O guardião da exceção: O Supremo Tribunal Federal e o estado de exceção na ADI 2.240-7 e na ADPF 153

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

O GUARDIÃO DA EXCEÇÃO O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O ESTADO DE EXCEÇÃO NA ADI 2.240-7 E NA ADPF 153

REINALDO SILVA CINTRA

RIO DE JANEIRO 2015

UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

O GUARDIÃO DA EXCEÇÃO O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O ESTADO DE EXCEÇÃO NA ADI 2.240-7 E NA ADPF 153

Trabalho apresentado pelo aluno REINALDO SILVA CINTRA ao curso de pós-graduação em DIREITO CONSTITUCIONAL da Universidade Candido Mendes como requisito parcial para a obtenção do título de especialista.

RIO DE JANEIRO

2015 REINALDO SILVA CINTRA

O GUARDIÃO DA EXCEÇÃO O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O ESTADO DE EXCEÇÃO NA ADI 2.240-7 E NA ADPF 153

Relatório final, apresentado a Universidade Cândido Mendes, como parte das exigências para a obtenção do título de especialista.

Rio de Janeiro, 14 de março de 2015

BANCA EXAMINADORA

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AGRADECIMENTOS Por falta de tempo, mas também por índole pessoal, deixei de dedicar uma parte para agradecimentos em minha monografia de conclusão de curso, O discurso do ódio sob uma teoria performativa da linguagem, defendida perante o Departamento de Direito da PUC-Rio em 2012. Utilizo este espaço, portanto, para suprir esta lacuna. Todos temos uma formação de vida própria. Devo minha formação como profissional do Direito à Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Devo minha formação humanística ao Colégio Pedro II – Unidade Centro. Este trabalho, assim como minha monografia de conclusão de curso, pode ser lido como uma síntese pessoal dos conhecimentos e visões de mundo que aprendi e assimilei nestes dois estabelecimentos de ensino. Meu agradecimento aos respectivos corpos docentes e pessoal técnico. Um agradecimento especial à minha orientadora na monografia, profa. Rachel Nigro, pela paciência e pela efusividade com que abraçou meu projeto e ampliou meus horizontes de mundo, apresentando-me à filosofia da linguagem. Ao professor Rodrigo Padilha e à equipe do Curso, pela oportunidade de elaborar o tema aqui analisado. Ao Rafael Vieira, pelas sugestões e orientações que deu acerca da melhor forma de estudar o assunto aqui proposto. Aos meus amigos do Pedro II e da PUC, pela convivência de anos e pelo companheirismo. Agradecimentos especiais ao João Pessoa, Thiago, Daniel Paiva, Deborah, Rozena, as Amandas D. e F., Irina, Cynthia, Pedro Anízio, Rafael Silva, Erick, Sergio, Marianno, Douglas, Lucas e tantos outros que o espaço curto me impede de lembrar. Obrigado por me aturarem. Ao meu pai, in memoriam. À minha mãe, Josi, pela enorme paciência para com seu filho nestes anos todos, e pela perseverança que sempre demonstrou na vida, e que me serve de maior exemplo. Dedico este trabalho, por fim, a todos aqueles para quem o estado de exceção é uma realidade cotidiana. E a todos aqueles que, dentro ou fora do árido e ás vezes insuportável mundo jurídico, lutam por eles.

A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, art. 16 A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” em que vivemos é na verdade a regra geral. Walter Benjamin, Sobre o conceito da história

RESUMO O constitucionalismo democrático ocupa uma posição central no Direito contemporâneo. Seus preceitos fundamentais – limitação do poder político, garantia de direitos humanos fundamentais, legitimidade democrática -

atuam como grande chave

interpretativa de todo o ordenamento jurídico. Em certas situações, contudo, a Constituição democrática é afastada, seja por meio de um ato de força, no caso das ditaduras; seja em situações nas quais a ordem constitucional encontra-se ameaçada, como no caso do estado de emergência. Tais situações de suspensão da Constituição são englobadas pela doutrina no conceito de estado de exceção. Este trabalho parte de uma defesa da necessária submissão de atos excepcionais aos parâmetros constitucionais e democráticos para analisar criticamente a posição do Supremo Tribunal Federal em dois casos nos quais, aparentemente, a exceção prevaleceu no resultado do julgamento: ADI 2.240-7 e ADPF 153. A crítica adota como base teórica os dois principais referenciais teóricos acerca do estado de exceção na atualidade, Carl Schmitt e Giorgio Agamben. A partir destes dois autores, buscou-se reinterpretar as decisões e posições assumidas pelo STF, buscando desvendar até que ponto elas efetivamente levaram em conta os preceitos do constitucionalismo democrático, e quais as consequências do uso dos referenciais teóricos do estado de exceção pela Corte responsável pela guarda da Constituição.

Palavras-chaves

Constitucionalismo; democracia; estado de exceção; ditadura; estado de emergência, Carl Schmitt; Giorgio Agamben; Supremo Tribunal Federal

ABSTRACT The democratic constitutionalism occupies a central position in the contemporary law. Its fundamental precepts - limitation of political power, fundamental human rights guarantee, democratic legitimacy - act as great interpretive key to the whole legal system. In certain situations, however, the democratic constitution is removed, either through an act of force, in the case of dictatorships; or in situations where the constitutional order is threatened, as in the state of emergency. Such situations of suspension of the Constitution are engulfed by the doctrine in the state of exception concept. This work is part of a defense of the necessary submission of exceptional acts of constitutional and democratic parameters to critically analyze the position of the Brazilian Supreme Court in two cases in which, apparently, the exception prevailed in the outcome of the trial: ADI 2240-7 and ADPF 153. Our criticism adopts the theoretical basis of the two main theoretical references about the state of exception today, Carl Schmitt and Giorgio Agamben. From these two authors, we sought to reinterpret the decisions and positions taken by the Brazilian Supreme Court, seeking to uncover the extent to which they effectively took into account the precepts of democratic constitutionalism, and what the consequences of using the theoretical framework of the state of exception by the responsible Court for the safekeeping of the Constitution.

Keywords

Constitutionalism; democracy; state of exception; dictatorship; state of emergency, Carl Schmitt; Giorgio Agamben; Brazilian Supreme Court

SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO: CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO E ESTADO DE EXCEÇÃO ................................................................................................................................. 8 2. O ESTADO DE EXCEÇÃO, SEGUNDO CARL SCHMITT ............................................. 20 2.1 O autor e sua teoria ......................................................................................................... 20 2.2 A teoria aplicada à hipótese ............................................................................................ 31 3. O ESTADO DE EXCEÇÃO, SEGUNDO GIORGIO AGAMBEN .................................... 35 3.1 O autor e sua teoria ......................................................................................................... 35 3.2 A teoria aplicada à hipótese ............................................................................................ 48 4. O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A EXCEÇÃO: UM ESTUDO DE DOIS CASOS .................................................................................................................................................. 54 4.1 A exceção na ADI 2.240-7 ............................................................................................. 54 4.2 A exceção na ADPF 153 ................................................................................................ 66 5. CONCLUSÃO: EM BUSCA DE UM DIREITO CONSTITUCIONAL LEVADO A SÉRIO ...................................................................................................................................... 86 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 92

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1. INTRODUÇÃO: CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO E ESTADO DE EXCEÇÃO Não há dúvidas de que um dos movimentos jurídico-políticos mais importantes dos últimos 50 anos no mundo – e no Brasil dos últimos 25 anos – é a ascensão do constitucionalismo democrático1 a uma posição central no campo do Direito. Foi o encontro de dois movimentos político-filosóficos típicos da Modernidade, em que pese a presença de traços do constitucionalismo, por exemplo, na Grécia e Roma Antigas (NETO; SARMENTO, 2014, p. 69), e o fato da democracia ter nascido na Atenas do séc. V a.C. Ambos são os resultados mais duradouros das grandes revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII (Inglesa, de 1688; Americana, de 1776; e Francesa, de 1789), mas de modo algum caminharam juntos. Pelo contrário, o constitucionalismo, ao longo de seus primeiros 130 anos de existência, se compatibilizou com modelos políticos criados para afastar a soberania popular e a democracia. Ainda que se recorresse ao “povo” no momento de criação da constituição, através do poder constituinte, a continuidade das agitações revolucionárias (e das lutas dos setores populares pela democratização das instituições) colocava em risco a nova ordem, e portanto deveria ser suprimida. Nas palavras de Gilberto Bercovici (2013, p. 158), o constitucionalismo pósrevoluções burguesas (liberal) visava especialmente “terminar a revolução”, e se preocupava em criar um governo que não dependesse do povo, embora precisasse se comprometer com ele através de sua origem popular para lograr sustentação (Ibid.; p. 127)2. Não havia, portanto, ligação necessária entre constitucionalismo e democracia. Havia pontos de contato e de afastamento. O processo de convergência entre ambos foi desencadeado pelas lutas políticas das

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Como costuma ocorrer no Direito, a nomenclatura utilizada para descrever certos fenômenos é muito variada. Conrado Hubner Mendes (2011, p. 18), por exemplo, usa a expressão “democracia constitucional”. Luís Roberto Barroso (2009, p. 40) se vale das expressões “Estado constitucional de direito” e “Estado constitucional democrático”. Para os fins deste trabalho, passaremos ao largo de eventuais diferenças, e consideraremos todos denominações de um mesmo fenômeno, o qual uniformizaremos sob o nome de “constitucionalismo democrático”. É importante que se destaque que Gilberto Bercovici, em seu estudo sobre soberania e constitucionalismo ao longo da história, possui uma visão extremamente crítica das interações entre constitucionalismo e democracia que acabam por sufocar o caráter político do direito constitucional em favor do seu caráter jurídico. Para ele, por exemplo, o processo constitucional americano foi eminentemente conservador, tendo a Constituição de 1787 nascido para diminuir os poderes locais e sufocar diversos movimentos populares que ameaçavam a propriedade privada. Cf. BERCOVICI, 2013: p. 118-133. Para uma leitura mais favorável do mesmo processo, considerando a teoria constitucional americana como a primeira a buscar limitar o poder constituinte nos princípios da igualdade e liberdade, através do sistema de freios e contrapesos, cf. OMMATI, 2014: p. 31-35. Para uma interessante análise crítica da ambiguidade do termo “povo” a partir das revoluções burguesas – usado para designar, ao mesmo tempo, o poder constituinte e a classe social ordinariamente desprovida de poder político –, cf. AGAMBEN, 2002: p. 183-186..

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classes trabalhadoras e de outros grupos excluídos no final do século XIX e início do XX, desejosos de maior participação política (especialmente através da ampliação do direito de voto e da progressiva eliminação da divisão da sociedade em “cidadãos ativos” e “inativos”) e do reconhecimento de novos direitos, não mais apenas de garantia de uma esfera de autonomia aos indivíduos (direitos “negativos”, de liberdade), mas também a prestações positivas do Estado, direcionadas ao combate às desigualdades sociais e econômicas (NETO; SARMENTO, 2014, p. 82-86). Tal processo foi abruptamente interrompido pela ascensão do totalitarismo nos anos 1920. Foi somente após a derrota do nazifascismo, e a revelação dos abomináveis crimes cometidos, que a defesa de um constitucionalismo democrático se impôs como necessária, ainda que cheia de tensões (BARROSO, 2009: p. 5). Nele, a Constituição como mera proclamação política já não é suficiente; é necessário que seja vista como norma jurídica de fato, capaz de influenciar a realidade e concretizar seus próprios comandos (NETO, SARMENTO, 2014: p. 8687). A Constituição, afinal, assumia uma centralidade inédita como chave interpretativa maior do ordenamento jurídico (OMMATI, 2014: pp.4-6). Passando ao largo das diversas teorias constitucionais elaboradas ao longo dos últimos dois séculos3, é possível elencar as características principais do constitucionalismo democrático na atualidade. Em outros termos: qual o conjunto de ideias e práticas que necessariamente vem à tona quando falamos nele4? Em primeiro lugar, a limitação do poder político. Desde a Antiguidade, extenso debate se travava acerca de qual tipo de governo seria superior, o “governo dos homens” ou o “governo das leis”, disputa essa que, no século XVIII, se confunde com a luta contra o Estado absolutista por parte dos pensadores iluministas e jusnaturalistas (DALLARI, 2007, p. 199). À subjetividade e pessoalidade do comando real, opor-se-ia a racionalidade e impessoalidade do comando legal (BOBBIO, 2000, p. 149). Sob o constitucionalismo, a limitação do poder se traduz pela supremacia da lei sobre a vontade do governante (nascendo aí a noção de Estado de direito e da supremacia da Constituição, como Lei Maior e fonte de validade de todas as outras) e pela diluição do poder soberano através da separação dos poderes que exercem as principais funções estatais em diferentes órgãos, uns controlando os outros (Ibid., p. 247). 3 4

Para uma exposição das diferentes teorias constitucionais que surgiram ao longo do tempo, cf. NETO, SARMENTO, 2014: p. 183 e ss; e BONAVIDES, 2004: p. 170 e ss. Esta pergunta poderia remeter à questão da diferenciação entre normas materialmente constitucionais e normas formalmente constitucionais, sendo que nossos resultados corresponderiam ao conteúdo material da Constituição, ou seja, matérias tipicamente constitucionais. Tal resposta, porém, não implica em negar caráter constitucional às demais previsões contidas na Constituição. As normas formalmente constitucionais, em nosso ordenamento, compartilham com as normas materiais a qualidade de normas supremas. Por tudo, cf. NETO, SARMENTO, 2014: pp. 23-26.

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Em segundo lugar, a garantia dos direitos fundamentais do homem. A noção de supremacia do indivíduo surgiu com os filósofos jusnaturalistas e contratualistas, que defendiam não apenas que o indivíduo, como tal, possuía um conjunto de direitos naturais inalienáveis, anteriores à instituição de qualquer sociedade política, como também que o Estado era constituído precipuamente para a garantia desses direitos (DALLARI, 2007, p. 199). Caberia à Constituição – a Lei Suprema – não criá-los, mas reconhecê-los e inscrevê-los na ordem jurídica como direitos oponíveis ao próprio Estado5 – conceito que, posteriormente, evoluiu para o reconhecimento também de direitos de prestação estatal. Em terceiro lugar, a legitimação do governo pelo livre consentimento dos governados (NETO, SAMENTO, 2014, p. 74; BARROSO, 2009, p. 40). O governo, mesmo que seja constitucional, precisa estar baseado num regime legitimamente democrático, no qual todos os cidadãos tenham efetivamente participação no processo político, direta ou indiretamente, respeitando-se (e garantindo-se) suas diferentes posições e opiniões (pluralismo), dentre muitos outros fatores. Como vimos, esta característica somente se impôs no século XX: o constitucionalismo liberal se preocupava com a legalidade, não tanto com a legitimidade (BARROSO, 2009, p. 5). Os componentes fundamentais do constitucionalismo democrático, acima destacados, não são estanques; dependem uns dos outros para existirem e serem plenamente eficazes, como vasos comunicantes. A garantia dos direitos fundamentais é uma espécie de limitação ao poder do soberano. A separação de poderes, através do mecanismo de freios e contrapesos, limita a democracia quando maiorias eventuais colocam em risco direitos de minorias, permitindo ao Judiciário exercer o controle de legalidade e constitucionalidade dos atos do Legislativo. A democracia, por sua vez, legitima e confere conteúdo aos direitos fundamentais, os quais, por sua vez, são condição necessária para a própria existência de um regime que se pretenda democrático (NEVES, 2010, p. 2). Fixados os pilares do constitucionalismo democrático, abre-se um amplo leque de perplexidades merecedoras de um estudo mais aprofundado. Dentre elas, podemos destacar uma em especial. Levando-se em conta que a Constituição democrática, sendo lei suprema, é única; que todos os poderes políticos a ela se sujeitam e dela recebem legitimidade; e que ela é a suprema garantidora dos direitos fundamentais do homem, podemos perguntar: é possível excepcionar a Constituição – não no sentido ordinário do termo, que consiste em deixar de

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Nas palavras de Emmanuel Sieyès, em discurso na Assembleia Constituinte francesa, em 1789: “Toda constituição política, só pode ter como objeto manifestar, estender e assegurar 'os direitos do homem e do cidadão'.” (SIEYÈS, 2008: p. 133)

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aplicar uma norma em prol de outra, mas no sentido de se suspendê-la? Se o for, é possível excepcionarmos até mesmo o núcleo duro do regime constitucional democrático, acima descrito? Se excepcionarmos alguma norma constitucional, o que aplicamos em seu lugar? Qual a situação que ensejará o afastamento da Constituição? E, por fim, quem decidirá tal afastamento? Sobre a questão da possibilidade, os juristas são unânimes em afirmar que a Constituição jamais poderá ser suspensa, parcial ou totalmente – desde que em situações de “normalidade”. Tudo muda quando esse “estado normal das coisas” é de alguma forma abalado. Quando o Estado de Direito é afastado, surge uma nova figura, que recebeu muitos nomes e assumiu muitas feições ao longo da História, as quais tem sido reunidas pelos estudiosos sob a denominação de estado de exceção6. Sob a figura do estado de exceção, tem sido incluídas figuras bastante diferentes entre si, motivo pelo qual é necessário decompor tal termo, buscando uma melhor descrição dos fenômenos jurídico-políticos por ele denominados. O afastamento mais radical da ordem constitucional se dá pela manifestação do poder constituinte originário. Neste caso, mais do que suspensa, a Constituição é anulada pela vontade de seu criador, e substituída por uma nova ordem constitucional-democrática. O poder constituinte por si só merece um estudo a parte, e nossa intenção aqui não é trabalhar com a substituição em si de regimes jurídico-políticos. Mas há situações em que tal derrubada da Constituição não é realmente obra do poder constituinte; é um ato de força de um grupo específico visando a tomada e manutenção do poder por meios não-democráticos. O governo que emerge somente respeita formalmente as leis, pois sua característica fundamental é a concentração e abolição de limites ao próprio poder (STOPPINO, 2008, p. 372-373). Sua legitimidade não é democrática; se baseia na própria força. Este é o modelo clássico de estado de exceção, a ponto de ser um sinônimo comum de tal expressão: a ditadura moderna. Mas há uma outra figura alcançada pelo termo, menos óbvia. Nasceu durante os trabalhos da Assembleia Constituinte francesa, a qual aprovou, em julho de 1791, dois decretos que criavam e diferenciavam o etat de paix (“estado de paz”), no qual as autoridades civil e militar agiam em separado; o etat de guerre (“estado de guerra”), no qual os civis observariam a autoridade militar; e aquele que nos interessa, o etat de siège (“estado de sítio”), em que a 6

O termo “estado de exceção”, como se verá, não consta de nenhum texto constitucional. Para as situações de emergência previstas nas Constituições, tem sido utilizados termos como “estado de sítio” (França e Brasil), “estado de defesa” (Brasil), “estado de emergência” (doutrina europeia continental), “lei marcial” (tradição anglo-americana), etc. Dentre os principais autores a usarem o termo aqui usado, destacam-se Carl Schmitt, Walter Benjamin, Giorgio Agamben, e Antonio Negri; muitos outros o usam esparsamente. No Brasil, destacamse o jurista Gilberto Bercovici e o filósofo Paulo Arantes. O termo também tem sido muito usado em fóruns internacionais de direitos humanos, por exemplo, na Corte Interamericana de Direitos Humanos.

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autoridade militar absorvia por completo a civil (AGAMBEN, 2007, p. 15-17). Tais decretos aplicavam tais “estados” apenas a algumas praças fortes e portos militares, mas progressivamente o “estado de sítio” foi evoluindo não apenas topograficamente (a Constituição de 1797 já traz uma previsão de “suspensão da constituição”7), mas também no tocante às suas justificativas. De início relacionado à guerra, o estado de sítio foi ampliando suas possibilidades de aplicação, tornando-se uma “medida extraordinária de polícia em caso de desordens e sedições internas, passando assim de efetivo ou militar a fictício ou político” (Ibid., p. 16). Esta figura do estado de exceção como instrumento de salvaguarda do Estado em momentos de crise não é como a ditadura; seu objetivo declarado não é a aniquilação do sistema constitucional, mas sua suspensão temporária para fins de salvá-lo de uma situação que o coloca em risco. Nestes casos, “a legalidade normal é substituída por uma legalidade extraordinária, que define e rege o estado de exceção” (SILVA, 2009, p. 761). A Constituição, porém, não é derrogada; continua a existir. Ainda assim, a perigosa proximidade entre o estado de exceção oriundo de uma crise constitucional e o estado de exceção como ditadura é evidente. Aqui respondemos a outra das perguntas formuladas acima: a exceção atinge inclusive o núcleo do constitucionalismo democrático. Tanto no tipo ditatorial como no tipo emergencial, há uma concentração ampla de poderes e a suspensão dos direitos e garantias fundamentais, o que compromete o efetivo exercício da democracia. A proximidade é tamanha que José Afonso da Silva dedica parte significativa de sua introdução ao capítulo sobre a gestão de crises constitucionais a elencar exemplos de como o estado emergencial foi usado para implementar ditaduras, e não salvaguardar a ordem constitucional vigente (Ibid., p. 761-763). O estado de exceção como instrumento de autoproteção do Estado Constitucional Democrático está inscrito em diversas constituições modernas8. No Brasil, a Constituição de 1988 criou as figuras do estado de defesa e do estado de sítio, respectivamente nos seus arts. 136 e 137. Seu uso formal, pelo menos em países considerados democráticos e estáveis, tem sido raro, seja porque os textos constitucionais costumam cercar tais institutos de diversos controles

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Segundo o art. 92 da Constituição francesa de 1797, “Dans les cas de revolte a main armee ou de troubles qui menaceraient la securite de l'Etat, la loi peut suspendre, dans les lieux et pour Ie temps qu' elle determine, l'empire de la constitution. Cette suspension peut etre provisoirement declaree.” (apud AGAMBEN, 2007, p. 16). Carl Schmitt destaca que tal dispositivo ainda se aplicava apenas localmente e nos casos de guerra em que, na prática, a lei atrapalharia o comando militar. Ele atribui ao art. 66 do Ato Adicional à Constituição de 1815 a primeira reunião das figuras do estado de sítio e da suspensão da Constituição para todo o território francês e independente de considerações militares, o chamado “estado de sítio fictício”, em oposição ao “real”. Cf. SCHMITT, 2014: p. 165-166. Vide, por exemplo, art. 36 da Constituição da França; art. 138 da Constituição de Portugal; arts. 115-A e ss. da Constituição da Alemanha.

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políticos e judiciais, seja porque o trâmite imposto ao ato de declaração do estado emergencial lhe confere tamanha publicidade que pode se tornar um ato politicamente inviável 9. Mas cientistas políticos e juristas tem alertado, especialmente nos últimos 20 anos, para um novo estágio do estado de exceção emergencial. Além da situação considerada excepcional se emancipar da necessidade de uma justificativa militar, passando a se aplicar para casos de convulsão social ou mesmo econômica, o próprio estado de exceção se divorciou de eventuais molduras legais e se tornou uma técnica ordinária de poder político, criando a figura sob certo sentido paradoxal do “estado de exceção permanente”10, a qual retornaremos mais adiante. Fixadas as figuras que estão por trás do conceito de estado de exceção com o qual trabalharemos, abordemos outra das questões levantadas acima: quem decide pelo afastamento do ordenamento jurídico? A lei somente pode ser suspensa por algo que esteja hierarquicamente acima dela. Como um simples estudo do controle de constitucionalidade demonstra, qualquer lei infraconstitucional incompatível com dispositivo da Constituição é fulminada do ordenamento. Até o advento do constitucionalismo, era absolutamente evidente que o único ente capaz de estar acima da lei – e de, portanto, suspendê-la quando bem entendesse, especialmente quando se tratava de uma situação que colocava o Estado em perigo – era o poder soberano. Tal posicionamento independia do tipo de poder soberano que se defendia. Jean Bodin, teórico do absolutismo monárquico e criador da noção moderna de soberania, defendia que o soberano, mesmo que submetido às leis divina e natural, tinha poder para agir com todos os meios necessários para a salvação do Estado (BERCOVICI, 2013, p. 66-68). Jean-Jacques Rousseau, crítico ferrenho do absolutismo e teórico da soberania popular, afirmava, com relação ao poder de perdoar um criminoso (ato que equivale à suspensão da lei que tipifica o crime), que “isso pertence apenas àquele que está acima do juiz e da lei, isto é, ao soberano” (apud NEVES, 2010, p. 1). A diferença aqui é que Rousseau depositava a soberania na vontade geral do povo, e não em um monarca absoluto, como Bodin. Sob o primeiro constitucionalismo (liberal), porém, a questão sobre quem é o soberano

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No caso brasileiro, por exemplo, a decretação do estado de defesa e de sítio é ato do Presidente da República, ouvido o Conselho da República e o de Defesa Nacional, que se submete de imediato ao escrutínio do Congresso Nacional, a quem, no final, caberá a autorização ou não. Há ainda um controle político a posteriori previsto no art. 141, parágrafo único, referente à ratificação, pelo Legislativo, dos atos praticados pelo Presidente da República durante o estado de exceção. José Afonso da Silva destaca que sempre haverá a possibilidade de controle jurisdicional sobre eventuais ilícitos cometidos por agentes públicos durante a exceção, seja durante ou após a mesma (SILVA, 2009, p. 765-766 e 769-770). 10 A expressão, utilizada, dentre outros, por Gilberto Bercovici e Giorgio Agamben, se baseia na Oitava Tese do ensaio “Sobre o conceito da história”, escrito pelo filósofo alemão Walter Benjamin em 1940, meses antes de cometer suicídio para não cair nas mãos dos nazistas. Ele afirmou: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o 'estado de exceção' em que vivemos é, na verdade, a regra geral.” (BENJAMIN, 1985, p. 219). Para uma análise sobre a tese e a frase, vide AGAMBEN, 2007, p. 90-94.

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se torna mais dúbia. A constituição é entendida, sem dúvida, como fruto de um ato de soberania, cujo sujeito é o poder constituinte do povo. Mas, uma vez estabelecida a ordem constitucional, esse soberano desaparece: o poder é diluído entre os três Poderes do Estado, submetido a uma declaração de direitos fundamentais, e, de forma mais ampla, à supremacia da lei. É justamente o conceito de “Império da Lei” que transforma toda a problemática entre soberania e constitucionalismo: afinal, quem está acima de quem, a lei ou o soberano? Como o poder soberano pode se submeter a uma Constituição que ele mesmo criou? Como uma ordem normativa que se pretende estável pode submeter – ou neutralizar – por completo a política por trás da concepção de soberania, em constante mutação? E, mesmo se aceitarmos como necessária a supremacia da lei, como um texto pode se impor aos homens, se sua aplicação concreta depende da intermediação de um intérprete? E quem, afinal, é o soberano em um Estado de Poderes repartidos entre diferentes órgãos e cujo poder constituinte permanece apenas em latência11? É justamente quando o Estado constitucional entra em crise que a questão do poder soberano reaparece com toda a sua força. Não é a toa que a teoria da exceção geralmente se ligue a uma teoria da soberania. Foi Carl Schmitt quem resumiu em uma famosa frase a ligação indelével entre ambos os conceitos: “O soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção” (SCHMITT, 2005: p. 5). Mas exatamente porque a exceção, mesmo quando inscrita na ordem constitucional, tem essa relação tão próxima do próprio poder soberano, e se aproxima das feições de uma ditadura ao suspender a própria constituição, não apenas em suas franjas, mas em seu núcleo central, é que ela se transforma em algo tão perigoso tanto para o constitucionalismo quanto para a democracia. Muitos estudos já foram feitos sobre o problema da exceção; trabalhamos e trabalharemos com vários deles em nossa investigação. Mas optamos por colocar nossa lente em outro ponto temporal do problema: não no antes, ou no durante a exceção, mas sim no após, ou pelo menos em um momento temporal em que o constitucionalismo democrático vigora plenamente. Muito já foi dito sobre as perplexidades que surgem anteriormente à declaração do estado de exceção (“Será cabível? Será legítimo? Será compatível?”, são as perguntas-chave para 11 No limite, a defesa da supremacia da lei desembocou no positivismo kelseniano, que simplesmente excluía o soberano do mundo concreto, transformando-a em uma “ideia”, a norma fundamental, que era somente uma exigência lógica para explicar o fato do ordenamento jurídico existir e se bastar em si mesmo: “Sob a suposição de que ela vale, vale também o ordenamento jurídico sob o qual repousa. (…) Somente sob a suposição da norma fundamental pode o material empírico ser interpretado como direito.” (KELSEN, 2007, p. 97). Foi justamente a ascensão do princípio democrático que recolocou não somente o problema do soberano dentro do constitucionalismo, mas recuperou a questão sobre a natureza política da constituição. Para uma introdução mais aprofundada acerca dos conflitos entre constitucionalismo e soberania, vide BERCOVICI, 2013, pp. 1437.

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tal momento), e também sobre as que surgem durante a vigência do regime de exceção (“É adequado? É necessário?”). Mas quando estamos no “antes” e no “durante” de um fenômeno imprevisível, não podemos saber o que acontecerá até o final. Nos termos do nosso problema, não saberemos até onde chegará o estado de exceção: se, apesar do nome, ainda se orientará pelos princípios basilares do constitucionalismo democrático; se cometerá fatos que normalmente são considerados abusos ou crimes; ou se autoproclamará como poder constituinte e aniquilará de vez o ordenamento suspenso. O momento posterior, no entanto, nos retira essa dificuldade. Após a exceção, restabelecido um regime constitucional e democrático, já é plenamente possível voltar-se ao passado e analisar o que foi feito durante o estado de exceção e se foi ou não compatível com o constitucionalismo democrático. É aqui que apresentamos nossa hipótese de trabalho: se levamos a sério que o constitucionalismo democrático se baseia nos pilares acima elencados (limitação do poder; garantia dos direitos humanos fundamentais; e legitimidade democrática), e que o momento excepcional acabou (e com ele qualquer dúvida acerca da normalidade e compatibilidade entre estado de exceção e regime constitucional e democrático, havendo, portanto, certeza acerca de sua natureza e legitimidade), a análise a posteriori do estado de exceção precisará submeter os atos cometidos naquele período aos ditames constitucionais e democráticos, sob pena da exceção se impor a ambos inclusive nos tempos de normalidade, o que, por evidente, aniquila irremediavelmente a própria razão de ser do constitucionalismo democrático. Fixada a hipótese, é necessário delimitarmos o campo de aplicação: o próprio Brasil, exemplo de país que vive um regime democrático estável desde, pelo menos, 1988, e que sucedeu 21 anos de ditadura militar. O caso brasileiro traz uma especificidade que nos interessa: a existência de um ator indicado pela Constituição como seu principal guardião12: o Supremo Tribunal Federal (STF). Nossa investigação, portanto, recairá sobre como o STF tem julgado atos considerados de exceção (temporalmente anteriores, portanto) e sua compatibilidade com os preceitos do constitucionalismo democrático que visa defender. Para tanto, porém, decidimos não realizar um estudo de casos amplo e com pretensões de exaustividade. Demos preferência, inicialmente, aos que, claramente, suscitaram polêmicas acerca do seu resultado. Nesse quesito, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 153, julgada pelo Plenário do Tribunal em 29 de abril de 2010, se impôs como leading case. O STF, por maioria, julgou improcedente a ADPF, movida pela Ordem dos 12 Art. 102, caput, da Constituição Federal de 1988: “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe (...)”

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Advogados do Brasil, e considerou compatível com a Constituição de 1988 a Lei de Anistia de 1979, aprovada durante o regime militar e que garantiu a impunidade dos agentes de Estado que violaram sistematicamente direitos humanos desde a instalação do estado de exceção ditatorial em 1964. Tal decisão provocou numerosas críticas na academia e na sociedade, retomadas em outras ocasiões, com a superveniência de novos fatos: a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso “Gomes Lund e Outros ('Guerrilha do Araguaia')”, por manter a autoanistia dos militares (considerada ilegal perante as normas internacionais de direitos humanos, por ter como objeto crimes contra a Humanidade, segundo a Corte13), ainda em 2010; e a divulgação dos resultados da Comissão Nacional da Verdade, inclusive com a identificação de centenas de torturadores, em 2014. Analisaremos com mais vagar o voto do relator, ministro Eros Grau, por entendermos que, para a temática da oposição estado de exceção – constitucionalismo democrático, os argumentos dele bastam e são suficientes para uma crítica; mencionaremos os votos dos demais ministros apenas quando oportuno ou necessário. Visto que, após 1988, nunca houve uma situação de decretação de estado de defesa ou de sítio, a busca pelo posicionamento dos Ministros do STF acerca de situações ocorridas sob a “exceção constitucional” restou prejudicada14. Mas um fato curioso nos chamou a atenção em nossa pesquisa: o uso da teoria da exceção em casos que, a princípio, são claramente comuns e ordinários. Foi o caso da ADI 2240-7/BA, julgada em 09 de maio de 2007, e também relatada pelo ministro Eros Grau. Tratava-se de um caso envolvendo criação de Município em desacordo com o previsto pela Constituição Federal. Em uma decisão surpreendente, o Ministro-relator usou a teoria do estado de exceção para afastar o mandamento constitucional e declarar constitucional a criação do Município. Por influência do voto-vista do ministro Gilmar Mendes, o relator acabou mudando sua decisão final para a declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade; mas o que nos interessa realmente é o fato de se usar a teoria do estado de exceção em um caso comum de controle de constitucionalidade – argumentação que seria repetida em vários outros julgados15. Essa reincidência argumentativa gera perplexidade, a qual

13 Vide a íntegra da decisão em CIDH, 2014: pp. 217-300. 14 Uadi Lammêgo Bulos recuperou posicionamento do STF sobre o tema, extraído da Revista Forense nº 24, na qual o Tribunal entendeu que, mesmo sob a excepcionalidade dos estados de defesa e de sítio, as “liberdades públicas” não podem ser suprimidas por completo (apud BULOS, 2014: p. 1443). Não conseguimos encontrar a fonte de tal entendimento; pelos termos usados (em especial “liberdades públicas” no lugar de “direitos fundamentais”), é bastante antigo. Na obra intitulada A Constituição e o Supremo, editada pelo próprio STF, e que consiste em um comentário de cada dispositivo da Constituição de 1988 através de julgados da Corte, o capítulo dedicado ao sistema constitucional de crises relaciona apenas 2 decisões, nenhuma delas relativa a uma situação efetiva de exceção, e sim apenas marginalmente relacionadas ao tema. Cf. STF, 2011: pp. 1612-1614. 15 O Ministro Eros Grau também utilizou a teoria do estado de exceção nos seguintes casos: ADI 3316/MT; RE 433512/SP; HC 95790/MS; HC 94916/RS, HC 93846/SP, ADI 2240/BA, ADI 3489/SC (nestes, como relator), RE 597994/PA (Rel. Min. Ellen Gracie), Rcl. 3034 AgR/PB (Rel. Min. Sepúlveda Pertence).

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aumenta quando lembramos que Eros Grau foi o relator da ADPF 153. Haveria uma mesma linha argumentativa, ainda que não explícita, ligando ambas as decisões? Mais importante: era necessário o uso de tal teoria em uma situação ordinária? Que justificativa – e forma – o STF usou para conciliar constitucionalismo e exceção? Quais as consequências de tal uso para a resolução de situações envolvendo exceções reais, como o caso da Lei de Anistia? Impõe-se, portanto, em nosso trabalho a análise de um destes casos em que a teoria do estado de exceção foi usada como um instrumento de interpretação constitucional, para respondermos a estas perguntas e, inclusive, auxiliar-nos na busca pela base teórica (ou pelos antecedentes) que justificou (justificaram) a decisão tomada na ADPF 153. Não há fuga do problema em relação à hipótese que levantamos, pois ainda estamos falando da análise posterior de fatos considerados de exceção – só que, dessa vez, quem atribuiu tal natureza foi apenas o STF, e não, como no caso da ditadura militar, a História e a sociedade. Decidimos selecionar o caso da ADI 2240-7, tendo em vista que as argumentações usadas pelo Relator nesta ocasião (na verdade, o próprio texto) não são muito diferentes das utilizadas nos demais casos, e o caso concreto é suficientemente distante da noção de “crise” que deveria justificar o instrumento da exceção. Logo, ele serve como uma amostra do uso da teoria no âmbito do STF – referendada pelos demais Ministros, destaque-se. Este trabalho se dividirá, portanto, em duas partes. A primeira será teórica, exatamente para criticarmos com mais embasamento o uso da teoria pelo STF. Não há uma teoria unificada do estado de exceção; há diferentes autores que estudam a matéria. Escolhemos os dois que, a nosso ver, são os principais estudiosos deste referencial teórico, e que, inclusive, são mencionados pelo Ministro Grau em seus votos: Carl Schmitt e Giorgio Agamben. Ambos são autores famosos, bastante lidos e comentados atualmente. Outra vantagem é de que ambos, apesar de algumas opiniões em contrário, pertencem a matrizes ideológicas completamente diferentes, o que aumenta a diversidade de pontos de vista. Devido à amplitude de seus trabalhos, analisaremos de forma restrita as ideias de ambos, nos focando ao tema “estado de exceção”, sem deixar de apresentar outros conceitos político-filosóficos por eles defendidos que tenham impacto direto no problema analisado. Ao mesmo tempo, confrontaremos tais referenciais com os preceitos do constitucionalismo democrático, para verificarmos até que ponto podemos realmente compatibilizá-los, e em que termos tal compatibilização pode ser feita. Logo, o capítulo 2 será dedicado ao estado de exceção segundo Schmitt; e o capítulo 3, segundo Agamben. Na sequência, munidos deste arcabouço teórico, adentraremos nos casos concretos no capitulo 4, primeiro na ADI 2240-7, e por último na ADPF 153. Analisaremos de forma crítica o

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uso da teoria do estado de exceção para averiguarmos se o STF efetivamente defendeu o constitucionalismo democrático ou se, no final, protegeu a exceção que deveria extirpar. Por fim, resumiremos os resultados em uma Conclusão. Todo trabalho precisa de uma justificativa, que por sua vez tem um determinado objetivo em vista. Objetivamente, interessa criticar a postura do STF diante do estado de exceção, inquirindo os posicionamentos do Tribunal e verificando se, internamente, a lógica e os argumentos utilizados levam realmente em conta o constitucionalismo democrático ou se o invocam para defender seu oposto. Mas também nos interessa que, ao final de uma pósgraduação em Direito Constitucional, onde somos impregnados da certeza e correção da teoria constitucional – democrática (ou, pelo menos, assim se espera), nos perguntemos se isso, na prática e diante de atos considerados de exceção, é respeitado. É uma pergunta que exige de nós um prévio entendimento do que realmente significa Constituição na realidade. Sobre isso, Pádua Fernandes (2010, p. 1), em comentário sobre a ADPF 153, destaca que o nascimento do direito constitucional contemporâneo, nas revoluções americana e francesa em especial, se inseriu em um movimento amplo e geral de diversos povos em busca da instituição do “novo”, contra o colonialismo e o absolutismo, movimento este que, citando Hannah Arendt, alterou o próprio significado do termo “revolução”, de “restauração” para “nova ordem das coisas”. Daí que, para nós, o constitucionalismo democrático precisa ser levado a sério, no sentido de ser um movimento que se pretende libertador e instituidor de um novo, de uma ruptura com práticas autoritárias anteriores. Seu significado está eternamente em disputa, não apenas nos tribunais superiores, mas no seio da sociedade; não restrito a sábios e profetas, mas a todos; nem sempre vitorioso, mas sempre em combate. Somente nesse sentido podemos falar em uma “força normativa da Constituição”, como Konrad Hesse (1991) fez ao defender a necessária e recíproca interação entre norma e realidade em sua famosa conferência de 1959. É preciso escapar da camisa-de-força da “última palavra” do guardião; pensar o constitucionalismo democrático como algo que vai além do que 11 Ministros decidem, e que pode vir, inclusive, a estar contra o que eles dizem; como um conjunto de ideais que precisam ser não só protegidos, mas reforçados continuamente, seja através do STF, seja através dos demais Poderes e da própria sociedade. Se chegamos a um consenso de que o melhor regime jurídico-político é a união, tensa porém necessária, de constitucionalismo e democracia, é preciso levar tal regime a sério, seja nas suas condições de possibilidade, seja nas suas contradições e perplexidades. É preciso levar a sério a teoria da exceção, exatamente pelo perigo que ela representa para esse regime, especialmente quando usada como algo que pode tranquilamente ser absorvido pelo constitucionalismo democrático. Ao fim e ao cabo, nosso objetivo é saber se o Supremo Tribunal Federal brasileiro

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levou a sério as teorias que adotou, encontrando uma solução para a contradição, a nosso ver essencial (apesar do “estado constitucional emergencial”), entre constituição democrática, de um lado, e estado de exceção, de outro – solução esta que necessariamente fortaleça o primeiro e não o segundo; ou se fracassou, perdendo-se na autossuficiência retórica do “Guardião da Constituição”, cuja palavra, afinal, é lei, mesmo que privilegiando a exceção e não a constituição.

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2. O ESTADO DE EXCEÇÃO, SEGUNDO CARL SCHMITT 2.1 O autor e sua teoria Carl Schmitt (1888-1985) está para o direito como Sade para a literatura, Nietszche e Heidegger para a filosofia: um autor maldito, e, por isso mesmo, alvo de intensa fascinação. Não chegamos a qualificar Schmitt como um autor “proscrito”, como alguns autores fazem (GHETTI, 2006, p. 2), uma vez que ao longo de toda a sua vida dialogou com diversos pensadores (e foi objeto de estudo de vários outros), muitos deles ferrenhos adversários de suas teorias16. Mas é fato que sua vida e obra foram marcadas indelevelmente por um evento central de sua carreira: sua filiação ao Partido Nazista Alemão, em maio de 1933, poucos meses após a chegada ao poder de Adolf Hitler. Nos anos seguintes, Schmitt se tornaria o grande jurista do Terceiro Reich, fornecendo-lhe uma série de trabalhos visando legitimar as políticas totalitárias do regime nazista, inclusive as de cunho racial. Mesmo tendo caído em desgraça dentro do próprio regime em 1938, devido às lutas intestinas entre as facções do partido, Schmitt nunca rompeu com o nazismo, nem renegou sua participação no mesmo, o que contaminou toda a interpretação de suas obras, mesmo aquelas escritas durante os anos 1920. E, no entanto, Schmitt tem experimentado um “renascimento”17 de certa forma inesperado nas últimas décadas. Seus trabalhos agora são discutidos apaixonadamente por juristas, cientistas políticos e filósofos dos mais diferentes espectros ideológicos, em várias partes do mundo – inclusive no Brasil, como demonstra o lançamento, na última década, da primeira tradução brasileira de seus principais livros. Esse novo interesse permitiu que a obra de Schmitt anterior à ascensão nazista fosse reinterpretada, não como uma pregação pelo advento do totalitarismo, mas sim como uma tentativa de “salvar” a República de Weimar, instável e ingovernável, a partir de um ponto de vista conservador e católico18. Os trabalhos de Schmitt podem ser, a grosso modo, divididos em três etapas: os escritos durante a República de Weimar (1919-1933); os escritos durante o Terceiro Reich (1933-1945); e os posteriores à guerra. O problema da exceção aparece em especial nos escritos da primeira fase, com destaque para duas obras em especial: Da Ditadura, de 1921; e Teologia Política, de 16 Exemplos de autores que dialogaram e/ou estudaram Schmitt, durante a vida deste: Hans Kelsen e Hermann Hesse na área jurídica; Walter Benjamin e Hannah Arendt na filosofia; Leo Strauss e Norberto Bobbio na ciência política. 17 O termo foi usado já em 1991 por William Scheuerman, em uma resenha de um livro sobre Schmitt. Apud BERNSTEIN, 2013, p. 24 18 Para a posição política de Schmitt nos anos 1920 e sua ojeriza tanto aos radicais comunistas como aos socialdemocratas e liberais, cf. GHETTI, 2006, p. 11-14. Para um longo estudo acerca das disputas pelo sentido da Constituição de Weimar entre reformistas e conservadores socioeconômicos – com Schmitt entre os últimos –, cf. BERCOVICI, 2012.

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1922. Mas uma leitura atenta do conjunto das obras desse período revela que a problemática da exceção perpassa todas elas. Nossa proposta aqui não é uma descrição completa do pensamento de Schmitt, nem mesmo uma crítica do mesmo, a qual será apenas parcial. Pretendemos aqui apenas elaborar uma leitura do mesmo que demonstre como o estado de exceção serviu de fio condutor entre os diferentes estudos do autor – permitindo uma melhor compreensão da própria exceção. Em Teologia Política, Schmitt conecta o conceito de exceção à busca por uma definição de soberania, explicitada na já citada primeira frase do livro: “O soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção”. A definição de soberania que Schmitt procura, porém, não é teorética; é prática, ou seja, ancorada em um fato concreto que efetivamente demonstre a existência de um poder supremo, não apenas político (ou baseado no poder, na força), mas também jurídico. E a decisão político-jurídica que melhor demonstra a existência do poder soberano é justamente aquela tomada em uma situação de crise, acerca do que constitui o interesse público, ou o interesse do Estado, a segurança pública, a ordem, etc. (SCHMITT, 2005, p. 6). Em termos jurídicos, é a decisão na qual se reconhece a existência de uma situação anormal, que coloca a ordem jurídica em grave perigo, obrigando o soberano a suspendê-la para salvaguardar o próprio Estado – instituindo um “estado de exceção”. Schmitt não busca definir o que é a exceção, de forma fechada e exaustiva, e assim o faz porque considera tal tarefa impossível. Por isso, deplora as tentativas dos legisladores de elaborarem leis que regulem quais situações fáticas são ensejadoras de decretação do estado de exceção emergencial: “Because a general norm, as represented by an ordinary legal prescription, can never encompass a total exception, the decision that a real exception exists cannot therefore be entirely derived from this norm.” (Ibid., p. 6) Para ele, exceção, no máximo, pode ser caracterizada como uma situação de extremo perigo, que coloca em risco a existência do Estado, ou “algo similar”. Tal fenômeno é necessariamente aberto, inesperado, e não pode ser reduzido a uma mera prescrição legal, seja quanto às hipóteses, seja quanto aos limites do estado emergencial. É o caso extremo em que “o poder da vida real rompe a crosta de um mecanismo [a lei] que se tornou entorpecido pela repetição” (Ibid., p. 15). Daí a pergunta clássica dos juristas: “quem possui autoridade para decidir questão que a lei não previu?” (Ibid., p. 10). Diante da impossibilidade de regular a exceção, a competência para decretá-la e combatê-la tem que ser ilimitada – algo que, Schmitt desde logo reconhece, é absolutamente estranho “do ponto de vista liberal-constitucional” (Ibid., p. 7), pois não se compatibiliza com o Estado de Direito, no qual vigora a separação de poderes e o mecanismo de freios e contrapesos.

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O constitucionalismo liberal19 procura eliminar a figura do soberano do mundo, por não se encaixar de forma adequada no seu esquema limitativo do poder. Mas fracassa nessa tarefa, pois, segundo o autor, o soberano é revelado pela exceção, e o banimento desta do mundo não é uma questão jurídica (Ibid., p. 7). A impossibilidade do soberano ter seus poderes limitados por qualquer arranjo institucional se deve ao fato da “soberania” ser um “conceito – limítrofe”, não no sentido de vago, mas sim no de estar em uma “esfera mais externa” do campo jurídico (Ibid. p. 1). O soberano está ao mesmo tempo dentro e fora do direito: sua qualidade de soberano depende da ordem jurídica, mas não se submete a ela, pois tem o poder de suspendê-la em nome de sua sobrevivência. Nas palavras do autor: “Although he stands outside the normally valid legal system, he nevertheless belongs to it, for it is he who must decide whether the constitution needs to be suspended in its entirely.” (Ibid., p. 1) Por isso ele somente se mostra em toda a sua força e clareza quando se depara com uma situação igualmente limite, a exceção, que, embora impossível de ser positivada, não equivale à anarquia, pois ainda se insere na ordem jurídica – um raciocínio que o autor sabe ser estranho, mas que busca elucidar em seguida. Para Schmitt, poucos autores clássicos atentaram para esse substrato concreto da teoria da soberania – a decisão sobre a exceção. Jean Bodin foi um deles, exatamente por ter se colocado como questão principal a submissão do soberano às leis e seu respectivo compromisso para tal perante os estamentos da sociedade. Sua resposta foi de que, em situações normais, o soberano está obrigado a tais limites pelas “leis naturais”, as quais, porém, cessam quando surge uma emergência que coloca o Estado em risco. Quando tais crises sobrevêm, é necessário que o poder soberano seja uno, indivisível e ilimitado, pois seria absolutamente ilógico, do ponto de vista da sobrevivência do Estado, permitir que a decisão sobre suspender as leis para combater a crise fosse dividida com os estamentos, submetendo a soberania a uma disputa entre partidos. A decisão sobre a suspensão da lei – e quando falamos em suspensão “da lei”, sempre falaremos, em termos modernos, de suspensão da constituição – é o que caracteriza, de forma concreta e não abstrata, o verdadeiro poder soberano (Ibid, pp. 7-9). Outra exceção foi Samuel Pufendorf, jusnaturalista do século XVII discípulo de Thomas Hobbes. Pufendorf defendia que, dentro de uma sociedade, sempre surgem antagonismos acerca de como ela deve ser – os quais podem precipitar a temida “guerra de todos contra todos”. 19 Schmitt fala especificamente em “todas as mais modernas tendências do constitucionalismo moderno”, e menciona Hans Kelsen como um dos principais juristas alinhados com tais tendências. Certamente, a crítica de Schmitt abarca tanto o constitucionalismo liberal e sua busca pela contenção do poder soberano como a Teoria Pura do Direito de Kelsen, que vê o Direito como autorreferente e autossuficiente, negando o conceito de soberania e o substituindo pelo conceito eminentemente teórico da norma fundamental. Cf. SCHMITT, 2005: p. 7 e, acima, Nota 11.

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Compete ao poder soberano decidir a controvérsia e fixar o que constitui a ordem pública e a segurança – e, consequentemente, o que não as constitui (Ibid. p. 8). Schmitt extrai de Pufendorf a base de uma definição de ordem jurídica que, ao contrário do positivismo kelseniano, tem lugar para a soberania e a exceção: After all, every legal order is based on a decision, and also the concept of the legal order, which is applied as something self-evident, contains within it the contrast of the two distinct elements of the juristic – norm and decision. Like every other order, the legal order rests on a decision and not on a norm. (Ibid. p. 10).

A estrutura dúplice da ordem jurídica não era uma novidade nas obras de Carl Schmitt. O conceito surgira já na obra anterior Da Ditadura como “essência” do ente jurídico que dá nome ao livro (SCHMITT, 2014, p. XLII). Os tipos de ditadura schmittiana equivalem, em linhas gerais e sem as nossas considerações axiológicas, à nossa classificação dos tipos de estado de exceção entre ditadura moderna e estado de emergência, os quais são denominados por ele, respectivamente, de “ditadura soberana” e “ditadura comissária”. A diferença entre elas se origina no fato de que o ordenamento jurídico se subdividiria em “normas de direito” - as leis positivas – e “normas de realização do direito”, as quais não são leis no sentido jurídico, mas consistem no conjunto de condições técnico-práticas que permitem às normas de direito vigorarem (Ibid., p. XLII20). Em suma, as normas de realização do direito equivalem à situação sociopolítica de normalidade. Enquanto a ditadura comissária suspende o ordenamento para reinstaurar as suas condições práticas de aplicação, a ditadura soberana visa alterar inclusive essas condições, para viabilizar um novo ordenamento. Em Teologia Política, Schmitt, além de trabalhar diretamente com a “exceção” - o que indica a perda de relevância dos tipos de ditadura –, atualiza sua teoria adotando uma nova dualidade: norma e decisão. A norma, a lei, exige uma normalidade, uma ordenação, na qual possa ser aplicada. Tal situação, porém, não é um mero pressuposto superficial estranho ao direito; a norma não se aplica ao caos. A situação normal que permite à norma existir também pertence ao direito, e ela é determinada por uma decisão do soberano (Id., 2005, p. 13). A decisão, portanto, é o ato de criação do próprio Estado, da ordem jurídica, da unidade política; não há amarras normativas sobre ela. A decisão é absoluta. No caso comum, tal dualidade pode ser ignorada; é na exceção que se demonstra a independência conceitual de um para com o outro, com a destruição da norma para preservação da decisão, mediante outra decisão soberana que declara a normalidade rompida e defina o que fazer para 20 Usamos aqui a tradução dos termos tal como utilizada por AGAMBEN, 2007, p. 54-55. A edição em inglês da obra de Schmitt, Dictatorship, por nós consultada para este trabalho, utilizou a nomenclatura “norms of justice” e “implementation of law”. Gilberto Bercovici (2012, p. 42) utiliza os termos “normatividade” e “condições efetivas de sua instauração”.

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restaurá-la. Nas palavras do autor: “In such a situation it is clear that the state remains, whereas law recedes. Because the exception is different from anarchy and chaos, order in the juristic sense still prevails even if it is not of the orfinary kind.” (Ibid., p. 12-13). Nas palavras de Gilberto Bercovici (2012, p. 41): “Definir soberania como decisão sobre o estado de exceção significa dizer que o ordenamento está à disposição de quem decide.” Schmitt nega a separação entre direito e política preconizada pelos principais juristas da época, e que correspondia a um movimento geral de despolitização da própria vida, substituída pela supremacia da técnica. A origem de todo o ordenamento jurídico, que o positivismo e a ciência do direito afirmavam ser interna ao direito, era uma instância tanto jurídica quanto política, a decisão soberana. A “ideia jurídica”, o conceito abstrato que está por trás de qualquer norma, não tem o condão de se concretizar automaticamente, nem de determinar quem o fará; depende da intermediação de uma pessoa com autoridade para torná-la uma regra concreta aplicável (auctoritas interpositio) (SCHMITT, 2005, p. 30-31). Depende de uma decisão, de natureza jurídica, pois é fundadora do próprio ordenamento, mas também política. Não é à toa, portanto, que uma das obras posteriores do jurista Schmitt se chamará O Conceito do Político (1926). Não deixa de ser uma continuação da investigação acerca do campo da decisão soberana, desta vez orientada para o conteúdo político da mesma. Schmitt considerava superada a Teoria do Estado da época, que derivava o político do Estado, pelo advento do Estado Social (denominado por ele de Total21), tornando necessário recuperar a noção do que é especificamente político, dentre a miríade de questões da vida agora politizadas. Pensando nas obras anteriores, ele também quer recuperar a especificidade política da decisão soberana. E proclama: “O conceito de Estado pressupõe o conceito do político” (SCHMITT, 2007a, p. 19), e isso exatamente pela razão de que o Estado nasce de lutas políticas, do confronto de diferentes grupos e ideologias. Quando um desses grupos consegue impor-se, torna-se soberano, e cristaliza uma ordem política própria e una. Em termos políticos, a decisão soberana se caracterizaria pela distinção entre “amigo” e “inimigo”. Schmitt não a usa em termos morais ou particulares, mas sim relacionais, ou existenciais: o inimigo é todo aquele que está fora da unidade política, e que, por sua própria existência, nega tal unidade, objetivamente. Tal 21 No século XIX, o Estado liberal operara uma separação completa entre si e a sociedade, que garantia-lhe o monopólio do político, tornando a sociedade o campo das relações não-políticas – economia, cultura, religião, etc. Tal separação era reforçada pelo absenteísmo do Estado nas relações não-políticas. Com os movimentos sociais da virada do século, que forçaram a democratização das instituições, surgiu o Estado Social, no qual questões sociais, culturais e econômicas se transformaram em questões políticas, através da assunção pelo Estado de obrigações positivas para com a sociedade. O povo tomou o Estado e o tornou sua auto-organização. Com isso, política e não-política se fundiram, o que tornou o Estado árbitro potencial de todo aspecto da vida humana – daí o uso de Schmitt do termo “Estado total”. Cf. SCHMITT, 2007b, p. 107-133. Vide, ainda, BERCOVICI, 2012, p. 48-65.

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“inimizade” não pertence à esfera do indivíduo; é sempre pública, envolve coletividades 22. O Estado se tornou a unidade política por excelência da modernidade, e por isso os inimigos do Estado sempre serão outros Estados; e a guerra, o mecanismo extremo de manifestação dessa oposição, que sempre deve estar no horizonte possível. A guerra, na verdade, equivale à decisão que reconhece que tal oposição passou a ameaçar concretamente a existência da unidade política; para Schmitt, é justamente a exceção, que acaba por confirmar a regra (BERNSTEIN, 2013, p. 31; SCHMITT, 2007a, p. 35). Também é possível ao Estado, porém, decidir sobre seus “inimigos internos”, nos casos de guerra civil: As long as the state is a political entity this requirement for internal peace compels it in critical situations to decide also upon the domestic enemy (…) The civil war then decides the further fate of this entity. More so than for other states, this is particularly valid for a constitutional state, despite all the constitutional ties to which the state is bound. In a constitutional state, as Lorenz Von Stein says, the constitution is “the expression of the societal order, the existence of society itself. As soon as it is atacked the battle must then be waged outside the constitution and the law, hence decided by the power of weapons.” (SCHMITT, 2007a, p. 46-47)

Ora, o estado de exceção é o principal mecanismo pelo qual o Estado ameaçado procura restaurar a unidade política, a ordem interna, a decisão soberana. No estado de exceção o único horizonte é a decisão, não a norma, o direito posto. Este somente vigora enquanto estiver em função da unidade política, submetendo-se automaticamente (na forma da suspensão) à decisão soberana que decretar tal unidade em risco de destruição – e fixar a distinção política básica, determinando quem são os “inimigos”, internos e/ou externos, da ordem. Se em Teologia Política Schmitt é claramente um saudosista do soberano absoluto – ainda que se possa afirmar que seu modelo de soberano não residisse nos antigos imperadores e sim no papa (GHETTI, 2006, p. 16-21) –, nas obras posteriores sua ênfase se desloca para a busca de uma soberania popular compatível com o decisionismo que defendia, a qual culmina em sua Teoria da Constituição (1928). Afinal, a Constituição de Weimar era democrática, e Schmitt queria encontrar uma interpretação que a salvasse de suas fraquezas. O caminho por ele encontrado é ambicioso: redefinir o conceito de democracia. Para o autor, ela somente pode existir se baseada no princípio da igualdade. Tal igualdade está longe de ser, porém, a da Revolução Francesa, aquela que pertenceria a todos os homens indistintamente. Schmitt despreza a universalidade dos direitos humanos fundamentais, pois é a negação do político – ela subverte 22 Schmitt, nesse ponto, afasta-se de Thomas Hobbes, uma de seus grandes influências, pois Hobbes, ao pensar no estado de natureza, via a política como uma relação de amigos contra inimigos, mas tendo indivíduos, não grupos, como sujeitos – daí o individualismo contido na celebre fórmula “guerra de todos conta todos”. Cf. BERNSTEIN, 2013, p. 32-33.

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a dicotomia básica “amigo x inimigo”. Se todos são “amigos”, ou ”iguais”, a própria existência de tais termos se torna absurda, pois dependem, para existir, de seus correlatos “inimigos”, ou “desiguais”. Nas suas palavras: Toda igualdad recibe su significación y sentido mediante el correlato de una posible desigualdad; y es tanto más intensa, cuanto mayor es la desigualdad contrapuesta de aquellos que no son iguales. Una igualdad, sin la posibilidad de desigualdad, una igualdad que se tiene por si misma y que no puede perderse, carece de valor y es indiferente. (SCHMITT, 1992, p. 224).

A igualdade primária, portanto, se traduz em uma necessária divisão entre os que estão dentro e fora da comunidade política, sendo que os “de dentro” constituirão, por força lógica, um povo determinado e homogêneo. Esta é a definição de democracia, segundo Schmitt: “a identidade de dominadores e dominados, governantes e governados, dos que mandam e dos que obedecem”. (GHETTI, 2006, p. 38; SCHMITT, 1992, p. 230). Tais sujeitos somente podem pertencer a um mesmo corpo se este for homogêneo, sem diferenças qualitativas entre seus sujeitos, apenas diferenças funcionais. Eis, portanto, o soberano da Teologia Política adaptado ao modelo democrático. Quando um povo homogêneo decide constituir-se em uma unidade política, ao conjunto de decisões fundamentais tomadas neste momento acerca da organização de tal unidade – seu modo e forma, tão somente, e independente do conteúdo de tais decisões (se opta por ditadura ou democracia23, capitalismo ou comunismo, etc.24) – Schmitt denomina Constituição. A Constituição é a decisão política fundamental que o povo toma por si e dá a si mesmo, enquanto poder constituinte (SCHMITT, 1992, p. 46) – logo, soberano. Tal decisão não pode ser confundida com as leis constitucionais particulares, as quais podem conter elementos que nada tem a ver com as decisões fundamentais sobre o Estado, tendo sido incluídas no texto constitucional pelo debate político ordinário – uma decisão tomada não pelo povo soberano como um todo, mas por uma maioria ocasional, mesmo que apoiada na justiça ou na razão. “As leis constitucionais, valem, pelo contrário, com base na Constituição, e pressupõem uma Constituição.” (Ibid., p. 46). E 23 É possível que uma ditadura tenha uma origem democrática? Pablo Ghetti reproduz comentário de Schmitt afirmando que sim: “mesmo durante um tal período transitório, dominado por um ditador, a identidade democrática pode imperar e a vontade do povo ser a única determinante” (apud GHETTI, 2006, p. 35-36). A transitoriedade que Schmitt atribui ao ditador é uma característica do ditador romano, figura que o jurista recuperou em seu Da Ditadura com a ditadura comissária. Mas é bom destacar que o ditador romano não era aclamado pelo povo – sendo que a aclamação, e não a eleição, é a principal forma de manifestação do povo enquanto ente homogêneo, segundo Schmitt (Ibid., p. 39). 24 No caso da Constituição de Weimar, a “Constituição” verdadeira consistiria apenas nas cláusulas relativas à democracia; à república; à federação; ao regime de governo parlamentarista; ao Estado Burguês de Direito (direitos fundamentais da tradição burguesa e separação de poderes). A menção aos elementos do Estado Burguês de Direito é curiosa, pois toda a teoria de Schmitt é crítica dos mesmos; no final, o próprio Schmitt desprezará parte do que ele mesmo considerou como sendo a decisão política fundamental de Weimar. Cf. SCHMITT, 1992, p. 47-48.

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ainda: “A lei constitucional é, por seu conteúdo, a normação que leva a vontade constituinte à prática.” (Ibid., p 94; GHETTI, 2006, p. 45). A dualidade “Constituição – lei constitucional” da Teoria da Constituição nada mais é que uma atualização da dupla “decisão – norma” da Teologia Política. Há um evidente nexo de continuidade entre as principais obras de Schmitt no período, o qual é desnudado pela permanência do estado de exceção como instrumento de salvaguarda de algo que está acima da lei comum, mesmo que constitucional; esse “algo” é agora denominado de decisão política fundamental. Acreditamos ser possível, neste momento, resumirmos a evolução do pensamento schmittiano, tal como nos aparece em Teoria da Constituição. Na democracia, pressupõe-se o povo homogêneo como o ente soberano que decide sobre sua própria unidade política, definindo, neste ato, o que é “normal” no âmbito interno, no sentido de decidir qual a forma e modo de existência da unidade política, sua Constituição; e qual o “inimigo”, tanto no âmbito externo, no sentido de que, ao constituir-se como unidade, automaticamente todas as demais unidades políticas no mundo se tornam inimigas, quanto no interno, ao tornar inimigos aqueles que questionarem a ordem instituída. Quanto à lei constitucional comum, como visto acima, esta sempre pressuporá e valerá com base na Constituição – mesma relação de dependência que Schmitt antecipara com a dupla decisão e norma. Até aqui, a compatibilização entre soberania popular e decisão corre bem. Mas, como o próprio Schmitt afirmara, “a regra não prova nada; a exceção prova tudo” (SCHMITT, 2005, p. 15). É na decisão sobre o estado de exceção que o soberano se revela, conforme vimos desde o início. Isso significa que, na democracia, compete ao povo, em uníssono, decidir sobre isso, na forma de aclamação? Isso, nos grandes Estados modernos, é possível? Schmitt – e aqui sua posição política nos debates sobre a República de Weimar finalmente se revela em sua totalidade – defenderá que a identidade entre povo e soberano, complexa e, na prática, limitada25, acaba por exigir alguma representação a nível institucional. A conjugação do princípio democrático da soberania com a representatividade de natureza monárquica26 encontra tal representante na figura do Presidente da República. O Presidente é o 25 A aclamação da multidão, tal como na antiga Atenas e até mesmo na teoria rousseauniana, depende da reunião desta, impraticável na realidade dos grandes Estados democráticos modernos. Sua forma moderna seria a opinião pública, mas ela é manipulável. Por outro lado, a eleição pressupõe a regra de maioria, bem como uma limitação, seja no número de candidatos, seja nos assuntos tratados, seja nas opções em disputa. Nada disso é compatível com a democracia como unidade política e com o povo (homogêneo) como soberano, logo de poderes e prerrogativas ilimitadas. Cf. GHETTI, 2006, p. 39-40. 26 Não abordamos a fundo neste trabalho o tratamento dado por Schmitt à questão da representatividade política e da crise da democracia parlamentar, centrais no pensamento do autor quanto à República de Weimar, mas que, no estudo do estado de exceção, não são indispensáveis. Para tal estudo, cf. Ibid., p. 14-36

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único agente político eleito pela totalidade do povo – o mais próximo possível da vontade homogênea do povo a que se pode chegar. Portanto, ele é o mais apto a agir como o soberano nos casos excepcionais. Schmitt aprofundará a questão na obra O Guardião da Constituição, de 1929. Lido separadamente, o livro pode ser interpretado como um estudo acerca de quem teria a última palavra acerca do controle de constitucionalidade. No contexto da obra de Schmitt, deve ser entendido como uma pesquisa acerca de quem detém o poder de, representando o povo soberano (aqui não mais estudado, mas pressuposto), salvaguardar a unidade política na Alemanha de Weimar. Este, para Schmitt, é o verdadeiro guardião da Constituição. A primeira frase do livro demonstra que, ainda aqui, o pensamento de Schmitt está voltado para a decisão sobre o estado de exceção: “O clamor por um guardião e defensor da Constituição é, na maioria das vezes, um sinal de delicadas condições constitucionais.” (SCHMITT, 2007b: p. 1). Ou seja, sinal de crise da normalidade. A opção que vinha ganhando força na década de 1920 era pela atribuição de tal guarda ao Poder Judiciário, em especial, seguindo a fórmula defendida por Hans Kelsen e adotada pela Constituição da Áustria de 1920, através da criação de um Tribunal Constitucional específico. O próprio Tribunal do Estado alemão, a partir de 1925, se inclinava nesse sentido. Carl Schmitt rejeitará a guarda judicial por uma série de motivos. Em primeiro lugar, ele afirma que o controle judicial desconsidera “por completo a diferença fundamental entre uma decisão processual e a decisão de dúvidas e divergências de opinião sobre o conteúdo de uma determinação constitucional” (Ibid., p. 5). O fato de tribunais e juízes poderem exercer o controle de constitucionalidade das leis, decidindo que estas são incompatíveis com a Constituição vigente, não os torna guardiões da Constituição no sentido que Schmitt defende. A guarda exercida pelo Judiciário era bastante restrita, pois estava limitada à subsunção do fato típico à norma geral. Em outras palavras, dependia da existência de norma constitucional com comando claro e direto27, violada por lei ordinária, permitindo que o juiz negasse aplicação a esta última (Ibid. p. 24). No modelo alemão, este era o máximo a que um magistrado poderia chegar em sua tarefa julgadora, sob pena de destruir qualquer possibilidade de independência judicial (Ibid., p. 29). Os juízes ordinários estão presos à esfera da normatividade; não podem decidir sobre a exceção, porque tal esfera está além do ordenamento comum, ainda que dentro da ordem jurídica. Os tribunais, no máximo, “podem ser guardiões de uma parte da Constituição, ou seja, daquela que diz respeito à sua própria base e posição, das determinações sobre a independência

27 Princípios e máximas gerais não se adéquam a subsunção: são vagos e abertos demais para possibilitarem um controle direto e automático. Conceitos indeterminados somente poderão ser passíveis de subsunção se determináveis ou mensuráveis pela prática jurídica. Cf. SCHMITT, 2007a: pp. 24, 28-29.

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da justiça” (Ibid., p. 26). Mas tal função também se estenderia aos demais poderes, e até mesmo a todos os cidadãos, e se converteria em um direito de resistência que Schmitt curiosamente chama de “estado de emergência revolucionário” (Ibid., p. 31). O verdadeiro guardião da Constituição, para Schmitt, é o ator que justamente substitui o direito de resistência e o torna supérfluo (Ibid., p. 32), uma afirmação que nos lembra sua defesa da necessidade de um representante do povo soberano para decidir sobre os momentos de crise. O Poder Legislativo (e, no modelo alemão, o Executivo28) perdera a capacidade de ser o guardião com o advento do Estado Social, ou Total. O Parlamento era uma estrutura liberal, moldada dentro de um sistema em que Estado e sociedade eram completamente separados: nele, os representantes da última confrontavam os agentes do primeiro, e uma esfera tentava subjugar a outra (Ibid., p. 109). Mas a democratização e a politização das mais diferentes relações sociais pulverizou o Parlamento em diversos partidos e grupos de interesse, cujo objetivo não era submeter os outros grupos, mas negociar e debater para a obtenção de maiorias provisórias, o que levaria a um contínuo travamento da instituição (BERCOVICI, 2012, p. 49). O parlamentarismo liberal-democrático era pluralista, e isso tornava o Legislativo o último lugar aonde uma unidade política homogênea pudesse ser defendida. A decisão soberana não se compatibilizava com o debate e a diversidade de opiniões; o conceito de político não suportava pluralidades, apenas a dualidade “amigo x inimigo”. Em um sistema de separação de poderes, é impossível se atribuir a guarda da Constituição a um deles, pois este se tornaria mais denso do que os outros e escaparia do controle mútuo. Por isso, somente resta a opção pela criação de um Poder Neutro, em relação de coordenação para com os outros, mas “dotado de poderes e possibilidade de ação singulares” (SCHMITT, 2007a, p. 193). Schmitt recupera, explicitamente, a teoria do Poder Moderador de Benjamin Constant, citando, inclusive, a Constituição brasileira de 1824 como exemplo. Ele considera o poder neutro não como uma teoria ultrapassada, mas como parte essencial do Estado de Direito, na figura do chefe de Estado dos regimes parlamentaristas (o caso da República de Weimar), nos quais existe um rei ou presidente que não governa, tarefa do primeiro-ministro eleito pelo Parlamento. O chefe de Estado, ao contrário das facções parlamentares, “representa a continuidade e a permanência da unidade estatal e de seu funcionamento uniforme” (Ibid., p. 199). Como já mencionado, ele é o único dos atores políticos institucionais eleito pela totalidade 28 A Alemanha de Weimar era uma República parlamentarista. O Poder Executivo era exercido por um primeiroministro nomeado pela coalizão vencedora das eleições legislativas para o Parlamento Nacional – Reichstag. A contínua disputa entre as facções parlamentares, porém, levava a sucessivas trocas de gabinetes, bem como dificultava imensamente a capacidade do chefe do Executivo de decretar medidas sem amparo parlamentar. Daí a crítica ácida de Schmitt a uma instituição que considerava uma ameaça à unidade política alemã, e sua busca por uma justificativa para dar ao Presidente do Reich poderes maiores.

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do povo; é o mais próximo, portanto, da vontade homogênea do povo constituidora de uma unidade política. È a metade plebiscitária da democracia, oposta à parlamentar. O poder neutro, com funções intermediárias, defensoras e reguladoras, só ativo em casos de emergência, se compatibilizaria perfeitamente à posição do Presidente do Reich, retomando a característica que permitira ao Estado liberal do século XIX deter o monopólio da decisão sobre o inimigo e a exceção. Schmitt argumenta que a realidade política da República de Weimar demonstrou a capacidade única do Presidente do Reich de superar os entraves causados por um parlamento pluralista e incapaz de preservar a unidade política, através do estado de exceção emergencial do art. 48 da Constituição de Weimar, tal como aplicado, não como previsto (Ibid. p. 170). O dispositivo previa que competia ao Presidente do Reich, caso a segurança e a ordem públicas estivessem ameaçadas, declarar o estado de exceção, tomando as medidas necessárias para seu restabelecimento, inclusive com o auxílio das forças armadas, podendo suspender determinados direitos fundamentais para tanto. Determinava, porém, que o Presidente encaminhasse imediatamente ao Parlamento a relação das medidas e direitos suspensos, podendo o Parlamento revogar tal decisão a qualquer tempo. Desde Teologia Política Schmitt rechaçava a interpretação “liberal” do art. 48, e defendia que ele garantia poderes ilimitados, desprezando a enumeração de direitos passíveis de suspensão e a opinião do Parlamento. Afinal, a exceção é impossível de ser reduzida a uma norma. Tratava-se de mais uma tentativa do constitucionalismo liberal de ignorar o problema da soberania (Ibid., 2005: p. 11). Na prática, o presidente passou a usar o art. 48 para promulgar decretos versando sobre matéria econômica e financeira, para combater a crise econômica, criando a noção de estado de emergência econômico-financeira. O estado de exceção, portanto, se libertara do pressuposto tradicional da existência de crise militar ou policial e passara a ser usado para crises econômicas, as quais passavam a ser também indicativas de ameaça à decisão política fundamental (Ibid., 2007, p. 173-174). E o único sujeito que se mostrou, na prática, capaz de manejá-lo em prol da unidade política do Estado deveria ser seu único guardião efetivo. O estado de exceção, portanto, era o mecanismo que revelava todos os aspectos ligados à decisão fundamental, ao soberano e ao guardião. Por isso “A exceção, para o direito, equivale ao milagre na teologia” (SCHMITT, 2005, p. 36). Ela desvela os fenômenos que, na vida comum, são difíceis de serem concebidos, por mais constitutivos da nossa realidade que eles, na verdade, sejam. Em apertado resumo, a teoria do estado de exceção schmittiana o concebe como a manifestação do poder soberano na realidade, destinada a restaurar a ordem jurídico-política por ele concebida, quando ameaçada, independente do que estiver disposto no ordenamento

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jurídico positivo, mesmo que constitucional. Tal como Deus se revela aos mortais através do milagre.

2.2 A teoria aplicada à hipótese Retomemos a hipótese formulada na introdução deste trabalho: se levamos a sério que o constitucionalismo democrático se baseia, fundamentalmente, na limitação do poder; na garantia dos direitos humanos fundamentais; e na legitimidade democrática, a análise a posteriori dos atos praticados sob estado de exceção precisará submetê-los aos ditames constitucionais e democráticos, sob pena da exceção se sobrepor ao constitucionalismo e à democracia inclusive nos tempos de normalidade. A teoria schmittiana do estado de exceção se compatibiliza com a hipótese aqui proposta? A resposta nos parece negativa, e o próprio Schmitt deu fartas indicações nesse sentido. Por mais relevantes que sejam suas críticas ao liberalismo, ao formalismo jurídico, à tendência de sobreposição do técnico sobre o político – e que possibilitaram a sua sobrevivência como grande pensador do século XX –, as soluções por ele propostas para tais problemas passam longe do que hoje, de maneira geral, se defende sob a bandeira do constitucionalismo democrático. Na verdade, Schmitt propõe novos conceitos para ambos os termos, o que compromete seriamente uma compatibilização entre sua teoria e a hipótese aqui defendida. Em primeiro lugar, a limitação do poder, quando se dá a exceção, não existe. Schmitt reitera a todo o tempo que as tentativas de regulamentar o estado de exceção emergencial são absurdas, deturpações liberais do conceito. Não há como antecipar-se, em uma cláusula fechada, quais as situações de crise do Estado, nem quais os poderes que o soberano, ou seu representante, poderá utilizar. A exceção é imprevisível, e somente o poder soberano poderá decidir e lidar com o mesmo, com poderes ilimitados, pois somente assim poderá se adaptar à situação. O Estado liberal sempre recalca o problema da soberania, e a exceção o revela como centro inescapável do ordenamento jurídico-político. A supremacia da lei é uma ficção: a base e o pressuposto de toda norma é uma decisão fundamental, e, quando esta é ameaçada, suspende-se a lei e instaura-se o estado de exceção com base nos poderes ilimitados do soberano. Daí pode-se inferir que os atos do soberano no estado de exceção são impossíveis de serem submetidos ao controle posterior por qualquer dos Poderes do Estado, pois isso representaria, justamente, uma limitação que desnaturaria a soberania. A relação de Schmitt com a separação de poderes é mais interessante. Em Teologia Política fica clara a sua ojeriza ao mesmo, por ser, justamente, um mecanismo da tradição liberal. Conforme busca inserir seus trabalhos na realidade constitucional alemã, Schmitt acaba

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por reconhecer que a decisão política fundamental de Weimar incluía a separação de poderes nos moldes do Estado “Burguês” de Direito, e é forçado a buscar uma solução para tal problema: a teoria do poder neutro e a transformação do Presidente do Reich em Poder Moderador. Coube justamente ao grande adversário teórico de Schmitt, Hans Kelsen, denunciar a contradição contida na formulação. Ao mesmo tempo em que afirmava que o poder neutro não estaria sobre os demais, mas ao lado deles, Schmitt defendia que ele enfeixava, no estado de exceção, poderes ilimitados – de maneira que o “guardião da Constituição”, acusou Kelsen, acabaria por se tornar o próprio soberano (KELSEN, 2003, p. 246-247). Sem contar que, nos poucos casos em que o Poder Moderador existiu, ele sempre se sobrepôs aos demais, tornando a separação de poderes uma farsa29. Avançando para a questão dos direitos humanos fundamentais, surge contradição semelhante à que ocorre com a separação de poderes. Schmitt igualmente admite que a decisão política fundamental da Constituição de Weimar incluía os direitos fundamentais, também nos moldes do Estado Burguês de Direito. Mais adiante, porém, afirma que o texto constitucional não seguiu a decisão política fundamental: enquanto esta optou pelo modelo de Estado Burguês, o documento acabou sendo um compromisso entre concepções liberais e socialistas, prevendo, ao lado dos direitos fundamentais individuais, uma ampla gama de direitos sociais, culturais e econômicos. Schmitt nega “autenticidade” a tais direitos, estranhos à tradição liberal e resultado de compromissos dilatórios dos diferentes grupos políticos em disputa na assembleia constituinte de 1919 (SCHMITT, 1992, p. 54), esboçando a tese de que a segunda parte da Constituição alemã, dedicada aos direitos e garantias fundamentais – sociais e liberais – é outra Constituição, oposta à decisão fundamental (GHETTI, 2006, p. 46). Uma não-constituição, na verdade, pois nem mesmo como lei constitucional poderia valer, uma vez que concretizava algo que a Constituição – decisão rechaçara. Não é possível, porém, nos iludirmos acreditando que o problema de Schmitt eram apenas os direitos sociais. Os direitos humanos individuais também eram incompatíveis com a teoria schmittiana da unidade política. A ideia de direitos pertencentes a todos os homens e mulheres (como a igualdade geral) aniquila a possibilidade de separações como a que constitui o elemento político (entre amigo e inimigo) e entre os que estão dentro de uma unidade política e os de fora, base da concepção de democracia como povo homogêneo (Ibid., p. 36-37). Sem contar, novamente, o problema da limitação do poder contida na própria noção de direitos 29 Raymundo Faoro, acerca do Poder Moderador no Brasil Imperial, é direto ao afirmar que ele nunca fora neutro, intervindo e se sobrepondo aos poderes Legislativo e Executivo: “A labareda das disputas e das contradições deixa de pé, verde e altiva, a verdade de que o Poder Moderador governa e administra. Ninguém, nem o imperador, nem os conservadores, nega a realidade.” Cf. FAORO, 2000: p. 394

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humanos fundamentais como direitos oponíveis ao Estado, que, como já visto, era inadmissível na teoria do estado de exceção schmittiana. Podemos resumir as considerações acima na lição de Gilberto Bercovici: A Constituição não é um contrato, mas uma decisão sobre o tipo e forma da unidade política. (…) Os elementos constitucionais que afetam a unidade política do Estado, limitando-o, liberalizando, pluralizando, como os direitos fundamentais, a separação de poderes e o Estado de Direito, não são políticos, pois relativizam a unidade do Estado em benefício de interesses individuais. (BERCOVICI, 2012, p. 48).

Por fim, o elemento democrático, como visto, mereceu ampla atenção de Carl Schmitt em Teoria da Constituição. Mas a democracia concebida por ele, assim como o constitucionalismo, é bem diferente do que tal conceito significa hoje. A democracia de Schmitt é autoritária; o povo por trás da soberania popular schmittiana é um corpo unitário, que não admite cisões em seu interior. O pluralismo da sociedade, como Bercovici destacou acima, quando invade o Estado na figura do Estado Social/Total, cria uma miríade de grupos com voz política, que passam a tornar muito mais custosas as decisões políticas. O pluralismo paralisou o sistema parlamentar alemão em um momento de graves crises econômicas e políticas; como consequência, a confiança do povo nas instituições de Weimar diminuía, e a opção por radicais de direita e esquerda aumentava. Schmitt não admitia o pluralismo por seu poder desagregador em face da unidade política e dos empecilhos que colocava para a decisão sobre o estado de exceção. Como admitir que o estado de exceção pudesse ser revogado pelo Parlamento? Como submeter a debate um comando que se pretende absoluto e ilimitado? Isso era impossível. O povo, como unidade homogênea, precisava de um líder com plenos poderes, do contrário poderia surgir um “estado de emergência revolucionário” exercido pelo próprio povo – o que Schmitt explicitamente quer evitar, como vimos anteriormente, talvez porque, na prática, o individualismo poderia se sobrepor ao unitarismo, trazendo a tona o fantasma do pluralismo, uma vez mais. As críticas de Schmitt às contradições e fraquezas do Parlamento liberal submetido à política de massas ecoam na atualidade; a paralisia de um Legislativo pulverizado é uma realidade que se mantém até hoje em todo o mundo democrático. Mas a opção por ele escolhida é procurar um grande líder que evitasse que a soberania popular, afinal, se manifestasse por si mesma. A opção é conscientemente conservadora. E perigosa, pois, como Kelsen advertiu já na época, o “representante” da soberania popular enfeixava em si os poderes do próprio soberano, bastando a aprovação popular para que seus atos fossem considerados legítimos, o que estimulava a demagogia e o culto à personalidade.

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Se a obra de Carl Schmitt não levava, necessariamente, ao nazismo, o fato é que foi uma decisão do próprio autor, a partir de 1933, reinterpretá-la à luz da ideologia totalitária, associando povo homogêneo a raça pura, e amigo contra inimigo a extermínio dos “impuros” (BERCOVICI, 2012, p. 49-50). O fato do Estado nazista nunca ter revogado a Constituição de Weimar, preferindo se valer de um estado de exceção permanente – suspendendo os artigos relativos às liberdades individuais, sem prazo de validade, já em 28 de fevereiro de 1933 (AGAMBEN, 2007, p. 12) – representou a coroação do pensamento schmittiano: salvou-se o Estado às custas do ordenamento positivo, incluindo o constitucional. O comando do Führer, com força de lei (“o desejo do Führer é a lei do Partido”, conforme cita Hannah Arendt [ARENDT, 2013, p. 413]), se tornaria a representação mais cristalina da decisão sobre o estado de exceção por ele concebida. E, no entanto, tudo esse processo também levaria a teoria de Schmitt à autodestruição, pois a tão sonhada unidade política estável não estava no horizonte do nazismo30. A teoria do estado de exceção de Carl Schmitt deve ser contextualizada como uma tentativa de se solucionar os problemas da República de Weimar de um ponto de vista autoritário. O que não significa que seus desdobramentos práticos posteriores devam ser totalmente ignorados, ainda mais quando contaram com a participação ativa do próprio autor da teoria. De qualquer forma, por tudo o que foi exposto, a teoria do estado de exceção schmittiana é extremamente difícil de ser compatibilizada com o constitucionalismo democrático defendido neste trabalho. Uma compatibilidade que o próprio Schmitt, provavelmente, deploraria e denunciaria.

30 Somente podemos especular por que Schmitt, afinal, se desencantou e se afastou do regime que chegou a defender com tanto ardor. Uma possível resposta pode estar no conceito de “movimento” usado por Hannah Arendt para descrever os totalitarismos nazista e stalinista. O movimento nazista não desejava preservar uma decisão política fundamental; era hostil à própria ideia de estabilidade, pois seu objetivo era a expansão ilimitada e o domínio total sobre todos os homens. A decisão sobre quem era o inimigo deveria ser contínua, e nenhuma normalidade poderia confinar o movimento a uma unidade política. O totalitarismo levava tanto a concepção schmittiana de político quanto a defesa da unidade política ao paroxismo, no qual tanto a pretensa objetividade da dupla “amigo x inimigo” como a concepção de unidade política tal como defendidas por Schmitt acabavam destruídas. Da decisão nunca surgia a norma, e a exceção se tornava permanente, algo que o conservador Schmitt recusava. Nossa opinião foi construída com base em ARENDT, 2013, especialmente p. 428 e ss., e AGAMBEN, 2007, p. 90-91

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3. O ESTADO DE EXCEÇÃO, SEGUNDO GIORGIO AGAMBEN 3.1 O autor e sua teoria Giorgio Agamben (1942-) é certamente um dos mais famosos filósofos contemporâneos. Sua obra se destaca pela imensa variedade de autores e referências utilizadas, podendo ser comparada a um mosaico formado por pedaços de trabalhos dos mais variados pensadores, das mais diferentes áreas, reunidos em torno de um assunto específico 31. Um mesmo livro pode abordar figuras as mais díspares, como Platão, Jean Bodin, marquês de Sade, Hegel, Durkheim, Carl Schmitt, Franz Kafka, Heidegger, Gadamer, Hannah Arendt, Michel Foucault, Jacques Derrida e Antonio Negri – só para citar alguns. E, contudo, Agamben confere sentido e conteúdo a essa vasta colagem, inserindo todos esses autores em um arcabouço teórico próprio, com problemas e hipóteses específicos (NETO, 2014, p. 7). O contexto dos trabalhos mais recentes de Giorgio Agamben é o mundo pós-Guerra Fria. A queda do comunismo soviético levou à famosa proclamação do “fim da História” do historiador americano Francis Fukuyama: a vitória final da democracia liberal capitalista sobre quaisquer outras alternativas existentes. E, no entanto, as duas décadas posteriores mostraram que o triunfo não parece ter ido muto além da vitória de um modelo econômico. Meros 4 anos após a queda da URSS, a Europa testemunhava o maior genocídio ocorrido dentro de suas fronteiras desde o Holocausto: a limpeza étnica dos bósnios por sérvios e croatas durante a Guerra da Bósnia, que ceifou a vida de 100 a 200 mil pessoas – a primeira de uma lista macabra que incluiria Ruanda, Kosovo e Darfur nos anos seguintes. Ao mesmo tempo em que massacres e genocídios voltavam aos noticiários, o terrorismo islâmico, com os traumáticos atentados de 11 de Setembro de 2001, se tornava o novo inimigo a ser combatido, servindo de pretexto para a edição de normas que, na prática, suspenderam diversos direitos fundamentais em nome da segurança. Os “campeões da democracia”, os EUA, passaram a violar sistematicamente os direitos humanos, com base no Ato Patriótico de 2001, negando aos acusados de terrorismo qualquer tipo de estatuto ou proteção jurídica, seja a da lei americana, seja a da Convenção de Genebra para prisioneiros de guerra, bem como qualquer acesso a defensores, e submetendo-lhes à tortura sistemática, em bases militares cujos nomes se tornaram mundialmente conhecidos: Guantánamo e Abu Ghraib. Isso sem falar no sistema de espionagem global montado pela Agência de Segurança Nacional (NSA), o qual somente foi revelado pela delação à imprensa de 31 Moysés Pinto Neto compara a obra de Agamben a uma “sala de espelhos”, na qual a história da filosofia se reflete em vários espelhos diferentes, cada um correspondendo a uma referência e a um campo do saber diferente (NETO, 2014, p. 6).

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um ex-funcionário, Edward Snowden, desde então perseguido pelo governo americano. Por fim, ganhou destaque o aumento das desigualdades socioeconômicas e a crise de representação no Ocidente, com o progressivo atrofiamento das instituições representativas democráticas e a paulatina perda de diferenciação ideológica entre os partidos políticos tradicionais, a maioria capturada pelos interesses de uma elite minúscula – o denominado “1%”, alvo das manifestações globais ocorridas a partir de 2011 e conhecidas como “Occupy”, muitas delas violentamente reprimidas. No Brasil, o advento de uma Constituição bastante generosa em matéria de direitos fundamentais, e o forte combate a desigualdade que se impôs como principal agenda política dos últimos 20 anos, convivem com a persistência e fortalecimento de um aparato policial herdado da ditadura militar que viola sistematicamente os direitos humanos nas periferias das grandes cidades, e de um Estado altamente refratário a processos de democratização que partam da sociedade, combinação que leva à perpetuação de uma cultura geral de “violência oficial”. É nesse contexto, em que regimes que se autoproclamam como democráticos e respeitadores de direitos humanos agem, cotidianamente, em desacordo com tais premissas ideológicas, que Agamben resolve abandonar velhos mitos e respostas prontas e investigar a fundo as reais bases da política ocidental contemporânea, para encontrar, afinal, os motivos dessa paradoxal “vitória de Pirro” da democracia e dos direitos humanos no pós-Guerra Fria. Como se verá, o estado de exceção ocupa posição central no problema. Como um dos principais teóricos da exceção, Carl Schmitt é uma presença constante na obra de Agamben – em especial nos dois livros de que trataremos, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua (1995) e Estado de exceção (2003). Isso levou importantes autores32 a verem Agamben como um mero discípulo de Schmitt. Adotaremos aqui posição contrária. A aproximação teórica entre ambos é inevitável diante do fato de que os dois acabam estudando a fundo os mesmos conceitos – estado de exceção e soberania – e de que Agamben inicia seus trabalhos justamente a partir de Schmitt. Mas o objetivo de cada um difere radicalmente: enquanto Schmitt usa a exceção para delimitar e justificar o campo da decisão política fundamental, Agamben pretende usá-la para desvendar o verdadeiro funcionamento entre lei, soberania e vida, e para contestar toda essa estrutura. Como bem resumido por Rafael Vieira, “Aquilo que em Schmitt tem um caráter sobretudo apologético, em Agamben tem uma função crítica fundamental, que representará uma inversão proposta pelo mesmo.” (VIEIRA, 2012, p. 136). Em Homo sacer, Agamben explicitamente se propõe a sintetizar e a dar continuidade aos 32 O destaque vai para o jurista grego Costas Douzinas, um dos maiores teóricos dos direitos humanos na atualidade. Cf. VIEIRA, 2012, p. 135

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resultados das investigações sobre a natureza do poder político moderno realizadas, em separado, pelos filósofos Walter Benjamin, Michel Foucault e Hannah Arendt. Todos, cada um a seu modo, tinham identificado, na política moderna, um mesmo traço distintivo: a inclusão da vida biológica dentro dos cálculos do poder político estatal (AGAMBEN, 2002, p. 11-12). Desde a Grécia Antiga, sempre houvera uma divisão muito explícita entre dois tipos de “vida”: aquela que os gregos chamavam de zoé, o mero fato de viver, comum a todo ser vivo; e a bíos, a maneira própria de cada indivíduo ou grupo viverem. É essa divisão que norteia, por exemplo, a clássica definição de Aristóteles do homem como “animal político” - o “político”, aqui, não é uma característica geral da vida comum, mas uma qualificação, que diferencia todo um gênero em relação à vida natural (Ibid., p. 9-10). É justamente essa divisão que foi colocada em xeque pela Modernidade, segundo os autores mencionados. A vida natural deixou de ser algo estranho à política e se tornou o principal objeto dos seus cálculos. O controle de territórios ou de bens deixou de ser a grande preocupação dos Estados; em seu lugar, entrou o controle dos corpos – o qual Foucault denominou biopolítica, e na qual o direito (mas também a medicina, dentre outros campos do saber) tem papel central. A proposta de Agamben é dar continuidade ao trabalho de Foucault, submetendo todas as grandes categorias fundamentais da política moderna (democracia e absolutismo, direita e esquerda, público e privado, etc.) a um esquadro biopólítico, trazendo à luz o papel oculto que a relação entre vida e política assume na própria origem de tais conceitos (Ibid., p. 12); dentre eles, direito e exceção. Tal como fizemos com Schmitt, pretendemos apenas focalizar nos trabalhos de Agamben diretamente relacionados com o estado de exceção, mencionados acima, adentrando em outros pontos de seu pensamento filosófico apenas quando necessário. Também não pretendemos realizar nenhuma crítica sistemática ao autor, focalizando-a apenas em uma corrente interpretativa do mesmo junto aos juristas contemporâneos, a ser vista no próximo tópico. Propomos, porém, uma inversão bibliográfica. Se em Homo sacer, encontramos já no primeiro capítulo a definição agambeniana de exceção, a investigação promovida em Estado de Exceção segue uma linha mais cuidadosa, a partir da qual podemos inserir as ligações necessárias com a obra anterior. No nosso entender, é um caminho que permitirá maior compreensão ao leitor ainda pouco familiarizado com o denso arcabouço teórico do autor, fortemente impregnado de metafísica. Agamben recupera a história do estado de exceção para trazer à tona diversas perplexidades que rodeiam o instituto pelo qual suspende-se a ordem constitucional em virtude de uma “crise política”. Em primeiro lugar, o estado de exceção não é um resquício do

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absolutismo. Ele nasce junto com o constitucionalismo e a democracia modernos, na figura do “estado de sítio” criado logo no início da Revolução Francesa33 (AGAMBEN, 2007, p. 16). A segunda perplexidade é específica da doutrina jurídica do século XX: a transformação do estado de exceção temporário em permanente, a qual acabou por mudar para sempre o funcionamento dos próprios regimes democráticos. O fato histórico decisivo para a evolução do estado de exceção na atualidade é a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). O primeiro confronto em escala global da história alterou profunda e definitivamente o modo como os regimes democráticos passaram a lidar com a questão dos “plenos poderes”. A guerra foi usada como justificativa para que muitos dos Estados beligerantes (EUA, França, Inglaterra, Alemanha, Itália, etc.) e até mesmo neutros (como a Suíça) declarassem estado de sítio, e/ou promulgassem medidas que conferiam ao Poder Executivo plenos poderes. Tais instrumentos de exceção eram defendidos como temporários, ligados a um estado de necessidade, que no caso era evidente (pelo menos para quem lutava na guerra). Mas o conflito, que se supunha rápido, se arrastou por quatro anos. As medidas excepcionais e a concentração draconiana de poderes nas mãos do Executivo se consolidaram como práticas de governo duradouras. O fim da guerra não restaurou a harmonia entre os Poderes, como se imaginava. Agamben lista vários exemplos, nos quais Estados democráticos mantiveram a prática do uso do estado de sítio ou da delegação de plenos poderes ao Executivo para lidar com crises econômicas (caso da França nos anos 1920 e 30 e da Alemanha durante boa parte da República de Weimar) e com lutas sociais internas (caso do Emergency Power Act inglês de 1920, que tinha como alvo greves e tensões sociais) (Ibid., p. 25-29 e 34). A hegemonia do Executivo sobre os demais Poderes, que se admitira sob o pretexto da guerra, se manteve na época de paz através da ampliação do conceito de “emergência” para situações econômicas e sociais nem um pouco parecidas com um conflito armado entre exércitos, até um ponto em que o Legislativo perdeu real poder de influência nessas questões. O estado de exceção se tornara paradigma de governo (Ibid., p. 19). E o que juristas da época já percebiam é que a transformação desses instrumentos de exceção por definição temporários e controlados em sistemáticos e amplos levariam, necessariamente, à ruína da democracia que supunham proteger (Ibid., p. 20). A perplexidade maior da teoria jurídica com relação ao estado de exceção reside, porém, na sua própria localização: ele está dentro ou fora da ordem jurídica? O uso do conceito de “necessidade” por grande parte da doutrina – inclusive nos dias de hoje, como demonstrado no

33 Cf. nossa Introdução.

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Brasil por José Afonso da Silva (SILVA, 2009, p. 762) – é indicativo de tal disputa. Para uma corrente, com base no adágio latino necessitas legem non habet (“a necessidade não tem lei”), o estado de exceção é apenas a subtração de um caso particular à aplicação literal da norma, pois, caso esta fosse aplicada, a finalidade da lei não seria observada; portanto, é um fato externo ao direito (AGAMBEN, 2007, p. 40-42). Para outra corrente, mais moderna, liderada por Santi Romano – o qual influenciou Schmitt –, a necessidade é o fundamento último e a própria fonte da lei. Embora por si só ilegal, o estado de exceção, para Santi Romano, era perfeitamente “jurídico e constitucional”, pois dava vida a novas normas, ou a toda uma nova ordem jurídica (Ibid., p. 43-44)34. Agamben recusa tais teorias, pois elas não conseguem superar certas aporias derivadas da tentativa de se considerar a exceção dentro ou fora do direito. Os defensores da natureza jurídica da necessidade, inclusive Santi Romano, sempre defenderam a indispensável ratificação a posteriori em lei das medidas excepcionais tomadas – o que não deveria ser necessário, já que elas fazem parte do direito desde sempre. Por outro lado, se a necessidade é mero fato, como os efeitos jurídicos da ratificação legal da mesma poderiam ser ex tunc, retroativos, como defendiam os adeptos de tal corrente? Por fim, a grande contradição reside no fato de que “necessidade” não possui a objetividade que ambas as correntes sempre pareceram atribuir a tal conceito: uma situação somente pode ser considerada “excepcional” a partir de um juízo puramente subjetivo, ou, nas palavras de Balladore-Pallieri, “uma avaliação moral ou política (ou, de toda forma, extrajurídica) pela qual se julga a ordem jurídica e se considera que é digna de ser conservada e fortalecida, ainda que à custa de sua eventual violação” (apud Ibid., p. 47). Outros juristas ainda recorreram a um conceito típico da dogmática jurídica: a lacuna do direito. O estado de exceção seria justamente uma situação não prevista no ordenamento, o que obrigaria a autoridade competente a supri-la. No caso, porém, quem o faria seria o Poder Executivo, e não o Judiciário, pois a lacuna seria do ordenamento como um todo, e não de uma lei singular. Ocorre que o estado de exceção não surge na falta de uma norma; a norma existe. O que se quer é que ela não seja aplicada, que seja suspensa, para que continue existindo. O que demonstra que a localização da exceção é bem mais complexa do que a dicotomia topológica “dentro ou fora”: A lacuna não é interna à lei, mas diz respeito à sua relação com a realidade, à 34 A teoria de Santi Romano encontra vários ecos em Carl Schmitt, e sua defesa da necessidade como origem da ordem jurídica é bastante similar à decisão soberana schmittiana. Agamben destaca, porém, que enquanto Romano negava relevância ao conceito de poder constituinte, identificando Estado e Direito, Schmitt defendia que ambos são independentes (através da dupla conceitual decisão e norma), e que o estado de exceção, em sua figura extrema, torna-se poder constituinte (a ditadura soberana de Da Ditadura). Cf. AGAMBEN, 2007, p. 4748)

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possibilidade mesma de sua aplicação. É como se o direito contivesse uma fratura essencial entre o estabelecimento da norma e sua aplicação e que, em caso extremo, só pudesse ser preenchida pelo estado de exceção, ou seja, criando-se uma área onde essa aplicação é suspensa, mas onde a lei, enquanto tal, permanece em vigor. (Ibid., p. 48-49)

O estado de exceção se baseia na suspensão, total ou parcial, do ordenamento: é uma anomia, e como tal não pode estar dentro do direito. Mas ele também não é uma situação de fato, pois não é uma situação irrelevante ou imprevista: a norma que deveria regulá-la está lá, mas suspensa. A exceção se localiza, portanto, em uma zona de indiferença, em que direito e fato não se excluem, mas se indeterminam (Ibid., p. 39). Daí o interesse de Agamben no primeiro autor a perceber essa topografia limítrofe do fenômeno, Carl Schmitt, já demonstrado anos antes, no livro Homo sacer. Nesta obra, o autor inicia seu estudo com a definição dada à exceção em Teologia Política, como o campo em que age o poder soberano para criar a “normalidade” que garante à lei a possibilidade de vigorar. Age de forma paradoxal, como um “fora da lei legal”. Tal campo representa, de fato, o fim e o princípio do próprio ordenamento jurídico (AGAMBEN, 2002, p. 22). Aqui podemos, afinal, apresentar a definição agambeniana para a exceção: A exceção é uma espécie da exclusão. Ela é um caso singular, que é excluído da norma geral. Mas o que caracteriza propriamente a exceção é que aquilo que é excluído não está, por causa disto, absolutamente fora de relação com a norma, ao contrário, esta se mantém em relação com aquela na forma da suspensão. A norma se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-se desta. O estado de exceção não é, portanto, o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta de sua suspensão. Neste sentido, a exceção é verdadeiramente, segundo o étimo, capturada fora (ex-capere) e não simplesmente excluída. (Ibid., p. 25, grifos no original)

Não se trata nem do que podemos chamar de “exceção comum”35, nem da normatização através da interdição ou do internamento (como ocorre na interdição civil ou no internamento penal), casos em que uma norma é substituída por outra: o que está fora, aqui, é incluído através da suspensão do próprio ordenamento, o qual abandona a exceção. É a regra que foge da exceção, não esta que se subtrai àquela. Mas tal abandono não equivale à indiferença total: a norma, nesse caso, se constitui como tal apenas através da própria suspensão, e não da normatização: “somente deste modo se constitui como regra, mantendo-se em relação com aquela [exceção]” (Ibid., p. 26). Nesta situação, em que forma e aplicabilidade são cindidas, não

35 Denominamos assim os casos em que uma regra do ordenamento que em tese deveria se aplicar a um dado conjunto de situações cede a regulação de um ou mais casos específicos para outra norma jurídica. Exemplo: o art. 150, III, b, da Constituição veda a cobrança de tributos no mesmo exercício financeiro em que for publicada a lei que os instituiu ou majorou. Mas tal comando, a princípio geral, é excepcionado pelo parágrafo 1º do mesmo artigo, que afasta a vedação para um certo conjunto de tributos. Na prática, tal exceção não traz maiores dificuldades, a não ser a de localização, pois nem sempre ela se encontra no mesmo dispositivo da previsão geral, ou na mesma lei.

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existe uma força de lei, mas uma força “de lei”: enquanto as leis normais estão em vigor, mas sem aplicação prática, atos que não tem status de lei são plenamente aplicáveis. A força “de lei” garante aplicabilidade ao que não é lei e mantém em vigor uma lei sem aplicação. Na prática, ela aparece como uma potência pura, de fundo até místico, cuja posse é reivindicada por quem deseja demonstrar possuir o poder soberano36 37 (Ibid., p. 28; Id., 2002, p. 61). A norma jurídica, como Schmitt notara, não se aplica ao caos: “este deve ser incluído no ordenamento através da criação de uma zona de indiferença entre externo e interno, caos e situação normal, o estado de exceção” (Id, 2002, p. 27). O que a exceção revela é que o caráter normativo do direito não se deve ao fato das normas jurídicas prescreverem e comandarem, pois, na relação entre o geral e o particular, não se opera uma subsunção lógica. O fato da norma jurídica existir não garante sua aplicação. Entre o enunciado geral dotado de um referente puramente virtual e a realidade concreta, é necessário um “processo” pelo qual um ou mais sujeitos, institucionalmente dotados de poderes para tanto, assumam a norma dada e a apliquem (Ibid., p. 33; Id., 2007, p. 62). Uma mediação humana é necessária, como Schmitt também já percebera, e filósofos como Gadamer também notariam, anos depois (Ibid, p. 62) 38. O estado de exceção, para Agamben, é aquele extremo que opera essa abertura de espaço entre a norma e sua aplicação, colocando em ação uma força “de lei” pura para realizar uma norma cuja aplicação foi suspensa, justamente porque constituir o próprio âmbito de incidência da norma não é uma tarefa lógica (Ibid., p. 63). Até aqui, o leitor mais atento pode concordar com os críticos e enxergar em Agamben um mero atualizador do decisionismo de Schmitt. Embora muito mais metafísica do que a conceituação schmittiana, a definição de “(estado de) exceção” do filósofo italiano não esconde se originar daquela. É a partir do “trabalho arqueológico” (no sentido foucaultiano do termo) das figuras antepassadas do estado de exceção moderno – e sua relação com a biopolítica – que 36 O uso da expressão “força de lei” na modernidade não surgiu para caracterizar a lei, mas os decretos ou atos equivalentes promulgados pelo Poder Executivo quando este assume para si poderes legislativos. Tal prática é particularmente evidente sob estados de exceção autoritários, mas tem larga aplicação nos Estados de direito atuais, onde, como já visto, o Poder Legislativo perdeu relevância. O Brasil possui exemplos de ambos os momentos: na ditadura militar, os Atos Institucionais não passavam pelo crivo legislativo, mas tinham força superior inclusive à Constituição; sob o regime da Constituição de 1988, as medidas provisórias emanam do Executivo mas possuem “força de lei” tão logo sejam publicadas, conforme consta da literalidade do art. 62 da Constituição. Cf. Ibid., p. 60. 37 Agamben compara o direito à linguagem: uma dada palavra somente adquire o poder de denotar uma parcela da realidade, dentro de um ato discursivo, se já tiver, previamente (ou seja, quando nada denota), sentido. A relação entre a palavra pura, no sentido lexical, e a palavra aplicada ao discurso concreto é equivalente à relação entre a validade da norma jurídica e sua aplicação ao caso concreto: uma independe da outra. Cf. AGAMBEN, 2002, p. 28. 38 Esta constatação, aliás, está na origem da mais moderna concepção de hermenêutica jurídica e na sua diferenciação entre “texto” e “norma jurídica” No direito brasileiro, um dos principais expoentes dessa hermenêutica é Humberto Ávila. Cf. ÁVILA, 2009. em especial p. 30-35.

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Agamben demonstra e denuncia as contradições de Schmitt. A primeira figura semelhante encontrada na história é o iustitium: uma vez declarado o tumultus, isto é, uma situação de emergência causada por algum conflito militar interno ou externo, o Senado da Roma Antiga emitia um senatus consultum ultimum por meio do qual pedia aos cônsules ou seus substitutos; aos pretores e aos tribunos da plebe, em alguns casos; e, no limite, a todo cidadão, que “tomasse qualquer medida considerada necessária para a salvação do Estado” (Ibid., p. 67). O iustitium, porém, não implicava na assunção, por parte desses sujeitos, de plenos poderes – esse era o modelo da ditadura romana, e somente o ditador escolhido pelos cônsules recebia tais superpoderes. Ele consistia na suspensão de todo o direito romano: nas palavras de um estudioso, Adolphe Nissen, “nenhum cidadão romano, seja ele magistrado ou um simples particular, agora tem poderes ou deveres” (apud Ibid., p. 72). O “poder ilimitado” do iustitium, que Agamben também detecta no estado de exceção moderno, não era oriundo de um modelo ditatorial, em que todos os poderes são confiados a um único sujeito; ele surge do contrário, da criação de um vazio jurídico, no qual todas as determinações jurídicas simplesmente cessam de valer, e todos, no limite, possuem plenos poderes e, ao mesmo tempo, não possuem nada. A confusão entre ambos avançou os séculos e marcou as obras de todos os juristas que pensaram na existência de ditaduras “constitucionais” e “inconstitucionais” - como o Schmitt de Da Ditadura. Os regimes totalitários do século XX, sintomaticamente, não tiveram essa dúvida (Ibid., p. 74-76) 39. Não é à toa que os próprios romanos simplesmente não sabiam quais as consequências jurídicas dos atos cometidos nesse período. Para Agamben, isso se deveu a um erro na questão: não havia como analisar os atos do iustitium pelo critério jurídico, exatamente por se tratar de um vazio de direito. Logo, o estado de exceção não é uma mera ditadura (no sentido de que não necessariamente assumirá essa forma, podendo aparecer em uma democracia), nem uma figura que possa ser localizada no direito – seja na forma do estado de necessidade, na atribuição de plenos poderes emergenciais, ou inscrevendo a exceção num patamar fora da norma, mas dentro da ordem jurídica (Ibid., p. 78-79). Aqui Agamben nega explicitamente Schmitt. Para este, a exceção fugia à norma, mas continuava presa no horizonte da decisão soberana, a qual formava, com a norma, toda a ordem jurídica. Por mais que falasse no rompimento do mecanismo enferrujado da lei pela vida, Carl Schmitt não concebia uma realidade além do direito, apenas 39 Agamben destaca que tanto Hitler como Mussolini não podem ser considerados meros ditadores: chegaram ao poder por vias ordinárias, criaram para si postos totalmente estranhos à estrutura político-adminstrativa normal (Führer, Il Duce), e seus regimes nunca revogaram as constituições vigentes. A estratégia totalitária foi criar um “Estado dual”: uma estrutura-gêmea, igual à estatal, mas absolutamente informal e parajurídica, que, na prática, assumia todas as funções do Estado, mas não as destruía, mantendo um governo aparente e um governo real, o qual não era regulado por lei formal alguma – operando em um vazio de direito, portanto. Sobre a estrutura dual construída por nazistas e stalinistas, cf. ARENDT, 2013, p. 431 e ss.

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além da norma. Agamben denuncia tal pensamento – parte de uma estratégia maior, de ampla aceitação no mundo jurídico, na qual tudo que não possa ser encaixado no sistema fechado do direito necessariamente está fora (VIEIRA, 2012, p. 129) – como indicativo da essencialidade que o espaço vazio de direito tem para o próprio direito. No estado de exceção não há direito, suspenso, mas apenas a força “de lei”, a ser apropriada por algum sujeito que, assim, se tornará “o poder soberano”. Ele é a forma extrema pela qual o direito tenta capturar o que lhe é exterior (AGAMBEN, 2007, p. 80). Dessa forma, a relação estado de exceção – soberania também deve ser redefinida. Schmitt via o primeiro como o evento que revela o soberano todo-poderoso, tal como o milagre revela Deus e seus poderes ilimitados. Agamben, a partir da crítica de Walter Benjamin40, transforma o milagre em “catástrofe” (Ibid., p. 88): a decisão soberana nunca conseguirá preencher em definitivo o vazio entre norma e realização, entre o poder e seu exercício. A indeterminação entre direito e anomia, aqui, é absoluta (Ibid., p. 88-89). O último ataque de Agamben contra Schmitt também se baseia em Benjamin, dessa vez na sua famosa Oitava Tese sobre o Conceito de História, de 1940, na qual o filósofo, tendo diante de si o próprio Terceiro Reich como exemplo, afirmara que “A tradição dos oprimidos nos ensina que o 'estado de exceção em que vivemos é na verdade a regra geral' .” (BENJAMIN, 1985, p. 219). Ora, o nazismo instaurara o estado de exceção, mas não substituíra a decisão política fundamental de Weimar por outra. O estado de exceção permanente não criava uma nova unidade política, mas mantinha tudo numa mesma zona de indecidibilidade – o que é norma (chamemos “ato de lei”), e o que é exceção (“ato de força”, em outros termos, violência)? Norma e exceção se confundem e devoram-se no estado de exceção permanente, destruindo a ficção de que existe um elo necessário entre violência e direito: no estado de exceção permanente, só há uma potência sem mediação, a qual o direito, impotente, tenta absorver qualificando-a como uma fictícia força “de lei” (AGAMBEN, 2007, p. 92)41. Quando o poder soberano não opera com a lei, como toda a tradição da filosofia e da política sempre indicaram, opera com a violência (Id., 2002, p. 37-38). A oposição entre Schmitt e Benjamin – que é a oposição entre Schmitt e Agamben – afinal, pode ser traduzida na relação, que o estado de exceção explicita, entre violência e direito: o primeiro tenta desesperadamente reinserir a violência no sistema jurídico 40 O autor propõe que Teologia Política seja uma resposta de Schmitt ao ensaio de Benjamin Crítica da violência: crítica do poder, também de 1921, e no qual Benjamin busca romper a associação entre violência e direito contida no estabelecimento e na manutenção do direito, e liberar uma “violência pura”, ou “divina”, absolutamente livre do direito. A teoria da soberania de Schmitt buscaria prender a violência no direito. Crítica da violência é sem dúvida um dos ensaios mais difíceis de Benjamin, motivo pelo qual remetemos para autores que tentaram interpretá-lo: AGAMBEN, 2007, p. 83 e ss.; BERNSTEIN, 2013, p. 62 e ss. 41 O efeito do estado de exceção permanente era exatamente o que Hitler desejava, segundo Agamben (AGAMBEN, 2007, p. 91), aqui provavelmente inspirado em Hannah Arendt. Cf. nota 30, acima.

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através da exceção; o(s) segundo(s) denuncia(m) a existência de uma necessária fratura entre eles, denúncia esta que tem como alvo não apenas o fundamento por trás de um determinado regime político autoritário, ou de um estado constitucional de crise, mas do próprio Direito. O estado de exceção é a origem oculta do próprio Estado de Direito, enquanto articulação entre um enunciado normativo e a realidade pelo poder soberano com base em uma violência mascarada de lei (NETO, 2010: p. 143) – a qual, num horizonte biopolítico, somente pode ter como alvo a ser submetido o próprio mundo da vida natural. O estado de exceção, como mecanismo-limite de articulação entre vida e direito, somente pode produzir um tipo de sujeito, o “capturado fora”, o abandonado, o qual, mesmo não possuindo direito algum, está mais do que qualquer outro à disposição do poder soberano, não sendo indiferente a esse. O trabalho arqueológico de Giorgio Agamben volta mais uma vez à Roma Antiga e nela encontra a enigmática figura do homo sacer (“homem sacro”). Ele era uma pura contradição: uma pessoa declarada sagrada, mas sujeita à morte por qualquer um, sem que sua eliminação fosse considerada sacrifício ou homicídio (AGAMBEN, 2002, p. 80). Como a morte de uma pessoa sagrada não tornava seu executor nem um homicida, nem um sacrílego? Agamben considera essa contradição apenas aparente. O homo sacer estava aquém do direito dos homens e do direito dos deuses. Estava submetido a uma violência pura, revelada por uma dupla retirada tanto da lei divina como da lei humana – uma dúplice exceção, cuja estrutura é igual à decisão soberana que retira o vivente do mundo natural sem inseri-lo no mundo jurídico (Ibid. p. 89). Tanto o soberano (o “fora-da-lei legal”) como o homo sacer pertencem a uma mesma esfera – limite do agir humano, mantida unicamente através de uma relação de exceção, sendo, assim, figuras simétricas. Logo, “soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera” (Ibid., p. 91). A sacralidade se torna o único elo que ainda prende o homo sacer ao mundo dos homens e dos deuses. A vida sacra, longe de significar que a vida é um bem inviolável e intocável, é uma vida nua: o sujeito é abandonado ao puro poder da violência de Deus ou do seu equivalente terreno, o soberano, poder este que, na prática, opera uma decisão acerca do limiar a partir do qual a vida cessa de ser politicamente relevante, e se torna “indigna de ser vivida” - uma biopolítica que é, ao mesmo tempo, uma tanatopolítica, uma política sobre quem serão as vidas mortas (Ibid. p. 142). Em outros termos, o núcleo originário do poder soberano – a relação política originária (Ibid., p. 116) – é a sua capacidade de produzir esse corpo biopolítico (Ibid., p. 14), e o local em que ele consegue capturar a vida nua é o estado de exceção. Portanto, o que é o estado de exceção para Giorgio Agamben? É o poder do soberano de

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suspender o ordenamento jurídico, criando uma zona vazia de direito, onde jurídico e nãojurídico se misturam em uma indiscernibilidade tal em que a lei, por mais “fundamental” que pretenda ser, é substituída por puras decisões soberanas. Como tal fenômeno, por si só, é inapreensível pelo direito, que se pretende universalmente regulador, para que este não acabe sendo aniquilado por completo no estado de exceção é necessário “incluir pela exclusão”: criar a ficção de que tais decisões possuem uma potência ligada à lei, mas sem serem leis – o que Agamben chama de força “de lei”, mero mito que encobre o fato de que, numa zona sem direito, o que sustenta o poder soberano é a força, a violência. Nessa zona de indiscernibilidade, não há cidadãos, nem viventes: há vidas nuas, corpos sobre os quais o poder soberano pode atuar diretamente, sem qualquer mediação da norma, configurando uma relação não de pertencimento (que pressupõe a inclusão total em uma ordem político-jurídica, a bios dos gregos antigos), nem de indiferença (que pressupõe a exclusão total, e que corresponderia à zoé segundo os gregos), mas de abandono42 (a inclusão para excluir, a captura fora, através de um limiar espaço-temporal em que dentro e fora se misturam, permitindo que seus limites sejam redefinidos). Exatamente por se constituir em uma zona sem direito, e não na concentração de poderes ilimitados na figura do soberano, o estado de exceção é um fenômeno que não se reduz a tipificações. Pode surgir tanto em ditaduras, caracterizadas de fato pela ampliação dos poderes do Executivo de forma considerada ilegítima; como em estados constitucionais de emergência, nos quais se considera a Constituição em perigo e, para protegê-la, se torna necessária sua suspensão – e todas as medidas tomadas nesse regime se pretendem com força “de lei” exatamente pela relação que ainda pretendem manter com a lei suspensa; mas também pode aparecer em quaisquer regimes democráticos, a qualquer tempo, sob os mais diferentes pretextos, nomes e formas legais. E isso se dá exatamente porque a exceção soberana, para Agamben, não é um fenômeno estranho e oposto ao direito. Ela revela, como vimos acima, o verdadeiro mecanismo fundamental do Estado biopolítico, muito anterior às Revoluções Burguesas e aos institutos jurídicos ligados ao estado de exceção. O Estado em si não se funda na “vontade geral da nação”, em um acordo prévio entre indivíduos livres e conscientes criando-se uma comunidade de sujeitos com direitos e deveres – ideia na qual toda a tradição liberal se apoia, e o mito do contrato social do jusnaturalismo ainda hoje está implícito no constitucionalismo (NETO, 2010, 42 “A relação de abandono é, de fato, tão ambígua, que nada é mais difícil do que desligar-se dela. O bando é essencialmente o poder de remeter algo a si mesmo, ou seja, o poder de manter-se em relação com um irrelato pressuposto. O que foi posto em bando é remetido à própria separação e, juntamente, entregue à mercê de quem o abandona, ao mesmo tempo excluso e incluso, dispensado e, simultaneamente, capturado.” (AGAMBEN, 2002, p. 116, grifos no original)

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p. 134) –, e sim na necessária produção de um pressuposto que dê à norma a aplicação que ela, sozinha, não pode ter. Quem opera essa “realização” - no sentido literal, de tornar real o comando normativo – é o poder soberano, através da produção de corpos sobre os quais pode projetar diretamente sua força. No limite, ele precisará do estado de exceção para recomeçar esse processo, recriando uma zona de indiscernibilidade que lhe permitirá retraçar o limite entre jurídico e não-jurídico, entre a vida relevante para o direito e a política e a vida que não o é. Tem sido argutamente observado que o estado não se funda sobre um liame social, do qual seria expressão, mas sobre a sua dissolução (déliaison), que veta (Badiou, 1988, p. 125). Podemos agora dar um sentido ulterior a esta tese. A déliaison não deve ser entendida como a dissolução de um vínculo preexistente (que poderia ter a forma de um pacto ou contrato); sobretudo o vínculo tem ele mesmo originariamente a forma de uma dissolução ou de uma exceção, na qual o que é capturado é, ao mesmo tempo, excluído, e a vida humana se politiza somente através do abandono a um poder incondicionado de morte. Mais originário que o vínculo da norma positiva ou do pacto social é o vínculo soberano, que é, porém, na verdade somente uma dissolução; e aquilo que esta dissolução implica e produz – a vida nua, que habita a terra de ninguém entre a casa e a cidade – é, do ponto de vista da soberania, o elemento político originário. (AGAMBEN, 2002, p. 98)

Daí que Agamben acusa a presença do estado de exceção seja nos piores regimes totalitários, seja nos regimes democráticos considerados mais antigos e estáveis. Todos eles têm em comum o fato de pertencerem a um mesmo contexto, em que a política se converteu por completo em biopolítica; no qual o cuidado, o controle e o usufruto da vida se tornaram seu problema principal. A partir desse momento, a questão central da política moderna consiste em decidir qual forma de organização desses corpos é a melhor, “a mais justa”, “a mais necessária”, etc. As dicotomias tradicionais da política ocidental, como direita e esquerda, democracia e autoritarismo, público e privado, etc., perdem toda a clareza e inteligibilidade quando seu referente fundamental, a vida nua, é revelado, entrando numa zona de indeterminação que a atual fase da história mundial parece demonstrar à perfeição (Ibid., p. 128). Enquanto o Estado, o poder soberano, operar segundo o mecanismo da biopolítica, sempre haverá a vida nua. Enquanto o Estado Moderno possuir como função principal a produção de corpos sobre os quais poderá incidir todo o seu poder, sempre haverá um “resíduo” derivado da escolha, sempre haverá uma decisão sobre a vida indigna de ser vivida, a vida despossuída de direitos cujo homicídio não constituirá crime ou sacrifício, a vida nua. A figura do homo sacer romano sempre reaparecerá na História enquanto essa estrutura permanecer, mudando apenas a forma com que os mesmos são organizados. O judeu no campo de concentração nazista foi a figura por excelência do homo sacer moderno, mas muitas outras semelhantes surgiram: o refugiado à margem dos Estados-Nação de todos os tempos (sendo o

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caso palestino apenas o mais grave da atualidade), o apátrida, o imigrante ilegal e o suspeito de terrorismo nos EUA, o morador das favelas e o presidiário no Brasil, dentre muitos outros dos comumente reunidos na categoria de “excluídos”, podem ser considerados homo sacer: estão todos incluídos no direito apenas pela forma da exclusão. A relação deles para com o Estado é a de bando, de abandonados, vidas nuas expostas unicamente à violência estatal, sujeitos que não possuem “direito a ter direitos”, viventes expostos a um puro poder de morte (NETO, 2010, p. 139). Falta-nos responder apenas a uma pergunta: se a biopolítica, afinal, é um traço característico do poder soberano desde muito antes da Idade Moderna, como Agamben defende, qual a verdadeira novidade trazida pela atualidade? Para o autor, reside justamente na reunião dos dois campos articulados pelo estado de exceção na origem do direito: vida e política. Ao longo da história, sempre houve uma separação conceitual, temporal e subjetiva entre ambos que permitiram o funcionamento de tal dialética, ainda que apoiada sobre o mito da força “de lei”. Tudo muda quando a vida deixa de ser apenas objeto da política e se torna seu próprio sujeito, através das figuras modernas dos direitos humanos, do Estado-Nação e da soberania popular. A estratégia daquilo que Agamben chama de “democracia moderna” não é abolir a vida nua, ou sacra, mas fazer dela justamente a aposta em jogo do próprio conflito político, na figura do indivíduo como portador de direitos inatos e “sujeito soberano” (AGAMBEN, 2002, p. 130)43. A democracia como governo do povo, o constitucionalismo como garantidor de direitos humanos, a soberania popular como submissão do Estado à vontade dos indivíduos, todos estes fenômenos politizam a vida, transformam-na em objeto e fundamento da soberania estatal. Uma vez que a impolítica vida natural, convertida em fundamento da soberania, ultrapassa os muros do oícos e penetra sempre mais profundamente na cidade, ela se transforma ao mesmo tempo em uma linha em movimento que deve ser incessantemente redesenhada (Ibid., p. 138).

O Estado-Nação moderno é justamente a figura que procurou inscrever a vida natural na ordem jurídico-política na forma de fundamento do poder soberano, ao proclamar que os homens, ao nascerem, se tornam portadores de direitos, os quais devem ser conservados pelo Estado, cuja soberania, afinal, só pode emanar do conjunto de indivíduos, a Nação 44. O Estado 43 Agamben defende que o primeiro documento jurídico a inscrever a vida nua como novo sujeito político foi o Habeas Corpus Act de 1679. A proteção por ele instituída não era nem sobre o súdito feudal nem sobre o cidadão – cujo conceito só apareceria mais de 100 anos depois – mas sobre o corpus. O uso da palavra “corpo” não esteve presente em nenhum documento anterior semelhante – a Magna Carta de 1215 falava em “homens livres”; um antigo writ que versava sobre a presença do imputado em um processo falava em homine replegiando. O corpus protegido pelo habeas corpus não é um sujeito de direitos; é a vida nua, reivindicada como novo sujeito da política. Cf. Ibid, p. 129-130. 44 Esta é a interpretação de Agamben para os três primeiros artigos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Cf. Ibid., p; 134-135.

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moderno coloca o fato natural do nascimento na base da concepção político-jurídica de Nação; a vida como origem e fundamento da soberania. Porém, quando o Estado-Nação entra em crise, no início do século XX, o nexo nascimento – nacionalidade perde o automatismo e o poder de autorregulação. A díade “direitos do homem” e “direitos do cidadão” perde a conexão que fazia dos primeiros pressupostos dos segundos, pondo a nu a total impossibilidade (e incapacidade) de se protegerem os direitos humanos quando seus sujeitos por excelência – os não-cidadãos, expulsos do Estado sem serem cidadãos de nenhum outro – estão justamente à margem do Estado-Nação e de seu aparato protetivo (mas ainda sob o poder de seu aparato coercitivo). A partir de então, a necessidade de se redesenhar a linha que separa, em seu interior, a vida considerada autêntica e a vida nua sem valor político passa a se apresentar como uma questão que sempre volta à tona, e precisa ser continuamente recolocada na mesa pelo poder soberano (Ibid., p. 139). Este é o sentido que Agamben atribui à assertiva de Walter Benjamin, já nos anos 1920, de que o estado de exceção se tornou a regra. E, como regra, ele necessariamente leva o aspecto normativo do direito à aniquilação prática, substituído por uma violência governamental que pode desprezar qualquer direito nacional ou internacional em suas decisões acerca de qual vida merece ser incluída e qual deve ser deixada ao relento de um poder de morte, ao mesmo tempo em que afirma estar dentro da legalidade – uma falsa legalidade. O sistema jurídicopolítico nos moldes da tradição ocidental, sob um estado de exceção permanente, transforma-se em uma máquina letal (AGAMBEN, 2007, p. 130-131).

3.2 A teoria aplicada à hipótese Retomemos, uma vez mais, a hipótese formulada na introdução deste trabalho: se levamos a sério que o constitucionalismo democrático se baseia, fundamentalmente, na limitação do poder; na garantia dos direitos humanos fundamentais; e na legitimidade democrática, a análise a posteriori dos atos praticados sob estado de exceção precisará submetê-los aos ditames constitucionais e democráticos, sob pena da exceção se sobrepor a estes inclusive nos tempos de normalidade. A teoria agambeniana do estado de exceção se compatibiliza com a hipótese aqui proposta? De pronto, devemos reconhecer que, se a comparação entre a teoria proposta por Carl Schmitt e a nossa hipótese nos levou a uma inequívoca resposta negativa, aqui a questão é mais complexa. Quando falamos em constitucionalismo, nós indiscutivelmente estamos falando de uma ordem jurídica. A junção ao termo do adjetivo “democrático” não muda tal fato, pois este pode até politizá-lo, através, por exemplo, do problema da legitimidade, mas não retira o conteúdo eminentemente jurídico de toda constituição. Quando Agamben define estado de exceção como

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um vazio de direito, uma zona de anomia na qual o poder soberano pode delimitar livremente quais vidas serão submetidas ao direito e quais ficarão à margem do ordenamento, sob um puro poder de morte, ele afirma, peremptoriamente, que os atos praticados durante sua vigência acabam por escapar a qualquer definição jurídica. Se o ordenamento jurídico, especificamente na figura da Constituição, é suspenso, todas as determinações jurídicas restam desativadas. O ato praticado durante o estado de exceção não pode ser considerado contra a lei, nem segundo a lei, nem mesmo criador de lei nova. A definição de sua natureza foge por completo ao âmbito normativo (Ibid., p. 78). Tal natureza necessariamente contamina eventuais análises posteriores dos referidos atos. Agamben relembra que os antigos romanos simplesmente não sabiam quais as consequências jurídicas dos atos praticados durante o iustitium, especialmente quando, em nome da preservação da República, assassinavam-se aqueles considerados como seus inimigos (Ibid., p. 77). Para o autor, a única possibilidade de se superar tais aporias é reconhecendo a indeterminação jurídica de atos praticados em um vazio de direito. Isso não significa que, a posteriori, tais atos não possam ser apreciados; tal apreciação, porém, nunca poderá ser baseada no direito: “dependerá das circunstâncias” (Ibid, p. 78). Ou seja, submeter a exceção ao constitucionalismo ou não é eminentemente uma questão circunstancial, não-jurídica – mesmo que se tente dar a ela uma roupagem jurídica. Em outras palavras, uma escolha política, no sentido ordinário do termo. Não há dúvidas, por tudo que foi exposto, que Agamben, ao contrário de Carl Schmitt, não é um apologista do estado de exceção, nem está preocupado em apenas descrevê-lo tecnicamente. Sua obra é claramente crítica do estado de exceção enquanto instrumento de captura da vida e criação de corpos biopolíticos. Sua denúncia é forte e amparada em exemplos concretos e atuais. É quase certo que, no caso de se apresentar a possibilidade de punição de agentes perpetradores de violações contra os direitos humanos durante períodos caracterizados pela suspensão das normas constitucionais e pela vigência de um poder violento que se pretende legal, Agamben se colocará a favor de tais punições. Isso não significa, porém, que seu pensamento se resuma a uma defesa do Estado de Direito contra o crescente fortalecimento do vigilantismo e do Estado Policial em detrimento dos direitos fundamentais que marca a atualidade e caracteriza o estado de exceção permanente dos regimes democráticos, ou mesmo a uma defesa da ampliação dos direitos humanos às “vidas nuas” produzidas pelos diversos mecanismos de exceção estabelecidos na atualidade (NETO, 2014, p. 5). Tais interpretações do pensamento de Agamben podem ser consideradas como as mais adotadas pelos operadores do direito atuais, que veem no italiano a figura do garantista radical,

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como seu compatriota Luigi Ferrajoli. Moysés Pinto Neto situa tais interpretações como ideologicamente localizadas no espectro do liberalismo político, o qual considera como dominante nas disciplinas de filosofia política e do direito atuais. Sua principal característica reside não na defesa do liberalismo econômico ou mesmo do liberalismo clássico (a aceitação de tais dogmas varia enormemente entre as diversas correntes), mas sim no reformismo: a fuga de críticas que coloquem em questão o Estado e o capitalismo, e a defesa de reformas pontuais no interior das instituições politicas existentes (Ibid., p. 5). Parte-se, portanto, do pressuposto de que não há problemas no fundamento das instituições; e sim no seu funcionamento, que precisa ser corrigido, aperfeiçoado. O que Giorgio Agamben questiona em suas obras, como vimos, é justamente o fundamento que embasa todas as grandes categorias políticas da atualidade: o Estado, a soberania, a democracia, os direitos humanos, o próprio direito. A tradição político-filosófica à qual se filia Agamben não é a liberal, ou reformista. Como indicam suas principais influências – Benjamim, Foucault e, em menor medida, Arendt –, sua obra ataca, dentre outras coisas, exatamente o liberalismo, por empobrecer a política enquanto desconstrução e reconstrução das diferentes instituições que regem a vida social (Ibid., p. 6). Ou, em outras palavras, por não conseguir questionar o fundamento biopolítico que rege absolutamente todas as formas que o poder soberano tem adotado nos últimos séculos – seja autoritarismo ou democracia; comunismo ou capitalismo, etc. A colocação da vida biológica no centro das atenções do poder estatal foi considerada por pensadores como Foucault e Arendt como a marca do Estado moderno. Agamben o estende a toda a história do poder soberano, e atribui à modernidade apenas a sua radicalização, na qual constitucionalismo e democracia tem um papel central – e que traz à tona a resposta para o atual quadro de aparente enfraquecimento de ambos logo após terem sido proclamados vitoriosos na grande guerra ideológica do século. A radicalização do processo biopolítico de controle de corpos se deu quando vida nua e política, integradas pelo estado de exceção que transforma a primeira em objeto da segunda, se misturaram e transformaram-se em um só complexo: a vida nua como sujeito-objeto da política. Quando Agamben defende que a aposta da “democracia moderna” não foi romper o nexo artificial estabelecido entre vida e política, mas sim reivindicar e expor o “corpo” como ponto central de sua luta (AGAMBEN, 2002, p. 129-130), ele, na verdade, está falando do que aqui denominamos constitucionalismo democrático – em especial dos conceitos nele inseridos de soberania popular e direitos humanos. A soberania popular deposita no conjunto de indivíduos o poder soberano. Visto de outro ângulo, somente com a concordância do indivíduo pode uma

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ordem legitimamente se impor sobre ele. O indivíduo, assim, torna-se um “sujeito soberano” uma expressão cuja ambiguidade Agamben não deixou de notar, uma vez que “sujeito” é quem está embaixo, e “soberano” é quem está em cima – o qual se torna portador de direitos inatos à sua pessoa, os quais somente podem advir de sua condição soberana. Ocorre que, para constituirse como “sujeito soberano”, este somente poderá repetir a exceção soberana e isolar em si mesmo o corpus, a vida nua, e dela originar toda a ordem jurídica: “Esta é a força e, ao mesmo tempo, a íntima contradição da democracia moderna: ela não faz abolir a vida sacra, mas a despedaça e dissemina em cada corpo individual, fazendo dela a aposta em jogo do conflito político.” (Ibid., p. 130). Os direitos humanos seguem essa mesma estratégia. Nas declarações de direitos editadas a partir de 1789, formou-se um liame necessário entre o fato natural do nascimento e o “sujeitosoberano” que forma a base do novo Estado-Nação. O que tais processos revelam é que o fundamento real do Estado não é a reunião de sujeitos políticos livres e conscientes para formalizar algum tipo de acordo constitutivo de uma entidade política, mas sim a vida nua no mero nascimento, do qual brotaria a nação de imediato, sem resíduos. Quando as lutas políticas e ideológicas dos séculos XIX e XX buscam reformular tal nexo, incluindo critérios raciais e históricos, por exemplo, a ficção acaba, e entre nascimento e cidadania, entre direitos do homem e direitos do cidadão, abre-se um abismo que obriga o Estado atual a ter que reassumir uma tarefa que deveria ter se esgotado no momento de sua fundação: redefinir a linha que separa a vida politicamente relevante e o resto. E, aqui, a “sacralidade” atribuída aos direitos humanos fundamentais se revela em toda sua ambiguidade – se eles assim o são, não é por serem “lógicos” ou por uma qualidade intrínseca, mas sim porque um poder soberano os reconheceu e delimitou – e sua incapacidade de lidar com situações-limites como a do homo sacer e suas figuras modernas – o humano à margem do Estado e da lei, que deveria poder exercitar seus direitos humanos, mas que não o pode, exatamente pela ausência do aparato estatal (VIEIRA, 2012, p. 119). Tudo isso nós já vimos mais acima. O que importa reforçar é que, para Agamben, o nosso referencial teórico, o constitucionalismo democrático, embora sem dúvida preferível ao totalitarismo, e cujas qualidades e dificuldades merecem ser valorizadas (AGAMBEN, 2002, p. 17), não consegue superar as aporias derivadas do fato de que ele não rompe com a biopolítica, antes a reforça. Ao fazer isso, ele assume a condução de um processo que necessariamente produzirá vidas nuas. A vida nua não é um defeito da biopolítica; ela é o resíduo que obrigatoriamente sobrará quando o poder soberano de um Estado decide qual a vida que lhe importará e qual a que não. Por mais que a politização da vida tenha se imposto como uma

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realidade no direito atual – que já não se limita a permanecer regulando a esfera pública, mas invade a esfera privada, através, por exemplo, do direito de família, de regulamentações relativas à saúde dos indivíduos, como leis antitabagismo, e da própria coleta estatística e periódica de dados sobre natalidade, mortalidade, longevidade populacional, etc. –, não há como absorvê-la de forma que não sobrem resíduos. Se a lei define, por exemplo, quem é cidadão, automaticamente decide que aqueles que não se encaixam em tal categoria não o são; o que não significa que serão indiferentes ao Estado: como a questão dos imigrantes ilegais demonstra em vários países do mundo, será sobre estes que o poder do Estado recairá com mais força (NETO, 2010, p. 147). Por mais emancipatório que o constitucionalismo democrático tenha sido – e por mais que ainda seja reivindicado por aqueles que lutam pelo seu aprofundamento, ou, em nossos termos, para que seja “levado a sério” - o que Agamben procura demonstrar é que a cada luta política em que os atores reais arrancam dos poderes constituídos algum tipo de conquista, estas também implicam em algum tipo de concessão a esses mesmos poderes (VIEIRA, 2012, p. 124). Cada liberdade, cada espaço, cada direito conquistado pelos indivíduos em face do Estado abre a este uma nova possibilidade de se inserir em suas vidas, abrindo ao poder soberano novas instâncias nas quais possa agir para regular os corpos viventes, mantendo, assim, a lógica da biopolítica (AGAMBEN, 2002, p 127). Tal contradição nunca será superada defendendo-se apenas a ampliação de direitos fundamentais ou a separação de poderes, ou, de forma mais genérica, agarrando-se ao ordenamento jurídico e afirmando que tais problemas se referem à execução das normas jurídicas, e não ao seu fundamento verdadeiro, no qual o direito não se opõe à exceção, e sim a pressupõe, como mecanismo de captura da vida no campo da decisão soberana. O real objetivo de Giorgio Agamben ao desmascarar a relação entre exceção e direito, e entre direito e violência, é justamente romper o vínculo entre ambos e encontrar uma “política que vem”, a qual abandonará todos os conceitos jurídico-políticos típicos da modernidade, como soberania, direitos humanos, etc., todos eles presos às contradições ligadas à inclusão da vida natural na política, ou seja, à lógica biopolítica. Somente superando o sistema jurídico-político atual, o estado de exceção deixará de ser o fantasma que assombra a modernidade (NETO, 2014, p. 15- 17) Nessa “política que vem”, o direito finalmente cortará todos os seus laços com o poder soberano e a violência, e se transformará em um “direito puro”, sem nenhuma pretensão de força ou aplicação. Um direito a ser estudado, não praticado; que não se confunde com a justiça, mas que leva a ela. Um direito que não seja considerado sagrado e indispensável aos viventes – e as constituições são, de fato, vistas assim pela grande maioria dos juristas na atualidade – mas que

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seja um brinquedo, cujo uso não obedece cânones ou padrões prévios (AGAMBEN, 2007, p. 98). Uma figura “enigmática” à qual Agamben ainda dedica suas pesquisas. Portanto, com base nessa interpretação, que consideramos ser a mais coerente com o real pensamento de Giorgio Agamben, a melhor resposta que ele poderia dar à nossa hipótese seria: “não é suficiente”. Se o vetor da denúncia do estado de exceção o aproxima de nossa hipótese, pois retira sua teoria do campo da aprovação (no qual encontra-se Schmitt) e da neutralidade ao mesmo, a solução proposta por nós, decididamente, não supera as aporias apontadas pelo autor, nem rompe o vínculo estabelecido entre vida natural e estrutura político-jurídica contemporânea. Qualquer solução que não desafie a biopolítica intrínseca ao modelo estatal atual não será, afinal, suficiente.

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4. O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A EXCEÇÃO: UM ESTUDO DE DOIS CASOS Uma vez definidos nossos referenciais teóricos relacionados ao estado de exceção e sua relação com o direito, é chegada a hora de verificarmos como o Supremo Tribunal Federal lidou com a matéria nas poucas vezes em que ela se lhe apresentou. Os limites do presente trabalho, porém, impedem um estudo sistemático e exaustivo acerca dessa relação. Nosso objetivo principal neste estudo é comparar as posições adotadas pelo STF com a nossa hipótese acerca da necessária submissão de atos considerados excepcionais aos preceitos democráticoconstitucionais. Por isso, decidimos focar, neste momento, apenas em casos que, à primeira vista, parecem ter fugido ao resultado esperado de acordo com a nossa hipótese. Uma análise aprofundada da relação entre STF e estado de exceção ainda está para ser escrita. Os modos que a exceção assume em cada um dos casos escolhidos, porém, cariam bastante. A ADI 2.240-7 é um dos casos nos quais o Ministro Eros Grau introduziu a teoria do estado de exceção para resolver um problema que poderia ser solucionado de acordo com outros métodos de controle de constitucionalidade. Na ADPF 153, o Tribunal teve que lidar com um ato cuja natureza excepcional deriva do fato de ter emanado de um regime jurídico-político de exceção. Entretanto, se as abordagens foram diferentes, os resultados foram semelhantes: a preservação do ato excepcional em detrimento do texto constitucional. Nosso objetivo agora é justamente verificar: a fundamentação de ambas; o quanto elas se utilizam – seja explícita, seja implicitamente – dos referenciais teóricos analisados nos capítulos anteriores; e, finalmente, se a hipótese por nós levantada ainda se revelará compatível com a posição do STF em cada um dos casos.

4.1 A exceção na ADI 2.240-7 À primeira vista, um caso banal e de resultado previsível. A Assembleia Legislativa do Estado da Bahia aprovou, em março de 2000, a Lei Estadual 7.619, criando o município de Luís Eduardo Magalhães, a partir do desmembramento de dois distritos do município de Barreiras. O Partido dos Trabalhadores propôs Ação Direta de Inconstitucionalidade, com pedido de medida cautelar, em face da referida lei, pugnando pela sua inconstitucionalidade perante o art. 18, § 4º, da Constituição Federal, com redação dada pela Emenda Constitucional 15/96, a qual dispõe: A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, far-seão por lei estadual, dentro do período determinado por Lei Complementar Federal, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos, após divulgação dos Estudos de Viabilidade

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Municipal, apresentados e publicados na forma da lei.

Segundo a ação, o município foi criado na pendência da aprovação da lei complementar federal mencionada pelo referido dispositivo, que determinará qual o período em que será possível a criação lato sensu de Municípios. Ainda que a lei 7.619 fosse conforme a Constituição baiana, que atribuía à lei complementar estadual fixar o referido prazo, a edição da Emenda Constitucional 15/96 revogou o texto constitucional estadual e tornou inválidas as balizas por ele fixadas. Destacou-se, ainda, o fato do Município ter sido criado justamente em ano de eleições municipais; do plebiscito ter sido realizado apenas com a população dos distritos a serem emancipados, e não a de todo o Município de Barreiras; e dos estudos de viabilidade municipal terem sido publicados apenas posteriormente ao plebiscito, fatos que atentariam contra o princípio democrático e gerariam “situação temerária no que concerne à preservação da ordem pública”. O pedido de medida cautelar sustando a criação do Município foi negado em julho de 2000 pelo então Relator, Ministro Nelson Jobim. Já o julgamento de mérito somente foi iniciado em maio de 2006, e concluído um ano depois. O novo Relator, Ministro Eros Grau, mesmo reconhecendo que a interpretação do texto constitucional levaria à inconstitucionalidade da lei estadual, rejeita tal solução. Considera que a omissão do Congresso Nacional em editar a lei complementar mencionada no art. 18, § 4º, da CRFB e o decurso do tempo acabaram por consolidar uma situação de fato que não poderia ser ignorada. Na verdade, a criação do Município se constituiria em uma situação de exceção, a qual é capturada pela norma na forma de sua suspensão. Ao STF compete regular também as situações de exceção, reconhecendo e acolhendo a “força normativa dos fatos”. Além disso, os princípios da segurança jurídica e da continuidade do Estado igualmente reforçariam a sua tese. Por tais razões, julgou pela improcedência da ADI. O julgamento foi suspenso por um ano pelo pedido de vistas do Ministro Gilmar Mendes. Em seu voto, o magistrado fez questão de endossar a fundamentação do voto do colega relator, porém discordando quanto ao resultado: “A questão pendente neste julgamento está em definir quais os contornos que a inevitável decisão do Tribunal deve assumir.” Para o Ministro, a simples improcedência da ação privilegiaria o princípio da segurança jurídica em detrimento do princípio da nulidade da lei inconstitucional. A melhor solução residiria na “otimização de ambos os princípios”. Enumerou diversos casos anteriores em que a Corte assentara jurisprudência firme pela inconstitucionalidade de Municípios criados posteriormente à EC 15/96, e pela natureza de norma de eficácia limitada do art. 18, § 4º, da Constituição, o qual, embora dependa

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da lei complementar para produzir plenos efeitos, possui por si só poderes para inviabilizar processos legislativos de criação de novos Municípios. Dessa forma, inevitável a ponderação de princípios, a qual se concretizaria na adoção de técnicas alternativas de decisão em controle de constitucionalidade – ou, em outras palavras, na modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. O Ministro fez extenso histórico de tal instrumento no direito comparado, seguido de uma firme defesa do art. 27 da Lei 9.868/99, que introduziu a referida modulação no ordenamento brasileiro. Ao final, com base em tais considerações, votou pela procedência da ADI, no sentido de se declarar a inconstitucionalidade, sem pronúncia de nulidade da norma impugnada, mantendo sua vigência por 24 meses, período no qual esperava-se que a lei complementar federal fosse afinal criada. O Relator acabou por modificar seu voto, acompanhando a solução do Ministro Gilmar Mendes, no que foram seguidos pela maioria do Plenário, sendo voto vencido o Ministro Marco Aurélio, que votou pela inconstitucionalidade da norma, com efeitos plenos e imediatos. O que nos interessa nesse caso não e tanto o resultado, mas sim o uso da teoria do estado de exceção, pelo Ministro-relator, como fundamento teórico. O uso de tal referencial teórico não deixa de soar estranho: o caso analisado nos autos da ADI 2.240-7 em nada se assemelha a uma situação tipicamente considerada de exceção. Não se tratou de ato emanado de regime autoritário e considerado ilegitimo; não se tratou de ato jurídico criado sob estado de emergência constitucional. O objeto da ADI é uma lei estadual considerada incompatível com a Constituição Federal. Não há teoria da exceção que confunda tal fenômeno com a mera inconstitucionalidade. E, no entanto, o Ministro Grau reitera, seguidas vezes, que é de uma exceção que se trata. Não é, portanto, coincidência que, nele, sejam mencionados os dois autores responsáveis pelos principais referenciais teóricos sobre o tema na atualidade. Carl Schmitt, no entanto, surge de passagem, na citação de um escrito seu dos anos 1950, referente não diretamente à exceção, mas relativamente àquilo que o Ministro chama de “força normativa dos fatos” 45. Já Giorgio Agamben não só é mencionado, como sua definição de exceção é adotada no voto em dois momentos, que serão analisados mais abaixo. O que, num primeiro momento, nos levaria a conduzir nossa análise no sentido apenas de comparar a teoria agambeniana da exceção com o voto prolatado. Acreditamos, porém, que a realidade é bem diferente. O inteiro teor do voto do Ministro Eros Grau não aponta para o uso do referencial teórico de Agamben, mas para o de Schmitt – o que esperamos demonstrar através da análise cuidadosa que faremos a seguir. Por que a lei estadual criadora do Município de Luís Eduardo Magalhães deveria ser 45 Schmitt comentava declaração do representante inglês na ONU em 1949 defendendo o reconhecimento do novo governo comunista da China como decisão que se impunha, diante da realidade fática.

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considerada uma situação de exceção? Inicialmente, o Relator reitera que o Município já possui “existência de fato”, a qual já durava seis anos quando do início do julgamento. Elenca, para comprovar, uma extensa lista de atos típicos de ente federativo dotado de autonomia realizados naquele período (além das eleições para prefeito, realizadas ainda em 2000, foram aprovadas pela Câmara de Vereadores a sua lei orgânica e mais de 200 leis municipais, foram arrecadados tributos de sua competência, etc.), e alerta que tal realidade não poderia ser ignorada, inclusive em respeito à boa-fé dos cidadãos moradores daquela municipalidade: “Em suma, o Município de Luís Eduardo Magalhães existe, de fato, como ente federativo dotado de autonomia municipal, a partir de uma decisão política. Esta realidade não pode ser ignorada.” (item 04 do voto) Ocorre que tal argumentação não implica necessariamente na declaração de constitucionalidade da referida lei. Como destacado no voto-vista do Ministro Gilmar Mendes, a realidade fática não influi necessariamente na questão da nulidade, mas sim na dos seus efeitos46. E aqui pouco importa que o Relator tenha, um ano depois, “evoluído” seu entendimento com base no voto-vista: sua fundamentação era pela constitucionalidade, e deve ser interpretada tendo esse fim em mente. Por outro lado, tal tese pode ser incluída em uma justificativa temporal para a natureza excepcional da lei que criou Luís Eduardo Magalhães. São duas as contagens que o Ministro utiliza. A primeira é a vista acima, referente aos seis anos transcorridos entre a criação do município, o ajuizamento da ADI e o seu julgamento – e o Relator lembra que o pedido de suspensão liminar da lei estadual fora negado pelo STF ainda em 2000. A segunda se refere à omissão legislativa em editar a lei complementar federal que regulamentará a criação de municípios, conforme determinado pela redação conferida ao art. 18, § 4º, da Constituição pela EC 15/96, e que já durava 10 anos quando do julgamento. A segurança jurídica também é invocada para a defesa da criação do Município. Mas fica claro que o Relator não deposita nela o núcleo argumentativo de seu voto. E isto porque ele mesmo reconhece, logo após reproduzir lições de Almiro do Couto e Silva e Karl Larenz, que tais argumentações costumam ser usadas quando se está diante de situações obrigacionais ou administrativas dirigidas a sujeitos individuais. Aqui estar-se-ia diante de uma exceção diferente, de caráter institucional (cf. itens 05 e 06 do voto). No lugar da segurança jurídica, o que realmente garantiria a constitucionalidade da lei 46 É o que indica, inclusive, o texto do art. 27 da Lei 9868/99: “Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.”

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estadual seria a “força normativa dos fatos”, que permitiria compreender – segundo o magistério de Jellinek – “a origem e a existência da ordem jurídica, pois na vida do Estado as relações reais precedem as normas em função delas produzidas”. E a força normativa dos fatos importaria, no caso em concreto, no reconhecimento de que houvera uma decisão política que estabelecera um ente federativo dotado de autonomia política: “Ao seu reconhecimento como ente federativo dotado de autonomia basta a realidade fática”. É a força normativa dos fatos que conferiu a um caso francamente em desacordo com a Constituição a natureza de exceção não-prevista pelo ordenamento. Não é coincidência que seja justamente neste momento que o Ministro cite Carl Schmitt. A passagem da obra schmittiana usada é marginal; não pertence à sua fase “pré – nazista”; e o exemplo utilizado se refere a um caso de direito internacional. Mas é a partir desse ponto do voto que fica cada vez mais claro o verdadeiro referencial teórico do ministro do STF. A reiterada menção à lei impugnada como “decisão política” não pode ser lida de forma ingênua. A expressão é usada pelo Relator nada menos do que nove vezes em seu voto. É sobre ela que recai toda a preocupação do ministro – e não sobre a Constituição. Mas a justificativa que o Ministro tenta encontrar para tal predominância da decisão política, ou da “força normativa dos fatos”, sobre o texto constitucional, cai em diversas contradições que somente reforçam o fundo schmittiano do voto de Eros Grau. A mais flagrante é com relação ao argumento temporal. O Ministro destacara, no item 04 de seu voto, todos os atos praticados pelo Município durante os 6 anos anteriores, e afirmara que tal realidade não poderia ser ignorada pela Corte. Ocorre que quando, mais a frente, ele defende que a exceção se consubstancia no fato de ter sido produzida uma decisão política que criou um Município, e que basta a realidade fática para reconhecê-la, a nosso ver ele está justamente ignorando todos os atos praticados pelo Município de sua criação até aquele momento. Segundo o Relator, a força normativa dos fatos nasceu não do tempo transcorrido e dos atos autônomos praticados, mas da pura edição da lei que criou a municipalidade (” {...} Existe, de fato, como ente federativo dotado de autonomia municipal, a partir de uma decisão política.” - item 20). O voto caminha no sentido de se excluir qualquer mácula original da lei impugnada, e não no sentido, defendido por alguns comentadores, de se reconhecer uma “constitucionalidade superveniente”. A real preocupação de Eros Grau deixa de ser com a segurança jurídica e a boafé dos cidadãos que viveram no “pseudo-Município” desde sua criação, e passa a ser com a decisão política tomada no ano 2000 pela Assembleia Legislativa baiana. Isso fica claro quando ele analisa justamente o segundo aspecto temporal do problema: a demora do Congresso Nacional em editar a lei complementar do art. 18, § 4º, da CRFB. O

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Ministro afirma que tal omissão “impede (…) que essa decisão [criação de municípios], de caráter político, seja afirmada”, representando “autêntica violação da ordem constitucional”. Tal situação configura, portanto, uma anormalidade do sistema, uma fissura na ordem constitucional. E, continua o Ministro, “as normas só valem para as situações normais”. Ora, a “anormalidade” já existia havia 4 anos quando da criação da lei estadual, em 2000. Logo, a interpretação mais adequada para o entendimento do ministro não é a de que houve uma constitucionalização de uma situação inconstitucional pelo decurso do tempo e/ou pela predominância da segurança jurídica e da boa-fé administrativa sobre a nulidade das leis inconstitucionais (como o voto-vista do Ministro Gilmar Mendes indiretamente afirma ter sido o caso); a interpretação mais coerente é de que a norma nunca foi inconstitucional, pois, numa situação anormal, na qual a norma não pode ser aplicada, a decisão política se impõe pela sua própria força factual. O problema é que isso contradiz toda a argumentação baseada na existência do Município havia 6 anos: a defesa da decisão política por si só elimina qualquer discussão sobre o que veio depois. A força normativa dos fatos que realmente interessa ao Relator é a relativa à lei estadual, e não a dos “atos típicos de ente federativo autônomo” posteriores. Isso talvez justifique o curioso fato do Ministro levar em conta a mora legislativa para decretar a situação “anormal”, mas não considere igualmente “anormal” o fato de que o Supremo Tribunal Federal demorou seis anos para julgar a ação, sem suspender a lei liminarmente no início do trâmite. Tal demora não seria igualmente uma “moléstia do sistema”? E tal reconhecimento não poderia levar à acusação de que o STF teria ajudado a criar a situação anormal que agora invocava para afastar o mandamento constitucional e preservar a exceção? Ao defender que a anormalidade da situação impunha o afastamento da norma e o reconhecimento da exceção “não positivada”, Eros Grau está parafraseando Carl Schmitt. O item 11 do seu voto na ADI 2.240-7 cita Maurice Hauriou como suporte teórico; mas é o Schmitt de Teologia Política que surge como referência oculta: “There exists no norm that is applicable to chaos. For a legal order to make sense, a normal situation must exist,” (SCHMITT, 2005, p. 13). Novamente a relação da força normativa dos fatos com a decisão política mostra-se às claras quando o Ministro busca demonstrar a impossibilidade de se declarar inconstitucional um ente federativo autônomo. O Relator cita, no item 27, Konrad Hesse, que afirmava que o intérprete constitucional deveria fazer de tudo para impedir o nascimento da realidade inconstitucional ou para colocá-la em conformidade com a mesma. Em seguida, porém, julga seguindo o contrário do que Hesse defendia. Ele afirma que a realidade material dotou o Município baiano de autonomia “desde a sua criação” - mais uma vez demonstrando que o tempo posterior, os atos posteriores, pouco importam na verdade. Como, portanto, anular sua

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autonomia sem agredir o princípio federativo inscrito no art. 1º da Constituição? “A decisão política da criação do Município violou a regra constitucional, mas foi afirmada, produzindo todos os efeitos dela decorrentes.” (grifo nosso). Que “afirmação” é essa? Se for entendida como sinônimo de “confirmação”, cairemos em graves contradições: a força normativa dos fatos não advinha da própria decisão política? E a autonomia não fora adquirida no momento da criação, como o próprio Relator defendera duas frases antes? A melhor interpretação, portanto, é a literal, o que leva, novamente, à constatação de que, uma vez afirmada, ou proclamada, a decisão política já produziu efeitos, e um ente autônomo nascera; o que somente reforça nossa posição de que, para Eros Grau, nunca houve, de fato, inconstitucionalidade. Mas, se ele reconhece que foi violada a regra constitucional, como é possível nunca ter havido inconstitucionalidade? O Ministro começa a responder a tal questão no mesmo parágrafo. “Se da aplicação de uma norma resulta um desvio da finalidade a que ela se destina, ela finda por não cumprir o seu papel, ela deforma.” (item 27). Porém, ao afirmar que a supressão da autonomia do “pseudoMunicípio” violaria o princípio federativo, o Relator despreza o fato de que a própria criação do Município violou o mesmo princípio federativo. Despreza, ainda, o fato de que, ao defender a decisão política neste caso, não se está defendendo o princípio constitucional da Federação; na verdade, o está enfraquecendo, colocando nas mãos dos grupos políticos dos Estados, e/ou de maiorias eventuais, o poder de criar Municípios inconstitucionalmente, atendendo a interesses pouco republicanos, se não francamente oligárquicos, o que contraria a função contramajoritária da própria jurisdição constitucional. O fato da criação do Município ter se dado em ano eleitoral, e o fato do mesmo ter sido batizado com o nome do filho de um dos principais oligarcas baianos da época, não parecem ter encontrado lugar na valorização factual do Ministro Eros Grau, nem na de seus colegas – com a exceção do Ministro Marco Aurélio, que mencionou a eleição em seu fragmentado voto. Ora, a finalidade do Constituinte derivado, ao alterar a redação do art. 18, § 4º, da CRFB com a EC 15/96, não fora justamente limitar a “farra” da criação de Municípios, cuja regulamentação estava entregue a cada estado, servindo de arma valiosa nas lutas políticas estaduais? Se assim foi, a decisão ora comentada não estaria também deformando a norma, tornando-a letra morta, retirando-lhe até mesmo a eficácia já limitada que possui? Estamos demonstrando o quão próximo o voto do Ministro Eros na ADI 2.240-7 é próximo da teoria do estado de exceção schmittiana, com seu foco na decisão política enquanto tal. Mas uma dúvida se impõe: e as menções expressas a Giorgio Agamben?Tratar-se-ia de uma tentativa de conciliação dos dois pensamentos? Não nos parece, pelo simples fato de que o voto – e isto, a nosso ver, está claro a essa altura – é uma defesa da exceção. Não há crítica alguma a ela; há sua naturalização, quase uma apologia, o que aproxima Eros Grau de Carl Schmitt. Não

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há, também, a problematização da inclusão da vida na política que é central ao pensamento de Agamben – e que soaria estranha (mas não impossível) em um caso envolvendo criação de Municípios. Um olhar atento ao segundo parágrafo do item 13 parece resolver todas as dúvidas: Cumpre além do mais considerarmos que essa existência real não está inserida para além do ordenamento, senão no seu interior. E que o estado de exceção é uma zona de indiferença entre o caos e o estado da normalidade, zona de indiferença capturada pela norma. De sorte que não é a exceção que se subtrai à norma, mas ela que, suspendendo-se, dá lugar à exceção – apenas desse modo ela se constitui como regra, mantendo-se em relação com a exceção. (com nota de rodapé para o livro de Agamben, Homo sacer)

Sem querer, o próprio Ministro nos revela a resposta. Antes de praticamente reproduzir a definição agambeniana do estado de exceção como zona de indiferença entre caos e normalidade, ele afirma que a “existência real” não está fora do ordenamento, e sim dentro. Com essa frase, o Ministro Grau afirma que não há nada fora do direito, apenas fora da norma. Isso definitivamente não é o que Agamben defende: o filósofo italiano recusa justamente todas as teorias jurídicas que insistem em incluir o estado de exceção no direito, em defini-lo apenas como uma esfera exterior da ordem jurídica. A zona de indiferença entre externo e interno não é entre duas esferas do direito; é entre o direito e a realidade, a vida natural, e estas não são fenômenos jurídicos. Por isso o estado de exceção não é um estado em que o direito pode se aplicar a tudo; é um vazio de direito, no qual opera a violência soberana – que justamente se disfarça em força “de lei” para criar essa conexão fictícia entre estado de exceção e direito (AGAMBEN, 2007, p. 78-79). Não se trata, porém, de um erro de Eros Grau. A interpretação do Ministro segue o referencial teórico de Carl Schmitt, que também não via a exceção como a anarquia, mas a conceituava como pertencente a uma ordem política superior à norma – mas dentro do ordenamento jurídico (SCHMITT, 2005, p. 12). Para Schmitt, o “conceito-limítrofe” do estado de exceção ainda está dentro do Direito; para Agamben, ele já foi além, é uma zona amorfa. O que o Ministro Eros Grau propõe, no trecho acima, é uma interpretação schmittiana da teoria da exceção de Giorgio Agamben, a qual, porém, não leva em conta absolutamente nada das críticas do italiano às contradições de se pensar a relação entre exceção e direito, ou vida e política, como limitadas a uma oposição entre “decisão e norma”, que não conseguem captar a existência de uma vida natural sem relação com o direito ou a política, e que estes precisam capturar para poderem se efetivar. Somente essa interpretação schmittiana esclarece o porquê do Ministro insistir na “força normativa dos fatos” - ou seja, em uma realidade que nunca escapa ao direito,

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uma vez que o produz47. A defesa da decisão política em detrimento da norma é uma marca do pensamento de Carl Schmitt ao longo de todas as obras de sua primeira fase. A decisão, de forma ampla, é o ato de criação de uma ordem, pressuposto necessário de todo ordenamento jurídico. Caso a normalidade seja quebrada, o soberano, através da exceção, suspende a norma e atua diretamente para restabelecer a ordem interna. A decisão, portanto, deve ser defendida a qualquer custo, sob pena de se ver a unidade política destruída. Tal entendimento explica a força que a exceção assume no voto de Eros Grau. O Ministro defende (itens 07 e 08) que existem exceções positivadas (casamento putativo, sociedade de fato) e não-positivadas (o caso em tela). Mais a frente, porém, reconhece que, enquanto o casamento putativo pode ser anulado, a decisão politica de que resultou a criação do Município “avança sobre o que poderíamos chamar de 'reserva do impossível'” (item 32), pois a sua anulação agrediria o princípio federativo – o que novamente chama a atenção para a completa ausência de críticas à violação do princípio federativo consubstanciada na própria aprovação da lei. Chegando ao final do voto, o ministro afirma que a violação de uma norma não se resume à violação de um texto legal, mas sim à “violação de uma ordem concreta, histórica, situada no espaço e no tempo”. Tal ordem concreta é anterior ao direito posto, arranca de um direito pressuposto e expressa a visibilidade de um nomos. A Constituição é a sua principal representação (itens 36-37). Aqui, o Relator se apóia justamente em Santi Romano, principal expoente da corrente que incluía a exceção no mundo jurídico (na forma da necessidade) e um dos principais mestres intelectuais de Schmitt. A “ordem concreta” de que fala Eros Grau permanece como um ente espectral em seu voto; é descrita em termos vagos e genéricos, que se pretendem, porém, claros e transparentes. Diante do referencial teórico por nós esmiuçado no capítulo 2, porém, nos parece claro que a “ordem concreta” do Ministro Eros é a unidade política criada pela “decisão política fundamental” de Carl Schmitt. A defesa da decisão política que criou o Município de Luís Eduardo Magalhães se baseia, portanto, na convicção do Ministro Eros Grau de que ela é uma manifestação do próprio poder constituinte, que, em sua decisão política fundamental, escolheu como forma da unidade política a federativa. Se o Legislativo não edita a lei que permite a concretização da decisão soberana fundamental no plano municipal, ele está colocando em risco a unidade política. Somente assim adquire sentido o fato do Ministro Eros Grau defender o princípio federativo ao mesmo tempo em que afasta uma norma

47 Agamben cita justamente Jellinek, citado por Eros Grau anteriormente em seu voto, como um dos autores que veem a exceção como algo interno ao direito, colocando a necessidade como fonte de validade dos decretos editados sob estado de exceção – em oposição aos que o viam como mero fato. Cf. AGAMBEN, 2007, p. 43.

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constitucional que busca limitar os abusos cometidos em seu nome; e o fato dele desprezar a violação ao referido princípio contida na edição da lei baiana e acusar a violação contida na mora legislativa. Para ele, a Federação não está na esfera das normas; faz parte da decisão política fundamental. E o texto constitucional precisa concretizar os comandos da verdadeira “Constituição”, do contrário será anormal, nocivo, e precisará ser afastado. O julgamento da ADI 2.240-7 deixou de ser um julgamento sobre a violação à Constituição de 1988 e passou a ser um julgamento sobre a violação à decisão política. A lei estadual baiana deixou o posto de norma impugnada; quem acabou sendo questionada foi a própria norma constitucional, o próprio art. 18, § 4º, da CRFB. A crítica à omissão legislativa não deixa de ser um ataque ao mandamento constitucional cuja eficácia limitada possibilitou a “moléstia” na “ordem concreta”. Nessa situação, o papel do Supremo Tribunal Federal muda radicalmente, como indica o item 40 do voto: Refiro-me a uma ordem geral concreta, situada geograficamente e no tempo, com as marcas históricas e culturais que a conformam tal como ela é. Por isso mesmo incompleta e mesmo contraditória, reclamando permanentemente complementação, refazimento e superação de situações de exceção. A esta Corte, sempre que necessário, incumbe decidir regulando também essas situações de exceção. Mas esta Corte, ao fazê-lo, não se afasta do ordenamento, eis que aplica a norma à exceção desaplicando-a, isto é, retirando-a da exceção. (mais uma nota de rodapé direcionando o leitor para Homo sacer, de Agamben.)

Mais uma vez aparece a interpretação schmittiana de Giorgio Agamben, totalmente equivocada, pois mantém a exceção dentro de um universo exclusivamente jurídico. Mais uma vez, também, aparece a figura da “ordem concreta”, algo paradoxal – pois é uma “ordem geral” (unidade política) com marcas históricas e culturais que a conformam “tal como ela é”, mas que “por isso mesmo” é incompleta e contraditória – termos que remetem à noção de desordem, não de ordem. Mas o que nos interessa aqui é a redefinição da função do STF. Ele não é mais o guardião da Constituição de 88, mas da “ordem concreta”. A ele não incumbe impedir o surgimento de inconstitucionalidades ou colocar a realidade em conformidade com a constituição – como Hesse defendia, e que é justamente a nossa hipótese neste trabalho. O Supremo, segundo Eros Grau, é o guardião da decisão política fundamental (a verdadeira Constituição, para Schmitt), e a ele compete “regular” a exceção, não submetê-la à Constituição enquanto norma. Qualquer dúvida sobre isso resta dissipada quando o Relator reforça que a força normativa e a função estabilizadora da Constituição enquanto norma somente fazem sentido “reportando-se à integridade da ordem concreta da qual ela é a representação mais elevada no plano do direito posto” (item 41). E a mais prudente aplicação da Constituição – norma pode levar à sua “desaplicação”, nas situações de exceção.

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Não é mero acaso que seja justamente aqui que Eros Grau e Carl Schmitt se separam. Como Ministro do Supremo Tribunal Federal, Eros Grau não pode endossar a crítica de Schmitt à ideia de um Judiciário guardião da Constituição enquanto decisão fundamental. Mas também não consegue oferecer um raciocínio alternativo que preserve a teoria schmittiana da exceção sem a parte relativa à sua guarda. Como visto, Schmitt enxergava na decisão sobre a exceção a manifestação por excelência do poder soberano, livre das amarras constitucionais, da separação de poderes e dos direitos fundamentais. A evolução de sua obra, especialmente em Teoria da Constituição e O guardião da Constituição, é no sentido de se buscar compatibilizar decisionismo e soberania popular. Exatamente por ser o único agente público eleito pelo sufrágio universal, e por poder representar a figura de um poder neutro, o chefe de Estado, o presidente da República, é o legítimo representante da soberania popular, e legítimo guardião da Constituição. O Poder Judiciário não é eleito pelo voto popular; está vinculado a normas determináveis e mensuráveis. A subsunção que o Ministro Eros afasta no início de seu voto (item 02) é justamente a base inafastável do exame judicial para Schmitt. Caso um juiz a abandone, “ele não pode mais ser juiz independente e nem um sinal de aparência de justiça pode protegê-lo dessa conclusão” (SCHMITT, 2007a, p. 29). Destaquemos ainda a profunda aversão de Schmitt ao pluralismo enquanto deletério à unidade política. Para ele, a ideia de que a guarda da Constituição enquanto decisão fosse conferida a um Tribunal composto por 11 ministros, que dialogam entre si e votam segundo suas próprias convicções, sem a necessidade de firmarem um entendimento uniforme (bastando a configuração de uma maioria baseada no resultado, e não no argumento), seria absolutamente inaceitável. Eros Grau descarta essa crítica schmittiana e converte o STF em regulador da exceção – recalcando por completo, porém, o problema que surge sempre que falamos de decisões políticas acerca da exceção: o soberano. Não deixa de ser irônico que um Ministro tão crítico de Hans Kelsen48 acabe por imitá-lo em sua exclusão da soberania do mundo jurídico. Mas o problema se impõe, pois o referencial teórico de Carl Schmitt se resume na frase lapidar “Soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção”. Ora, nesse caso quem decidiu o que é anormalidade e o que é normalidade? Quem “desaplicou” - suspendeu – a norma constitucional para salvaguardar uma decisão política? Como fugir à questão central do pensamento de Schmitt quando se adota justamente o seu referencial teórico, ainda que implicitamente, ocultado sob uma referência direta a outro autor? No item 45, o Relator afirma que, no caso, não está em pauta o princípio da continuidade 48 Cf. item 15 do mesmo voto: “Este caso não pode ser examinado no plano do abstracionismo normativista, como se devêssemos prestar contas a Kelsen e não a uma ordem concreta.”

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do serviço público – pois, caso Luís Eduardo Magalhães fosse extinto, o Município de Barreiros assumiria todos os serviços públicos. Estaria em pauta o “princípio da continuidade do Estado”. Não precisamos nos alongar nessa nova ligação com Schmitt, baseada na diferença entre “direito” e “Estado” e na defesa do último, ainda que em detrimento do primeiro. Apenas destacamos o fato de que a defesa da segurança jurídica invocada anteriormente acaba, no mínimo, mitigada aqui, pelo reconhecimento de que todos os atos praticados junto ao “pseudoMunicípio” poderiam ser invocados junto ao Município originário sem que houvesse solução de continuidade. Eros Grau encerra seu voto afirmando que julgar improcedente a ADI não serviria de estímulo para a criação de novos municípios. Mas seu voto claramente não definiu baliza jurídica alguma nesse sentido. Pelo contrário, afirmou a decisão política que cria Municípios como intocável e submeteu a própria Constituição à “ordem concreta” que ele mesmo definiu e delimitou. Sua fundamentação claramente estimula novas inconstitucionalidades, e faz tábula rasa de alguns dos pilares do constitucionalismo democrático moderno: limitação do poder (inclusive de maiorias parlamentares eventuais), e supremacia da lei e da Constituição (aqui a supremacia é da decisão política e da unidade política, ou “ordem concreta”). E ainda deu ao Supremo Tribunal Federal o poder de decidir quando a Constituição deve ser afastada para proteger a “ordem concreta” e regular a exceção. Como destacado por Rodrigo Lago em comentário posterior à decisão, “o que fazer quando o guardião do texto constitucional perdoa a sua violação?” (LAGO, 2010) Os votos dos demais Ministros não lograram desfazer o problema de fundamento do voto do Relator. Todos ratificaram as justificativas, discordando apenas do resultado. A solução pela inconstitucionalidade sem declaração de nulidade por 24 meses pode ter sido a melhor para o caso concreto, mas não mexeu na fundamentação utilizada. Na verdade, o problema da exceção desaparece nos demais votos; a segurança jurídica se torna o “princípio colidente” a ser compatibilizado com o princípio federativo, quando a importância daquele princípio no voto do relator é marginal, e quando o que lá colide não são princípios constitucionais, mas sim norma constitucional e decisão fundamental – confusão que o próprio Relator convenientemente aumenta ao seguir o voto-vista sem alterar em nada a fundamentação. O STF, pelo silêncio dos demais magistrados, acabou por se transformar em um guardião da decisão fundamental, da “ordem concreta” que o próprio Tribunal decide qual seja. Nessa decisão (soberana?), a escolha pelo constitucionalismo democrático será propagandeada como certa; mas será meramente uma

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possibilidade, baseada na ficção de que, se o STF diz, é porque é constitucional49. Como último ato da história, a Emenda Constitucional 57, de 2008, convalidou todas as leis estaduais de criação de municípios editadas até 31/12/2006, uma emenda tão específica que, para Rodrigo Lago, beneficiou apenas o Município de Luís Eduardo Magalhães e alguns outros (Ibid.). A exceção, afinal, prevaleceu tanto no Poder Judiciário como no Legislativo. Da análise da ADI 2.240-7, nossa conclusão é de que o STF, através do voto do Min. Eros Grau e da concordância tácita dos colegas, adotou Carl Schmitt como referencial teórico sobre o estado de exceção, ainda que dele discordando exatamente no tocante à titularidade do poder de regular a exceção. Tal adoção fez com que a Corte arrogasse para si o poder de afastar o ordenamento constitucional – democrático a pretexto de salvá-lo, incorrendo na ficção denunciada por Agamben de inserir a exceção no direito. No vazio de direito produzido pela suspensão da Constituição, apenas o mito da força “de lei” pode associar a decisão soberana à lei suspensa: se o STF afasta a Constituição, ao mesmo tempo invoca para si o poder de conferir ao que quiser a força “de lei constitucional”. Tal resultado, para Agamben, somente pode significar o aniquilamento impune da normatividade. Para Schmitt, indica quem é o soberano de fato. Para nós, significa não levar a sério o constitucionalismo democrático.

4.2 A exceção na ADPF 153 O caso da ADPF 153 é um pouco diferente. Na ADI 2.240-7, o STF arcou com o ônus argumentativo de atribuir à lei impugnada a natureza de exceção. Neste caso, a tarefa é nossa. Associar à ditadura militar brasileira, genericamente, o rótulo de “estado de exceção” já é algo comum. Interessa-nos, aqui, tentar justificar essa denominação com base nos referenciais teóricos aqui analisados. No estado de exceção schmittiano, o poder soberano suspende a norma (constitucional) ordinária para salvaguardar a decisão política fundamental, ameaçada por uma situação de crise que coloca a unidade política em risco. O golpe militar de 31 de março de 1964 que depôs o presidente João Goulart foi justificado como necessário para a “reconstrução econômica,

49 O precedente aberto com a ADI 2.240-7 geraria frutos ainda piores. Em 2010, chegou ao STF, nos autos do AI 421689/MA, caso em que se questionava a criação de Município no Maranhão sem a realização de plebiscito com a população envolvida – vicio mais grave do que o ocorrido no caso analisado acima. A Ministra Ellen Gracie, relatora do agravo, não somente afastou os óbices à admissão do recurso extraordinário, como entrou no mérito da questão, reconhecendo a flagrante inconstitucionalidade da criação de municípios sem prévio plebiscito, mas simplesmente excepcionando “em nome do princípio da segurança jurídica” a jurisprudência da Corte – e a literalidade do art. 18, § 4º da Constituição . Passados nove anos da criação do Município, segundo ela, a situação restara consolidada. Ignorando a possibilidade de modulação de efeitos, simplesmente negou seguimento ao agravo de instrumento. De norma de eficácia limitada, o art. 18, § 4º virou norma sem eficácia alguma. Para uma crítica de tal julgado, cf. LAGO, 2010.

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financeira, política e moral do Brasil”, ou em outras palavras, para proteger a “ordem interna” contra o “bolsão comunista” que se infiltrara no próprio governo e “que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o país”. Os trechos acima foram extraídos do primeiro Ato Institucional promulgado pelos líderes golpistas, em 09 de abril de 1964, posteriormente conhecido como AI-1. O preâmbulo do ato, no qual se procurou fundamentar o golpe, é muito próximo à teoria da exceção schmittiana. Redigido por alguns dos juristas mais autoritários da época50, o Ato de imediato proclamava o golpe “autêntica revolução”, na qual se representava não um grupo político específico, mas “a Nação”. E continuava: A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória.

O AI-1 subverteu por completo o conceito de representação política: não é mais o Poder Constituinte popular que sustenta o governo, mas é o governo, uma vez instalado, que se investe do mesmo, ou, na feliz expressão de Marilena Chauí (apud TELLES, 2010, p. 302), “é porque se governa que se é representante”. Uma vez vitorioso, o golpe se autoproclama revolução e se torna, automaticamente, Poder Constituinte: a legitimidade, aqui, é absorvida pela força. E, como tal, o regime não se sujeita às normas constitucionais postas. Daí a “força normativa” que automaticamente emana de seus atos, e que confere a um documento parajurídico, o “Ato Institucional”, força para se sobrepor à própria Constituição de 1946. Uma autêntica força soberana, diria Schmitt, só que aqui representada não pelo Executivo, que violara a decisão fundamental ao pretender “bolchevizar”, mas pelas Forças Armadas. Mas a “Revolução” não queria subverter a ordem, objetivo dos seus adversários comunistas. “Para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946” e “igualmente, manter o Congresso Nacional”, proclamava o AI-1 nos seus considerandos, para, logo em seguida, em seus artigos, concentrar poderes na figura do presidente da República, suspender as garantias constitucionais da vitaliciedade e estabilidade, cassar mandatos parlamentares e direitos políticos de cidadãos. Em termos schmittianos, o estado de exceção foi aqui instaurado para defender a unidade política, econômica, financeira e moral do Brasil, suspendendo-se a Constituição de 1946 – cujos

50 Francisco Campos e Carlos Medeiros Silva, autores e redatores da Constituição ditatorial do Estado Novo, de 1937. Para detalhes da história, cf. GASPARI, 2014, p. 115.

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dispositivos não permitiram a destituição legal do governo Goulart – para atingir esse intento, mas mantendo-a vigente. Nesse momento, a ditadura brasileira se assemelhava à “ditadura comissária” de Carl Schmitt, um estado de exceção que visava proteger as “normas de realização do direito” em detrimento das “normas jurídicas”. Ou, para usar sua nomenclatura preferida, o golpe visava proteger a decisão política fundamental da ameaça comunista (e aqui surge a figura do “inimigo” da ordem constitucional, cuja definição também cabe a uma decisão política), ainda que em detrimento do texto constitucional. O “comissariado”, porém, não durou muito. Em 7 de dezembro de 1966, o governo ditatorial editou o AI-4, declarando que a Constituição de 1946 já não servia aos interesses nacionais e que tornava-se imperioso dar ao país uma Constituição não somente uniforme e harmônica, mas que representasse “a institucionalização dos ideais e princípios da Revolução”. Aqui se torna claro que o golpe não visava apenas salvar a ordem ameaçada; visava estabelecer uma nova decisão política fundamental. A ditadura deixava de ser “comissária” e se tornava “soberana”, com a promulgação da Constituição (na prática outorgada) de 1967. O Ato Institucional se tornou o instrumento por excelência do poder militar brasileiro a partir de 196451. Um ato emanado do poder soberano, fora dos parâmetros constitucionais, mas superior aos mesmos e, ainda assim, intrinsecamente jurídico, pois velava pela preservação da decisão política “revolucionária”. Em termos schmittianos, um típico ato de exceção. Não é mero acaso, portanto, que, apesar de três Constituições terem sido outorgadas durante a ditadura, nenhuma delas tenha tentado regulamentar o tipo legal “Ato Institucional”. A exceção, afirmava Schmitt, não pode ser positivada em uma norma geral, pois isso implicaria na sua restrição e inibição. A competência para decretá-la precisa ser ilimitada – e a ditadura brasileira seguiu à risca tal ensinamento. É possível ainda caracterizar a ditadura de 64 como estado de exceção sob o referencial teórico de Giorgio Agamben. Inicialmente, o filósofo denuncia o fato de que quase sempre a suspensão da ordem constitucional sob o pretexto de salvá-la acaba levando à sua aniquilação. Como vimos, o mesmo AI-1 que afirmava estar apenas defendendo e restaurando a ordem político-econômica e moral ameaçada pelo comunismo dava ao comando golpista o poder de cassar mandatos e direitos políticos (art. 10), e ao Executivo o poder de demitir e aposentar servidores (art. 7º), sendo todas estas medidas imunes ao controle judicial posterior (arts. 7º, § 4º e 10), além de evidenciar que mantinha a Constituição e o Poder Legislativo funcionando apenas por causa da “boa vontade” dos militares. Tais medidas, que visavam a um expurgo político,

51 Foram editados 17 Atos Institucionais durante o regime militar.

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militar e administrativo dos aliados e simpatizantes do governo deposto e das esquerdas em geral, não eram realmente compatíveis com o regime constitucional. A mutilação desse regime era o verdadeiro objetivo dos golpistas civis e militares (GASPARI, 2014, p. 114-115). O estado de exceção segundo Agamben é um espaço vazio de direito, no qual direito e vida, jurídico e não-jurídico se indeterminam, possibilitando ao poder soberano delimitar novamente o que está dentro do ordenamento jurídico-político e o que está fora, ou, em termos biopolíticos, quais vidas serão jurídica e politicamente qualificadas e quais serão vidas nuas, permanecendo ligadas ao poder soberano apenas na forma do abandono ao seu poder de morte. Nele, a norma, o direito, somente pode continuar existindo na forma da sua desaplicação, ou suspensão, sendo substituídos por decisões soberanas. A violência que constitui essas decisões é mascarada pela ficção da força “de lei”, o mito de que elas ainda se referem ao direito suspenso. Quando o preâmbulo do AI-1 fala em “força normativa” inerente ao Poder Constituinte da “Revolução” vitoriosa, é da força “de lei”, da violência que ainda se pretende jurídica, de que se está falando. Para conferir a essa ficção concretude, é necessário manter o ordenamento jurídico vigente, ainda que, na prática, sempre suspenso. Isso explica o apego da ditadura militar brasileira a uma forma discursiva que se pretendia jurídica (VIEIRA, 2012, p. 138). Por mais violenta que fosse a medida imposta pelo regime, ela sempre buscava uma roupagem jurídica, fosse através de leis draconianas aprovadas por um Congresso submisso, fosse através de decisões soberanas com força “de lei”, os Atos Institucionais e os Decretos-Leis; mas também através da edição de leis que proclamavam valores como direitos humanos e democracia em um regime que desrespeitava ambas sistematicamente – mas negava tais violações invocando justamente as leis que criara. Tais normas somente vigoravam sob a forma da suspensão, de uma vigência sem significado, a qual somente voltaria a ter aplicação quando o poder soberano entendesse que a normalidade voltara. Isso explica, por exemplo, o fato da ditadura outorgar uma Constituição em 1969 que elencava entre as garantias fundamentais do cidadão o direito ao habeas corpus, ao mesmo tempo em que o mantinha suspenso indefinidamente através do Ato Institucional nº 552. O aspecto essencial do estado de exceção agambeniano é a exposição da vida natural ao controle direto do soberano. A vida nua é aquela abandonada ao poder de morte soberano, a quem competirá decidir se ela é digna de ser vivida ou não. A partir do momento em que o estado de exceção se transforma na regra, na estrutura política fundamental, no “Estado” com 52 A força da legalidade autoritária brasileira em comparação, por exemplo, com regimes ditatoriais menos preocupados com a própria institucionalização, como a Argentina, fica demonstrada no número dispare de vítimas de ambos os regimes, mas também na imensa dificuldade do Brasil em limpar o entulho autoritário de sua legislação e das práticas do aparato estatal, notadamente da Polícia Militar.

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letra maiúscula, o controle dos corpos se torna a sua função primordial e permanente. Já no AI-2, de 1965, a ditadura militar demonstrava pretender se constituir como estado de exceção permanente, ao proclamar: “não se disse que a Revolução foi, mas que é e continuará". Foi com o AI-5, de 1968, porém, que a exceção se consolidou. O mesmo Ato cujo preâmbulo proclamava o respeito à dignidade da pessoa humana e à democracia aniquilava ambos: determinava o fechamento do Congresso; dava ao Executivo poder absoluto de decretação de estado de sítio e de intervenção federal; retomava a cassação de mandatos; suspendia direitos políticos e as liberdades de associação e reunião; permitia o confisco de bens e a proibição do exercício da profissão; e suspendia diversas garantias constitucionais: vitaliciedade, inamovibilidade, estabilidade, e, principalmente, o habeas corpus. A suspensão da obrigação do Estado de “mostrar o corpo” dos sujeitos sob seu poder significava a total submissão da vida nua ao poder de morte do soberano. Aqui, a força “de lei” do Ato Institucional suspende a norma e incide diretamente no corpo do vivente, desmascarando sua pretensa juridicidade e revelando sua necessária violência. A sala de tortura era o lugar absoluto em que se concretizava o estado de exceção permanente: geralmente localizada em espaços públicos de detenção, escapava à normatização que os regula; lá, não havia cidadãos, nem mesmo detentos (pois estes ainda possuem direitos), mas apenas viventes expostos à morte, e cujo terror se projetava sobre a sociedade como uma ameaça que pairava sobre aqueles que questionassem a ordem (TELLES, 2010, p. 303-304). Tudo legitimado pela “força normativa” da “Revolução vitoriosa”, puro terrorismo de Estado. Nas palavras de Edson Telles: O corpo passa a ser fundamental para a ação do regime. Se a sala de tortura tem como resto de sua produção um corpo violado e se o assassinato político produz o corpo sem vida, o desaparecimento de opositores fabrica a ausência do corpo. No caso do desaparecido político, sabe-se da existência de um corpo (desaparecido) e de uma localidade (desconhecida). O significativo aumento de desaparecidos políticos a partir do AI-5 estabeleceu esta peça jurídica como a implantação do Estado de exceção permanente. (Ibid., p. 305).

Além do regime militar, a própria Anistia é um ato de exceção. Conceitualmente, é o instituto penal que busca, através de uma ficção por ele criada, encobrir todas as características delituosas de certos fatos repreensíveis penalmente, proibindo a persecução criminal ou apagando as condenações já impostas, direcionado não a um indivíduo apenas, mas a toda uma categoria de fatos ou agentes (BASTOS, 2009, p. 48-49). Ela é uma das figuras do chamado “direito de graça”, pelo qual o Estado perdoa o indivíduo que cometeu um fato considerado criminoso pelo direito posto. Em outros termos, “a lei que deveria punir é suspensa por um poder soberano que está acima da própria lei” (NEVES, 2010, p. 1). No caso da anistia, o perdão equivale ao esquecimento jurídico – o que a tornou particularmente útil em situações

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excepcionais de ameaça ao Estado e crise profunda do tecido social, que necessitem de algum tipo de reconciliação (BASTOS, 2009, p. 49). Mas também a tornou historicamente um instrumento exclusivo do poder soberano, cuja discricionariedade passou a ser combatida, primeiramente pelos iluministas defensores do imparcial Estado de Direito e, mais recentemente, pelos internacionalistas e defensores dos direitos humanos, nos casos de Estados que concedem anistias a seus próprios agentes para casos envolvendo crimes internacionais, dentre eles os chamados crimes contra a humanidade (Ibid., p. 54-59), impedindo, assim, a concretização de direitos considerados inderrogáveis, como o direito de não ser submetido à tortura; à proteção judicial; à verdade e memória; e à prestação jurisdicional efetiva (PIOVESAN, 2010, p. 96-97). A ADPF 153 se insere em um contexto histórico específico, e ainda atual, de revisão e questionamento da memória hegemônica tanto sobre o regime militar como da própria Lei de Anistia53. A arguição de descumprimento de preceito fundamental foi interposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil em outubro de 2008, e pedia que fosse declarado não-recepcionado pela Constituição de 1988 o § 1º do art. 1º da Lei 6.683/79, a Lei de Anistia da ditadura. A norma impugnada dispõe: Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares. § 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.

Alegou a OAB que o referido parágrafo vinha sendo interpretado de forma a alcançar inclusive os agentes do Estado que praticaram crimes comuns como homicídios, desaparecimentos forçados, abuso de autoridade, estupros, lesões corporais e atentados violentos ao pudor. Tais crimes não poderiam ser considerados conexos aos crimes políticos, pois tal fato violaria diversos preceitos constitucionais, em especial a dignidade da pessoa humana e a vedação à tortura. Alternativamente, defendeu a adoção de interpretação conforme a Constituição ao dispositivo, no sentido da anistia não ter alcançado os agentes do Estado que praticaram crimes comuns contra opositores políticos. 53 Marcos Napolitano explica que a questão da punição dos perpetradores de violações de direitos humanos, bem como o direito à memória e à verdade, foram deixados de lado pelos liberais e pela esquerda, da redemocratização em diante, permanecendo como assunto relevante apenas dos familiares das vítimas. O reconhecimento pelo Estado brasileiro, em 1995, através da Lei 9.410, de sua responsabilidade pelas mortes e desaparecimentos no período ditatorial, ainda que apenas para fins de reparação econômica, abriu uma brecha para o acirramento da batalha pela memória, que se intensificou a partir do governo Lula, ganhou novos e maiores apoios na sociedade, e culminou com a criação da Comissão Nacional da Verdade no governo Dilma. Para maiores detalhes, cf. NAPOLITANO, 2014, p. 313 e s.

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O Relator da ação foi, novamente, o Ministro Eros Grau. Aqui, ele não usou nenhuma teoria do estado de exceção; apenas reconheceu se tratar de um ato emanado de um regime de exceção. No entanto, procuraremos demonstrar que o referencial teórico usado na ADI 2.240-7 reaparece no voto do Relator da ADPF 153, de forma mais rebuscada e densa, mas ainda decisiva para seu julgamento de improcedência da ação. O voto do Relator está dividido em itens, tal qual na ADI 2.240-7, mas dessa vez agrupados em “capítulos”. O primeiro, sobre as preliminares, não merece maior atenção. O segundo, “Primeiras impressões sobre a inicial”, tem três tópicos dedicados à interpretação jurídica que muito nos interessam, mas que voltarão mais à frente. Começaremos a análise pelo capítulo “Afronta a preceitos fundamentais” (itens 13 a 24). Foram vários os preceitos fundamentais violados pela Lei 6.683/79, segundo defendeu a OAB em sua peça inicial. Vamos focalizar no quarto preceito fundamental supostamente violado: a dignidade da pessoa humana. Afirma a inicial que a Lei de Anistia é justificada como sendo um acordo político, cujas partes se ignora, e que nasceu em condições de grave desrespeito à pessoa humana, o que vai contra o referido preceito, cuja melhor interpretação assegura à dignidade humana natureza “inegociável”. O Ministro rechaça tal argumento, de imediato, como exclusivamente político, e não jurídico, e que entra em conflito com “a história e o tempo”. O Relator lembra que a batalha pela anistia foi, talvez, o mais importante momento da redemocratização brasileira. “Toda a gente que conhece nossa história sabe que esse acordo político existiu” (item 21). Uma grande aliança entre diversos setores da sociedade em torno da bandeira da anistia escreveu a “página mais vibrante de resistência e atividade democrática de nossa História”. O Relator lembra diversos personagens e fatos dramáticos do que chamou de “estertores do regime”, destaca as passeatas duramente reprimidas pela polícia, os comícios e atos públicos realizados, e vaticina: “reduzir a nada essa luta é tripudiar sobre os que, com desassombro e coragem, com desassombro e coragem [sic] lutaram pela anistia, marco do fim do regime de exceção.” E acusa a OAB, que se empenhara naquela luta, de agora a desprezar, em autêntico venire contra factum proprium. O acordo político de 1979 retorna ao final do tópico seguinte, dedicado à análise da interpretação segundo a qual a Lei de Anistia teria abrangido os crimes cometidos pelos agentes da ditadura contra seus opositores. Segundo a tese defendida pela OAB, a expressão “crimes conexos”, contida no parágrafo 1º do artigo 1º da lei, não poderia alcançar os crimes comuns praticados pelos agentes do Estado, pois, conceitualmente, a conexão criminal é inviável nesse

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caso54. Em uma argumentação à primeira vista surpreendente para um “operador do Direito”, o Relator reconhece que, doutrinariamente, defende-se que crimes comuns não possam ser conexos a crimes políticos, mas que não apenas a lei definiu a anistia em termos totalmente contrários, como assim deve ser mantida. O Ministro defende que o mencionado dispositivo definiu crimes conexos como aqueles tendo qualquer relação com os crimes políticos – ignorando deliberadamente o sentido doutrinário. Lembra que, historicamente, todas as anistias concedidas no século XX no Brasil seguiram a mesma terminologia. E invoca como justificativa o “momento histórico de criação da lei”, o acordo político, cuja bilateralidade, amplitude e generalidade teriam se concretizado através desse dispositivo: A chamada Lei de anistia diz com uma conexão sui generis, própria ao momento histórico da transição para a democracia. Tenho que a expressão ignora, no contexto da Lei 6.683/79, o sentido ou os sentidos correntes, na doutrina, da chamada conexão criminal. Refere o que “se procurou”, segundo a inicial, vale dizer, estender a anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado encarregados da repressão.

Ocorre que afirmar que a conexão criminal criada pela Lei de Anistia não seguiu a conceituação doutrinária não implica na sua constitucionalidade ou na impossibilidade de sua reinterpretação conforme a Constituição. Afinal, tratou-se de um artifício pelo qual o Estado livrou seus próprios agentes da persecução penal – e, de quebra, afastou de si mesmo qualquer tipo de responsabilidade pela repressão política. O Ministro Eros Grau tem perfeita consciência disso. Sabe, também, que invocar a jurisprudência do STF sobre leis de anistia anteriores (a grande maioria datada da primeira metade do século XX, nenhuma sob a égide da Constituição de 1988) não basta, diante da brutal evolução do conceito de Constituição e do papel institucional do STF que ocorreram nesse meio tempo. Algo mais é necessário na sua argumentação. Aqui entramos em uma parte que consideramos decisiva para a compreensão do julgado de acordo com os referenciais teóricos do estado de exceção. No início do voto (itens 10-12), o Relator falara brevemente sobre a interpretação do direito, defendendo que, hoje, encontra-se assentada na doutrina a diferenciação entre texto e norma. “Todo e qualquer texto normativo é obscuro até o momento da interpretação”; é o intérprete que, a partir dos textos e da realidade, 54 “Crimes conexos” são delitos dependentes de um outro, no qual um deles tenha sido cometido para realizar ou ocultar outro delito, ou para assegurar-se a si mesmo, ou ainda para assegurar a outros o produto, o proveito ou a impunidade do delito. Um crime, portanto, deve ser pressuposto do outro: se não houver unidade delitiva, não haverá conexão, e sim crimes independentes. Mesmo no caso dos crimes conexos a crimes políticos, a doutrina brasileira tem defendido que a conexão deve ser analisada objetivamente, alcançando apenas aqueles crimes que atingem bens jurídicos comuns e que possuem uma relação de meio e fim para com os crimes políticos. Por isso, eventuais anistias não poderiam alcançar crimes comuns (tortura, homicídio) perpetrados contra criminosos políticos, porque tais crimes não derivaram logicamente dos crimes políticos praticados. Cf. BASTOS, 2009, p. 190-195.

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produz a norma. Logo, a interpretação jurídica não tem um caráter meramente descritivo, e sim constitutivo. O Relator retoma mais adiante a questão da interpretação para reforçar que é de seu caráter constitutivo que o direito retira seu dinamismo, sua força, seu fascínio, e sua beleza. “É do presente, na vida real, que se toma as forças que lhe conferem vida. E a realidade social é o presente; o presente é vida – e vida é movimento. Assim, o significado válido dos textos é variável no tempo e no espaço, histórica e culturalmente” (item 34). E, no entanto, toda essa defesa da interpretação jurídica como processo de contínua adaptação de textos normativos à realidade é invocada pelo Ministro apenas para ser totalmente rechaçada no caso em tela. O Ministro defende que a Lei de Anistia é uma “lei-medida”, uma lei que disciplina diretamente determinados interesses, mostrando-se imediata e concreta. Equivale, na prática, a um ato administrativo especial, pois não veicula comandos abstratos e gerais. São leis apenas em sentido formal, “leis não-normas”. Para tais leis, é impossível se utilizar da interpretação jurídica enquanto trabalho de adaptação do texto à realidade atual; elas somente podem ser interpretadas segundo a realidade e momento histórico em que foram editadas – e que, no caso da Anistia, “é a realidade histórico-social de migração da ditadura para a democracia política, da transição conciliada de 1979” (item 39). E tal realidade se consubstanciou em um acordo político pelo qual se concedeu a anistia tanto para os presos políticos quanto para os criminosos do regime militar. O último parágrafo do item 39 é o momento mais revelador do voto: A chamada Lei da anistia veicula uma decisão política naquele momento – o momento da transição conciliada de 1979 – assumida. A Lei 6.683 é uma leimedida, não uma regra para o futuro, dotada de abstração e generalidade. Há de ser interpretada a partir da realidade no momento em que foi conquistada. Para quem não viveu as jornadas que a antecederam ou, não as tendo vivido, não conhece a História, para quem é assim a Lei 6.683 é como se não fosse, como se não houvesse sido.

Em outros termos: a Lei de Anistia é impossível de ser interpretada de forma construtiva. Do seu texto, não é possível se extrair nenhuma norma com base na Constituição de 1988: a única base interpretativa possível é “a realidade” de 1979, interpretação esta que consistiu em uma anistia ampla e bilateral, fixada através do acordo político que possibilitou a própria aprovação da lei. Daí que ao Poder Judiciário seria vedado “reescrever” leis de anistia; tal competência seria exclusiva do Congresso Nacional. O Ministro, inclusive, afirma que foi esse justamente o caminho adotado por países vizinhos que revisaram suas Leis de Anistia: Chile, Argentina, Uruguai55. 55 Gisele Cittadino observa, porém, que o papel do Poder Judiciário destes países nos debates acerca do alcance e legitimidade das anistias foi decisivo. A Corte Suprema do Chile, em 2007, considerou imprescritíveis os crimes contra desaparecidos políticos. Na Argentina, as leis de anistia da ditadura foram declaradas inconstitucionais pela Suprema Corte em 2005, mesma decisão tomada pela Suprema Corte de Justiça uruguaia em 2009. Cf.

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Como derradeiro argumento para a improcedência da ADPF, o Ministro Eros Grau invocou a Emenda Constitucional n. 26, de novembro de 1985. Esta emenda à Constituição de 1969, em seu art. 1º, convocava a Assembleia Nacional Constituinte que redigiria aquela que seria a Constituição de 1988; e em seu art. 4º, § 1º, praticamente repetia o texto da lei de 1979, ao prever anistia a todos os servidores públicos civis da Administração Pública punidos por atos de exceção, bem como aos autores de crimes políticos e conexos, dentre outros. Para Eros Grau, tal determinação deve ser interpretada como uma validação da Lei de Anistia pelo próprio Poder Constituinte da Constituição de 1988, o que torna sem sentido a afirmação de que a lei não fora recebida por ela, pois esta a validou em seu ato originário. “A emenda constitucional produzida pelo Poder Constituinte originário constitucionaliza-a, a anistia (…) somente se a nova Constituição a tivesse afastado expressamente poderíamos tê-la como incompatível [com a Constituição de 1988]” (item 54). O voto do Ministro Eros Grau na ADPF 153 é, sem dúvida, muito mais denso e complexo em suas argumentações do que o proferido na ADI 2.240-7. Mas, a nosso ver, possui o mesmo lastro teórico: a teoria do estado de exceção de Carl Schmitt. Ela ressurge nestes autos de forma velada. Certamente, a leitura isolada da ADPF 153 não leva imediatamente o leitor à obra schmittiana – exceto no voto do Ministro Gilmar Mendes, que o cita para defender a interpretação do Relator sobre a EC 26/85, como veremos adiante. É a definição da Lei de Anistia como “decisão política”, no item 39 acima transcrito, que nos revela a presença implícita desta chave interpretativa no voto do Relator. No nosso entender, tal menção não pode ser lida sem que nos lembremos do fato de que o mesmo Ministro Eros Grau introduziu no âmbito do STF, na ADI 2.240-7 e em vários outros casos, uma teoria do estado de exceção cujo núcleo se baseia justamente na defesa da decisão política, ainda que em detrimento do texto constitucional. Nossa tarefa, agora, é justamente verificar se nossa afirmação faz sentido, se há realmente um substrato teórico comum implícito em ambos os casos analisados neste trabalho. É certo que a expressão decisão política só aparece uma vez no voto de Eros Grau na ADPF 153. Em compensação, acordo político é um termo recorrente. O último parágrafo do item 39, acima transcrito, mostra claramente que, para o Relator, ambas as expressões são sinônimas. Mas por que o Ministro optou pela última, em detrimento da primeira, que ele já consagrara em votos anteriores? Isso indicaria uma mudança no uso do referencial teórico schmittiano acerca do estado de exceção? Uma possível explicação para a troca de termos tem a ver com o tipo de argumentação

CITTADINO, 2012, p. 429.

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desenvolvido para defender a Lei de Anistia. Na ADI 2.240-7, a defesa da criação do Município de Luís Eduardo Magalhães por lei inconstitucional foi jurídica, através da interpretação schmittiana da definição de exceção de Giorgio Agamben: a exceção não está fora do ordenamento jurídico, sendo capturada pela norma através de sua desaplicação. Na ADPF 153 a argumentação jurídica é acessória. A defesa do acordo político da Anistia é eminentemente histórica; os argumentos jurídicos acerca dos crimes conexos e da EC 26/85 vem apenas reforçar o argumento político-histórico. O Relator criticou a argumentação apresentada pela OAB afirmando que sua denúncia do acordo político de 1979 foi exclusivamente política, não jurídica, entrando em conflito com a história e o tempo. Em outras palavras, a OAB estaria deturpando a história, que o STF, através daquele julgamento, estaria reafirmando. O surpreendente aqui não é apenas que o Ministro critique o uso de argumentos não-jurídicos pela OAB em um voto recheado de argumentos nãojurídicos; é que o mesmo Ministro que acusa a autora da ação de deturpar a história assume como fato certo e dado não o que realmente houve em 1979, mas sim uma interpretação da Lei de Anistia construída a posteriori. Não ha como evitar adentrarmos na seara histórica neste caso. O núcleo central do voto do Ministro Eros Grau – o qual foi acompanhado explicitamente por 7 dos seus colegas – é a defesa de que a Lei de Anistia foi fruto de um acordo político entre o regime militar e os setores de oposição que permitiu a transição conciliatória para a democracia, através do perdão indiscriminado tanto aos opositores quanto aos agentes do regime. O Ministro cita vários depoimentos de juristas – Dalmo Dallari, Nilo Batista, Sepúlveda Pertence, Tarso Genro – que iriam nesse sentido. Ocorre que tal narrativa não condiz com a realidade dos fatos tal como ocorreram em 1979, como tem sido denunciado por diversos historiadores e juristas (inclusive alguns dos citados no voto, como Dallari). O Relator está certo em afirmar que a batalha pela anistia foi um dos momentos mais importantes da luta pela redemocratização do país. Mas parece ignorar que os setores da sociedade que lutavam pela anistia nunca manifestaram desejo de que ela abrangesse os agentes do Estado que tivessem torturado, matado e feito desaparecer centenas de pessoas. A anistia “ampla, geral e irrestrita” se referia a todos os presos políticos, inclusive os envolvidos na luta armada e crimes de sangue56. O Congresso Nacional pela Anistia, realizado em novembro de 1978, aprovara um Programa Mínimo que explicitamente defendia: “Fim Radical e Absoluto das Torturas. Denunciar as torturas e contra elas protestar, por todos os meios possíveis. 56 Vide, nesse sentido: ABRÃO & TORELLY, 2012, p. 560; NAPOLITANO, 2014, p. 297; FERNANDES, 2010, p. 4; GRECO, 2003, p. 84 e ss.

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Denunciar à execração pública os torturadores e lutar pela sua responsabilização criminal e do sistema a que eles servem.“ (apud FERNANDES, 2010, p. 4) A Carta do Congresso, também produzida no mesmo encontro, foi ainda mais enfática: “Não aceitamos a anistia parcial e repudiamos a anistia recíproca. Exigimos o fim radical e absoluto das torturas e dos aparatos repressivos, e a responsabilização judicial dos agentes da repressão e do regime a que eles servem.” (apud GRECO, 2003, p. 99). Esta era a verdadeira luta que envolveu diversos setores da sociedade no final dos anos 1970: luta pela libertação dos presos políticos em sua totalidade, e pela punição dos torturadores do regime. A batalha pela anistia se insere em um quadro de deslegitimação e desagregação acentuados do regime militar brasileiro, como destacado pelo Relator. Mas a Lei de Anistia em si não deve ser vista como uma conciliação entre iguais, e sim como o contra-ataque da ditadura no intuito de retomar o controle do processo de transição. Marcos Napolitano destaca que a “abertura política” iniciada pelo governo Geisel (1974-79) visava não a democracia, mas a “institucionalização da exceção”, com a descompressão apenas pontual e tática da repressão, visando não um governo civil plenamente democrático, mas tutelado pelas Forças Armadas. Os movimentos populares que ressurgiram nas ruas em 1977 – de estudantes, metalúrgicos, defensores da anistia, dentre tantos outros – arruinaram a agenda conservadora da ditadura e a obrigaram a transformar a distensão em efetiva abertura democrática a partir de 1978 (NAPOLITANO, 2014, p. 234). Mas a ditadura não podia permitir que a transição saísse completamente do seu controle. A oposição brasileira forjada pelas ruas em 1978 e 79 mantinha uma inédita união, apesar da pluralidade ideológica, e cada vez mais caminhava para a esquerda, empurrada pelos movimentos sociais. Napolitano afirma que a oposição unida de 1979 estava longe de defender a revolução socialista, mas também se afastava da opção moderada e conciliatória tradicional do liberalismo brasileiro, que Eros Grau afirma ter comandado o processo desde sempre, assumindo feições quase social-democratas (Ibid., p. 296). A estratégia do regime militar foi justamente implodir a união das oposições e recolocar a alternativa moderada e conciliatória no centro da transição. A Lei de Anistia, ainda que fruto das pressões das ruas, foi também a oportunidade encontrada pelo regime para atingir seu objetivo de desarmar e dividir a oposição e retomar o controle do processo político de abertura (Ibid., p. 297)57. Tal contextualização não impede, em teoria, que eventuais acordos políticos no sentido

57 O fim do bipartidarismo e a volta das eleições diretas para governador, aprovadas em 1979 e 1980, completaram a agenda da ditadura visando a divisão das oposições e o fortalecimento da facção liberal moderada, considerada mais confiável. Cf. NAPOLITANO, 2014, p. 296-297.

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de uma anistia recíproca pudessem ter sido feitos no Congresso Nacional em 1979. “Acordos”, por definição, pressupõem, no mínimo, igualdade de condições entre os negociadores; se há desequilíbrio, não há acordo, há imposição. Resta-nos, então, avaliar se, nos debates legislativos da lei, houve essa negociação equânime e equilibrada. A resposta é não. Como Heloísa Greco destaca em seu longo estudo sobre o período, o fato dos Comitês pela Anistia espalhados pelo Brasil e seus aliados terem conseguido obrigar a ditadura a colocar as suas reivindicações na ordem do dia não levou o regime a reconhecê-los como interlocutores – e sim como adversários do processo, já desgastado, de institucionalização da ditadura. Com adversários não há negociação, há neutralização (GRECO, 2003, p. 269). O projeto de anistia enviado pelo presidente Figueiredo não reconhecia as demandas populares: propunha apenas uma anistia parcial (que excluía aqueles que pegaram em armas contra o regime) e recíproca (através da malfadada expressão “crimes conexos de qualquer natureza”58). A solenidade na qual o projeto foi enviado ao Congresso foi boicotada pelo partido de oposição, o MDB. Em seu discurso, o general Figueiredo faz questão de apresentar o projeto como um gesto de “conciliação”, mas com ressalvas: Por ele [o projeto], podem os brasileiros ver que a minha mão sempre estendida em conciliação não está vazia. Nunca esteve. (…) Contudo, é preciso reafirmar: o ideário da Revolução de 1964, que nos inspirou durante os últimos 15 anos, continuará vivo através das gerações. É dentro dessa premissa que recebemos os anistiados. A anistia tem justamente este sentido: de conciliação para a renovação. Dentro da continuidade dos ideais democratizantes de 1964, que hoje reencontram sua melhor e mais grandiosa expressão. (apud Ibid., p. 270)

A premissa que inspira a anistia é a manutenção do ideário da Revolução; somente desse modo o generoso governo concede-a a alguns dos seus opositores. Esse é o sentido da anistia, segundo o discurso revelador do general-presidente. Nunca houve conciliação; a anistia recíproca foi imposta por um dos lados, o Estado ditatorial, objetivando não a democracia – que, afinal, nunca deixara de existir, segundo Figueiredo – mas sim a preservação dos ideais de 1964. Em outros termos: a institucionalização da exceção, através da impunidade dos agentes do próprio Estado que cometeram crimes. O debate legislativo da Lei de Anistia somente comprova a completa inexistência de qualquer tipo de negociação na sua feitura. Formou-se uma comissão mista de parlamentares para sua análise, presidida pelo senador de oposição Teotônio Vilela (MDB-AL), o qual era favorável

58 Em seu voto, o Ministro Ayres Britto, em passagem memorável, questiona por que o projeto de lei da anistia não previa expressamente a anistia aos torturadores, preferindo a expressão “crimes conexos”. Ora, se se tratava de um acordo em que todos defendiam a anistia recíproca, por que o uso de eufemismos legais? Para o Ministro, isso revela a falta de coragem dos redatores da lei em explicitar o perdão aos criminosos do regime, o que impede o reconhecimento de qualquer reciprocidade na lei.

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à expansão da anistia a todos os presos políticos – que, na época, iniciaram greve de fome, pela qual, ao contrário do que Eros Grau narra no item 21 de seu voto, denunciavam a proposta de anistia parcial, que não os beneficiava na totalidade, e foi utilizada pelo MDB para tentar emplacar justamente uma CPI dos Direitos Humanos para investigar os abusos cometidos pelo regime a partir de dossiês montados pelos próprios presos, devidamente impedida pelo partido governista Arena (GRECO, 2003, p. 262-263). As atas das oito reuniões da Comissão Mista, nas palavras de Heloísa Greco, mostram a condição paradoxal dos debates nela realizados no mês de agosto de 1979. Por mais que ela tenha conseguido promover discussões importantes para o país, o projeto de lei em si foi imune a eles. A sua relatoria foi confiada a um arenista, Ernani Satyro (PB), cuja defesa intransigente do projeto demonstrava a falta de interesse do governo militar em efetivamente negociar qualquer coisa59. Todas as propostas da oposição no sentido de ampliar a participação popular nos debates da lei foram rejeitadas sistematicamente pela bancada governista, que tinha maioria numérica na comissão. Isso permitiu ao relator apresentar um substitutivo ao projeto de lei que era exatamente igual ao projeto do Executivo, com pequenas diferenças autorizadas pelo próprio governo – e que em nada melhoravam o projeto no sentido defendido pelos movimentos populares (Ibid., p. 277). O MDB contra-atacou apresentando substitutivo assinado, dentre outros, por Ulysses Guimarães e Paulo Brossard, dois dos seus principais senadores. Redigido pelo conselheiro da OAB Sepúlveda Pertence, e pelo jurista Dalmo Dallari, propunha expressamente a anistia ampla, geral e irrestrita dos presos políticos e a rejeição completa da reciprocidade para com os torturadores do regime (Ibid., p. 280). Foi aceito unanimemente pelas bancadas do partido nas duas casas, e incorporava efetivamente as demandas dos movimentos populares pela anistia. Em uma das partes mais controversas de seu voto, o Ministro Eros Grau acusa a OAB de ir contra um pacto político que ela teria ajudado a compor – acusação que a história verdadeira destrói por completo: a OAB lutou para que a anistia não saísse da forma como o governo queria. O Ministro chega ao ponto de citar Dallari e Pertence como se eles defendessem desde sempre a anistia parcial e recíproca, quando, na verdade, as falas deles reproduzidas nos autos denunciam um “acordo político” que não existia, pois um dos lados – o governo – se recusava a negociar. A interpretação do Relator, à luz dos fatos tal como realmente ocorridos, parece, ironicamente, incorrer, para usar de seus próprios termos, “em testilhas com a História e o tempo”. O curioso é que, em um dos trechos reproduzidos, Pertence afirma que a reciprocidade contida na expressão 59 Ernani Satyro era instruído diretamente pelo ministro da Justiça, Petrônio Portella, acerca de quais emendas poderia ou não aceitar ao projeto, demonstrando a total falta de independência do relator com relação ao Executivo. O senador Pedro Simon (MDB-RS) denunciou tal ingerência na época, na tribuna do Senado. Cf. GRECO, 2003, p. 276

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“crimes conexos” era “inegociável pelo Governo”, e somente por isso se buscaram outras alternativas para melhorar o projeto: todas as propostas de emenda eram “de antemão condenadas à derrota sumária.” (item 41). Ora, uma coisa é defender que a anistia deveria ser parcial e recíproca; outra é admitir que na impossibilidade de uma negociação livre e justa, outras estratégias tiveram que ser adotadas. Que Eros Grau confunda ambas e transforme tudo em um acordo político legítimo é estarrecedor. A emenda do MDB foi rejeitada, e, como última alternativa, o partido decidiu apoiar um substitutivo do deputado Djalma Marinho (Arena-RN), que, embora admitisse a anistia recíproca, tornava-a efetivamente irrestrita, abrangendo os guerrilheiros já condenados. Somente assim – defendeu o deputado em suas considerações – se atingiria a “amnésia coletiva” - uma afirmação reveladora. A votação ocorreu em 22 de agosto de 1979. Oitocentos soldados do Exército ocuparam as galerias do Plenário, que tiveram que ser tomadas pelos militantes da anistia no grito. Mas a votação já estava decidida de antemão. O Jornal do Brasil noticiara que o governo enviara um recado a sua base parlamentar: ou o substitutivo de Ernani Satyro era aprovado, ou o presidente vetaria por completo a anistia (Ibid., p. 292). A Emenda Marinho, ainda assim, foi derrotada por um placar surpreendentemente apertado: 206 votos contra, 201 a favor, o que demonstra a total inexistência de acordo efetivo em torno do projeto enviado pelo Planalto até mesmo dentro da Arena. O voto das lideranças – rejeitado por parte expressiva da bancada do MDB – acabou selando a aprovação da Lei de Anistia do regime militar. Se houve alguém que falseou a História, portanto, esse alguém foi o STF. A Anistia de 1979 foi uma demanda popular sequestrada pelo regime e modificada para atender ao seu próprio objetivo de manter o controle sobre a própria queda. Nunca foi uma anistia ampla, geral e irrestrita – abrangeu aqueles que os movimentos sociais não queriam, os torturadores, e excluiu aqueles que pegaram em armas contra o regime, e que somente saíram da cadeia nos anos seguintes por outros meios (NAPOLITANO, 2014, p. 299). O mito do “acordo político”, porém, faz parte da memória hegemônica liberal sobre a ditadura que se impôs nos anos seguintes, quando a oposição moderada tomou, afinal, a dianteira do processo de redemocratização. A transição conciliadora, porém, não era uma certeza em 1979; a pressão das ruas, pelo contrário, indicava o horizonte de uma ruptura menos amistosa para o regime militar, que, então, agiu no sentido de quebrar a unidade da oposição e fortalecer os setores liberais e moderados. A posição do STF vem referendar não os fatos históricos, tal como ocorreram, mas sim uma interpretação enviesada dos mesmos, construída posteriormente, e que busca colocar a Lei de Anistia justamente como o início desse processo (Ibid., p. 319). A ênfase do Ministro Grau na expressão “acordo político” deve ser incluída, portanto, nessa narrativa hegemônica, cada vez mais

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questionada. Os fatos, tal como ocorreram, demonstram que a Lei de Anistia aprovada pelo Congresso era exatamente aquela que o regime queria. A ditadura não tinha respeito algum pelo Congresso60: controlava à distância as votações e antecipava o veto a qualquer decisão que alterasse o projeto por ela concebido. O que houve não foi um acordo político; foi uma decisão política claramente autoritária e que apresentava às oposições apenas uma opção: aceitar seus termos ou nada. O próprio Relator, sem perceber, admite isto em seu voto ao afirmar: “Ocorre que os subversivos a obtiveram, a anistia, à custa dessa amplitude. Era ceder e sobreviver ou não ceder e continuar a viver em angústia.” (item 43). Isto é um acordo de verdade, entre partes que se tratam equanimemente, e em paridade de forças? Certamente que não. A Anistia não foi o alvorecer da democracia; foi o último ato de força do regime militar. O voto do Ministro Eros Grau tenta afastar da Lei de Anistia qualquer ranço de autoritarismo e exceção, ainda que às custas da História. Busca transformar uma decisão política autoritária num acordo político democrático. Mas também recupera o referencial teórico de Carl Schmitt para conferir à decisão política da Anistia superioridade sobre a própria Constituição democrática. A tipificação da lei como “lei-medida” é parte desta estratégia, pois simplesmente veda a interpretação da Lei de Anistia pela Constituição de 1988, sob a alegação de que seus efeitos já foram exauridos, e de que não se tratava de uma “regra para o futuro”. Ambas as argumentações, porém, não se sustentam. Em primeiro lugar porque até hoje muitos desaparecidos do período ditatorial continuam sumidos – questão levantada pelo Ministro Ricardo Lewandowski em seu voto favorável à revisão da lei, e que se baseou na questão do sequestro como crime continuado. Em segundo lugar, a Anistia, por definição, objetiva não apenas o esquecimento completo e eterno do passado para fins jurídicos, mas também para fins sociais. Se ela objetiva a “pacificação social”, seus efeitos são necessariamente permanentes, não limitados ao ano de 1979; do contrário, ela nunca será um instrumento para a paz definitiva61.

60 Dois anos antes, em 1977, o Congresso rejeitara a Reforma do Judiciário apresentada pelo governo Geisel. O presidente, usando os poderes do AI-5, fechou o Congresso por 14 dias, declarou promulgadas as emendas constitucionais necessárias, flexibilizou o quórum para emendas constitucionais, e ainda criou a figura do “senador biônico”, tudo para enfraquecer a oposição e retomar o controle da pauta legislativa. O AI-5 seria revogado no final de 1978, mas é evidente que isso não impediria o governo “da Revolução” de se utilizar novamente de Atos Institucionais quando bem entendesse; afinal, a sua justificação se baseava apenas no próprio interesse da ditadura. 61 A anistia recíproca também foi defendida no STF como necessária para a pacificação nacional, tese esta também pertencente à memória hegemônica liberal e sua “teoria dos dois demônios” (os radicais de direita e de esquerda teriam levado o país à ditadura). Lucia Elena Bastos critica tal interpretação, lembrando que os opositores do regime militar nunca tiveram organização nem força suficientes para criarem uma situação de guerra civil no país. O Estado nunca esteve em perigo, nem as ações guerrilheiras tiveram impacto relevante e/ou duradouro na vida da população. Por outro lado, o terror de Estado foi institucionalizado e sistemático ao longo de todo o período – desde o dia seguinte ao golpe, quando o comunista Gregório Bezerra foi torturado e arrastado pelas

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No mesmo voto em que defende que é da interpretação jurídica que o Direito tira sua força e beleza, o Ministro Eros Grau veda a interpretação jurídica à Lei de Anistia, e transforma o Direito em nada. Isto somente pode ser interpretado a contento levando-se em conta a sua caracterização da lei como decisão política, a qual, seguindo o referencial teórico adotado pelo mesmo Ministro na ADI 2.240-7 e em outras, não se confunde com o Direito comum. A interpretação da decisão política pertence ao soberano que a proferiu, e portanto, se este quis estender a anistia aos seus próprios agentes, não é o STF que questionará o caráter sui generis da conexão criminal da Lei 6.683/79. Tal posição é uma refutação completa de nossa hipótese de que o constitucionalismo democrático impõe a submissão de atos de exceção aos seus preceitos, refutação esta que o Ministro Grau tenta ocultar ao caracterizar a Anistia como um “acordo político democrático”. É no argumento final, envolvendo a Emenda Constitucional 26/85, que o “aniquilamento do constitucionalismo” (FERNANDES, 2010, p. 5) se completa. O Ministro afirma que esta emenda, que convocou a Constituinte de 1987-88 e confirmou a Anistia de 1979 seria manifestação do próprio Poder Constituinte Originário, o qual, através dela, teria constitucionalizado a anistia, tornando-a, automaticamente, parte integrante da Constituição de 1988, não no texto da mesma, mas como sua “norma-origem” (item 56), ambas formando “a nova ordem constitucional”. Aqui, novamente, a matriz teórica que orienta o voto de Eros Grau se revela: a decisão política de 1979 é renovada por outra decisão política, de 1985, a qual, por convocar a Assembleia Constituinte, é certamente manifestação do Poder Constituinte Democrático – logo, certamente decisão fundamental. A legitimidade democrática do acordo político de 1979 é aqui renovada, mas também a sua natureza de decisão política. A origem teórica de tal argumentação é explicitada no voto do Ministro Gilmar Mendes, que cita o próprio Schmitt e sua Teoria da Constituição – não para discordar do Relator, mas para corroborar sua visão e afirmar que a emenda foi um “ato peculiar” de mudança de regimes constitucionais, cuja modificação repercutiria nas próprias bases da Constituição de 1988. A filiação de um dos maiores constitucionalistas do país à tese de que uma Emenda Constitucional à Constituição outorgada pela ditadura em 1969 se sobrepõe e condiciona a Constituição democrática de 1988 é desalentadora. Felizmente, o Ministro Ayres Britto, em seu voto pela revisão da anistia, demonstrou a confusão conceitual embutida em tal argumentação. O ato de convocação da Assembleia Constituinte não pode ser confundido com a obra da própria ruas do Recife por militares, até o atentado fracassado ao Riocentro de 1981, sintomaticamente impune, mesmo tendo ocorrido após a Anistia. Equiparar ambos os lados da disputa e transformar um massacre de guerrilheiros maltrapilhos em guerra civil acaba por referendar a ideologia dos militares da época, e desvalorizar a busca pela verdade sobre o período. Cf. BASTOS, 2009, P. 197-198.

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Assembleia Constituinte; o primeiro é um mero ato formal, produzido por legisladores ordinários, e que apenas desencadeia um processo constituinte que, por sua própria natureza, é incondicionado: “Ninguém pode impor sua vontade a uma Assembleia Nacional Constituinte, nem mesmo o autor do ato de sua convocação”, defendeu o Ministro Britto. Vamos além: o fato da Emenda Constitucional 26/85 convocar a Constituinte não confunde seus autores com o Poder Constituinte; antes mostra que foi a pressão do Poder Constituinte popular que foi reconhecida pelos poderes constituídos. A emenda foi mero artifício para reconhecer um fato político, a necessidade de uma nova Constituição; não uma norma emanada do Poder Constituinte, cuja representação política ainda seria eleita. Nas palavras de Geraldo Ataliba, ainda em 1987: “A Constituinte não surge do, não repousa no, não depende do direito; não é condicionada por nenhuma norma. Fato político, nasce de um fato político; a escolha, a investidura de seus membros, com explícita delegação.” (apud CABRAL, 1988, p. 24)62. A Lei de Anistia de 1979 foi um ato de exceção de um regime de exceção, e não um ato democrático de um regime em transição. O voto do Ministro Eros Grau, mantendo a coerência com o referencial teórico de Carl Schmitt adotado por ele mesmo anteriormente, defende a decisão política e a exceção. Torna-as imunes à interpretações que não sejam do próprio soberano que as proclamou, e ainda as coloca como verdadeiros pilares ocultos do regime constitucional e democrático brasileiro. Tal raciocínio foi acompanhado pela maioria dos ministros da Corte – desta vez explicita e entusiasticamente, e não através do silêncio, como ocorreu na ADI 2.240-7. Trata-se de uma “evolução” perturbadora na jurisprudência. No final, o Ministro Eros Grau reiterou seu repúdio a todo tipo de tortura e a toda forma de esquecimento, gesto repetido por todos os colegas. Seus votos, porém, em nenhum momento impõem limites à decisão política soberana – nem no respeito aos direitos humanos, nem no cumprimento efetivo dos procedimentos democráticos, nem em qualquer critério normativo que leve à limitação do poder político, tornando o STF, nas palavras de Raphael Neves, um “tribunal sem Direito” (NEVES, 2010). A colocação da Anistia como “norma-origem” da Constituição de 1988 nos remete 62 Durante a Constituinte, o consultor-geral da União Saulo Ramos publicou livro defendendo que a Assembleia Constituinte era derivada, e que portanto tinha meros poderes de reforma. Denominado, ambiciosamente, de Assembleia Constituinte: o que pode, o que não pode, o livro possui epígrafe de ninguém menos que Carl Schmitt. O autor queria preservar a duração do mandato do presidente José Sarney, fixada pela Carta de 1969, e frear o avanço dos movimentos progressistas na Constituinte. Um dos argumentos invocados para a limitação dos poderes da Assembleia de 1987-88 foi justamente o fato de que sua convocação se deu através de emenda constitucional à Carta de 1969, que serviria de limite material à nova Constituição. O relator da Comissão de Sistematização da Constituinte, Bernardo Cabral, respondeu duramente Saulo Ramos em obra intitulada O Poder Constituinte, de onde retiramos o excerto acima. O STF de 2010 acabou usando um argumento usado nos anos 1980 para deter o potencial inovador da Constituinte para propósito semelhante: enfraquecer o potencial renovador da Constituição de 1988.

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inesperadamente a Giorgio Agamben. Vimos que, para ele, a exceção não é um fenômeno oposto ao direito, mas na verdade encontra-se na sua origem, sendo o real mecanismo de concretização do direito, de captura da vida diretamente pela força do soberano, autoproclamada “de lei”. É a decisão que define a vida politicamente importante e a vida nua, abandonada apenas à violência e à morte. No caso brasileiro, todos aqueles que passaram pelas salas de tortura, todos os exilados, mortos e desaparecidos, eram vidas nuas submetidas apenas à força da “Revolução”. A Lei de Anistia acabou sendo o paradoxal “acordo” que condicionou o retorno dos opositores do regime à vida política nacional ao reconhecimento justamente dessa qualidade de “vidas nuas” deles. Em outras palavras: a mesma lei que trouxe de volta à “vida jurídica” as vidas nuas presas nos calabouços do regime ou perdidas pelo mundo somente o fez apagando os crimes cometidos contra elas, negando-lhes justiça. Os agentes do Estado que assassinaram, torturaram e mutilaram não tinham cometido crime algum; logo, suas vitimas puderam ser torturadas e mortas e seus corpos, sumidos, sem que nada disso configurasse homicídio ou sacrifício. O homo sacer da Roma Antiga reapareceu no Brasil da ditadura, confirmando o alerta de Agamben de que esta figura sempre retornará enquanto a biopolítica permanecer. Se é evidente que o STF, sozinho, não pode quebrar essa lógica, dentro dos seus estreitos limites ele poderia denunciar o mecanismo e levar o constitucionalismo democrático a sério, através de uma aplicação “revolucionária” (no sentido de buscar o novo, e não de manter o velho) dos preceitos constitucionais e democráticos, que proclamasse haver algum limite ao poder soberano, consistente na preservação e promoção da vida e dos direitos humanos, na necessária punição às suas violações, e no reconhecimento de que a democracia que nasce da violência de Estado impune é necessariamente frágil. A Corte preferiu fazer o inverso: proclamou a decisão política de exceção como verdadeira origem da Constituição de 1988. Diante da decisão, as normas constitucionais de vedação à tortura, respeito e promoção dos direitos humanos e da dignidade da pessoa humana, nada valem; estas é que devem ser interpretadas em respeito àquela. A permanência da sala de tortura, da vida nua e da decisão soberana que as definiu como fundamentos ocultos do Estado Democrático de Direito – cujo questionamento, lembremos as palavras do Ministro Mendes, repercutiria “nas bases” da Constituição de 1988 – é o resultado do julgamento da Lei de Anistia. É na defesa incondicional da decisão política que os votos do Ministro Eros Grau na ADI 2.240-7 e na ADPF 153 se conectam, formando um conjunto de decisões coerente com o referencial teórico schmittiano adotado pelo eminente juiz e por seus colegas. Nesse cenário, o constitucionalismo democrático perde toda a sua força inovadora, e se transforma em mero recurso teórico, expressão vazia, ficção jurídico-política. O Supremo Tribunal Federal, mais uma vez, agiu não como o guardião da Constituição,

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mas sim como o guardião daquilo que ele mesmo proclamou como superior a ela. Um guardião da exceção, que presta contas apenas ao poder soberano, seja ditatorial, seja inconstitucional.

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5. CONCLUSÃO: EM BUSCA DE UM DIREITO CONSTITUCIONAL LEVADO A SÉRIO “Estamos abaixo de uma Constituição, mas a Constituição é aquilo que os juízes dizem que é.” Justice Charles Evans Hughes, presidente da Suprema Corte americana na década de 1930.

Ao longo do presente trabalho, diversas conclusões parciais já foram antecipadas, e seria despiciendo reproduzi-las na íntegra novamente. Aqui, procuraremos resumir em breves linhas os resultados de nossa investigação e as perspectivas que abrem para eventuais estudos posteriores sobre o tema, necessariamente mais abrangentes e aprofundados acerca do tratamento da teoria do estado de exceção pelo Supremo Tribunal Federal. Primeiramente, o estudo dos referenciais teóricos de Carl Schmitt e Giorgio Agamben nos levou à conclusão de que a compatibilização entre estado de exceção e constitucionalismo democrático (que vise o reforço do último, destaque-se) é altamente improvável, senão impossível. Na teoria de Carl Schmitt, ela somente é possível através de uma completa redefinição acerca do que é Constituição e do que é democracia, redefinições estas que transformam a Constituição em mero instrumento de concretização das vontades de algo maior – a decisão política fundamental do soberano, una e inquestionável – e a democracia em um regime avesso ao pluralismo e obcecado pela ordem. A teoria de Giorgio Agamben, por sua vez, denuncia a ideia de que no estado de exceção o soberano ainda esteja preso à legalidade, mostrando que ali, de fato, impera a pura força, uma violência absoluta que incide diretamente sobre os corpos, negando-lhes qualquer tipo de direito fundamental ou humano. Tal constatação não impediu o STF, através principalmente dos votos do Ministro Eros Roberto Grau, a adotar a teoria schmittiana da exceção para resolver justamente questões de controle de constitucionalidade. O problema, como esperamos ter demonstrado, não foi apenas a escolha do pior referencial teórico – justamente aquele criado pelo jurista que, embora brilhante e visionário, exaltara e legitimara a exceção e o decisionismo enquanto instrumento autoritário de governo ao ponto de ter entusiasticamente se colocado aos serviços do pior regime totalitário da história. O Tribunal se utilizou de um complexo argumentativo altamente refratário aos ideais e práticas do constitucionalismo democrático que está na base da jurisdição constitucional moderna, esperando reinterpretá-lo em favor da Constituição e da democracia. Porém, dos votos analisados, não conseguimos extrair qualquer parâmetro que realmente assegure a força

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normativa da Constituição e dos valores democráticos. Pelo contrário, os votos do Ministro Eros Grau se notabilizaram pela defesa escancarada e assertiva da exceção como núcleo intocável do Estado de Direito brasileiro. Claro que o Ministro e seus colegas a todo momento afirmavam o contrário: há belas passagens acerca do vigor e da beleza da interpretação do Direito como instrumento de atualização das normas à realidade; há a defesa apaixonada da força normativa da Constituição; há a crítica certeira acerca do uso personalista do princípio da dignidade da pessoa humana, e de como o mesmo pode levar a uma tirania dos valores. No entanto, não basta ao Supremo Tribunal Federal afirmar que há situações em que tais parâmetros normativos devem ser afastados; precisa justificar como tais afastamentos são necessários para concretizar outros padrões normativos compatíveis com a Constituição. O controle de constitucionalidade exige esse ônus argumentativo: não posso simplesmente afastar a Constituição, preciso encontrar uma justificativa que preserve a razão de ser da própria Constituição e do próprio controle de constitucionalidade; caso contrário, o argumento de defesa da Constituição na forma de sua suspensão resta totalmente incoerente. Nos votos do Ministro Eros Grau, essa incoerência fica evidente. Na ADI 2.240-7, o Ministro invoca Konrad Hesse para falar da força normativa da Constituição em um caso em que justamente nega à Constituição qualquer força normativa – usando Carl Schmitt, um autor cujo decisionismo Hesse rejeitara explicitamente (HESSE, 1991, p. 13). Em seu voto, a única força normativa que lhe interessa reforçar e proteger é a “dos fatos”; mas não os fatos da realidade presente, que justificariam perfeitamente uma modulação dos efeitos da declaração de nulidade da lei, e sim aquela oriunda da “decisão política” que criou o Município, certamente inconstitucional, mas ainda assim “dentro do ordenamento”, por força da exceção decidida pelo próprio Tribunal. A Constituição positiva, para Eros Grau, somente vale – somente possui a “força normativa” de que Hesse falava, portanto – se estiver em conformidade com uma etérea “ordem concreta”, cujas feições compete ao STF regular, usando a teoria da exceção. Aqui não há o diálogo entre realidade e norma que Hesse defendia; há a imposição, desde o momento da própria criação da norma inconstitucional, da realidade sobre a norma, justificada com o decisionismo schmittiano. Não há uma só argumentação, portanto, que leve valorize a defesa dos preceitos constitucionais; a proteção da decisão fundamental é a única preocupação. Isso fica claro quando terminamos o voto e lemos seu esclarecimento de que aquela decisão não estimularia a criação de novos Municípios inconstitucionais. Como não estimularia, se nenhum parâmetro de controle fora fixado e se nenhuma limitação à decisão política fora enunciada naquele julgado, tornando absolutamente inócuo o texto constitucional? Na ADPF 153, a mesma incoerência se repete. O Ministro critica o uso substantivo do

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princípio da dignidade da pessoa humana, o qual poderia levar a uma tirania de valores, consistente na predominância de um critério valorativo eminentemente particular. Mas, logo em seguida, profere um voto em que afirma que “acordos políticos” - e aqui pouco importa se foram acordos democráticos ou não – tem poderes ilimitados, graças à sua natureza de decisão política. Ora, se a decisão soberana não obedece nenhum parâmetro, então há justamente uma tirania de valores – a qual, porém, foi aceita pelo Tribunal. O problema se repete mais à frente: Eros Grau defende a interpretação jurídica como a alma do Direito, apenas para logo em seguida a afastar do campo da decisão política, a qual deve ser preservada segundo a “sua realidade” - a vontade do soberano. Ao final, a emocionada condenação à tortura e a defesa da busca pela verdade se torna vazia, em um julgamento que decidiu no sentido de que “decisões políticas” podem apagar tudo, inclusive violações sistemáticas de direitos humanos, e que tal decisão jamais poderá ser atualizada, ou revista, por aquele que, em tese, guarda a Constituição democrática. Concluímos, portanto, pela existência em ambas as ações de um mesmo padrão: a defesa vazia dos preceitos constitucionais e democráticos justificando a defesa concreta e prática dos atos de exceção. Em um cenário no qual predomina a “retórica do guardião entrincheirado”, para usar da feliz expressão de Conrado Hübner Mendes (2011, p. 251), ou seja, no qual se considera o STF como o “salvador da pátria”, o grande protetor dos direitos e reserva de justiça da democracia, essa incoerência argumentativa do Tribunal exposta nos votos proferidos na ADI 2.240-7 e na ADPF 153 deveria, a nosso ver, ser vista com preocupação. A sucessão de escândalos de corrupção nas esferas executiva e legislativa tem corroído o prestígio destes dois Poderes; concomitantemente, o STF tem assumido ares de Corte Constitucional, aumentando sua importância na realidade institucional brasileira. Não negamos o fato de que o STF, nos últimos 10 anos, protagonizou pequenas revoluções na vida política e social brasileiras. Inegável o potencial transformador e inovador contido em decisões como a da constitucionalidade das cotas raciais, da possibilidade do aborto de fetos anencefálicos, da legalidade da união homoafetiva, dentre tantos outros casos em que o Tribunal levou os preceitos constitucionais e democráticos a sério. No entanto, o prestígio obtido nos meios jurídicos e na própria sociedade acabou reforçando a retórica do guardião entrincheirado, do STF como “último defensor” dos direitos do cidadão, contra tudo e todos para fazer valer “a supremacia da constituição” (Ibid., p. 251), criando uma mentalidade, bastante difundida no mundo jurídico, de “superioridade moral” dos argumentos daquele Tribunal sobre todas as outras possíveis interpretações da Constituição, que os torna quase revelações divinas. Tal mentalidade certamente ressoa nos próprios ocupantes do STF, um Tribunal ainda pouco aberto a diálogos institucionais e com a própria sociedade – e fortalece a noção de que, no final, a Constituição será o que eles decidirem que seja – e que não

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há nenhum problema em se defender o afastamento dos preceitos constitucionais em prol de decisões consideradas de exceção, contanto que se proclame que a finalidade ainda é a guarda da Constituição. O que importa é o resultado formal, e não a coerência na argumentação que levou até ele. Tornou-se comum ouvir de certos atores políticos, quando inquiridos acerca do que acharam de decisões do STF, a resposta “decisão do STF não se discute, se cumpre”. A grande conclusão deste trabalho é justamente que tal assertiva é um completo disparate. Decisões judiciais, todas elas, devem estar abertas à discussão; em especial, aqueles relativas ao que entendemos como sendo Constituição e Democracia. Não pretendemos, com este trabalho, afirmar que tais conceitos são fechados, dados e imutáveis; não os vemos como “decisões políticas”. Apenas defendemos que possuem um potencial transformador e inovador da realidade em que estão inseridos que não pode ser desperdiçado. Estão, e precisam estar, sempre abertos a novas evoluções no comportamento da sociedade, ao mesmo tempo em que buscam estimulá-las. O grande equívoco do STF, nos casos aqui analisados, foi tirar do constitucionalismo democrático esse potencial inovador e transformador, que possibilite o efetivo rompimento com o passado autoritário ou com as formas de ilegalidade que ainda perpassam nosso sistema político, e o estabelecimento de um efetivo “novo”. Quando o STF normaliza a exceção, está confirmando essas mesmas tradições, permitindo que continuem incubadas dentro do Estado Democrático de Direito; quando as proclama como “ordem concreta” ou “norma origem”, converte o constitucionalismo democrático em uma farsa, por trás do qual mantém-se, intocado e permanente, o estado de exceção. O Brasil é um dos países com a maior taxa de violência policial do mundo.. Indivíduos são mortos e desaparecidos aos montes nas favelas e comunidades carentes das grandes cidades brasileiras, sem que ninguém se preocupe em averiguar tais casos. Quando não são mortos, são presos e jogados em verdadeiros depósitos humanos, onde qualquer mínimo de dignidade humana é negado. Nas fronteiras do “Brasil Grande”, indígenas e comunidades ribeirinhas são expulsos de suas terras para a construção de gigantescas hidrelétricas, sem que suas reclamações e súplicas sejam sequer conhecidas. Quando operários dessas mesmas construções entram em greve, a Força Nacional de Segurança é acionada para, silenciosamente, sufocá-la, convertendo direito trabalhista básico em ameaça á segurança nacional. Tudo em meio a uma sociedade em que “direitos humanos” são considerados “defesa de bandido”, e em que a crítica da impunidade somente visa os atos “dos outros”, ou “dos inimigos”. Todos estes fatos reais vão contra os preceitos mais sagrados do constitucionalismo democrático; e no entanto se incorporaram à realidade brasileira. No que o posicionamento do STF nos casos aqui analisados contribui para

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denunciar esse mecanismo brutal de controle social? Em nada. Talvez uma maior abertura para o diálogo do STF para com outros atores institucionais e para com a sociedade; bem como um olhar menos subserviente e mais crítico da própria sociedade (em especial, mas não apenas, da comunidade jurídica) acerca dos argumentos usados pelo STF em suas decisões contribua para diminuir a contradição exposta neste trabalho e fortalecer a busca por maior coerência argumentativa no controle de constitucionalidade. Permitimo-nos encerrar com uma última lembrança de fatos recentes, precedida de uma menção literária. Poucos autores captaram a essência do estado de exceção permanente que se constituía no começo do século XX como Franz Kafka. Sua obra foi interpretada à luz de dezenas de referenciais teóricos, por dezenas de autores diferentes. O Processo é talvez uma das melhores alegorias acerca do estado de exceção produzidas pela literatura. “Alguém certamente havia caluniado Josef K., pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum” (KAFKA, 2009, p. 7). O protagonista de Kafka é acusado de algo que não sabe o que é, com base em leis que desconhece, e que na maior parte do tempo não chega a embaraçar-lhe no seu cotidiano: continua a trabalhar, a flertar com a vizinha, a levar amigos do chefe para passear pela cidade. E, no entanto, não consegue se libertar da acusação, nem conhecê-la; e, conforme o romance avança, a condenação aparece como dada e certa. O advogado que contrata lhe diz que a única coisa sensata a fazer é se conformar; o capelão lhe ordena a não procurar a verdade, pois basta considerar tudo como “necessário”. O procedimento legal é uma farsa: o tribunal que convoca K. é localizado no meio de uma habitação coletiva miserável nos subúrbios. Tudo se passa como se a Josef K. fosse inútil buscar algum amparo na lei; a decisão já fora tomada. Sua natureza soberana ficara evidente diante da recusa de todos aqueles a quem K. pediu ajuda em ousar desafiá-la. Por algum motivo que não lhe interessava, Josef K. fora considerado indigno de viver. Um dia, dois senhores de sobrecasaca, “lívidos e gordos, com cartolas aparentemente irremovíveis” (Ibid., p. 223), com rostos tão limpos que davam nojo, chegaram para cumprir a decisão. Em seu último momento de vida, Josef K. somente pôde se perguntar onde estava a lei, no meio de toda a exceção : Onde estava o juiz que ele nunca tinha visto? Onde estava o alto tribunal ao qual ele nunca havia chegado? Ergueu as mãos e esticou todos os dedos. Mas na garganta de K. colocavam-se as mãos de um dos senhores, enquanto o outro cravava a faca profundamente no seu coração e a virava duas vezes. Com olhos que se apagavam, K. ainda viu os senhores perto de seu rosto, apoiados um no outro, as faces coladas, observando o momento da decisão. - Como um cão – disse K. Era como se a vergonha devesse sobreviver a ele. (Ibid., p. 228)

No estado de exceção permanente, todos somos Josef K. em potencial. Josef K. foi Rubens Paiva, deputado cassado pelo AI-1, preso pelos agentes da ditadura em 20 de janeiro de

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1971 sem nenhum mandado que os autorizasse a tanto. Foi torturado e morto nas dependências de um quartel do exército. Seu corpo foi “desaparecido”, e a ditadura divulgou a informação de que “terroristas” o tinham libertado e fugido. Nunca teve direito a um enterro, nem seus parentes, à justiça. Josef K. foi Amarildo Dias de Souza, pedreiro morador da Rocinha, levado detido por policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (triste o país que precise diferenciar a polícia “normal” da polícia “pacificadora”), sem qualquer acusação concreta, torturado, morto e desaparecido na própria sede da UPP. Também nunca teve direito a um enterro, a um encerramento, e certamente seus parentes não teriam direito á justiça, se a pergunta “Onde está Amarildo?” não tivesse sido transformada em palavra de ordem contra o Estado pela multidão que foi às ruas do Rio de Janeiro em 2013 – ecoando Ulysses Guimarães, na cerimônia de promulgação da Constituição Cidadã, 25 anos antes, quando bradara, emocionado: “A Constituição é Rubens Paiva, e não os facínoras que o mataram!”. A Constituição não pode estar submetida à exceção; precisa romper com ela. Preferimos o brado de ruptura de Ulysses ao temor reverencial de Eros Grau, Gilmar Mendes e outros colegas. Somente com essa simples – e ainda assim tão esquecida – constatação, poderemos começar a imaginar um mundo em que faça realmente sentido lutar pela concretização inovadora da Constituição democrática, de seus ideais e valores. Contra essa máquina de extermínio; o estado de exceção permanente; a decisão soberana sobre a vida e a morte; contra, enfim, a lógica da exceção, o STF teve uma grande chance de denunciá-la e rechaçá-la, argumentativa e concretamente, negando à exceção qualquer tipo de força dominante em uma realidade que se pretende constitucional e democrática. Tal chance foi perdida. O “guardião da Constituição” não suportou tal fardo, e se contentou em ser o “guardião da exceção”. Talvez esteja na hora de rediscutirmos a própria cultura do guardião e da “última palavra”; bem como o papel estruturante que a exceção parece assumir no nosso próprio Estado Democrático de Direito – algo que o STF, a sua maneira, reconheceu muito bem. Tudo para resgatar,

defendemos

uma última vez, o potencial transformador e inovador do

constitucionalismo democrático, e para nos opormos à opção autoritária e fácil da “decisão política”. Provavelmente não chegaremos à “política que vem” de Agamben por esse caminho. Mas certamente levaremos mais a sério os conceitos fundamentais com que trabalhamos no Direito Constitucional brasileiro contemporâneo.

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