O Historiador e a Metáfora

September 26, 2017 | Autor: André Joanilho | Categoria: History, Narrative, Metaphor, Michel Foucault
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O historiador e a metáfora*

Prof. Dr. André Luiz Joanilho
Depto. História – Universidade Estadual de Londrina

Resumo: A escrita da história é uma metáfora do passado não reconhecida pelos historiadores que, ao contrário, buscam o literal nas suas narrativas formadas por documentos que poderiam ser compreendidos também como metáforas, mas que são abordados como emulação do real. Do documento ao texto, a metáfora é esconjurada como ruído não real. No entanto, a escrita não é feita de verdades e literalidade, mas de imaginação e de fatos da linguagem, estando na origem dos eventos a dispersão e a descontinuidade.


Para o historiador a metáfora não existe, ou melhor, não deveria existir. O discurso histórico é literal, busca o sentido exato dos acontecimentos, fugindo de quaisquer outras possíveis formas explicativas. Afinal, o historiador deve explicar e a sua clareza não pode se confundir com fatos de linguagem, mesmo quando se trata de estilo de escrita.
Sabemos das figuras de linguagem que as narrativas históricas lançam mão para se fazer compreendidas. A discussão de Hayden White não nos é estranha. Porém, não estamos propondo discutir as estruturas narrativas em história e, em seguida, fazer um estudo tropológico, mas apresentar a relação do historiador com a metáfora. E, de início, o historiador deve fazer a sua narrativa "transparente" com relação ao seu objeto, ou pelo menos esse é o aprendizado da disciplina.
Da chamada escola metódica às teorias interpretativas do "linguistic turn" dos anos oitenta, a marca é a exatidão. Enquanto que os metódicos sonhavam com uma história cientificista, na qual o documento era uma expressão do real, os intérpretes contemporâneos pretendem desvendar os significados dos documentos para se chegar à trama dos eventos do passado. Porém, tanto uns quanto outros buscam descrever o que aconteceu e tornar a narrativa uma emulação do que realmente aconteceu.
Portanto, a exatidão, se podemos dizer que há alguma na escrita da história, deve ser o norte da narrativa e, no limite, a metáfora deve acrescentar mais clareza e remeter diretamente ao objetivo desejado se for utilizada como recurso estilístico. Não deve haver nada além do literal na narrativa histórica ou não deveria.
Esse mundo fechado do historiador se confronta com a metáfora que está fora da sua objetividade, justamente no seu material mais precioso: os documentos. Estes sim, repletos de fatos de linguagem. O documento nunca é a expressão do que aconteceu mas o material que permite ao historiador compor quadros narrativos. Pode-se até mesmo dizer que o documento é uma metáfora do evento.
De um, lado o historiador e a objetividade, de outro o documento enquanto metáfora do real. O trabalho historiográfico consiste em transitar entre esses polos opostos do fazer história. Evidentemente que não se compreende o documento como expressão do que aconteceu, pois, como iremos considerar adiante, ele não traz consigo tudo o que aconteceu. Mesmo a reunião de todos os documentos sobre um determinado evento, não é suficiente, pois, para usar uma metáfora, a narrativa histórica "não é um geometral", ou citando Paul Veyne: "Os acontecimentos não existem com a consistência de um objeto concreto. É necessário acrescentar, não importa o que se diga, não existem também como um 'geometral'; prefere-se afirmar que eles têm existência em si mesmos como um cubo ou uma pirâmide: nunca percebemos todas as faces de um cubo ao mesmo tempo, só temos um ponto de vista parcial". Há uma impossibilidade em apreender tudo do passado.
Mas, além de ser metáfora do real, o documento ele próprio, muitas vezes é metafórico, ou seja, traz consigo fatos de linguagem. Uma pintura, por exemplo, remete a algo para além da figuração. Poder-se-ia dizer que ela é de fato uma representação. Mas o que é uma representação senão uma metáfora? Uma fotografia é uma representação, mas também uma metáfora, pois alude a algo que não é ela própria. Mesmo um documento escrito pode ser compreendido como postulando metáforas. Podemos tomar como exemplo um artigo num jornal operário do início do século XX no Brasil:
"Anarquia e Revolução
Não devemos abandonar nunca a ideia da revolução. Só ela é fecunda, só ela produzirá todos os frutos que a anarquia vem cultivando num imenso labor de mais de meio século. A revolução é também o único, o exclusivo elemento de conquista da igualdade e da justiça social (...)
Os nossos esforços devem convergir para a organização do levante geral das vítimas, pouco nos importando qual seja o ideal que se batem os revoltados. A anarquia é uma perpétua revolução e deve sair da revolução; ao passo que a revolução nem sempre sai e pode mesmo não sair da anarquia.
É pouco provável que os povos só se revoltem definitivamente quando hajam compreendido a anarquia; eles se revoltarão de preferência por motivos alheios a tão nobre ideal. A nós, anarquistas, faltando o impulso e a decisão revolucionária, falta o senso e a razão de ser na sociedade. Há, entretanto, inúmeros revolucionários que ignoram completamente a anarquia. Ora, a sociedade futura deverá sua existência à devastação da atual esterqueira. Portanto, é preciso que nós nos revoltemos; naturalmente com a maior urgência possível." (D.R.F. A Plebe, nº 4 ano II, 15/09/1919, p. 4).

Se o historiador está formando um quadro a respeito da luta de classes na sociedade brasileira no início do século XX, encontrará farto material em documentos deste tipo. Haveria clareza e transparência, afinal o autor do artigo mostra a necessidade de organizar o movimento revolucionário a partir do ideal anarquista e de que forma a revolução pode e deve ocorrer. Mas, há uma pletora de metáforas no texto. "Vítimas", "frutos", "nobre ideal", "a atual esterqueira", etc., que nos remete justamente aos fatos de linguagem e ao discurso. Como dissemos, o documento possui uma duplicidade: composto de metáforas e ele próprio sendo uma metáfora dos eventos passados.
Assim, de uma história da luta de classes, pode-se passar a uma história das práticas discursivas. Há discurso e práticas no texto do militante. Por mais que não se dispusesse a ter posição, ele tem de se remeter às imagens ou representações sociais correntes, ou melhor, ele as usa porque tem de usá-las. Não está à sua disposição como numa prateleira de supermercado na qual faria escolhas. As escolhas, de certo modo, estão dadas e é a partir disso que podemos compreender as práticas discursivas.
Comecemos por "nobre ideal". Se a anarquia luta para exterminar qualquer diferença social, não deixa de ser sintomático que o termo "nobre" seja utilizado, palavra que remete à diferenciação, mesmo se tratando de ideias, A anarquia é nobre, superior, logo os anarquistas também são superiores e podem conduzir a revolução, portanto o povo. Ao lado de "nobre" temos o termo "ideal", também sintomático, pois sendo a anarquia uma prática, nada teria de idealização, ou melhor, as suas ideias sairiam da prática revolucionária, como o militante afirma "A anarquia é uma perpétua revolução e deve sair da revolução". É possível identificar uma prática discursiva a respeito de como os sujeitos devem proceder ou se conduzir: as ideias anarquistas são superiores, portanto se impõem "naturalmente", ou seja, a revolução, no fim das contas, é uma ação de homens superiores.
Ora, para a história tradicional, ou ainda, para os historiadores que acreditam na transparência de suas narrativas e o evento, o primeiro trabalho é justamente "limpar" o documento das metáforas, isto é, "traduzi-las" para uma linguagem "científica" (as aspas são para marcar os termos, afinal é o trabalho do historiador explicar o que aconteceu e, como foi dito acima, a metáfora não deveria existir). Porém, de modo contraditório, não é possível ao historiador escapar da metáfora. Logo, o discurso histórico é metafórico, ou ainda, o discurso científico é metafórico. Vejamos um exemplo atual: como explicar o Bóson de Higgins?
"O bóson de Higgs é um elemento-chave da estrutura fundamental da matéria conhecida como a "Partícula de Deus". No "modelo padrão", a teoria da estrutura fundamental da matéria elaborada nos anos 60 para descrever todas as partículas e forças do universo, o bóson de Higgs é considerado a partícula que proporciona sua massa a todas as demais. Ao tentar isolar os menores componentes da matéria, os físicos descobriram várias séries de partículas elementais.
Em 1964, por dedução, o físico britânico Peter Higgs postulou que existia o bóson que hoje leva seu nome e que devia dar sua massa a outras partículas. "A ideia é que existem partículas que se chocam permanentemente com bósons de Higgs. Estes choques freiam seu movimento, que se torna mais lento, e dão a eles a aparência de uma massa", explica o físico e filósofo Etienne Klein.
Klein compara este fenômeno com um homem que tenta passar correndo em meio a uma multidão, que freia sua corrida e faz com que diminua sua velocidade. Também compara o campo de Higgs com uma espécie de cola em meio à qual se encontrariam relativamente aderidas as partículas, o que seria percebido como uma massa". (AFP, 08/10/2013, http://br.noticias.yahoo.com/b%C3%B3son-higgs-part%C3%ADcula-chave-f%C3%ADsica-fundamental-142036455.html)

Este simples exemplo nos mostra que nenhum discurso escapa do metafórico, muito menos a história. Afinal, um homem "correndo no meio a uma multidão, que freia a sua corrida" é uma boa explicação para os bósons.
Porém, toda a história da ciência, se podemos dizer que há uma ciência, é, além do mais, a história da separação entre o metafórico e o literal. O ponto de inflexão, nas narrativas que buscam a origem do pensamento científico, teria sido Aristóteles. Nele nasceu a definição do discurso verdadeiro ou literal e o metafórico, sempre colocado como inferior em relação ao literal já que este explicaria o real e "junto à Aristóteles, o julgamento negativo (...) do que ele chama de metáfora em importantes campos, na sua lógica e na sua filosofia da natureza, é bem mais marcado. Ele sustenta, por exemplo, que é preciso evitar a metáfora e as expressões metafóricas numa definição".
Essa separação não cessou de fazer caso no discurso científico. A metáfora é boa para se fazer poesia, mas negativa para a explicação científica. E não somente para Aristóteles, mas também para os historiadores da ciência. Seguindo ainda a análise sobre este assunto, Geoffrey Lloyd afirma que o seu "argumento é então que a distinção entre o literal e o metafórico – como a distinção entre mito (como ficção) e a narrativa racional – não seria somente, na origem, um elemento neutro e inocente de análise lógica, mas uma arma forjada para defender um território, expulsar o inimigo, humilhar os rivais". Aristóteles utiliza a distinção para fazer a sua lógica superior aquela dos seus rivais. Nenhuma inocência ou superioridade do científico sobre o mito, apenas um jogo de forças que impõe o literal como superior, devendo o metafórico se ater ao literário, pois, "na sua exigência de clareza, ele (Aristóteles) exclui a metáfora porque tudo que se diz através de metáfora é obscuro".
Porém, sabe-se que o discurso científico recorre às metáforas e aos seus próprios mitos (o que seria o Big Bang senão uma ótima metáfora) e o discurso histórico é pleno delas. A sua pretensa objetividade se perde ao emaranhado de práticas discursivas, quer dizer, não há uma segunda natureza nos discursos. Há fatos de linguagem que remetem a uma espécie de positividade. O que está dito quer dizer exatamente o que está dito. A metáfora, neste aspecto, não é um fato de linguagem que remete a um sentido que estaria aquém ou além do próprio discurso, mas o informa. Porém, na sua maior parte, os historiadores reconhecem nas metáforas um sentido além do que está dito. Há algo na superfície que torna opaco o seu verdadeiro sentido. O historiador deve trazer à luz o que não está aparente e deve encontrar o que realmente se quis dizer. O pensamento de Aristóteles ainda frequenta as práticas dos historiadores. Vejamos:
"Empédocles tinha dito que o mar é salgado porque ele seria o suor da terra (...) Mas Aristóteles fez o seguinte comentário: 'Dizer tal coisa pode ser apropriada por razões poéticas – pois a metáfora é poética – mas isso não serve para compreender a natureza [da coisa].
Outras imagens utilizadas por Empédocles e determinados filósofos pré-socráticos foram condenadas porque elas seriam ou obscuras, ou grosseiras, ou ainda que elas precisam ser nuançadas, ou então porque as similitudes sobre as quais são fundadas eram superficiais, ou até mesmo porque os exemplos comparados não tem algum ponto em comum."
É perceptível o quanto este pensamento ainda persiste no discurso científico e, sendo a narrativa histórica uma tentativa de emular este tipo de discurso, nas formas de narrar que se tornaram inerentes à ciência. A lógica da explicação deve ser feita com base na prova, estando o documento disponível para que se efetive esse discurso. Não deve haver obscuridade ou conflito, apenas clareza e comprovação.
Então, podemos compreender que há um espaço entre o documento e a narrativa histórica, sendo preenchido por explicação e não qualquer uma. Deve ser uma explicação "densa" que produza uma narrativa que não deixe nenhum vão entre o literal e a metáfora.
Mas o que fabrica o historiador com a densidade da sua narrativa? Efeito de real, para citar a expressão de Roland Barthes, porém de modo diferente. Enquanto na literatura este efeito produz o verossímil, o historiador acredita que, pelo fato de utilizar documento, de qualquer tipo, para a sua narrativa, trata do real. Tanto que a narrativa é algo que quase não frequenta as preocupações de quem escreve história, pois é dado como incontornável o fato de se escrever o real. É notável que nas graduações de história, ou na formação de historiadores em outros países, não se vê uma disciplina "Narrativa em História". Discute-se teoria, às vezes ainda, filosofia da história, historiografia, mas quase nada sobre documentos e nada sobre argumentação.
Essa naturalização da escrita é herança da história cientificista do século XIX. O discurso científico é expressão do real, porém, como estamos apontando, ele deixa escapar metáforas e, no caso do historiador, a sua duplicação no documento é como um quarto de espelhos: a imagem refletida pela narrativa não deixa de ser outra imagem. Logo, não é possível apreender o real por essa duplicação em escala.
Haveria alguma possibilidade de se apreender o que realmente aconteceu? Somente se o passado se tornasse fixo, imóvel. Porém, o que podemos apreender é a polissemia dos acontecimentos da mesma maneira que a memória individual é polissêmica. Nunca damos a mesma explicação para o que nos aconteceu e nem o mesmo sentido. Mudamos e o nosso passado muda. No caso da história há as relações sociais que se constituem e desfazem ao longo do tempo. Portanto, há um agravante. Nunca o historiador estará em condições de fixar o que realmente aconteceu pela mobilidade do presente e pela impossibilidade temporal, ou melhor, pelo paradoxo geográfico do conto de Borges: um rei queria o mapa perfeito e os geógrafos se esforçaram tanto que o mapa ficou do tamanho do próprio reino. Uma narrativa que apreenda o real levará tanto tempo para ser feita quanto o próprio acontecimento e se isso for possível, a sua leitura levará o mesmo tanto.
Podemos, como outro exemplo, reproduzir parte da narrativa da vida de Danton:
"Danton, como Robespierre e Marat, foi uma criação da Revolução (Francesa). Emergiu do enorme acontecimento sem qualquer aviso prévio. Apesar dos esforços de seus biógrafos em buscar na sua juventude traços que lhe anunciassem a carreira, é difícil discernir no jovem Danton de seus retratos um personagem já destinado à futura Revolução (...) Nas vésperas da Revolução era um advogado modesto, menos desprovido de recursos do que o disseram os seus adversários (para melhor salientar o caráter súbito e inconveniente de sua fortuna), menos próspero do que o garantem seus partidários. Sem dúvida possuía a Encyclopédie em sua biblioteca, entre os volumes de Plutarco e Beccaria, mas tratava-se de uma propriedade então quase obrigatória, o que não faz concluir que ele se alimentava de Diderot. Como primeira causa, tivera de defender um pastor contra um senhor, mas a que advogado não coubera naqueles tempos tratar de tal assunto de eleição? Nada disso basta para explicar um engajamento revolucionário."

O efeito produzido é a sensação de que se trata da vida de Danton, porém, os documentos – obras biográficas, biblioteca pessoal, palavras de detratores, palavras de partidários – que emulariam um real são metáforas do que foi Danton e neles próprios vamos encontrar as metáforas que os constituem. Nesta duplicidade, o historiador produz o efeito de real que não deixa de ser também uma metáfora, pois não é efetivamente o narrado, mas resultante de um jogo metafórico que deixa de ser duplo para ser tríplice, ou seja, entre o que está representado no documento, ele próprio e a escrita do historiador.
Danton revolucionário não está exatamente onde se poderia pensar, na linearidade temporal da sua vida, mas numa teia de relações que é impossível de reconstituir inteiramente. Por isso, deve o historiador praticar esse jogo tríplice para produzir o efeito de real. Porém, quase não há consciência do jogo e muitos o tomam como o próprio quadro retratado na narrativa, não se afastando o suficiente do que seria o objeto da escrita.
Não encontramos Danton antes de 1789, mas na Revolução. Nela emerge o personagem. O historiador percorre essa trajetória por elipses que são preenchidas pela explicação, logo o personagem só se torna pleno quando eclode a Revolução e não antes. Danton, enquanto revolucionário, só o pode ser após 1789, portanto há uma "metaforização" da narrativa, mesmo porque "trata-se de ordenar o heterogêneo e, mais efetivamente, encontrar o Outro apenas no plano da imaginação – portanto, sem sair do território do Mesmo." A imaginação, que podemos substituir por explicação, é o jogo estabelecido entre acontecimento, documento e narrativa.
Este jogo dá a sensação de que se trata da verdade, pois abordaria o que realmente aconteceu, por isso, recorre aos documentos de qualquer espécie e "a verdade em história deriva, em última instância, das referências aos discursos das testemunhas". Sem este recurso a história não poderia se estabelecer. O documento é o zero do discurso histórico e nos passa a sensação de que ele é total, pode dar conta do acontecimento, por isso o historiador chama a testemunha para estabelecer a veracidade da sua narrativa. No início temos o documento e todo o resto decorre deste epifenômeno da memória que, no seu estado bruto, será o campo de atuação do historiador. Há um claro sentimento que a história está estabelecida nos próprios acontecimentos e a memória é a testemunha chamada para comprovar a narrativa do historiador.
Porém, convém lembrar que o primeiro gesto do historiador "começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em 'documentos' certos objetos distribuídos de outra maneira" . Por isso mesmo que não se toma o passado pelo o que ele é. Podemos retomar o artigo escrito pelo militante anarquista, citado acima. Primeira questão, qual foi o lugar de sua produção? Segunda, quais as intenções do articulista? Terceira, em que série de produção se inseria o artigo? Ao respondê-las é perceptível a distância que nos separa do artigo, não apenas temporal, também pela própria produção. Afinal, estamos tomando-o por documento, enquanto o articulista o tomava por uma peça de conscientização e de compreensão da prática anarquista.
Apartamos o documento de seu local de produção, de suas intenções iniciais, de sua série e o inserimos em outra produção, outra intenção e outra série, aquelas do historiador. Este, pela explicação, torna o documento pleno de sentido, mas qual? O da explicação histórica, assim, recortando o documento, o historiador lhe dá um sentido específico e o torna "pleno" de certezas. Não há dúvida, ambiguidade, imprecisão na narrativa, somente a certeza de um vetor temporal que evoca o passado para estabelecer o presente. Afastada a metáfora do literal, a explicação histórica somente pode se ver como identitária. A metáfora é a dispersão e movimento, enquanto o literal é a unidade e imobilidade.
Podemos dizer, utilizando o conceito de heterotopia de Michel Foucault, que a metáfora é outro espaço no qual o historiador tradicional não se reconhece, aliás não o deseja. A metáfora é uma heterotopia, espaço asilar – dos loucos, dos mortos, dos leprosos, dos velhos, dos marginais –, por isso deve ser afastada, pois é a não identidade, o lugar dos desvios que os discursos identitários tratam de normatizar e normalizar.
Daí é possível compreender porque a escrita do historiador é tão normatizada; porque deve conter determinados padrões explicativos para se fazer entender, aceita e compreendida. Ela remete à identidade que escapa todo o tempo por desvãos metafóricos. Assim, para conjurar o caráter errático da metáfora, o historiador faz apelo para as ideologias ou para as representações, dependendo da ótica adotada, pois tanto as primeiras quanto as segundas são dotadas de sentidos únicos se são bem "trabalhadas" pela escrita.
Mas é interessante perceber que esses padrões tão arraigados são também dispersos no tempo. A escrita historiográfica com suas certezas de hoje se tornará erro amanhã, do mesmo modo que as de ontem se tornaram obsoletas, pueris, inocentes ou mal intencionadas e erradas. A conjuração da metáfora só é possível no instante que se produz escrita literal, mas ela permanece enquanto heterotopia do próprio discurso.
Mas é possível outra escrita da história? Não totalmente. Se pensarmos junto com Michel de Certeau a produção historiográfica, deveremos reconhecer, de início, o lugar de produção. Há uma forma de produzir história e ela está determinada pela "instituição histórica", isto é, o fazer deve ser feito de acordo com padrões e normas "científicos" ou, no melhor dos casos, acadêmicos. Não é qualquer um que pode escrever história, mas aqueles dotados de determinados conhecimentos e práticas, pois a escrita será validada pelos pares e "este discurso – e o grupo que o produz – faz o historiador, mesmo que a ideologia atomista de uma profissão 'liberal' mantenha a ficção do sujeito autor e deixe de acreditar que a pesquisa individual constrói a história". A crença num sujeito independente e produtor de saber é correlata à noção de que a sua escrita é sempre literal e os documentos se rementem ao real.
A instituição História é o lugar no qual permite ou interdita a escrita, afinal a instituição "torna possíveis certas pesquisas em função de conjunturas e problemáticas comuns. Mas torna outras impossíveis; exclui do discurso aquilo que é sua condição num momento dado; representa o papel de uma censura com relação aos postulados presentes na análise." . A possibilidade ou a interdição se apresentam como "naturais", pois é assim que tem de ser ou isto é realmente importante, aquilo nem tanto e aquilo outro nem se deve falar. Há assuntos completamente tabus na nossa sociedade, mas disso não queremos saber.
Além do interdito há o normatizado e, seguindo ainda Michel de Certeau, o historiador:
"trabalha sobre um material para transformá-lo em história. Empreende uma manipulação que, como as outras, obedece a regras. Manipulação semelhante é aquela feita com o mineral já refinado. Transformando inicialmente matérias-primas (uma informação primária) em produtos standard (informações secundárias), ele os transporta de uma região da cultura (as 'curiosidades', os arquivos, as coleções, etc.) para outra (a história)." .

Não esquecendo de que os próprios arquivos já são "refinados", quer dizer, já passaram por uma seleção, uma separação. Portanto, o historiador, ao obedecer a regras de produção, deve enquadrar a sua escrita numa espécie de "gosto médio" de seus pares. Este procedimento permite a aceitação do produto. Separar e reunir: a operação do historiador implica numa produção num sentido mais integral, isto é, ele produz história. Para ajudar no raciocínio: "longe de aceitar os 'dados', ele os constitui. O material é criado por ações combinadas, que o recortam no universo do uso, que vão procurá-lo também fora das fronteiras do uso, e que o destinam a um reemprego coerente".
Isso nos leva a questão, o objeto histórico se encontra à espera do historiador para ser desvendado? Se o material é criado pelo historiador, logo ele não está dado, não se encontra disponível para ser garimpado como ouro de aluvião. Ele deve ser produzido plenamente, logo, o objeto não é natural. Não é encontrado naturalmente. Mais ceticamente pode-se dizer que o fato "Segunda Guerra Mundial" está dado. Sim num sentido, não em outro. O que se escolhe para narrar da Segunda Guerra? Qual é abordagem, qual o material que será observado. Se ficarmos no nível das estratégias de aliados e eixo, será um recorte, uma criação, pois a guerra não se desenrola unicamente nos bunkers dos ministérios da defesa. A possibilidade de criar um objeto cresce exponencialmente quando multiplicamos o efeito da escrita para "uma visão de baixo", aquela dos soldados. Podemos ainda estender para as famílias, para as economias das pequenas cidades, para o sistema de saúde e assim por diante. Todos esses "objetos" não estão prontos à espera da narrativa que os traga a lume. São produções historiográficas.
A escrita é a mise em scène de uma representação histórica, pois busca a identidade, mas, se compreendermos que o relato histórico como metáfora, então nos afastamos da hipótese identitária e passamos à diversidade, ou ainda, a metáfora é a dispersão do sujeito constituinte. Porém, a história praticada marca a identidade, pelo menos enquanto fundamento de sua própria formulação e "não existe relato histórico no qual não esteja explicitada a relação com o corpo social e com uma instituição de saber".
Este pertencimento impede, até certo ponto, encontrar na origem de uma série de eventos a dispersão, a heterotopia. Por isso, o recurso à citação é exaustiva nos discursos científicos, pois:
"a linguagem citada tem por função comprovar o discurso: como referencial, introduz nele um efeito de real; e por seu esgotamento remete, discretamente, a um lugar de autoridade. Sob este aspecto, a estrutura desdobrada do discurso funciona à maneira de uma maquinaria que extrai da citação uma verossimilhança do relato e uma validade do saber. Ela produz credibilidade."

A escrita ganha validade e atesta "o que aconteceu", produzindo o efeito de real desejado e tornando o discurso histórico verdadeiro. Por isso, a metáfora deve passar ao largo. Ela instaura o quiproquó e a dispersão. Ela pode ser aceita se domesticada, se o seu uso for para dar mais estilo ao efeito de real, mas no estado bruto, tomando o discurso como metáfora do passado, o documento como metáfora do real e as metáforas no interior do próprio documento, isso produz um intenso ruído e não instaura a identidade.
Por isso que "citando, o discurso transforma o citado em fonte de credibilidade e léxico de um saber. Mas, por isso mesmo, coloca o leitor na posição do que é citado; ele o introduz na relação entre um saber e um não-saber. Dito de outra maneira, o discurso produz um contrato enunciativo entre o remetente e o destinatário.". Incluindo o leitor na relação de saber, o discurso histórico provoca a sensação de que o que ele produz é a identidade do sujeito apartado dela pelo tempo que passa, daí também o exercício da cronologia nos relatos. A temporalidade passado-presente produz o efeito de que o sujeito destinatário está no topo de uma cadeia evolutiva, portanto, mais consciente e mais "sabedor" do que aqueles que viveram em outros tempos.
O continuum na escrita é o corolário da identidade, a certeza de que não haverá distância ou corte na constituição do sujeito:
"A história contínua é o correlato indispensável à função fundadora do sujeito: a garantia de que tudo que lhe escapou poderá ser devolvido; a certeza de que o tempo nada dispersará sem reconstituí-lo em uma unidade recomposta; a promessa de que i sujeito poderá um dia – sob a forma da consciência histórica –, se apropriar, novamente, de todas essas coisas mantidas à distância pela diferença, restaurar seu domínio sobre elas e encontrar o que se pode chamar sua morada".

Finalmente poderíamos perguntar se é possível uma história da dispersão. Sim, ela teria de lançar mão de outros procedimentos para se constituir. Temos um ótimo exemplo com a História da Loucura, de Michel Foucault. Ele não persegue ao longo da sua escrita a evolução do conceito de loucura e nem de como, infantilmente, outras eras tratavam os loucos, mas trata da própria constituição da ideia de loucura, ou seja, trata dos discursos que conformaram a prática em torno da loucura em cada época, portanto, não é uma curva evolutiva, mas quadros que se formaram num determinado momento e depois desapareceram nos levando a pensar que o nosso próprio quadro sobre a loucura irá desaparecer para dar lugar a novas práticas sociais.
Nesse tipo de história, não temos a busca pela constituição da identidade, entendida ela própria como fruto de práticas. Dessa forma, temos no início a metáfora, a remissão a algo que essencialmente não é a verdade, mas formas de dizer que existem práticas que constituem a verdade e de imaginá-las.
A metáfora, se o historiador adotá-la, o lembrará de que o discurso é um jogo de remissões e de imaginação. Talvez, assim, poder-se-ia descobrir o papel do historiador na sociedade: contar história.


* - Este texto foi possível graças a bolsa-produtividade da Fundação Araucária.
- WHITE, Hayden. Meta-história. São Paulo: Edusp, 1995.
- VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Brasília: Editora UnB, 1982, p. 31.
- « Mais chez Aristote, le jugement négatif (...) de ce qu'il appelle metaphora dans des domaines improtants, à la fois dans sa logique et dans sa philosophie de la nature, est bien plus marqué. Il soutient par exemple qu'il faut éviter la métaphore et les expressions métaphoriques dans la définition. » LLOYD, Geoffrey E. R. Pour en finir avec les mentalités. Paris : Éditions La Découverte, 1993, p. 42.
- Idem, ibid, p. 44.
- « Mon argument est donc que la distinction entre le littéral et me métaphorique – comme la distinction entre me lythe (en tant que fiction) et le récit rationnel – n'était pas seulement, à l'origine, un élément neutre et innocent d'analyse logique, mais une arme forgée pour défendre un territoire, repousser l'ennemi, humilier les rivaux. » Idem, ibid, p. 46.
- « Dans son exigence de clarté, il exclut la métaphore parce que 'tout ce qui se dit par métaphore est obscur. » Idem, ibid, p. 42.
- « Dire cela est peut-être approprié pour des raisons poétiques – car la métaphore est poétique – mais ça ne l'est pas pour compreendre la nature [de la chose]. D'autres images utilisées par Empedocle et certains philosophes présocratiques sont condamnées parce que qu'elles sont soit obscures, soit grossières, ou qu'elles ont besoin d'être nuancées, ou parce que les similitudes sur lesquelles elles sont fondées sont superficielles, ou même parce que les exemples comparées n'ont aucun point commun ». Idem ibid., p. 43.
- Roland Barthes, « L'Effet de réel », Communications, no 11, 1968.
- FURET, François e OZOUF, Mona. Dicionário Crítico da Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p. 240.
- OHARA, João R. "Passado histórico, presente historiográfco: considerações sobre 'História e Estrutura' de Michel de Certeau", in História da historiografia, nº 12, agosto 2013. Ouro Preto. UFOP, pp. 197-212.
- « La vérité en histoire dérive, en dernière instance, de la visée référentielle des discours des témoins. » HULAK, Florence. Sociétés et Mentalités: La science historique de Marc Bloch. Paris, Hermann Éditeurs, 2012, p. 26.
- CERTEAU, Michel. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, p. 81.
- FOUCAULT, Michel. Dits et écrits, T IV, « Des espaces autres », n° 360, pp. 752 - 762, Gallimard, Nrf, Paris, 1994.
- CERTEAU, Michel. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, p. 72.
- Op. Cit., p. 77.
- Op. Cit. p. 79.
- Op. Cit. loc. p. 81.
- Op. Cit., p. 93.
- Op. Cit., p. 101.
- Op. Cit., p. 102.
- FOUCAULT, M. A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986, pp. 14 e 15.
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