neste sentido que defendo que as ONG têm que saber construir um caminho de contratualizações das suas relações com comunidades, participantes, colaboradoras/es, os Estados e outros parceiros no acesso a dinheiros e recursos públicos e privados ou outros benefícios, exigindo e promovendo relações mútuas de transparência. A transparência exige uma postura de dignidade e intransigência quanto às finalidades, pertinência e relevância social e política da acção que se leva a cabo e a consequente abertura ao controlo democrático, com base num novo contrato social no qual a democracia participativa, ou melhor, a tese da democracia sem fim, é o principal motor e coração vital . Um terceiro lugar de ruptura e transformação é o poder e o que ele significa nesta discussão. As ONG não são nunca entidades à parte do mundo e de uma forma ou de outra, produzem e exercem poder

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. Elas têm muitas vezes o poder de escolher, o poder

de decidir, o poder de fazer, o poder de dizer, o poder de ignorar. O poder está presente nas relações sociais e nas subculturas que elas criam dentro e em torno de si mesmas. Porém o poder das ONG é muitas vezes experimentado como uma relação de dominação e desqualificação da/o Outra/o e não como uma relação de autoridade partilhada. É esta crítica que ouvimos aqui e ali e demasiadas vezes, sobre o autoritarismo com que as ONG lidam com populações locais, destinatárias – parceiras, não - das suas intervenções e quase nunca participantes das mudanças de que se anunciam portadoras e se inscrevem na retórica da cooperação para o desenvolvimento. O poder de avaliar as necessidades de um espaço-tempo e como se deve, quando e porquê intervir nele no presente e imaginar o seu futuro não pode ser um exercício autoritário de poder mas uma articulação virtuosa entre diversas competências radicadas nos interesses comuns. Como já afirmei acima, é uma hipótese de trabalho consistente com a observação atenta e uma análise ainda que não seja exaustiva das práticas e narrativas das ONG, que existem obstáculos à democracia interna e não só nas suas relações com as comunidades e com os Estados. Esses obstáculos são muitas vezes corporizados por uma proeminência do carisma ou da experiência de uma ou um líder27; por processos de decisão relativamente pouco estruturados ou herdeiros de práticas corporativas e por isso pouco abertos à pluralidade, por órgãos de decisão pouco participativos e pela predominância da táctica 26 27

Muito poder, quer junto às populações, governos e organismos internacionais, como mostra o relatório da ONU Veja-se por quantos anos a mesma pessoa permanece como ‘presidente’ da associação ou ONG. Estes factos têm no mínimo de nos fazer reflectir com seriedade sobre a forma como se faz, pratica e se exerce o poder no seio das ONG. Trata-se de uma consciência aguda de que uma reflexividade nova sobre o assunto, pode ajudar a emancipar as ONG de ‘culturas’ de poder inadequadas à democracia de alta densidade e de profunda intensidade. Teresa Cunha Outubro de 2007

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sobre a estratégia para captar fundos, estatuto, privilégios, ou outros créditos sociais, em detrimento do reforço social recíproco capaz de fazer frente a um Estado e um mercado que não queiram e não possam ampliar a dignidade, a emancipação e a justiça. A análise sociológica dos movimentos sociais em Portugal aponta para a necessidade de aprofundar as dinâmicas de ‘movimento de movimentos’, de sacudir os preconceitos e as hierarquias que cinquenta anos de ditadura e mais alguns séculos de autoritarismo e sectarismo inscreveram na nossa matriz histórica e associativa. Precisamos de fazer o caminho entre o pensamento e acção normativa legalista para a agenda ampla de uma cultura associativa, solidária e inovadora; precisamos de fazer mover e inter-seccionar as fronteiras das relações entre espaço público e espaço privado, mover-se com determinação do autoritarismo associativo à responsabilidade como autoridade partilhada, do sexismo à reciprocidade concreta e real, do pessoalismo e clientelismo às lealdades profundas com as comunidades e os seus projectos emancipatórios; precisamos de nos darmos a capacidade de produzir uma avaliação do terceiro sector com base num pensamento normativo não legislativo e, em consequência, a competência para distinguir o trigo do joio, ultrapassando as velhas/modernas antinomias entre Estado e sociedade civil, como jogo de opostos. É esta competência que abrirá o nosso caminho e que fará nascer novas articulações que permitirão ver o que já está aqui em Portugal a acontecer, sem que seja ainda visível às nossas consciências arrogantes e desperdiçadoras de experiências. Esta é talvez uma outra forma de enunciar o mesmo painel de obstáculos e capacidades que as ONG enfrentam diariamente nas suas práticas locais, nacionais e transnacionais e que poderão servir finalidades políticas e sociais, completamente distintas. 4- Onde fica a terceira margem do rio da democracia sem fim, ou por outras palavras, a poro’roka da democracia participativa? Como reconhecer, quais os critérios para avaliar, num determinado momento, num determinado lugar, o que torna uma ONG ou qualquer organização social privada, sem fins lucrativos e que actua no espaço público não estatal, num movimento, num espaçotempo contra-hegemónico, buscando alternativas de auto-determinação, solidariedade, redistruibuição equitativa e justa da riqueza, enfim, como saber se estamos em presença de potência emancipatória, capacitadora, sinergética ou mera potencialidade ou, no limite, na máscara de uma cidadania refém de novas ditaduras? Teresa Cunha Outubro de 2007

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Num mundo complexo como o nosso, num mundo de produtos híbridos, perpassados de múltiplas experiências e tracções opostas, também a avaliação tem que ser complexa. Não basta anunciar mais uma norma, mais uma tábua de leis. Longe de ser um ‘deserto’ de experiência, sendo mesmo um campo fértil de ideias e conhecimentos, opto por uma proposta de metodologia: a sociologia das ausências, proposta por Boaventura de Sousa Santos (Santos, 2001: 3) que dotada de uma consciência cosmopolita, é a sociologia certa para dar o primeiro e fundamental passo, na procura destes critérios, recuperando experiências, desocultando vozes, qualificando outros conhecimentos, ampliando enfim, o arco de reciprocidades de que precisamos para iniciar um processo de justiça cognitiva relativamente às ONG, antes de fazermos mais uma norma imperialista. Esta sociologia postula uma demo-diversidade que é já, em si mesma, um instrumento essencial e imediatamente útil. O mesmo autor, na esteira desta assunção epistemológica primordial da demodiversidade, desenvolveu uma série de teses sobre a «democracia participativa» que me parecem configurar, em termos macro, uma conjunto de conceitos que podem ser referências criteriosas para uma avaliação das ONG, os tais produtos da modernidade, porque não dizer também burgueses, mas com ambições e instrumentos para fazer um outro futuro num mundo melhor. Através destas teses, poderemos processar, isto é, começar a compreender melhor os processos, as matrizes, as ideias, as práticas e as utopias das ONG (individualmente e em constelações, articulações, federações, plataformas, coligações, consórcios, entre outras formas) e ver quais de entre elas, estão em melhores condições de servir a urgente radicalização democrática do mundo. Deste modo, e não indo mais além do que a enunciação de algumas teses e algumas das perguntas que delas podem decorrer, com o objectivo de construir um percurso de avaliação, prossigo este ensaio, com a consciência das limitações desta abordagem. Contudo não me quero escusar a ela porque um contributo é sempre uma pegada no

caminho, quando se volta o olhar atrás. 1ª tese- Não há um só tipo de democracia: há uma multiplicidade de democracias,

de formas de participação política democráticas. Então precisamos de ter, não uma democracia mas uma demo-democracia. Sendo assim, como respondem as ONG na sua relação com formas diferenciadas de organização e de «governo»? Como agem perante a diferença e a igualdade? Como Teresa Cunha Outubro de 2007

O Futuro não é uma melhoria do presente; é outra coisa. 42 Reinventar a Emancipação Social ampliam a participação e como se articulam com outras culturas democráticas? Afastamse, aproximam-se, abrem-se, toleram ou negligenciam o que não é igual ou idêntico? Que coincidências e que rupturas se podem ver nas suas práticas de ‘conversa’ com formas e conteúdos organizativos diferenciados? 2ª- As democracias podem ser hierarquizadas segundo a sua intensidade. Por isso

podemos distinguir democracias de alta intensidade e democracias de baixa intensidade. As democracias de baixa intensidade, baseiam-se num sistema de representatividades que deixam intactas as relações de poder e exploração. Estas democracias construemse a partir de um ponto de vista dominante, portanto hegemónico, e que legisla sobre os outros pontos de vista, determinando o grau de tolerância ao diferente. Este tipo de democracias (democracia liberal) abre o caminho a novos modos de fascismo social que lançam vetos (múltiplos) intransponíveis para cada vez maiores camadas populacionais. As democracias de alta intensidade, abrem-se à participação de toda a gente, redistribuem a riqueza de forma a garantir a dignidade qualquer que seja o seu conteúdo e forma, permeiam os diferentes espaços estruturais28 de relações democráticas ou democratizantes, não consideram as diferenças como obstáculos mas como desafios. Como se configura ou prefigura, nas suas relações interna e externas, cada ONG: uma democracia de alta ou de baixa intensidade? Trabalha na inclusão e participação e se sim de quem e em que condições? Age de forma consistente e insistente contra o sexismo, o racismo, ou outra forma de discriminação essencialista? Desenvolve práticas redistributivas ou apenas distributivas? Produz alternativas democráticas ou reproduz noutros níveis de representatividades? As tarefas são partilhadas como formas de autoridade partilhada e fora de uma lógica de acumulação (de conhecimentos e pequenos/grandes poderes)? As/os representantes e representadas/os afastam-se em espirais de diferenciações e de desqualificações mútuas ou a participação tem sentido social e também existencial? Os conflitos decorrentes da participação são vistos como obstáculos ou como formas próprias e indispensáveis de conviver com a intensidade democrática? 3ª- A democracia é sempre pouca por isso não nos podemos contentar com a

democracia conseguida; é necessário perseguir processos e resultados cada vez mais democráticos e democratizadores e, portanto, contra a hegemonia do pensamento único neo-liberal. 28

Boaventura de Sousa Santos propõe seis espaços estruturais: espaço doméstico, espaço da produção, espaço do mercado, espaço da comunidade, espaço da cidadania e o espaço mundial Teresa Cunha Outubro de 2007

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Isto significa a democratização de todos os espaços estruturais mais a democratização da subjectividade, a promoção de uma imaginação democrática, de uma justiça cognitiva e a desocultação de todas as experiências democráticas. Qual a profundidade e intensidade da democracia interna e externa das ONG? Arriscam novas formas de participação, promovem novos discursos e narrativas sobre elas próprias onde se incluam críticas e propostas de mudança? Usam ou não as mesmas retóricas demagógicas que quer o mercado ou o Estado usam para mascarar os seus limites democráticos? Cedem ou não à tentação de silenciar experiências, de não imaginar outras? Praticam políticas externas de tipo paroquial ou pelo contrário ensaiam novas articulações horizontais? Apostam mais nas lideranças carismáticas ou nas menos mediáticas mas mais participadas? Estas três teses contêm em si mesmas um catálogo revolucionário cujas consequências podem fazer-nos ir muito longe. Das teses podemos seguir por uma metodologia de construção de «testes de robustez» internos e externos para permitir uma operacionalização adequada de todos os conteúdos e significantes da demo-democracia sem fim apresentada numa matriz avaliativa não imperialista das ONG. Tentando fazer um exercício de aproximação à vida real da ‘minha’ ONG e reconhecendo que uma democracia de alta intensidade exige o reconhecimento dos limites das experiências locais enquanto estas não alterem, de facto, as relações de poder de acumulação capitalista mas tendo como pressuposto que a acção pública não estatal tem que ser entendida como um processo de reforço democrático na medida em que cria novos horizontes também ao nível local, vou tentar enumerar um conjunto de condições de partida, simples e inscrito em práticas do quotidiano mas que não devem subsumir as reflexões mais abrangentes e estruturais de que necessitamos. Todas as condições de possibilidade de mudança que enumero em seguida têm um pressuposto essencial que quero tornar de imediato claro: a dinâmica do ‘de baixo para cima’. Não vejo como é possível repolitizar, democratizar e intensificar a acção positiva por um Outro Mundo através das ONG, ou seja, da comunidade organizada, se não se respeitar o essencial: o interesse comum, construído na tensão entre interesses e desinteresses individuais, que só se manifesta na sua autenticidade se formos capazes de voltar a dizer Povo, o Poder do Povo e a fazer Poder com o Povo. Assim, Teresa Cunha Outubro de 2007

O Futuro não é uma melhoria do presente; é outra coisa. 44 Reinventar a Emancipação Social 1- Entrevejo algumas possibilidades de começar a transformar o terceiro sector, através de medidas simples mas que podem conduzir a que relações de poder hegemónico se possam tornar em relações de autoridade partilhada: os processos de decisão política podem ser abertos, e não se restringirem às pessoas que integram os órgãos considerados competentes ou legitimados pelo voto, isto é, a criação de permanentes novas fontes de legitimidade democrática. Isto pode fazer-se, por exemplo, a dois níveis: a) Incluindo sistematicamente as pessoas que fazem parte dum secretariado (estrutura técnica, digamos) nos processos de discussão e decisão dos órgãos executivos. Por um lado, estas pessoas conhecem como ninguém, as obstruções que a burocracia pode introduzir em qualquer política ou intervenção e sabem usar isso muito bem, a favor ou contra a própria organização. Este conhecimento é muito relevante e pode ser verdadeiramente estratégico. Por outro lado, a inclusão destas pessoas pode alargar o denominador comum dos conhecimentos de toda a organização, resgatando e recuperando para a acção política, elementos processuais e cognitivos fundamentais. Por fim, existe nesta abordagem, uma intenção de ruptura transgressora da divisão subalternizadora entre o público e o privado que funda o sexismo e a discriminação das mulheres de amplos sectores de decisão política ou as sobrecarregam de trabalho, também nas ONG29. No terceiro sector a maioria das/os trabalhadoras/es intermédios com cargos técnicos são mulheres, mas nos lugares de decisão máxima a estatística não governamental, confirma as demais: as mulheres estão de novo em franca minoria e constituem a base da pirâmide assegurando as tarefas mais logísticas e burocráticas. b) Organizando e mobilizando em permanência as comunidades para assembleias, mais ou menos formais, de consulta, de discussão, de debate, de troca e de decisão. 2- Levar a sério as opiniões, as considerações e as propostas feitas por pessoas, equipas, participantes, comunidades (ainda que não enquadradas por assembleias ou espaços estruturados para tal) transformando-as em conteúdos políticos a serem debatidos no interior da organização. Por exemplo, promover verdadeiras avaliações – não ape-

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Em abono da verdade, um grande caminho de emancipação feminina está ainda por percorrer, apesar de todos os ganhos conseguidos do século vinte. O terceiro sector pode ser visto como um objecto empírico que confirma a teoria da reprodução social no que diz respeito às tradicionais formas de sexismo existentes ainda nas nossas sociedades ocidentais judaico-cristãs. Apesar de se verem no terceiro sector e em algumas ONG as mais radicais alternativas ao sexismo/machismo, não podemos nem devemos iludir que o espectro do sector não lucrativo em geral, ainda não é luminoso no que diz respeito à plena inclusão das mulheres, aos mais variados níveis e em todos os processos, da sua actuação política, social e até económica. Teresa Cunha Outubro de 2007

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nas aquelas que pelo conteúdo e forma tendem a legitimar a ‘acção’ que foi realizada como um verdadeiro espaço de crítica e de construção de alternativas; 3- Informalizando os espaços do poder, isto é, promovendo o acesso permanente à informação relevante, aos mais variados níveis: por exemplo, democratizando os espaços físicos que incluem escritórios, arquivos, informando quem procura informação, nunca silenciando qualquer pergunta; 4- Destruindo as formas de trabalho paroquial e de altar de santo, construindo redes dentro e fora da organização, para as quais concorrem diferentes competências e motivações: por exemplo, basear e negociar as parcerias não apenas sobre as possíveis vantagens financeiras mas sobretudo acerca das vantagens múltiplas e mútuas como a aquisição e diversificação de competências, a realização de um projecto considerado importante comunitariamente, a realização da pressão necessária para a alteração de uma política; 5- Redistribuindo de forma diferente as tarefas, capacitando todas as pessoas que trabalham numa determinada organização para o desempenho de coisas diferenciadas mas igualmente úteis como seja a infra-estruturação e logística, negociação e representação política, gestão financeira ou a formação de novas pessoas. A especialização é desejável apenas na medida em que essa competência não desqualifica outra qualquer. Esta transversalidade nunca é total nem é para ser. É o princípio da sustentabilidade ecológica em que a interdependência é tão vital quanto é tensa. O bom senso e as estratégias de autoridade partilhada ajudarão certamente, a eliminar as prisões procedimentais que esta transversalidade pode fazer surgir; 6- Da mesma forma que entendo que a transparência das relações entre beneficiários e doadores de apoios financeiros ou outros, devem ser sempre feitos numa base contratual, ao nível nacional ou internacional, e nisto sigo de perto a intuição e as posições de princípio de Alberto Melo, penso que o mesmo se poderá aplicar às relações entre as ONG do Sul e as do Norte. Parece-me que esta contratualização se deve desenvolver segundo uma lógica de agenda de mútuos interesses mediada por uma dinâmica de tradução forte (Santos; 2001: 41-44) que tem que tender a eliminar todas as posturas naturalizantes das hierarquias de conhecimentos através de práticas e de capacitação recíproca e de um exercício contínuo de humildade. É esta tradução, através de um prudente mas ao mesmo tempo ousado movimento de abertura de novas «zonas de contacto», que permitirá artiTeresa Cunha Outubro de 2007

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cular também, as práticas e os seus agentes. Só novas articulações entre práticas e os seus agentes em diferentes escalas podem produzir alternativas importantes, interessantes, relevantes e exemplares. 7- A globalização contra-hegemónica abriu a possibilidade a novos tipos de internacionalismo cosmopolita. As ONG devem participar activamente nestes novos tipos de internacionalismo que atravessam grupos sociais e os interesses particulares, sem sectarismos e que actuam na mobilização de actores locais, pressiona as linguagens e as retóricas dos poderes políticos instalados, coloca na agenda política novos problemas e replica experiências exemplares, como modos societais alternativos. A consciência cosmopolita da sociologia das emergências, encontra nos novos internacionalismos um excepcional terreno de possibilidades de mudança e isso força as ONG a moverem-se, não só pelo planeta, mas sobretudo a perceberem o seu novo mandato político: outro mundo é possível! A maior evidência que a minha experiência me proporciona é que não partimos de um território vazio de experiência e da consideração de uma só espécie de tempo. As dificuldades e as potencialidades estão já na agenda de muitas ONG e de muitas pessoas que fazem disto, uma das suas principais lutas e caminhos para serem caminhados em espaços e a tempos diferenciados. Mas é um caminho para ser caminhado como diz o poeta Antonio Machado e aí retorno ao meu convencimento de partida: qualquer conhecimento é pura estética, é «rigor mortis» se nele não estiver contido o compromisso social pela emancipação e a Paz, para todas/os. 5- Conclusão O desperdício das experiências e dos conhecimentos que não tiveram lugar no centro do contrato social e da ciência modernos, é um dos principiais alimentos do fatalismo porque ele pressupõe que a história chegou ao seu fim. O que importa é viver tudo no momento presente que é fugaz e como a tragédia está aí à beira, é preciso exaurir o momento presente. Lutar contra o desperdício é lutar por alternativas e credibilizar as que

já existem (ibid: 2) A variedade das experiências e da compreensão do mundo é muito maior do que alguma vez a modernidade nos permitiu imaginar, quanto mais pensar. Afirmar explicitamente o que já está lá implicitamente é, uma forma de dar crédito às experiências alternativas que usam outro conceito de espaço e tempo, ou seja, aquele Teresa Cunha Outubro de 2007

O Futuro não é uma melhoria do presente; é outra coisa. 47 Reinventar a Emancipação Social que contrai o futuro e aumenta o presente. Aumentar o presente e contrair o futuro é a forma que temos para lutar contra a indolência ou a preguiça da razão moderna (ibid). Porque o futuro não está determinado nem corre ao longo de uma linha linear de tempo, como o concebia a ideia moderna de tempo e futuro, a sociologia das emergências pode ser o meio de preencher esse vazio deixado por esse futuro, potencialmente infinito e assim sendo, cheio de tudo ou de coisa nenhuma; esse tudo e nada que pode ser preenchido, engrandecido, enriquecido, por um futuro plural, onde estão já possibilidades concretas, utópicas e realistas ao mesmo tempo a decorrer. Estas possibilidades radicam e são construídas no presente, que olha cuidando, para esse futuro. O futuro que é realmente raro, precioso, escasso, como o é o futuro biográfico individual, objecto de preocupação e de cuidado. O futuro é valioso porque nele está a esperança e não apenas o lugar da tragédia inevitável apesar de aparentemente longínqua e contra a qual não vale a pena fazer nada. A sociologia das emergências é a sociologia do «ainda não» (ibid: 25).

O «ainda não» é a forma como o futuro se inscreve no presente e a consciência antecipatória é a aquela que nos pode fazer reconhecer essa latência, para a transformar numa potência e numa potencialidade. Esta possibilidade pode ser incerta mas não é neutral portanto ela pode ser sorte, oportunidade, imaginação ou perigo mas decerto, exige sempre uma mudança. A sociologia das emergências é neste contexto do terceiro sector, das ONG o melhor instrumento e postulado da maximização das esperanças e das condições de realização, de concretização dessas esperanças que necessitam de uma acção coerente com o alargamento deste presente, inundado de hipóteses e realidades que já estão lá mas ainda estão invisíveis à nossa consciência moderna, preguiçosa e distraída. É o inconformismo que alimenta e move estas sociologias. Sociologias que se querem ocupar em entre-capturar (Stengers I, 1996: 68) cada vez maior número e qualidade de outras experiências sociais e de outras tantas expectativas sociais; aproximando umas das outras. Assim podemos estar a entrar no limiar de religar a verdade e o bom, num círculo virtuoso30 tão necessário a um mundo melhor.

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Nas palavras de Boaventura de Sousa Santos Teresa Cunha Outubro de 2007

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Este foi o exercício que tentei realizar neste trabalho. Praticar um pouco a sociologia das emergências vendo o terceiro sector à luz de algumas propostas feitas por Boaventura de Sousa Santos. Tentei construir um quadro analítico para a compreensão do contexto da emergência de um espaço público não estatal no século XIX e da re-emergência deste mesmo espaço, no final do século vinte. Evitando uma apologia ou diabolização simplista procurei caracterizar o sector, compreender a sua importância e dimensão, os seus poderes e relações com os outros dois princípios remanescentes da modernidade: o mercado e o Estado. Desse quadro analítico procurei avançar na identificação de obstáculos e potencialidades que as ONG hoje, apesar das ambiguidades que a sua origem e práticas encerram, para depois ensaiar um modelo normativo não legislativo (não uma teoria geral sobre as ONG) de avaliação da contribuição contra-hegemónica das ONG nos nossos dias. Aproximei esse ensaio do quotidiano de uma associação de base e revi procedimentos que podem a qualquer momento ser recursos de democratização. Para construir este caminho tomei como conceitos chave as teses da democracia sem fim e a teoria da tradução de Boaventura de Sousa Santos.

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