O Golpe de 1964 e as políticas de memória da Comissão de Anistia, com Paulo Abrão e Egmar Oliveira (São Paulo, Revista Princípios 129, Agosto de 2014)

Share Embed


Descrição do Produto

CAPA

O Golpe de 1964 e as políticas de memória da Comissão de Anistia:

Um reencontro com sonhos e projetos interrompidos Paulo Abrão*, Marcelo D. Torelly** e Egmar José de Oliveira*** Comissão de Anistia/MJ

Presidente da Comissão de Anistia Paulo Abrão, e Embaixador Antonio Patriota, entregam certificados de homenagem a militantes que auxiliaram exilados e combateram à ditadura brasileira desde os Estados Unidos (Nova Iorque, out/2013)

P

A Comissão da Verdade constitui uma das maiores vitórias de nossa sociedade, rompendo com a lógica da transição controlada e do silêncio imposto que o regime de 1964 tentou fazer prosperar. Sua instalação é um passo determinante para a consolidação e o aprofundamento democrático, tendo como objetivos tanto desmascarar versões falseadas do passado

rimeiro de abril de 2014 é uma data excepcional na vida do nosso país, e por isso merece registro. Em 1964, há meio século, acontecia um dos mais duros golpes de nossa história. Os militares derrubavam o governo democrático e legítimo do presidente João Goulart, interrompendo um ciclo

de reformas populares e dando início a uma violenta ditadura, caracterizada pelo uso da repressão, tortura, mortes e desaparecimentos, exílios, restrições às liberdades políticas e de imprensa, concentração de renda e desorganização de entidades sociais. Era o Estado de terror interrompendo sonhos e projetos de milhares de brasileiros. A oportunidade dos 50 anos

33

129/2014

Testemunhos e homenagem a ex-perseguidos políticos durante a 61º Caravana da Anistia, Agosto de 2012, PUC-Rio, Rio de Janeiro-RJ

34

Comissão de Anistia/MJ

do Golpe nos permite refletir e contextualizar de masão anualmente seleciona e fomenta uma série de neira forte e incisiva sobre a necessidade de fomenprojetos da sociedade civil, cujo alcance pode ser natar políticas de reparação, memória cional, regional, ou local, por meio e verdade que “unam as pontas” do projeto Marcas da Memória. Em O conceito que entre os projetos interrompidos do parceira com associações de persepassado e as lutas e utopias do preguidos, universidades, fundações orienta estas sente, reconstruindo o tecido social e entidades sem fins lucrativos, o políticas públicas e fortalecendo a estrutura política projeto promove registros de hisde nossa democracia. tória oral, edição de livros, festivais é muito simples: A Comissão de Anistia do Mide cinema, restauração e produção assim como nistério da Justiça foi estabelecida de audiovisuais, produção de expono ano de 2001 com o objetivo de sições artísticas, instalação de moo processo de promover reparação moral e econumentos em logradouros públicos reparação ao nômica aos afetados por atos de em homenagem à resistência e à exceção entre os anos de 1946 e luta pela anistia, digitalização de reconhecer as 1988. Boa parte de seus mais de acervos históricos, apresentações violações promove 62 mil pedidos já analisados peculturais de música e teatro, entre la Comissão refere-se ao período outras ações. o direito à verdade, da ditadura militar. Muitos destes O conceito que orienta estas poa afirmação das casos foram apreciados nos locais líticas públicas é muito simples: asonde as violações ocorreram, as sim como o processo de reparação memórias sobre chamadas Caravanas da Anistia, ao reconhecer as violações promoa repressão e permitindo combinar os procesve o direito à verdade, a afirmação sos de reparação e esclarecimento resistência constitui, das memórias sobre a repressão e histórico com uma ampla reflexão, resistência constitui, também, um também, um junto aos atores locais, sobre o immecanismo de reparação simbólica, pacto que o autoritarismo teve em dirigido não apenas ao perseguido mecanismo de cada comunidade. As quase oitenpolítico, mas à sociedade toda. Com reparação simbólica, iniciativas voltadas ao fomento de ta Caravanas realizadas desde então em dezenove estados das cinco projetos de memória a Comissão da dirigido não apenas regiões do país são uma das várias Anistia procura afastar-se de uma ao perseguido políticas de memória que a Comisperspectiva unitária do passado, são passou a empreender a partir focada na ideia de que uma única político, mas à do ano de 2007. verdade permitirá uma única mesociedade toda Medidas de grande impacto, mória. Trabalha, em sentido oposcomo a construção do Memorial da Anistia Política do Brasil, um sítio nacional de memória e homenagem constituído por um museu e um centro de documentação, são complementadas por iniciativas focais. Desde 2008, a Comis-

CAPA Comissão de Anistia/MJ

to, com a pluralidade de leituras do passado e a necessidade de sua insurgência para a vitalização do presente democrático. Com isso não se quer dizer, como podem pensar alguns apressados, que o trabalho de busca da verdade não seja relevante. A Comissão da Verdade constitui uma das maiores vitórias de nossa sociedade, rompendo com a lógica da transição controlada e do silêncio imposto que o regime de 1964 tentou fazer prosperar. Sua instalação é um passo determinante para a consolidação e o aprofundamento democrático, tendo como objetivos tanto desmascarar versões falseadas do passado, como aquelas apresentadas pela di- Monumento do Projeto Trilhas da Anistia em homenagem à resistência à ditadura, tadura quanto à morte de um sem inaugurado em Maio de 2013, Belo Horizonte-MG números de cidadãos por ela assassinados, quanto permitir um amplo numérica, até a lembrança mais afetiva, absolutaesforço concentrado de busca e revelação de informente subjetiva, conectada talvez mais ao “eu de mações que de outro modo jamais chegariam ao que lembra” que ao próprio objeto da lembrança. grande público. As políticas de memória são A Comissão da Verdade não fundamentais para permitir o detratará apenas de promover o coO direito à verdade sabrochar destas sutilezas. Para nhecimento da história – trabalho compreender não apenas os maarduamente empreendido há anos é o direito à croprocessos, mas também seus pela historiografia brasileira –, mas informação, ao microefeitos. Para verificarmos cotambém de promover a identificamo o funcionamento do aparato ção dos mecanismos que tornaram conhecimento repressivo impactou de distintas possíveis as violações praticadas do passado e à maneiras a vida de diferentes pescontra os Direitos Humanos recosoas. Se a busca da verdade pode nhecidas pela Comissão de Anistransparência do nos levar a conhecer os sítios onde tia e pela Comissão Especial sobre Estado; que não se funcionaram centros de torturas, Mortos e Desaparecidos Políticos, somente a memória pode nos perpropondo medidas de não repetição confunde com o mitir acessar, em alguma medida, que fortaleçam a agenda de aprodireito à memória. as experiências subjetivas que estes fundamento democrático e luta pelocais produziram em seus afetados los direitos humanos. A memória é um diretos e indiretos. O direito à verdade enquanto produto humano Os direitos à memória e à verdadireito ao acesso à informação, ao de são distintos, mas complemenconhecimento do passado e, em úlcomplexo que se tares. Daí a comum referência a um tima análise, à transparência do Esmetamorfoseia direito à memória e à verdade uno, tado quanto aos atos de seus agencomposto por essas duas dimensões tes não se confunde com o direito à em diversos que se inter-relacionam. Todo cidamemória. A memória é um produto planos: a memória dão tem direito à memória – consehumano complexo e multifacetado, quência de nosso direito à identidaque se metamorfoseia em diversos individual, de e à verdade. Aqui tratamos não planos: a memória individual, a a coletiva, a apenas da memória individual, mas memória coletiva, social, instituciotambém das memórias social e conal, geracional... Ainda, pode variar institucional... letiva. É dever do Estado garantir desde a lembrança objetiva, quase

35

129/2014

Comissão de Anistia/MJ

Estudantes de ensino médio e fundamental assistem encenação da peça “Filha da Anistia” no Teatro Nacional (Brasília, set/2012)

meios para que todos os cidadãos, quer tenham ou não vivido um passado repressivo, possam acessar este passado em sua dupla dimensionalidade: enquanto verdade e enquanto memória. Temos como premissa que os regimes repressivos violam não apenas o direito à verdade, produzindo documentos com informações errôneas, estabelecendo falsas versões ou, simplesmente, censurando informações, mas também o direito à memória. A ditadura opõe-se à pluralidade e se vale do medo para tentar impor uma cultura monolítica, que passa pela afirmação de uma longínqua origem comum e uniforme do povo – tipicamente fascista – chegando à negação do direito à divergência de opinião, base pluralista da democracia. Superar o legado autoritário significa não apenas regressar à democracia em termos institucionais, mas também permitir que as memórias reprimidas possam insurgir, sabendo-se a priori que estas memórias serão distintas no campo e na cidade, entre homens e mulheres, jovens e velhos, resistentes e opressores. É assim que, por meio de políticas de memória, se constitui um mecanismo de efetivação do direito à memória e à verdade, mas também de fortalecimento democrático. Embora não se possa, por evidente, contemplar a totalidade dos sujeitos (pretensão que só uma visão monolítica da sociedade teria), as políticas de memória permitem jogar luz sobre um conjunto de experiências individuais e coletivas sob o autoritarismo e, partindo desta dimensão subjetiva, reconstruir parcialmente o passado que nos une. Permite, assim, efetivar o direito à memória daqueles que foram vítimas a um só tempo em que igualmente garante o direito às memórias de todos nós, vítimas diretas ou não do regime de arbítrio. Por meio de suas políticas de memória a Comissão de Anistia tem prestado contribuição à sociedade brasileira com absoluta segurança de que a sua tarefa histórica não se limita em reparar e indenizar os danos que o Estado de exceção causou aos perseguidos políticos, mas também em fazer da memória um elemento de reparação a toda a sociedade, lesada em sua

36

autodeterminação, em suas liberdades públicas, em seu desenvolvimento econômico, social e político. As políticas de memória atendem não apenas ao interesse subjetivo daqueles que lembram, nem se restringem à dimensão individual daqueles que perderam seus entes queridos para a repressão. Elas atendem também ao interesse de toda a sociedade, funcionando como elemento de alargamento de nossa cultura democrática e de nossas identidades (locais, grupais, nacionais...). Promover tal direito é mais do que uma obrigação do Estado, reconhecida em inúmeros documentos e leis domésticas e internacionais, sendo, sobretudo, um imperativo ético de uma sociedade que pretende reconstruir-se em bases democráticas. * Paulo Abrão é professor universitário, secretário nacional de Justiça e presidente da Comissão da Anistia do Ministério da Justiça. Doutor em Direito pela PUC-Rio e autor, com Tarso Genro, da obra Os Direitos da Transição e a Democracia no Brasil (Belo Horizonte: Fórum, 2012). ** Marcelo D. Torelly é pesquisador visitante na Universidade de Oxford (Inglaterra). CoordenadorGeral de Memória Histórica da Comissão da Anistia (2007-2013). Autor da obra Justiça de Transição e Estado Constitucional de Direito (Belo Horizonte: Fórum, 2012). *** Egmar José de Oliveira é advogado e presidente da Comissão da Verdade da OABGO. Conselheiro (2004-2013) e vice-presidente (2008-2013) da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.