O gosto pela autoridade e a autoridade do gosto: as apropriações culturais nas ‘artes primeiras’

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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 10, n. 1, p. 169-186, jan.-abr. 2015

O gosto pela autoridade e a autoridade do gosto: as apropriações culturais nas ‘artes primeiras’ The taste for authority and the authority of taste: cultural appropriations in the ‘arts prémiers’ Bruno César Brulon Soares Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

Resumo: Os atores responsáveis por introduzir as ‘artes primeiras’ nos museus e no mercado do Ocidente não são, com efeito, os mesmos que as produziram e, com frequência, não falam em nome dos interesses de seus produtores. Na presente análise, investigou-se a primeira exposição do Musée du Quai Branly, inaugurada no ano 2000, em uma ala do Musée du Louvre, em Paris. Na apresentação desses objetos nesse novo contexto, Jacques Kerchache, o principal idealizador do projeto, não deu espaço para visões dissonantes sobre as obras selecionadas. São visíveis, na exposição do Louvre, algumas das mais evidentes contradições sobre as ‘artes primeiras’. Os critérios que presidem a musealização das esculturas primitivas expostas mostraram a impossibilidade de se isolar, no seio dessa estética particular, a conotação antropológica. O artigo aqui proposto não tem como objetivo discutir a inspiração dos primeiros criadores desses objetos no momento em que conceberam e realizaram a sua obra, mas busca questionar se as suas intenções podem ser descartadas impunemente em função da musealização desses objetos no contexto europeu, entendendo como se dá esse processo segundo uma perspectiva sociológica. Palavras-chave: Museu. Antropologia. Artes primeiras. Mercado de arte. Musealização. Abstract: The main actors responsible for the introduction of the arts prémiers into museums and the Western market are not, in fact, the same ones that produced them and, frequently, do not speak in the name of their interests. In the present article I investigate the first exhibition of the Musée du Quai Branly, which opened in the year 2000, in a section of the Musée du Louvre, in Paris. In the presentation of the objects in the new context, Jacques Kerchache, the main visionary behind this project, provided no room for dissonant views on the selection of the pieces. Some of the more obvious contradictions of the arts prémiers are visible in the Louvre exhibition. The criteria that dictated the musealization of the exhibited primitive sculptures reveal the inability to isolate, inside this particular aesthetic, the anthropological perspective. This article does not aim to discuss the inspiration of the first creators of these objects at the moment that they conceived their work. Instead, its goal is to question whether the creators’ intentions can be disregarded without consequences for the musealization of these objects in the European context, helping to understand this process from a sociological perspective. Keywords: Museum. Anthropology. Arts prémiers. Art market. Musealization.

BRULON-SOARES, Bruno. O gosto pela autoridade e a autoridade do gosto: as apropriações culturais nas ‘artes primeiras’. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 10, n. 1, p. 169-186, jan.-abr. 2015. DOI: 10.1590/1981-81222015000100009. Autor para correspondência: Bruno César Brulon Soares. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Departamento de Estudos e Processos Museológicos. Centro de Ciências Humanas e Sociais. Av. Pasteur, 458, sala 416 – Urca. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. CEP 22290-240 ([email protected]). Recebido em 29/09/2013 Aprovado em 18/03/2015

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Essa ilha bem grande, bastante plana, sem nenhuma montanha, plantada de árvores muito verdes; nela encontramos muita água e no meio uma lagoa muito grande. Ela é tão verde que é um prazer fitá-la. A população é bastante dócil. Por desejarem aquilo que temos e porque sabem que não lhes daremos sem alguma coisa em troca, quando não têm nada, eles recolhem aquilo que podem e se lançam, em seguida, a nadar; mas tudo aquilo que têm, eles dão por não importa que bagatela que lhes oferecemos1 (Colombo, 1492-1493, p. 99).

Paris, fevereiro de 1994. No museu do Petit Palais é inaugurada a exposição “L’art des sculpteurs taïnos: chefs-d’œuvre des Grandes Antilles pré-colombiennes”2. Essa, que foi o resultado da primeira parceria oficial entre o então prefeito de Paris, Jacques Chirac (1932)3, e o colecionador e galerista, Jacques Kerchache4 (1942-2001), marcava a comemoração, na França, do quinto centenário da chegada de Cristóvão Colombo à América. No início da década de 1990, Chirac já buscava uma solução inovadora para tal exposição comemorativa. Por sua vez, Kerchache tinha um projeto pessoal de “libertação” das artes primitivas5, tornando-as um campo independente no universo das artes europeias. Realizar uma exposição sobre a arte dos taíno6, os primeiros ameríndios encontrados por

Colombo quando chegara ao Novo Mundo, parecia uma solução “oportuna e justa” para Chirac e Kerchache (Chirac, 1994 apud Kerchache, 1994). O encontro entre os dois iria inaugurar uma nova forma, pensada como legítima, de ‘adoração’ e apropriação das artes dos povos colonizados. A exposição de esculturas taíno no Petit Palais foi reconhecida como a primeira no mundo dedicada inteiramente à arte desse grupo, que foi vítima do primeiro genocídio da história da humanidade. “A arte dos escultores taíno”, que reuniu cerca de 80 chefs-d’œuvre7 produzidas por artistas taíno, dispersas, em sua maioria, em coleções e museus da Europa, teve como comissário8 o próprio Jacques Kerchache. Na ocasião dessa comemoração, em que se deixa de falar das implicações políticas da data em si para celebrar a visibilidade de uma arte feita invisível, é esse colecionador francês que irá falar em nome dos indígenas. Kerchache se propõe a traçar um “retrato moral dos taíno” (Kerchache, 1994, p. 140), por meio de seus objetos e de uma reflexão superficial lançada sobre eles. No texto que escreveu para o catálogo da exposição, ele descreve uma sociedade harmônica antes da chegada dos europeus (Kerchache, 1994), por meio de uma visão hedonista presente nos imaginários ocidentais. Em primeiro lugar, é a ideia de

“Cette île est bien grande, très plate, sans aucune montagne, plantée d’arbres très verts; on y trouve beaucoup d’eau et en son milieu une lagune très grande. Elle est toute si verte que c’est plaisir de la regarder. La population est assez docile. Par envie de ce que nous avons et parce qu’il savent qu’on ne le leur donnera pas sans quelque chose en échange, quand ils n’ont rien ils saisissent ce qu’ils peuvent et se jettent ensuite à la nage; mais tout ce qu’ils ont, ils le donnent pour n’importe quelle bagatelle qu’on leur offre” (no original). 2 “A arte dos escultores taïnos: obras primas das Grandes Antilhas pré-colombianas”. 3 Jacques Chirac tornaria-se o vigésimo segundo presidente da França, de 1995 a 2007. 4 Galerista e amante das artes primitivas, Kerchache realizou numerosas viagens de estudos entre os anos 1958 e 1980, na África, na Ásia, nas Américas e na Oceania, tendo produzido um inventário crítico de grandes coleções de esculturas. A partir de 1960, ele abre uma galeria de Belas Artes em Paris, na qual iria expor desde arte contemporânea até artes primitivas. Nesse período, ele conheceu André Breton, que exerceu grande influência sobre o seu pensamento e as suas práticas. A partir dos anos 1970, ele participou de diversas exposições importantes no mundo, como curador, especialista ou consultor. 5 O termo “artes primitivas” é utilizado pela história da arte do século XIX, englobando as obras italianas e flamengas anteriores ao Renascimento, assim como as artes de origem extraeuropeia. A partir do início do século XX, esse termo deixa de se aplicar às artes persa, egípcia, cambojana ou japonesa para vir a designar, cada vez mais, as produções – inicialmente chamadas de “selvagens” ou “negras” – provenientes das sociedades ditas “tradicionais” da África, do sudeste da Ásia e da Oceania, sendo mais recentemente incorporadas a essa categoria as artes pré-colombianas (Derlon e Jeudy-Ballini, 2008, p. 32). 6 Os taíno ocupavam as Grandes Antilhas – Cuba, São Domingos, Porto Rico e Jamaica – desde 850 d.C. e, no momento da ‘descoberta’ da América, eles pertenciam ao grupo dos Aruaque, originário da América do Sul (mais precisamente do platô das Guianas). Em razão de seu desaparecimento rápido, o povo taíno permaneceu em grande parte desconhecido. 7 Obras-primas. 8 O termo francês commissaire d’exposition (comissário de exposição) denota aquele que concebe intelectualmente uma exposição, o que equivale ao termo ‘curador’ (do inglês curator), menos usado na França. 1

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‘pureza’ das obras taíno que está em jogo, em contraposição à ‘alteração’ dessas culturas pelo Ocidente. A percepção desta pureza subjetiva seria, supostamente, passível de ser acessada pela subjetividade do colecionador. Ele explica, ainda, que não é possível identificar o artista responsável por executar cada uma das obras expostas, mas apenas os materiais empregados a elas (Kerchache, 1994, p. 141). O presente artigo pretende discutir os processos de musealização das ‘artes primeiras’ no contexto francês, refletindo sobre a autoridade conferida a atores europeus para falar em nome de outras culturas, sobre sua produção material, sua organização social e sua ‘estética’. Na ocasião da exposição supracitada, Kerchache e Chirac achavam que estavam colocando em prática um ato de descolonização, mas, com efeito, realizavam uma grande exposição de arte indígena sem a presença ou o conhecimento de indígenas, ou mesmo sem uma abordagem crítica sobre essa ausência e desconhecimento. Logo, qual era a visão antropológica sobre os taíno que estava sendo apresentada neste momento, que era proclamado como um momento de restituição? Alguns anos mais tarde, as ‘artes primeiras’ de Kerchache, como passariam a se chamar no campo dos museus, entrariam no Louvre, beneficiando-se do mesmo discurso. Se as ‘artes primeiras’ (ou “primitivas”9) constituem um tipo de expressão artística – reconhecida como tal pela arte moderna do Ocidente no século XX –, então elas passam a poder ser compreendidas, contempladas e consumidas pelo público ocidental. Os atores responsáveis por introduzir esta arte nos museus e no mercado dessa parte do mundo não são, todavia, os mesmos que as produziram e, com frequência, não falam em nome dos interesses de seus produtores. A noção de ‘artista’ é relativizada quando as figuras do colecionador

e do marchand de arte são empoderadas. A entrada, por exemplo, das ‘artes primeiras’ no Musée du Louvre marcou a confirmação dessa falta de autoridade dos artistas ‘não ocidentais’ nos museus dos grandes centros europeus. Desde o início do projeto, foi colocada a questão sobre a participação dos “povos autóctones” – dos quais Chirac falava com o mesmo fôlego que usava para falar das “artes primeiras” (Price, 2007, p. 46) –, mas a suposta vontade de inclusão por parte do presidente francês não foi levada à frente nas práticas iniciais de Kerchache e, depois, tampouco no Musée du Quai Branly, projeto de museu presidencial que resultou dessa parceria. Na apresentação e encenação desses objetos nesse novo contexto expositivo, Kerchache não dá espaço para visões dissonantes sobre as obras, propondo uma (e uma só) interpretação das peças, de seus usos e de suas intenções. Este artigo apresenta uma análise teórica e reflexiva sobre o processo de revalorização desses objetos, que ganharam recentemente o estatuto de ‘artes primeiras’, tendo sido tal démarche o resultado de uma cadeia de apropriações legitimada pelos museus e pelo mercado no Ocidente10. Com efeito, compreendemos a musealização das obras atualmente apresentadas pelo Musée du Quai Branly como o processo por meio do qual um objeto entra na cadeia museológica; do momento em que ele é adquirido pelo museu (por compra, doação, coleta, ou outros meios) até o momento em que ele é exposto para o público. A cadeia museológica (Brulon-Soares, 2012) em que circulam os objetos etnográficos que compõem as coleções dos museus implica desde o contexto do campo, no qual os objetos são coletados ou adquiridos, abarcando todos os processos que se seguem de identificação, classificação, higienização, acondicionamento, seleção,

Com efeito, o termo mais utilizado ainda hoje por colecionadores e marchands é o de “artes primitivas” (Derlon e Jeudy-Ballini, 2008, p. 32). A substituição pela expressão ‘artes primeiras’, que se deu particularmente no mundo dos museus, ocorreu a partir de uma tentativa do atual Musée du Quai Branly de mudar o seu nome original (“museu de artes primitivas”) para o de “museu de artes primeiras”, como museu dedicado àquelas artes consideradas ‘primordiais’. Com tal tentativa fracassada por não convencer aos críticos e etnólogos, optou-se por batizá-lo, simplesmente, com o nome do local onde estaria localizado, evidenciando-se, assim, o seu caráter nacional e ocidental. 10 Particularmente na Europa e na América do Norte. 9

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exposição, e até a sua extensão sobre os públicos, os colecionadores privados, o mercado de objetos e os diversos outros agentes indiretamente ligados a ela. Esta pesquisa compreendeu a análise da literatura antropológica sobre a circulação dos objetos classificados como ‘artes primeiras’ no contexto europeu contemporâneo, e contou com a observação das exposições do Musée du Quai Branly, aqui citadas, ao longo dos anos de 2011 e de 2012. Em seu manifesto “para que as artes primeiras nasçam livres e iguais”11, publicado, no periódico Libération, em 1990, e assinado por 148 personalidades internacionais (em sua grande maioria, pertencentes ao Ocidente, ou ligadas, de forma determinante, aos processos culturais ocidentais – entre elas Jorge Amado, Georges Balandier e Michel Leiris), Jacques Kerchache estava pautado na autoridade sobre as ‘artes primeiras’ que lhe havia sido conferida não apenas

por Chirac, mas também por um corpo de agentes que constituíam um novo campo nas artes. Como resultado dessa autoridade nele investida, em 13 de setembro de 1996, uma comissão de intelectuais criada para projetar o novo museu das artes primeiras (que viria a ser o Musée du Quai Branly) iria declarar que a distinção entre museu de arte e museu de etnografia representava uma obsoleta forma de pensar (Price, 2007, p. 44). Inicialmente seria criado um anexo para expor uma seleção de 150 obras-primas, a ser inaugurado no Pavillon des Sessions do Louvre, até 1999, em um espaço de 1.400 m2, extremamente amplo para o número de obras que seriam colocadas em exposição (Figuras 1A e 1B). A noção de ‘artes primeiras’, então, passou a ser disseminada mais amplamente – ainda que fosse, ao mesmo tempo, duramente criticada por parte dos antropólogos –, quando

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Figura 1. A-B) A expografia de Jacques Kerchache no Musée du Louvre. Imagens do acervo pessoal do autor. “Manifeste pour que les chefs d’œuvre du monde entier naissent libres et égaux” (no original).

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foi aberta, no ano 2000, a galeria do Pavillon des Sessions, passando a funcionar como vitrine do futuro Quai Branly, e anunciando o que viria a ser o novo museu destinado a expor as principais coleções de objetos etnográficos da França, que, no passado, haviam pertencido, em grande parte, ao Musée de l’Homme12, em Paris. Estava traçado, assim, o projeto de um novo segmento do campo das artes, destinado a influenciar mentalidades e o consumo de arte no mercado e nos museus nos anos que se seguissem. É visível na exposição do Louvre algumas das mais evidentes contradições sobre as ‘artes primeiras’. Os critérios que presidiram a musealização das esculturas primitivas expostas mostraram a impossibilidade de se isolar, no seio dessa estética particular, a conotação antropológica. O presente texto não se propõe a discutir a inspiração dos primeiros criadores desses objetos no momento em que conceberam e realizaram a sua obra, mas busca questionar se as suas intenções podem ser descartadas impunemente em função da musealização desses objetos no contexto europeu. Para Gaetano Ciarcia (2001, p. 342), a linguagem da arte aplicada a essas coleções significou “uma reificação da aparência desses objetos que produz um efeito de obrigação sobre o olhar”. Mas, ao mesmo tempo em que se ‘obriga’ a olhar como arte uma máscara ritual, a linguagem da arte ‘obriga’ a liberdade de olhar sobre esse objeto – que o vê simultaneamente como escultura, como máscara em um ritual imaginado, ou como objeto de inspiração surrealista. Essa relação, aparentemente contraditória, do olhar que ‘obriga a liberdade’ é o que sustenta a inclusão das ‘artes primeiras’ nos grandes museus como uma forma ‘justa’ de representar essas culturas. O gosto ocidental por apropriações culturais – isto é, por tomar o ‘outro’ como objeto nas representações artísticas e nos museus – não configura meramente um modo de dominação do outro pela redução a uma

categoria. Esta seria uma crítica demasiadamente simples e unidimensional, que já foi feita ao Musée du Quai Branly desde o momento de sua concepção. O que deve ser considerado, de fato, é que as apropriações culturais de objetos etnográficos como arte não deixa de constituir um modo de se buscar algum conhecimento sobre os outros povos, ‘desconhecidos’ graças a uma longa história de más representações que se fizeram deles. Todavia, como em uma forma de ‘antropofagia’, a linguagem estetizante se apropria das culturas outras, no sentido de torná-las inteligíveis para a cultura dominante ‘desconhecedora’ – e esta forma de buscar conhecimento, como veremos, é menos uma prática de reconhecimento e mais a tentativa de se neutralizar as diferenças para que sejam ‘degustadas’.

O GOSTO AUTORITÁRIO A exposição das ‘artes primeiras’ desenvolvida para ocupar o espaço do Pavillon des Sessions, no Musée du Louvre, foi o resultado de um longo processo de disputas acerca da classificação das obras assim denominadas no contexto francês, e do lugar da arte como discurso. A segunda metade da década de 1990, quando o antropólogo Maurice Godelier ocupava a direção científica do projeto do Musée du Quai Branly, foi marcada por diversas discussões acerca da natureza das exposições que tomariam forma tanto no Pavillon des Sessions, quanto no futuro museu a ser criado separadamente. Ainda que, nesse momento, o comitê formado para começar a colocar em prática tal projeto ambicioso houvesse sido dividido oficialmente entre responsabilidades “museológicas” e “científicas” (Price, 2007, p. 49), estas duas esferas eram constantemente discutidas pelos mesmos atores. Acreditando na construção de um museu pós-colonial, no qual a arte e a etnologia poderiam coabitar simetricamente o mesmo espaço, Godelier queria garantir que os visitantes “passassem do prazer de ver para o prazer de conhecer”,

Emblemático museu de etnografia francês, o Musée de l’Homme (Museu do Homem) foi criado em 1937, no Trocadéro, a partir da reformulação das coleções do antigo Musée d’Ethnographie du Trocadéro. A ideologia que sustentou essa instituição desde os anos 1930 colocava em primeiro plano o culto à ciência, particularmente à nova ciência do homem, difundida por Paul Rivet e Marcel Mauss, em seus aspectos físicos e morais.

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graças às informações disponibilizadas sobre as sociedades para além das obras de arte (Godelier, 2000 apud Price, 2007). Com este propósito em mente, sua sugestão era a de que fossem criadas “áreas interpretativas” separadas aos espaços das exposições das coleções nos dois museus, contendo um material interpretativo destinado a acompanhar o ato da contemplação das obras. Entretanto, o sentimento dominante nos dois comitês (museológico e científico), expressado principalmente por Kerchache, era o de que a contemplação estética seria mais bem alcançada por meio da comunhão silenciosa com o objeto, e de que a presença da informação etnográfica neste contexto dominado pela linguagem artística seria uma “distração” para o público13. Tal abordagem estética preterida por Kerchache, funcionando como mecanismo de ressignificação de objetos etnográficos que adquirem o estatuto de objetos de arte, seria o principal foco das críticas dos antropólogos que se mostraram contrários ao projeto do Musée du Quai Branly desde os seus estágios iniciais. A percepção estética como a principal ‘lente’ para se enxergar culturas vem sendo refutada enfaticamente por boa parte dos pensadores que se debruçam sobre a sua investigação em populações autóctones, como se viu na antropologia, notadamente ao longo dos debates dos anos 1990 (Ingold, 1996). Ainda que alguns antropólogos, como Howard Morphy, defendessem a aplicabilidade da noção de ‘estética’ em culturas não europeias, estes sustentavam que “a estética dos objetos deve ser analisada no contexto da sociedade que os produz” (Morphy, 1996, p. 206). Outros pontos de vista mais radicais, como aquele sustentado por Joanna Overing, argumentavam sobre a impossibilidade de qualquer apelo universal da categoria de estética, por tratar-se de “um conceito burguês e elitista” lançado no bojo do Iluminismo

racionalista e que foi responsável por desvincular “as artes” da esfera do social, tornando a atividade artística “distinta da tecnológica, cotidiana e produtiva” (Overing, 1996, p. 210). Em geral, as críticas lançadas sobre o novo projeto semântico – de atribuição de valor artístico a objetos percebidos até então como portadores de valor etnográfico sobre as sociedades que os produziram –, idealizado por Kerchache, recaíram sobre as implicações da descontextualização dos objetos selecionados em benefício de um discurso artístico ocidental. A partir de uma análise da seleção de chefs-d’oeuvres apresentadas no Pavillon des Sessions, Godelier (2007) conclui que 83 desses objetos estavam ligados a estruturas de poder: ao poder dos chefes africanos, de seres humanos em geral, dos deuses, de espíritos etc. Para além de sua beleza, tendo pertencido a uma dada sociedade e investidos de valores outros antes de serem musealizados, tais objetos representavam laços entre os seres humanos e um mundo invisível. O autor chama a atenção para o fato de que as fronteiras, os limites entre o etnográfico e a arte são fluidos. Desta forma, existiria uma continuidade entre os objetos “comuns” e os objetos “fantásticos”, e esta continuidade, para Godelier (2007, p. 28), é a transformação do nível de significação ou da significação dos níveis. Como colecionador, Kerchache tinha uma visão bastante clara daquilo que ele desejava para o espaço expositivo – sobretudo o que seria ocupado no Pavillon des Sessions, primeira parte do projeto a ser executada – e, neste momento inicial, era a sua concepção particular que tomaria forma. Assim, a seleção dos objetos para a ala do Musée du Louvre foi feita inteiramente por um só indivíduo, como se pôde comprovar na observação das peças expostas e a partir dos relatos de membros da equipe responsável pelo projeto inicial14.

Como descrito na pesquisa de Price, por mais de três anos Godelier persistiu em sua proposta, reunindo-se periodicamente com Kerchache e Germain Viatte. Ele colaborou com Kerchache na criação de um CD-ROM ilustrativo para a exposição do Louvre, mas sua permanência no projeto foi interrompida por uma série de tensões e discordâncias, em razão, sobretudo, da impossibilidade de ter as suas ideias absorvidas no projeto do museu a ser concebido. Godelier foi substituído por Emmanuel Désveaux, visto como um “guerreiro mais fraco” na luta por uma visão antropológica (Price, 2007, p. 51). 14 Tais como Maurice Godelier e Pierre-Léonce Jordan, interlocutores que contribuíram com esta pesquisa. 13

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Kerchache fez prevalecer a sua vontade pela exclusividade de esculturas na exposição (que foi posteriormente criticada por certos antropólogos que faziam parte da sua equipe, por expressar uma visão errônea sobre a produção variada de arte primitiva), além de privilegiar alguns materiais, deixando de lado outros considerados, em outras visões, como característicos das regiões representadas. Ainda que fosse reconhecido pelos diretores do projeto que as escolhas institucionais se dão em condições muito diferentes daquelas de um colecionador privado, considerando o destino definitivo das aquisições e, ainda, as obrigações jurídicas, administrativas e deontológicas de uma coleção pública, Germain Viatte, um dos diretores do projeto museológico, justifica o pioneirismo de Kerchache, ao afirmar que as iniciativas individuais de certos membros de uma grande equipe as marcam inevitavelmente (Viatte, 2006, p. 9). Neste caso, entretanto, é seguro afirmar que o comitê científico estabelecido não teve qualquer participação direta na seleção das peças, e até mesmo as novas aquisições realizadas com o objetivo de enriquecer a coleção já disponível, possíveis apenas graças a um fundo de aquisição oferecido especialmente pelo governo francês, foram determinadas pelas escolhas individuais de Kerchache. O objetivo primeiro deste antigo colecionador era o de tornar a sua “intrusão” no Louvre “incontestável senão incontestada” (Viatte, 2006, p. 39). Às peças selecionadas da coleção pública dos museus franceses foram acrescentados objetos que Kerchache julgava “enriquecedores” para o conjunto das obras apresentadas15. Os critérios utilizados em tal seleção correspondiam a uma noção muito particular, defendida por este colecionador, sobre o que deveria ter valor nas ‘artes primeiras’:

Não é a história da obra que faz a obra prima. (...) A estética da pátina, a ancestralidade, a raridade de um material não são também critérios de qualidade, nem a monumentalidade de uma escultura, por mais impressionante que ela seja, porque a dimensão não é um princípio de excelência. Todas essas tentações prejudicam o julgamento crítico e não favorecem o acesso à obra onde deveriam unicamente transparecer a integridade do artista, seu projeto, seu gesto. Para isso, nada necessita de tradução (Kerchache, 2000, p. 19)16.

Este aspecto ‘universalmente’ apreendido das obras expostas por Kerchache diz respeito às características intrínsecas dos objetos, que permitem o olhar sobre ‘obras de arte’ meramente. Assim, nas condições em que são apresentados os objetos do Pavillon des Sessions são modelos de excelência que excedem a sua ‘autoctonia’, “não apenas campeões do belo, mas também relíquias de significações recriadas” (Ciarcia, 2001, p. 344). Na opinião da maioria dos antropólogos – mesmo, posteriormente, aqueles que fizeram parte do projeto inicial e depois o abandonaram, como foi o caso de Godelier –, o resultado do cenário expositivo construído por Kerchache corresponde mais à representação de uma parte da história da arte moderna, expressa nos objetos apresentados, do que a um espaço de reflexão sobre os povos que os produziram. O valor atual que se confere às ‘artes primeiras’ funda-se sobre a sua pretensa autenticidade e sua transformação em patrimônio da humanidade – esta última ligada a uma crença segundo a qual se atribui a entrada das obras de ‘artes primeiras’ no Louvre como a quitação de uma dívida (Ciarcia, 2001, p. 347). Esta operação, que pode ser qualificada como jurídica, na qual um patrimônio invisível é convertido em fortuna real e durável, sanciona a apropriação e a frutificação de uma herança

Inclusive a escultura chupicuaro, adotada como logomarca do Musée du Quai Branly, fora comprada por Kerchache, da antiga coleção de Guy Joussemet, nesta ocasião. 16 “Ce n’est pas l’histoire de l’œuvre qui fait le chef-d’œuvre. (...) L’esthétique de la patine, l’ancienneté, la rareté d’une matière ne sont pas non plus des critères de qualité, ni la monumentalité d’une sculpture, pour impressionnante qu’elle soit, car la dimension n’est pas un principe d’excellence. / Toutes ces tentations nuisent au jugement critique et ne favorisent pas l’accès à l’œuvre où devraient uniquement transparaître l’intégrité de l’artiste, son projet, son geste. Pour cela, nul n’est besoin de traduction” (original traduzido pelo autor). 15

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estabelecida por parte daqueles que são os “patronos visuais” (Ciarcia, 2001, p. 347). Os promotores do reconhecimento estético, assim como o mercado de arte primitiva, obliteram as intenções individuais e coletivas – já silenciadas por outros mecanismos no passado – que estão na origem mesma do sentido da criação artística. O resultado desse processo é uma inversão da crença anterior, como aponta Ciarcia, uma vez que a dívida se transforma em riqueza pelo sujeito devedor. Nesse sentido, a própria ideia de autenticidade aplicada a esses objetos ressignificados nos processos de ‘invenção’ das ‘artes primeiras’ e de criação de uma nova linguagem museal é alterada, deixando de estar ligada à sua funcionalidade, uma vez que os objetos já não exercem as funções às quais foram originalmente destinados, e passa a ser concebida segundo a “conformidade com um modelo material”, como definida pelo antropólogo Philippe Descola (2007, p. 336) – ou seja, fazendo referência a uma tradição europeia segundo a qual o inautêntico é aquilo que é mal categorizado. No Musée du Louvre, passamos, sem muito esforço, da contemplação de uma escultura africana a uma pintura italiana. Sendo assim, o que determina que uma obra de arte seja merecedora de figurar em museus, ou não? Dito de outro modo, o que definiria a obra de arte, efetivamente, no novo tipo de relação que era proposta entre criador, obra e espectador? Por detrás do projeto de ‘libertação’ das ‘artes primeiras’ estava, em grande parte, o pensamento de Claude Lévi-Strauss, como alicerce daquilo que seria colocado em prática no Musée du Quai Branly, e que sustentaria, até a sua inauguração, os debates e disputas dos quais participaram Kerchache e Chirac, para legitimarem a visão que defendiam. A mensagem da antropologia estrutural de Lévi-Strauss apresentava-se, em si, como

universalista – como se observa em obras como as “Mythologiques” (2009 [1964-1971]), e notadamente em “La pensée sauvage” (1962). Seu “método etnológico” pressupõe a construção de certo distanciamento entre observador e observado (como seres de mesma natureza), e o etnólogo tem o papel de descobrir um sentido associado para configurações muito diferentes. Tal perspectiva iria marcar permanentemente os estudos americanistas e seus pressupostos. A transformação museológica é um dos sintomas dessa mudança. A nova sensibilidade de ordem estética é colocada como a dimensão da interlocução entre as culturas, o olhar estético sendo aquele que liga os seres humanos com o seu interior mais profundo. Lévi-Strauss iria se colocar contra a representação dos povos de culturas diferentes da europeia como uma realidade etnográfica em si mesma, isto porque, segundo ele, “um museu etnográfico não podia mais, como em sua época, oferecer uma imagem autêntica da vida das sociedades as mais diferentes da nossa” (Lévi-Strauss, 1996, p. 20, grifos do autor). Desassociando o objeto etnográfico de sua contextualização nos museus, ele justificaria tal perspectiva em diversos momentos de sua obra. Como afirma o autor em “La voie des masques”: Seria (...) ilusório de se imaginar, como tantos etnólogos e historiadores da arte acreditam ainda hoje que uma máscara e, de maneira mais geral, uma escultura ou um quadro, possam ser interpretados cada um por sua conta, por aquilo que representam ou pelo uso estético ou ritual ao qual se destinam. Nós vimos (...) que, ao contrário, uma máscara não existe em si; ela supõe, sempre presentes ao seu lado, outras máscaras reais ou possíveis que se poderia ter escolhido para lhe substituir (Lévi-Strauss, 2009 [1979], p. 123)17.

Buscando explicar as máscaras de diferentes culturas, assim como se esforçara para interpretar os mitos ameríndios em sua “Mythologiques”, Lévi-Strauss

“Il serait (...) illusoire de s’imaginer, comme tant d’ethnologues et d’historiens de l’art le font encore aujourd’hui, qu’un masque et, de façon plus générale, une sculpture ou un tableau, puissent être interprétés chacun pour son compte, par ce qu’ils représentent ou par l’usage esthétique ou rituel auquel on les destine. Nous avons vu (...) qu’au contraire, un masque n’existe pas en soi; il suppose, toujours présents à ses côtés, d’autres masques réels ou possibles qu’on aurait pu choisir pour les lui substituer” (original traduzido pelo autor).

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propõe que “uma máscara não é inicialmente aquilo que ela representa, mas aquilo que ela transforma, quer dizer, o que escolhe não representar” (Lévi-Strauss, 2009 [1979], p. 123, grifo do autor); e acrescenta: “como um mito, uma máscara nega tanto o quanto ela afirma; ela não é feita somente do que ela diz ou acredita dizer, mas daquilo que ela exclui”. A partir desta perspectiva, ele iria autorizar os procedimentos da cadeia museológica colocada em prática em nome do projeto de um museu para as ‘artes primeiras’. Segundo L’Estoile, com o pensamento de Lévi-Strauss, a ideia primordial do museu de etnografia de que se pode reconstituir em seu seio uma sociedade a partir de seus objetos deixou de ser acreditável. Como consequência, o museu de etnografia “não teve outra escolha a não ser a de se tornar um museu de arte” (L’Estoile, 2007, p. 17, grifos do autor), sendo o critério estético o único capaz de dar algum sentido a esses objetos em um museu europeu. Desde que a linguagem artística ocupou o seu lugar de prestígio nos museus que guardam objetos etnográficos, particularmente a partir do final do século XX, mais e mais os antropólogos – que, em sua maioria, se preocupavam em grande parte com a função ritual, social e política desses objetos – passaram a considerar a capacidade da arte a transmitir mensagens não comunicáveis por outros meios e de se dirigir diretamente ao inconsciente dos espectadores (Derlon, 2007, p. 126). Na perspectiva estetizante, perceber a arte como uma forma de comunicação por si só, capaz de transmitir sentidos e significados, possibilitou aos antropólogos que aderiram ao projeto Quai Branly ‘libertarem’ as obras de seu contexto, e estas passaram a ser estudadas em si mesmas e a partir do efeito que exercem sobre as pessoas. Contudo, esta abordagem possui um caráter duplo: se, por um lado, ela permite que se compreenda o processo de legitimação das ‘artes primeiras’ no Ocidente, por outro, ela corre o risco de ignorar as relações de poder em jogo no momento em que essas ‘artes’ passam a ser compreendidas por critérios ditos ‘universais’ a todas as culturas e ‘justos’ por supostamente não reconhecerem hierarquias.

Ainda que as ‘artes primeiras’ ocupem um lugar privilegiado tendo entrado para o Musée du Louvre, dentro deste mesmo museu há diferenças marcantes entre a apresentação dos objetos das ‘artes primeiras’ e os de outras civilizações – historicamente reconhecidas como ‘civilizações’ pelo Ocidente. Enquanto o conhecimento e a história dos criadores são apagados na exposição das ‘artes primeiras’, em outras partes do museu, em que estão expostas obras do Egito ou da Mesopotâmia, por exemplo, as peças selecionadas e o tratamento recebido por elas são de outra natureza. Pode-se dizer que na exposição egípcia, ao se incluir peças utilitárias, adereços corporais e elementos do cotidiano na coleção, acompanhados de explicações precisas sobre os seus usos, tem-se uma noção de que ‘havia pessoas reais por detrás desses objetos’. Civilizações que foram claramente entendidas como ‘superiores’ na hierarquia dos povos antigos que inclui a Europa – como a egípcia ou a grega – recebem um estatuto diferenciado daquele das recém-chegadas artes ‘exóticas’ no museu mais ‘clássico’ do mundo. O conceito de “legitimidade”, presente na obra de Max Weber (2000 [1972]), tem uma aplicação privilegiada no campo da arte, pois constitui a base de uma sociologia da dominação, voltada ao desvelamento das hierarquias mais ou menos abertas, que estruturam o campo, para chegar a uma “desmistificação” das “ilusões” mantidas pelos atores sobre sua relação com a arte. Portanto, sendo “socialmente construídas”, as representações dominantes da obra de arte seriam inadequadas ao seu objeto, porque falseadas por estratégias (Heinich, 2008, p. 114). Esta é, com efeito, uma abordagem necessária para se entender o processo de ascensão das ‘artes primeiras’ e a construção de um museu que não realiza aquilo que enuncia, ao expor objetos de um passado colonial sem colocar em questão a colonização, e adotando os critérios de uma cultura dominante. É possível reconhecer, entretanto, que a importância dos critérios adotados não é invalidada, uma vez que esses são vistos como construções artificiais em função, quase

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sempre, de relações de poder diversas. Por isso, a presente análise não pode se resumir a um modelo de polarização entre dominados e dominantes, de modo que o que se propõe aqui é tratar estas categorias de forma crítica. A polarização ocasionaria, em primeiro lugar, uma redução da pluralidade dos campos e dos agentes a um princípio de dominação, o que quase não permitiria levar em consideração a pluralidade dos princípios de dominação, mesmo quando esta é teoricamente admitida. Como aponta Heinich, “legitimidade”, “distinção” e “dominação” são noções válidas apenas em um mundo unidimensional, onde seria possível opor de modo unívoco o legítimo e o ilegítimo, o distinto e o vulgar, o dominante e o dominado (Heinich, 2008, p. 115). Ainda que se possa reconhecer, como o fez Lévi-Strauss, a presença de objetos que podem ser comparados à noção de ‘arte’ nas mais diversas sociedades, entre elas aquelas que foram pensadas como ‘primitivas’, a maneira pela qual as pessoas classificam a arte e se relacionam com ela difere de um contexto a outro. O papel da antropologia é o de recusar o julgamento das culturas que ela compara e contrasta, com o fim de produzir conhecimento sobre elas, o que a posiciona firmemente contrária ao projeto estético do Ocidente moderno (Gow, 1996, p. 219). Vale ressaltar que o próprio uso da arte como instrumento de ‘liberdade’ para englobar diferentes culturas em um mesmo discurso é um artifício criado no Ocidente, sendo uma característica da arte moderna que se desenvolveu principalmente na Europa – já que em outros momentos ou em contextos particulares a arte foi utilizada como instrumento diferenciador, marcando as relações de poder e as diferenças sociais. Sendo assim, cabe ao presente estudo esclarecer a interpretação dos objetos em um contexto determinado, evitando o julgamento de valor e a argumentação sobre as controvérsias que opõem o real às representações do real, mas sem ignorar as implicações políticas dessa interpretação e classificação. Tal esclarecimento tem como fim o de evidenciar que, por mais que se fale de um gosto com pretensões de ser um ‘gosto universal’, ainda assim está se tratando de ‘um gosto’.

AUTOR E AUTORIDADE Com efeito, o projeto de “comparar e contrastar” a estética ocidental e estéticas de outras culturas já tem uma longa história no Ocidente, história esta na qual, como chama a atenção Gow (1996, p. 220), a antropologia não desempenhou um papel. Trata-se notadamente do projeto da “arte primitiva”, que pode ser pensada como uma “categoria interna da arte ocidental” (L’Estoile, 2007, p. 232). Desde o final do século XIX, a categoria do “primitivo” já era elevada a “talismã de autenticidade” (Gow, 1996) no bojo do discurso modernista, que buscava romper com a tradição acadêmica. A partir de então, os artistas modernistas, os marchands, os colecionadores e os críticos mostraram-se irritados com o desejo dos antropólogos de explicar esses objetos, remetendo-os aos seus contextos culturais. Por mais que seja possível considerar diferentes formas de arte por meio dos mesmos critérios, é preciso reconhecer que objetos expostos como arte nos diferentes museus não possuem a mesma origem. Por diversas razões, foi mais simples para o Musée du Louvre – em função dos discursos dominantes – se apropriar de uma esfinge egípcia e de esculturas gregas do que de um artefato maia ou de uma escultura africana, como a história recente já mostrou. Não existe seleção de museu que seja imparcial; toda seleção é um exercício de autoridade. Logo, a visão individual de Kerchache para as ‘artes primeiras’ no Louvre marcou a legitimação de uma autoridade, pela qual foi inventado um novo modo de apresentação de ‘obras de arte’, que se constituem como obras tanto pelas mãos do artista quanto pelas do colecionador, que neste caso é também o comissário da exposição. Como demonstraram Brigitte Derlon e Monique Jeudy-Ballini, no caso das ‘artes primeiras’, a “intervenção criadora” do colecionador reside no poder transformador do seu olhar sobre o objeto (Derlon e Jeudy-Ballini, 2008, p. 141). E este olhar do colecionador é o que determina, em grande parte, a entrada de uma obra na cadeia museológica por meio do processo de musealização.

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Como caracterizar, assim, um autor para a obra? A autoria estaria compartilhada entre diversas instâncias – passando pelo criador (sobre o qual pouco se sabe acerca das suas intenções), o colecionador (que primeiro introduziu a obra na cadeia patrimonial) e pelos museus, ou pelos conservadores de museus e comissários de exposições (responsáveis pela seleção final e pela apresentação da obra ‘sem autor’). Essas obras, apresentadas com uma ‘assinatura anônima’, em que só se sabe, em geral, a área geográfica e o grupo social de onde elas provêm, carregam consigo um tipo de autoria sem autor, valorizada na exposição do Musée du Quai Branly, no Pavillon des Sessions. Em uma definição romântica da obra de arte, presente no Decreto nº 95-172 da legislação francesa, de fevereiro de 1995, relativo à definição de bens de ocasião, de obras de arte, de objetos de coleção e de antiguidade: “a obra de arte é executada da mão do artista ou sob o seu controle; ela é única ou produzida em um número limitado de exemplares; ela é portadora de sua própria finalidade”18. Nas palavras de Heinich (2008), a obra é um objeto de arte criado por um autor, percebido como obra, e não como mero objeto (coisa) – e para isso é preciso estar: (1) livre de qualquer função que não seja estética, (2) ligada, pela assinatura ou atribuição, a um autor, ou a seu equivalente em caso de autor desconhecido, (3) que seja singularizado, ou seja, considerado não substituível, dada sua originalidade e unicidade (Heinich, 2008, p. 129). Esta abordagem definidora da ‘obra de arte’, disseminada no Ocidente e para além dele, apresenta uma perspectiva (1) restrita de uma noção de ‘obra’ que, de fato, é ampla e variada, e dependente do sentido de (2) continuidade e do de (3) raridade. Partindo desta ideia específica da obra de arte, parece contraditório, dentro do campo da arte

do Ocidente, a presença de obras chamadas de ‘arte’ nos museus sem que seus autores sejam identificados e, mesmo, sem que haja uma vontade da instituição de identificá-los. Se não existe arte sem autor, quem são os autores das obras expostas por Kerchache? A questão do ‘autor’, neste caso, passa pela questão mais complexa de como esses objetos foram parar no museu. O que está em discussão é, efetivamente, o que determina a musealização. Quem tem autoridade sobre as ‘artes primeiras’? No caso das obras apresentadas no Pavillon des Sessions, o desconhecimento parcial evidente do comissário da exposição (ou curador) sobre os verdadeiros usos precedentes dos objetos, por um lado, permitiu que eles fossem usados como peças ‘imaginárias’, evocando a imaginação do público sobre suas origens e aguçando uma curiosidade geral sobre elas19 e, por outro, ‘libertou’ as obras, por assim dizer, de qualquer outra cadeia de significados (utilitária, ritual etc.), o que permite a sua apreensão como ‘arte’. A seleção e o percurso criados na exposição respondem à unidade do conceito de ‘um autor’, e da ‘sua’ percepção da singularidade das obras. No caso de um conjunto de obras de procedências tão distintas e de autorias desconhecidas, a exigência estética colocada em cena como critério não estava posta, seguramente, no momento e no contexto em que essas peças foram produzidas – ela é uma exigência dos seus colecionadores e, depois, do comissário da exposição. Como se pode observar na exposição, a coleção de objetos seletos que compunham a seção das Américas, ao entrar para o Louvre pelas mãos de Kerchache, era composta de apenas 30 peças (das 110 peças no total da exposição da África, América, Ásia e Oceania). Não havia, nesse momento, nenhuma referência aos autores individuais das peças – que, em geral, não poderiam ser

“(...) l’œvre d’art est exécutée de la main de l’artiste ou sous son contrôle ; elle est unique ou produite en un nombre limité d’exemplaires; elle est porteuse de sa propre finalité” (no original) (Moulin, 2003, p. 118). 19 Os objetos são apresentados dentro de uma narrativa que, em vez de se pautar em afirmações científicas, está repleta de interrogações e de divagações como o “podemos nos perguntar se...” (texto da exposição no Pavillon des Sessions, 2012), que abrem o espaço para aflorar a imaginação do público sobre suas vidas passadas. 18

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mesmo identificados, tendo sido esses povos apagados da história pelo Ocidente e uma vez que a ideia de autor individual, como se pressupunha, não existia nos contextos, nos quais elas foram produzidas20. Essa ausência – de autores tanto quanto de datas da produção (Figura 2) – marcava desde o momento em que essas peças foram adquiridas por europeus até a necessidade vigente de ‘livrá-las’ de qualquer referência objetiva que as ligasse ao contexto da coleta. Todavia, se nos remetermos à noção de “funçãoautor”, através da qual Foucault (1983) argumenta que o nome de um autor exerce uma função classificatória, pois permite agrupar certo número de textos, ou obras de arte, de delimitá-las e de opor umas às outras, é relevante apontar que, sendo as obras das ‘artes primeiras’ caracterizadas pela ausência de autores, as que foram selecionadas para entrar no Louvre são associadas a outros nomes de importância reconhecida na Europa e no mundo ocidental em geral. Os nomes que aparecem nas legendas da exposição – considerando aqui as obras das Américas como universo de análise – são majoritariamente os de colecionadores importantes para a história da arte moderna ou para a história da etnologia e dos museus franceses. Entre eles, alguns ‘colecionadores-autores’ podem ser apontados: David Weil (em uma peça), Guy Joussemet (em uma peça), Alphonse Pinart (em sete peças), Eugène Pépin (em uma peça), Diego Rivera (em uma peça), André Breton (em quatro peças), Eugène Bonan (em duas peças), Max Ernst (em duas peças), Claude Lévi-Strauss (em quatro peças). No total, 17 obras expostas eram marcadas por este ‘pedigree’ proveniente do nome de célebres colecionadores, que, em algum momento, antes que entrassem para os museus franceses21, fizeram parte

Figura 2. Legendas das máscaras yup-ik, compradas por André Breton nos Estados Unidos. Musée du Louvre, Pavillon des Sessions, 2011.

das suas biografias, algumas tendo pertencido a mais de um deles, como indicado nas legendas. Uma das escolhas feitas por Kerchache e seus conselheiros foi pela compra de “dois testemunhos excepcionais” (Viatte, 2006, p. 43), que tornaram-se objetos do interesse dos intelectuais e artistas franceses, imigrados em Nova Iorque durante a Segunda Guerra Mundial – entre eles André Breton, Claude Lévi-Strauss, Georges Duthuit, Robert Lebel e Max Ernst –, objetos provenientes da Heye Foundation, que lhes foram

Todavia, podemos supor que os agentes da metrópole, através dos instrumentos de poder da administração colonial, poderiam facilmente apontar autores para as obras coletadas, ainda que estes fossem múltiplos e muitas vezes dispersos. 21 Entre eles, principalmente o Musée d’Ethnographie du Trocadéro, o Muséum National d’Histoire Naturelle, o Musée de l’Homme e o próprio Musée du Quai Branly, cujas primeiras aquisições se deram no decorrer da década de 1990, quando foram adquiridas, por exemplo, as máscaras norte-americanas pertencentes à coleção de André Breton, compradas em 1999 por Kerchache, do Museum of the American Indian, pertencente à Heye Foundation, em Nova Iorque (Godelier e Kerchache, 2000). 20

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fornecidos por um preço baixo pelo marchand Julius Carlebach. Das peças oferecidas por Carlebach, despertou o interesse de Breton na época uma máscara yup-ik, do Alaska, que ele iria denominar de “máscara vermelha”, e que iria ser reunida à outra máscara do par, comprada por ele mais tarde, chamada de “máscara azul” – atualmente ambas se encontram, lado a lado, na exposição das ‘artes primeiras’ no Musée du Louvre. Além desses objetos, uma última peça comprada para o Pavillon des Sessions foi uma máscara de Teotihuacán conhecida graças a uma fotografia tirada por Henri Cartier-Bresson de Breton em seu Atelier, em 1961. Esta também havia pertencido a Diego Rivera22. Parece, então, que a seleção apresentada é mais um testemunho do colecionismo europeu do que um tributo aos “artistas”, os primeiros produtores das obras expostas. Como aponta a antropóloga e jurista Rosemary J. Coombe, a controvérsia acerca da apropriação cultural está fundada sobre premissas particulares quanto à autoria, à cultura, à propriedade e à identidade, que são produtos de uma história de apropriações coloniais e que definem os parâmetros persistentes de um imaginário legal europeu (Coombe, 1997, p. 75). Uma apropriação cultural, hoje, é um conceito impreciso que vem ganhando forma no trabalho de antropólogos e juristas que nas últimas duas décadas passaram a se preocupar com o tema. A noção surge nos anos 1980 e ganha espaço na cena política pós-colonial nos anos 1990, principalmente em razão das reivindicações das populações autóctones em relação às sociedades ‘dominantes’ do Ocidente. Uma imagem que fere, de algum modo, a crença de certos fiéis, ou uma utilização de elementos de outra cultura (diferente da do autor) de modo estereotipado ou depreciativo é considerada ‘apropriação cultural’. Essa ideia está ligada a uma definição de ‘propriedade’ sobre as representações, ou de ‘autoridade’ – por isso, podemos usá-la ao discutir as ‘artes primeiras’. Com efeito, a autoridade nas artes está ligada à noção de autoria. A obra de arte precisa de um autor para adquirir

um estatuto de obra e para exercer um efeito. Ela constitui, em si, uma forma de transformação de materiais e das ideias associadas a esses materiais, ainda que esta transformação possa ser apenas, como no caso das ‘artes primeiras’, a sua entrada em um museu ou galeria de arte, a atribuição de um título e de um pseudo-autor que pode ser um colecionador precedente. Em outras palavras, no caso das ‘artes primeiras’, a musealização se dá por meio da apropriação. Finalmente, é preciso reconhecer que a noção de autor como uma entidade individual é a invenção de um sistema mercantilista do Ocidente, que depois se legitimou de maneira efetiva com o desenvolvimento industrial e do capitalismo. Em oposição a essa concepção da obra autoral atribuída a um indivíduo, como se preconiza no Ocidente, as produções indígenas e o conhecimento dos povos autóctones são, em geral, vistos como o resultado de uma criação coletiva. Esta primeira distinção é uma das causas do problema gerado pela integração da arte indígena em um sistema da arte global.

UM ‘MERCADO DE ARTE’ PARA AS ‘ARTES PRIMEIRAS’ Diferentemente de alguns museus nacionais em países como os Estados Unidos, o Canadá e a Austrália, que constantemente são confrontados com reivindicações e atos violentos por parte de membros das culturas representadas, o Musée du Quai Branly, desde os seus primeiros anos de existência, buscou escapar dos embates com indígenas. A razão pela qual o museu europeu vem conseguindo se manter ‘intocável’ neste cenário de fricções morais está em seu próprio estatuto como museu de arte, e por ter se voltado – quase que exclusivamente – para o mercado e para os colecionadores, ao constituir a sua coleção. O museu, assim, deixa de incluir as próprias populações que teriam como herança os objetos de que ele se alimenta, mas faz isso através de um meio considerado como neutro e imparcial: o do mercado de arte.

Rivera teria dado a máscara de presente à Breton depois da Segunda Guerra (Godelier e Kerchache, 2000).

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Segundo Raymonde Moulin (2003, p. 45), “a arte é um bem raro, durável, que oferece ao seu detentor serviços estéticos (prazer estético), sociais (distinção, prestígio) e financeiros”. Uma chef-d’œuvre é um bem que pode ser possuído tanto por proprietários individuais quanto por coletividades (por meio dos museus). Na lógica do mercado, o proprietário de uma obra é aquele que a comprou, e que, portanto, adquiriu a propriedade patrimonial sobre ela, e isso não significa identificá-lo como autor da obra comprada. O autor, todavia, no caso das ‘artes primeiras’, será, na maioria das vezes, imaginado, já que não é identificado. Entretanto, como demonstrado anteriormente, uma visão estática e antiga da noção de propriedade sobre uma obra, como produto do trabalho de um autor, vem sendo modificada pela ênfase liberal em como a propriedade adquire valor nos processos de troca e circulação (Ross, 1992, p. 2). A agregação de valor a uma obra que passou por esse ou aquele proprietário em sua trajetória pode ser determinante da entrada desta para um grande museu – como se viu na seleção inicial das ‘artes primeiras’ para o Pavillon des Sessions. No mercado, o preço de uma chef-d’œuvre – obra que é singular e insubstituível, e cujo valor primeiro provém de sua raridade – é estabelecido por um conjunto de valores que lhe são exteriores. Como aponta Moulin (2003, p. 15), as variáveis relativas à demanda devem ser levadas em consideração. O caso ideal típico da limitação quase absoluta da oferta faz com que se imponha uma situação de monopólio gerada pela unicidade da obra. Mas, para além do desejo dos colecionadores de possuir objetos de arte como bens pessoais, deve-se reconhecer que o poder peculiar desses objetos não está, primordialmente, ligado ao seu valor como itens de troca. Nos museus, o poder dos objetos de arte reside nos processos simbólicos que eles provocam nos observadores, e estes têm características sui

generis que são parcialmente independentes dos objetos em si mesmos. Pertencendo a uma esfera de trocas da qual as pessoas comuns se veem excluídas, estes objetos musealizados não deixam de ser ‘objetos de desejo’ – um desejo de possuí-los, ainda que não materialmente. No mercado, o preço depende da competição final entre os agentes (estes, marcados por uma rede de influências que envolve também os museus), considerando o seu desejo de possuir a obra (ou um dado tipo de obra), e os seus poderes de compra. Nesse sentido, o preço é, enquanto tal, amplamente imprevisível. Nos últimos anos, viu-se uma ascensão progressiva do mercado das ‘artes primeiras’, que pode ser observada a partir da constatação de uma alta marcante dos preços das obras vendidas em diversos contextos23. Em 1897, na ocasião da sangrenta expedição punitiva britânica ao reino do Benin, que resultou no saque do palácio do Obá, aproximadamente mil placas de bronze, datando de vários séculos antes, foram arrancadas do palácio e dispersas em Londres pelo Foreign Office. Muitas delas alimentaram as coleções de grandes museus europeus, nos quais ainda permanecem atualmente, como no caso do British Museum. Outras foram comercializadas por marchands, alcançando o preço de algumas centenas de libras esterlinas por peça. Hoje, como assegura Patrick Caput, consultor da Sotheby’s24, essas placas “valem correntemente a bagatela de várias centenas de milhares de euros” (Wavrin, 2006, p. 61). Em dezembro de 2004, em Paris, uma delas, datando do final do século XVI ou início do XVII, foi vendida pelo preço de seiscentos e noventa e um mil e duzentos euros, tendo esta mesma peça sido avaliada em três mil libras em 1961 (Wavrin, 2006, p. 61). Esta venda representou um dos recordes de preço pago por peças de arte africana, que já foi batido por cifras muito mais elevadas atualmente.

Foram consultados para esta pesquisa diversos catálogos e sites de leilões em que figuravam objetos classificados como ‘artes primeiras’ ou primitivas (Binoche e Giquello, 2007). 24 Uma das mais antigas sociedades de leilões de arte no mundo, com sede em Londres. 23

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Em razão da constante alta dos preços das ‘artes primeiras’ no mercado internacional, em sua maioria, os museus e fundações encontram-se hoje insuficientemente armados financeiramente para adquirir as obras mais raras provenientes de regiões as mais valorizadas ou de tipos únicos (Moulin, 2003, p. 16). No caso de um grande museu público, como o Quai Branly, as compras iniciais se deram, em geral, no sentido de se completar um conjunto de referências estéticas que, ao mesmo tempo em que eram ditadas pelo mercado e pelo gosto dos colecionadores, também iriam ditar o valor de certos objetos que viriam a ganhar visibilidade neste mesmo mercado. Um dos papéis que teve o museu, a partir do momento em que foram selecionados os objetos para a primeira exposição, foi o de alargar o leque das ‘artes primeiras’, incluindo quatro continentes, o que iria ampliar o interesse europeu e, particularmente, o francês, voltado até então enfaticamente para a arte africana. Diferentemente da maioria das vendas de arte tribal parisienses habituais, centrada, em geral, na arte africana, a venda Breton – como ficou conhecida –, em abril de 2003, tinha o interesse de oferecer os objetos da Melanésia, da Austrália, da Indonésia ou da América do Norte, caros aos surrealistas e raríssimos tanto nas vendas parisienses quanto no mercado em geral. Esta venda, que se tornou famosa pela sua singularidade no contexto francês, possuía ainda o trunfo de ter mantido intacto o célebre atelier do número 42 da rua Fontaine, em que haviam permanecido, por meio século, as obras pertencentes a André Breton. Para além dos pequenos objetos que iriam, por sua vez, pulverizar as estimativas sobre os seus preços, alguns outros mais importantes não tiveram o preço tão elevado, o que permitiu que o Musée du Quai Branly exercesse o seu direito de preferência sobre diversos lotes, adquirindo, entre outras peças, uma máscara haida em madeira policromada da Colúmbia Britânica, datada do início do século XIX, a cento e sessenta e cinco mil e cento e dezesseis euros, preço este no limite das estimativas (Wavrin, 2006, p. 65).

A obra mais visada da venda, uma efígie de ancestral uli em madeira policromada da Nova Irlanda, foi comprada por um milhão e duzentos mil euros pela filha do colecionador, Aube Breton, e foi oferecida, em seguida, à biblioteca Doucet – preço sensivelmente abaixo dos quase três milhões de euros pagos pelo Estado pouco antes da abertura do Pavillon des Sessions por uma estátua uli similar, comprada do colecionador parisiense Alain Schoeffel. Se os agentes do mercado estão em competição financeira pela obtenção de obras as mais raras, incluindo aquelas procuradas pelos grandes museus e que aparecem raramente no mercado, eles se encontram, ao mesmo tempo, em competição intelectual para renovar a oferta por meio da inspeção das zonas de sombras e da reavaliação das obras já conhecidas (Moulin, 2003, p. 19). Os museus, neste sentido, não são vistos necessariamente como entraves para o mercado da arte, já que a colaboração entre os atores culturais e atores econômicos é um dos fatores que contribui para a renovação dos valores – os museus servem, em grande medida, para fornecer informações úteis sobre o que já se conhece das obras e dos artistas e aquilo que ainda resta conhecer. No caso das ‘artes primeiras’, entretanto, é o movimento contrário que se vê acontecer com frequência. No Musée du Quai Branly, no qual a produção de conhecimento é principalmente a do conhecimento artístico, ao mesmo tempo em que o próprio museu produz um conhecimento sobre as obras em sua coleção, este também recorre ao universo dos colecionadores para distinguir entre diferentes tipos de objetos, e para obter informações úteis sobre futuras aquisições (Brulon-Soares, 2012). A relação estreita estabelecida pelo Musée du Quai Branly, na última década, com o mercado de artes tem o efeito de legitimar as suas escolhas em um sistema que se constituiu com base na tradução das diferenças culturais em um gosto particular por este conjunto de produções estigmatizadas. Como aponta Molly H. Mullin, a transformação das artes indígenas “em arte, e não em

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etnologia” é um tipo de afirmação utópica da diferença cultural – uma versão mais colonial do multiculturalismo – que reflete respostas das elites à ascensão do capitalismo de consumo (Mullin, 1995, p. 166). Com frequência, as relações entre arte, identidade nacional e distinções de classe vêm sendo negligenciadas pelos museus que recorrem à linguagem ‘universal’ das ‘artes primeiras’. Uma abordagem crítica às oposições entre ‘nós’ e os ‘outros’ pode ser adotada de forma provocativa e, ainda assim, estas categorias serem reproduzidas, inadvertidamente, como estruturas de pensamento. “Como ‘nós’ nos relacionamos com ‘eles’?” é a questão fundamental colocada. Ocorre que essas categorias binárias – do ‘nós’ e do ‘eles’, do ‘eu’ e do ‘outro’ –, reflexos de antigas oposições entre primitivo e moderno, dominado e dominador, são categorias situacionais e, portanto, instáveis, não podendo ser reproduzidas para definir as estruturas de poder do mundo pós-colonial. É preferível falar, por isso, em ‘situações de dominação’, em que relações de poder podem ser apontadas. O mercado das ‘artes primeiras’ constitui uma dessas situações, em que um sistema pensado para tratar coisas diferentes como se fossem iguais tem a pretensão de ser neutro, quando, na verdade, está incorporado em um contexto desigual mais amplo. O fato de o mercado e os marchands terem desempenhado um papel determinante na aquisição de objetos pelo Musée du Quai Branly se dá, em grande parte, pela ausência, no mundo dos museus, de uma expertise independente neste domínio, o que leva à obrigação de se recorrer à competência dos marchands para avaliar a “qualidade”, o valor mercadológico, das peças propostas para aquisição (L’Estoile, 2007, p. 280). Como consequência dessa nova rede de valores em construção e em ação, ao separar as artes das Américas, África, Ásia e Oceania, o museu ajuda a criar uma nova categoria artística (a das ‘artes primeiras’) e fortalece um mercado em ascensão.

O aumento crescente pela procura por objetos identificados como ‘artes primeiras’ reflete atualmente o gosto caro dos ocidentais, que não difere, em parte, do gosto pelos produtos coloniais desenvolvido na época do império colonial. O mercado de arte, logo, tem o efeito de manter e sustentar relações de dominação historicamente estabelecidas.

A AUTORIDADE DO GOSTO Uma obra de arte é responsável por fazer a ligação entre dois mundos – o do autor e o do receptor. Este último tem o papel de interpretar a obra contemplada, trabalho este que não se vê fora de um campo de poder estabelecido. O problema que as ‘artes primeiras’ colocam para a antropologia está no fato de elas fazerem a ligação entre autores e receptores que pertencem a mundos culturais distintos, e que, no contexto dos museus, encontram-se em posições de poder diferentes e hierarquizadas. A transformação que se dá quando uma ‘cultura’ passa a ser olhada como obra de arte, ou conjunto de obras em um museu, é, com efeito, uma forma de dominação. O olhar sobre o objeto, realidade reduzida, é um olhar superior, já que os representados estão submetidos ao “princípio de visibilidade obrigatória” (Foucault, 1977, p. 167), como no Panóptico de Bentham. Se toda produção de valor no Quai Branly é mediada (por agentes ocidentais, na maioria das vezes), todo o processo de seleção e apresentação das obras é, em si, apropriação cultural. Este não é percebido desta maneira, pois o mercado cria uma distância artificial entre os produtores (‘artistas’) e o museu. A entrada de novos objetos na coleção se dá através da mediação do mercado, que tem uma gramática própria. O museu, por sua vez, não atua mais como agente de pesquisa no sentido de produzir coleções; como declara Anne-Christine Taylor, diretora do Departamento de pesquisa e educação do Musée du Quai Branly em 2012: “não vamos mais até os Kamayurá para coletar os objetos kamayurá”25. De certa forma, toda uma

Entrevista em 18 de janeiro de 2012. Musée du Quai Branly, Paris.

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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 10, n. 1, p. 169-186, jan.-abr. 2015

rede de acesso a esses produtos artísticos dos Kamayurá e de tantos outros grupos e etnias já está constituída para alimentar tanto o mercado quanto os museus. Em geral, o problema da apropriação cultural aparece quando outro indivíduo, ou um grupo individualizado, reclama a autoria de uma obra ou de uma expressão na obra de um autor, ou a considera como ofensiva à sua própria ‘cultura’. Trata-se, neste caso, de uma reivindicação de autoridade – e, portanto, a apropriação cultural só pode ser apontada quando há tal reivindicação ou, em outras palavras, quando há controvérsia sobre a autoria. Ocorre que tais reivindicações de povos minoritários nem sempre são evidentes, em razão de uma facilidade das partes dominantes de silenciá-las. Assim, o debate acerca das apropriações culturais perpassa uma contradição moral entre, por um lado, a proteção dos povos autóctones e das identidades minoritárias (quanto à ofensa e à depreciação nas obras de arte) e, por outro, a limitação da arte e da atuação dos artistas. Tal contradição está ligada à própria noção de obra de arte, que atravessa, por sua vez, diferentes contextos, e ela comprova – diferentemente do que alegam os museus das ‘artes primeiras’ – que a arte como a conhecemos no museu não é uma linguagem universal e não promove experiências necessariamente similares em indivíduos de culturas diferentes. Ao contrário, como já demonstraram Bourdieu e Darbel, definida como uma linguagem dominante, a linguagem artística nos museus europeus pode operar como uma ferramenta de ‘distinção’. Segundo os autores, partindo do fato de que a obra de arte se apresenta como uma individualidade concreta, que não permite jamais que se deduzam os princípios e as regras que definem um estilo, a aquisição dos instrumentos que tornam possível a familiaridade com a linguagem artística só se opera por meio de um longo processo de familiarização, que atravessa a educação (Bourdieu e Darbel, 2011 [1969], p. 104). A “ilusão do gosto puro e desinteressado”, que não depende senão de uma subjetividade e que não tem por finalidade senão o deleite, é revelada pela correlação das práticas estéticas com a pertença social e

os “hábitos sociais do gosto”, a “distinção” pela posse de “bens simbólicos” (educação, competência, linguística ou estética) (Heinich, 2008, p. 73). O “gosto dos Outros” (L’Estoile, 2007, p. 20), concepção que tem como ponto de partida a curiosidade pelo exótico, diz respeito aos meios de se nutrir dos ‘outros’, objetivados pelo ocidente na noção de um Outro (no singular) como aqueles que se encontram culturalmente distantes do Nós eurocêntrico – considerando os diversos níveis de distâncias culturais existentes nessa relação, e incluindo os mais ou menos próximos do Nós-hegemônico, que são ignorados e silenciados pelas instituições de poder. Vê-se aqui um processo de busca por experiências autênticas que não podem ser alcançadas na sociedade e na cultura em que se está acostumado a viver. Consagrado como o domínio em que artes diversas coexistem, e podem ser consumidas, o ‘exotismo’ permite ao humano se conciliar com a sua diversidade. Ao menos esta é a ‘filosofia’ por detrás das práticas que foram estudadas na presente pesquisa. Pensando o ‘exotismo’ como uma “estética do Diverso”, Victor Segalen nomeia “diverso” tudo aquilo que pode ser considerado “estrangeiro”, “insólito”, “inesperado”, “misterioso”, “sobre-humano” e “divino”, ou seja, tudo o que é Outro (Segalen, 1986, p. 99); à noção de “estética”, ele atribui o sentido de uma ciência precisa, comandada pelos profissionais que a impõem, ela é “a ciência do espetáculo, e ao mesmo tempo do embelezamento do espetáculo” (Segalen, 1986, p. 100). Nesse sentido, para se “provar do diverso”, é preciso antes conhecer o “sabor do exotismo” ou, em outras palavras, é preciso ser apto a degustá-lo.

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O gosto pela autoridade e a autoridade do gosto: as apropriações culturais nas ‘artes primeiras’

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