O imaginário e o simbólico nas experiências de (auto)formação em Sociologia

October 13, 2017 | Autor: Lisandro Moura | Categoria: Imaginário, Educação, Ensino De Sociologia, Narrativas audiovisuales, Tradição Cultural
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        O imaginário e o simbólico nas experiências de  (auto)formação em Sociologia          Resumo  Este  texto  é  fruto  da  minha  dissertação  de  mestrado  realizada  no  Programa  de  Pós‐Graduação  em  Educação  da  UFPel.  O  trabalho  versa  sobre  a  construção  de  novas  experiências educativas para o ensino da Sociologia, a partir  do  contato  com  a  tradição  cultural  do  município  de  Bagé  (Rio Grande do Sul). A questão central que guiou a pesquisa  está  relacionada  ao  modo  como  o  ensino  da  Sociologia  pode  contribuir  para  o  processo  de  reencantamento  do  mundo  e  da  educação.  Para  isso,  utilizo‐me  de  práticas  de  (auto)formação  que  contemplem  o  uso  de  narrativas  visuais (fotografias) no ensino da disciplina. As fotografias,  além  de  despertarem  a  “atenção  imaginante”  sobre  a  cidade, funcionam também como ponte que liga os saberes  tradicionais  e  comunitários  aos  saberes  escolares  da  Sociologia.  Os  resultados  apontam  para  uma  dupla  perspectiva:  1)  a  importância  do  trajeto  pessoal  (autoformação)  do  professor‐pesquisador  como  forma  de  restituir  o  sentido  simbólico  da  educação  e  2)  o  valor  pedagógico das narrativas visuais para a construção de uma  sociologia  do  imaginário  e  da  imaginação  poética,  ligada  aos saberes da tradição.    Palavras‐chave: Educação. Imaginário. (Auto)formação.  Tradição cultural.   

  Lisandro Lucas de Lima Moura  Instituto Federal de Educação, Ciência e  Tecnologia Sul‐rio‐grandense   (IFSul Câmpus Bagé)  [email protected]             

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Este  texto  é  fruto  da  minha  dissertação  de  mestrado,  defendida  em  2013  na  Faculdade de Educação da UFPel, e visa apresentar processos combinatórios e simbólicos  entre  a  (auto)formação  docente,  a  escola  e  os  conhecimentos  tradicionais  de  comunidades  populares  da  cidade  de  Bagé,  no  Rio  Grande  do  Sul.  Neste  espaço  apresento  resumidamente  as  principais  lições  advindas  de  uma  experiência  de  ensino  construída em colaboração com estudantes do ensino médio do IFSul Câmpus Bagé, sem  adentrar na descrição dos detalhes práticos da experiência formativa.   O  trabalho  tem  como  base  as  intimações  originadas  no  Grupo  de  Estudos  e  Pesquisas  sobre  Imaginário,  Educação  e  Memória  (GEPIEM‐UFPel),  tendo  como  referencial  teórico  os  estudos  do  Imaginário,  dentre  eles  a  fenomenologia  poética  de  Gaston Bachelard (2008), a ciência do homem e da tradição de Gilbert Durand (2008) e a  Sociologia  do  Cotidiano  de  Michel  Maffesoli  (1988,  1995,  2001).  Num  sentido  implícito,  para além do conteúdo exposto, a pesquisa trata do próprio ato de pesquisar e da busca  por  práticas  (auto)formativas  diferenciadas  na  área  da  Sociologia,  que  contemplem  a  dimensão do imaginário e do simbólico na Educação.  A  intenção,  portanto,  é  fazer  do  ensino  da  Sociologia  um  percurso  iniciático  em  direção ao reencantamento do mundo e da Educação. Para isso, utilizo‐me de práticas de  ensino  com  pesquisa  que  considerem  a  imaginação  na  produção  de  narrativas  visuais  (fotografias) sobre aspectos da tradição cultural de Bagé.  Percorro  o  caminho  da  atenção  imaginante  para  “fazer  falar”  as  imagens  sobre  aspectos  da  cultura  tradicional  de  Bagé,  fenômenos  que  interessam  à  Sociologia.  Esse  caminho serve como via de acesso ao imaginário da cidade, do pesquisador e da própria  Sociologia na escola. A atenção imaginante, termo oriundo do livro A poética do espaço, de  Gaston Bachelard (2008), receberá aqui um tratamento especial, fiel ao sentido dado pelo  autor,  mas  também  apropriado  e  reinventado  para  pensar  o  imaginário  no  ensino  da  Sociologia.  A atenção imaginante tem a ver com a capacidade de observação.  A observação,  por sua vez, é um tema bastante caro às Ciências Humanas, em especial à Sociologia e à  Antropologia. É a base do conhecimento nas Ciências Sociais; é o exercício fundamental 

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dos trabalhos de campo, da observação participante e das pesquisas etnográficas desde  Malinowski. No entanto, a “atenção imaginante” significa uma forma especial de atenção  ao  mundo  e  aos  fenômenos  do  cotidiano  apoiada  na  dimensão  do  olhar  criador.  É  especial  porque  difere  do  método  clássico  de  observação  responsável  pela  separação  entre sujeito e objeto, frequentemente associado às ciências sociais dos séculos XIX e XX.   A atenção imaginante é, contrariamente, uma forma de contemplação1 e adesão ao  mundo,  uma  maneira  de  mergulhar  na  experiência  cotidiana  solidamente  naturalizada,  condição  sumária  de  todo  o  estudante  de  Sociologia.  “A  atenção  imaginante,  diz  Bachelard, prepara os nossos sentidos para a instantaneidade” (p. 99). Para reforçar, ele  cita  o  poeta  Charles  Cros:  “para  atingir  o  mundo  imaginário  através  de  pequenos  espelhos, ‘foi preciso ter o olhar muito rápido, o ouvido muito apurado, a atenção bem  aguçada’” (CHARLES CROS, apud BACHELARD, 2008, p.99).  O  método  de  ensino  que  proponho  se  configura,  para  os  estudantes  do  IFSul  Câmpus Bagé, narradores da cidade, num trabalho de iniciação à pesquisa sociológica, na  sua forma embrionária, adaptada à faixa etária dos jovens (de 15 a 18 anos de idade) e aos  conteúdos  previamente  estudados.  Esse  trabalho  de  iniciação  se  abastece  nas  fontes  inventivas das narrativas visuais criadas por eles sobre a cidade de Bagé, e que denotam  uma  espécie  de  ficcionalização  da  pesquisa  sociológica,  com  o  auxílio  das  câmeras  fotográficas e da atenção imaginante.  Além  disso,  o  trabalho  em  questão  propõe‐se  como  caminho  para  superar  o  modelo  de  Educação  e  de  Sociologia  que  nega  um  lugar  de  importância  tanto  à  imaginação e ao imaginário quanto ao saber popular das comunidades tradicionais. Pois  se o homem da tradição habita o tempo presente, conforme demonstra Durand (2008),  seu universo cultural e imaginário deve ganhar espaço no nosso sistema de pensamento e  compreensão  do  mundo.  Para  que  isso  ocorra,  é  preciso  que  a  tradição  popular  habite                                                               1

  Contemplação  num  sentido  oriental  do  termo,  ou  seja,  não  associada  à  ideia  de  não‐intervenção  ou  indiferença.  Para  Maffesoli,  “O  pensamento  sincrético  oriental  mostra  que,  sem  ter  uma  concepção  brutal  de  intervenção,  a  contemplação  pode  operar  como  uma  forma  de  participação.”  (Entrevista  a  Juremir  Machado  da  Silva,  disponível  em  http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/?p=4107). Para um aprofundamento da noção  de contemplação, ver Maffesoli (1995).  

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também  as  nossas  escolas  e  a  sala  de  aula,  particularmente  no  ensino  da  Sociologia,  formando gerações de jovens abertos para o diálogo entre culturas.   

Trajetos  de  autoformação:  o  imaginário  do  pesquisador  na  construção  do  tema de pesquisa  Dedico  este  tópico  a  pensar  sobre  os  motivos  que  me  levaram  a  pesquisar  uma  prática  de  ensino  em  Sociologia  voltada  para  a  atenção  imaginante  e  sua  relação  com  reencantamento  do  mundo,  dentro  de  um  espaço  geográfico  e  simbólico  específico,  a  cidade  de  Bagé.  Faço  isso  para  demonstrar  que  uma  pesquisa,  independente  da  área  e  propósito, não pode ser compreendida separada da experiência pessoal do pesquisador.  Por  isso,  procuro  levar  em  consideração,  em  acordo  com  Peres  (2004,  p.119),  “as  intimações que advêm dos fomentos do imaginário do pesquisador e que, de certo modo,  sustentam os saberes científicos”.  Talvez, a maior contribuição desta pesquisa seja a de que a experiência de vida do  professor  e  a  maneira  como  ele  encara  seu  objeto  de  estudo  são  essenciais  para  o  desenvolvimento  de  uma  metodologia  de  ensino‐aprendizagem.  E  que  a  “imaginação  criadora2”  (BACHELARD,  2008),  oriunda  do  universo  das  pulsões,  permite  transpor  os  obstáculos  com  ousadia,  sem  extrapolar  os  limites  da  compreensão  humana.  Associada  aos  reservatórios  da  experiência  humana,  ou  seja,  ao  imaginário,  a  imaginação  tem  por  função estimular o alargamento da existência e ampliar o campo das possibilidades.   

Destaco,  como  cenário  autobiográfico  significativo  da  pesquisa,  o  meu 

retorno à cidade de Bagé para trabalhar como docente de Sociologia do IFSul, depois de  onze anos morando fora. A experiência de redescoberta das minhas origens, as histórias  de  regresso  à  casa  familiar  e  à  intimidade  dos  lugares  e  paisagens  de  Bagé  serviram  de  pano  de  fundo  para  a  realização  de  uma  pedagogia  imaginante  fundada  na  tradição  cultural e no reencantamento do mundo.                                                                2

  Bachelard  considera  a  imaginação  como  “potência  maior  da  natureza  humana.  (...)  a  imaginação  é  a  faculdade  de  produzir  imagens.”  Mas  essas  imagens  não  estão  associadas  ao  passado  e  à  lembrança,  tampouco à realidade. Pelo contrário, a imaginação tem função do irreal, conforme observa o autor: “a  imaginação desprende‐nos ao mesmo tempo do passado e da realidade. Abre‐se para o futuro. À função  do real, orientada pelo passado tal como mostra a Psicologia clássica, é preciso acrescentar uma função  do irreal igualmente positiva” (BACHELARD, 2008, p. 18). 

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Esse retorno representou uma reconciliação com o espaço geográfico do sul, sua  paisagem,  seus  sons,  suas  cores,  sua  gente.  Pois,  para  eu  poder  viver  o  trabalho  com  vitalismo e entusiasmo, foi preciso pensar numa maneira de restaurar o sentido simbólico  da educação e do ensino da Sociologia, fazendo da minha experiência pessoal o motivo  principal para a construção de um projeto de ensino centrado nos temas de uma poética  sociológica particular. Ao lançar um novo olhar para certos lugares do meu passado, eu  estava também repensando a educação e o ensino da Sociologia.   

Utilizei a fotografia para criar narrativas visuais do meu reencontro com a 

cidade  de  Bagé.  Cada  clic  de  estranhamento  representou  minha  aproximação  com  o  cotidiano dos espaços comunitários. As imagens fotográficas ativaram o meu imaginário  na  direção  do  desenvolvimento  de  uma  experiência  de  ensino  fundada  na  atenção  imaginante  e  no  reencantamento  do  mundo.  Ao  exercitar  a  fenomenologia  das  imagens  fotográficas,  seguindo  as  lições  de  Bachelard  (2008),  descobri  o  instante  poético  da  cultura tradicional do município de Bagé.  

                

    Travessia                   

 

   

 

        La pampa  

                           Centauros do pampa.                                      

 

 

       El gaucho  

 

 

Durante  esse  percurso  de  pesquisa,  fui  tecendo  narrativas  fotográficas  de  aproximação  com  o  município  de  Bagé  e  comigo  mesmo.  Essas  narrativas  visuais 

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denotam aquilo que Peres afirma com bastante precisão: “há no ponto de vista do olhar a  intenção de ver” (PERES, 2009, p.109). O conteúdo simbólico dessas imagens fotográficas  foi,  concomitantemente,  transformado  em motivos  míticos  para  a  construção  da  minha  experiência docente no contexto do projeto Narradores de Bagé.   

Narradores de Bagé  Levando  em  conta  esse  percurso  autoformativo,  organizei  no  IFSul  o  projeto  de  ensino  intitulado  Narradores  de  Bagé,  com  o  objetivo  de  oferecer  aos  estudantes  uma  experiência  humana  fundada  na  atenção  imaginante  e  no  saber  popular,  tradicional,  ancestral.  Esse  saber  apoia‐se  na  dimensão  do  imaginário  como  forma  de  vivenciar  os  conteúdos curriculares específicos da disciplina, para além dos livros didáticos e das aulas  expositivas.  Os  temas  contemplados  nesse  projeto  de  ensino  abarcam  o  universo  da  diversidade  cultural,  do  patrimônio  histórico,  patrimônio  imaterial,  cultura  popular,  comunidades tradicionais, direitos étnicos e territoriais, povos originários e folclore.   Todos esses temas estão recebendo um tratamento especial nas escolas do Brasil  desde que a Sociologia se tornou obrigatória no ensino médio. A discussão que proponho  nesta  pesquisa  é  sobre  a  possibilidade  de  trabalhar  esses  conteúdos  a  partir  de  uma  lógica  interativa  com  a  comunidade,  através  da  fotografia.  A  proposta  é  permitir  aos  estudantes  do  IFSul  vivenciar  e  conhecer  a  cidade  de  Bagé  na  sua  dimensão  cotidiana,  simbólica,  poética  e  comunitária  para,  assim,  aproximar  os  sujeitos  do  seu  contexto  referente.  Essa  forma  de  reaproximar  os  jovens  do  seu  lugar  de  origem,  que  pode  ser  um  lugar primordial, é o mesmo que proporcionar um enraizamento3, é aconchegar, religar o  que  é  inseparável.  Depois  de  um  longo  período  de  rompimentos  proporcionado  pela  modernidade  e  seu  projeto  do  desencantamento  do  mundo  (WEBER,  2004),  surge  no                                                               3

  Não  há  uma  referência  única  quando  se  fala  de  enraizamento.  Podemos  encontrá‐lo  nos  estudos  de  Simone  Weil  (2004)  sobre  o  desenraizamento  operário;  nos  trabalhos  de  Ecléa  Bosi  (2004)  sobre  a  relação entre culto e enraizamento, quando afirma que a procissão, a visitação e o cortejo são formas de  enraizamento. Ou também, mais recentemente, encontramos referências explícitas em Michel Maffesoli  (2001,  2010),  que  o  caracteriza  como:  pensamento  orgânico,  lugar  que  faz  vínculo,  sentimento  de  pertença, tribalismos, saber incorporado, perduração societal, etc.  

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horizonte  a  possibilidade  de  um  movimento  contrário,  de  retomada  dos  laços  comunitários,  de  reencantamento  e  reconstrução  de  vínculos  afetivos  que  situam  as  pessoas  no  seu  espaço  de  origem,  na  natureza  física  e  cósmica  (DURAND,  2008;  MAFFESOLI, 2001 e 2010).   A Educação tem um papel central nesse processo de mudança de uma sociedade  marcada pelo individualismo para uma sociedade comunitária assentada na força coletiva  das redes de solidariedade que se conectam à cidade. Para tentar alcançar isso, como dito  anteriormente,  será  preciso  recorrer  àquilo  que  Bachelard  denomina  de  “imaginação  criadora”,  e  que  se  mistura  nesta  pesquisa  aos  exercícios  fundantes  da  atenção  imaginante.  O Projeto Narradores de Bagé é uma alusão ao filme de Eliane Caffé, Narradores de  Javé (2003). Constitui‐se como uma proposta de investigação sobre o município de Bagé,  através  de  uma  metodologia  compartilhada,  na  qual  os  estudantes  são  parceiros  de  trabalho.  O  projeto  teve  como  objetivo  identificar  os  aspectos  sociais  e  históricos  da  cultura local e da tradição popular bageense, mediante a produção de narrativas textuais  (diários  de  campo)  e  visuais  (fotografias  e  vídeos  etnográficos)4.  Além  disso,  buscamos  possibilitar  a  construção  do  conhecimento  na  forma  de  vivência  e  de  experiências  imersivas, de modo a valorizar a dimensão das representações simbólicas, da memória e  do imaginário cultural dos moradores da região.  O trabalho foi realizado com uma turma composta por 24 alunos do IFSul‐Bagé e  centra‐se  em  diversas  manifestações  da  cultura  tradicional  da  cidade:  comunidade  quilombolas, carreiras de cavalo, benzedeiras, povos ciganos, futebol de várzea e atos de  fé.  Eis  um  pequeno  mosaico  de  imagens  representativas  de  cada  pesquisa  sobre  os  respectivos temas e aspectos socioculturais de Bagé: 

                                                             4

  Até  o  final  de  2013  foram  produzidos  dois  filmes  documentários  de  caráter  etnográficos:  Atos  de  Fé  em  Bagé e Narradores de Bagé, que receberam prêmios de Menção Honrosa e Prêmio Memória e Patrimônio  nas duas últimas edições do Festival Internacional de Cinema da Fronteira, em 2012 e 2013. 

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          Quilombo. Foto: Feranda Machado   

 

              Vida cigana. Foto: Luciana Gonçalves 

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            Carreiras. Foto: Judiélen Leal  

         

 

  Doninha "erva braba". Foto: Andressa Lencina 

     

    Futebol de várzea. Foto: Milena Rodriguez         

     Benzedeira. Foto: Natálie Scherer 

  O  trabalho  foi  feito  com  base  em  procedimentos  de  pesquisa  sugeridos  por  Machado da Silva (2006), dentre eles a iniciação à etnografia e a observação participante  que, segundo o autor, engendram variados processos narrativos (narrativas do vivido).  Em  todos  os  casos,  trata‐se  de  descrever,  mostrar,  relatar,  “reportar”,  fazer a crônica, levantar os diversos pontos de vista em conflito, dar voz, 

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fazer falar, radiografar, cartografar, relacionar construir perfis, “retratar”  uma  comunidade,  refazer  a  história  de  vida  de  um  indivíduo    ou  grupo,  “biografar”,  contar,  cobrir,  descobrir,  fazer  vir,  fazer  emergir,  produzir  um mosaico, montar um  painel, tecer os diversos  fios de uma  realidade  imaginária  e  de  um  imaginário  realizado.  As  narrativas  do  vivido  são  biografias de atores sociais contemporâneos em movimento. (MACHADO  DA SILVA, 2006, p.83).   

A  arte  de  narrar  o  cotidiano  passa  pela  tentativa  de  ir  ao  encontro  do  outro  por  meio  de  experiências  imersivas  que  permitem  um  maior  reconhecimento  dos  códigos  operantes de um determinado espaço. Quando Walter Benjamim (1994) escreveu sobre o  ato de narrar, acertadamente ele identificou que a narração tem a ver com a “faculdade  de  intercambiar  experiências”  (p.198),  e  se  ela  está  em  vias  de  extinção,  é  porque  estamos  separados  da  vida,  desenraizados  e,  assim,  as  experiências  deixam  de  ser  comunicáveis.  Além  disso,  segundo  ele,  “a  arte  de  narrar  está  definhando  porque  a  sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção.” (BENJAMIN, 1994, p.200). Daí a  importância desse projeto ao propor a produção de narrativas do cotidiano a partir das  vivências nas comunidades. A narrativa como “forma artesanal de comunicação” (idem,  p.205). E o cotidiano como espaço da valorização da sabedoria popular.   

O lugar da tradição popular na Sociologia do Cotidiano  Gilbert  Durand  (2008,  p.11)  observou  que  a  “Ciência  do  Homem  deve  se  regular  pelo  saber  tradicional  do  homem  a  respeito  do  homem.”  A  retomada  da  “figura  tradicional  do  homem”5  nos  remete  à  característica  mais  elementar  do  reencantamento  do  mundo.    Essa  característica  ressurge  com  força  em  todas  as  partes  do  mundo,  demonstrando  que  o  passado  subsiste  no  presente  e  que,  portanto,  o  reencantamento  não significa simplesmente um retorno nostálgico aos tempos primitivos. Pelo contrário,  a ideia do reencantamento nos faz entender que a “aura” dos antigos está presente até  na mais avançada tecnologia contemporânea.  

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 Gilbert Durand (2008), no livro Ciência do Homem e Tradição, estabelece seis características para definir a  figura  tradicional  do  homem,  associada  ao  pensamento  hermético,  que  se  diferenciam  do  homem  cindido pela modernidade, do homem da civilização. Ver especialmente pág. 32 a 54. 

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Gilbert  Durand  (2008)  observou  que  o  pensamento  tradicional  atua  sob  outra  lógica:  “nele  a  figura  do  homem  nunca  aparece  separada  do  universo”  (p.34),  ao  contrário da pedagogia da civilização ocidental que uniu esforços para separar o homem  do mundo. Esse princípio de correspondência do reencantamento se expressa nos laços  comunitários que ressurgem a todo o momento, pois o “laço”, ou espírito comunitário, é  intrínseco  ao  ser  humano,  e  corresponde  a  princípios  arquetípicos  que  lhe  assinalam  a  pertença no mundo.  É  compreensível,  pois,  que  o  objeto  deste  estudo  esteja  demarcado  pelo  espaço  da  cotidianidade,  onde  o  saber  popular  ganha  visibilidade.  A  vida  cotidiana  tornou‐se,  hoje, objeto de reflexões em diferentes áreas. Ela nos faz rever muito dos pressupostos  solidificados no pensamento científico de corte racionalizante. O mundo vivido exige um  deslocamento  epistemológico  e  intuitivo  em  direção  ao  sentido  comum  compartilhado  nas interações sociais, em direção ao mítico e ao imaginário.    Quando “as” tradições fazem alusão a um misterioso reino subterrâneo  onde perduram os mantenedores da tradição, o que elas fazem é apenas  afirmar que nenhum empreendimento humano – cultura ou civilização –  pode  surgir  e  se  manter  sem  um  mínimo  de  referência  à  problemática  básica que constitui a figura do homem. (DURAND, 2008, p.29)   

A Sociologia do Cotidiano nos fala de uma revalorização do espaço da vida, pleno  de simbolismos apesar de sua aparência banal. Apresenta‐se como campo importante de  análise e compreensão do social, chamando a atenção de autores importantes, das mais  diversas  ‐  e  muitas  vezes  excludentes  ‐  vertentes  teóricas:  Erving  Goffman,  George  Simmel,  Henri  Lefebvre,  Karel  Kosik,  Agnes  Heller  e  Michel  Maffesoli  e  tantos  outros.  Dentre  os  brasileiros,  destacam‐se  as  pesquisas  de  José  de  Souza  Martins  (1996;  2008),  para quem a vida cotidiana tornou‐se o “refúgio” daqueles que não confiam somente nos  processos  puramente  racionais,  pois  entende  que,  mais  do  que  nos  procedimentos  instituídos,  é  na  vida  vivida  cotidianamente  que  podemos  encontrar  “o  ponto  de  referência das novas esperanças da sociedade”. José de Souza Martins (2008) afirma que  "o novo herói da vida é o homem comum imerso no cotidiano.” (p.52). 

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Com  isso,  trata‐se  de  voltar  a  atenção  para  fenômenos  sócio‐culturais  que  caracterizam a cidade fronteiriça de Bagé, mas que nem sempre se aproximam da cultura  oficializada.  São  práticas  sociais  e  rituais  muitas  vezes  esquecidos  nas  grandes  cidades,  especialmente  aquelas  que  foram  palco  de  grandes  transformações  orientadas  pelo  projeto do desencantamento do mundo (WEBER, 2004), que minou a experiência mágica  da vida urbana em nome do racionalismo produtivista e desenvolvimentista. A cidade de  Bagé, mesmo com a insistência das recentes políticas modernizantes, ainda guarda na sua  contemporaneidade  elementos  de  origem,  valores  oníricos  que  nos  aproximam  do  sentimento  primitivo.  É  misto  de  tradição  e  modernidade.  Nela  os  viajantes  encontram  refúgio na horizontalidade dos campos e na beleza antiga dos casarios grudados uns aos  outros.  Estar  em  Bagé  é  compreender  que  todas  as  manifestações  culturais  são  expressões de um patrimônio imaterial que aciona imaginários adormecidos.  A Sociologia do Cotidiano se aproxima da Sociologia da vida praticada por Michel  Maffesoli  (2001).  Este  procura  repensar  o  vínculo  social  fora  das  grandes  categorias  da  modernidade etnocêntrica.    Para  perceber  a  especificidade  e  a  novidade  de  um  fenômeno  social,  convém mais referir‐se à vivência daqueles que são seus protagonistas de  base,  do  que  às  teorias  codificadas  que  indicam,  a  priori,  o  que  esse  fenômeno é ou deve ser. A ênfase posta na “matéria viva” é, certamente,  uma  garantia  de  pertinência,  de  fecundidade  científica.  (MAFFESOLI,  2001, p.183).   

Essa  abordagem  é  pertinente  para  orientar  o  conteúdo  deste  trabalho,  pois  se  centra na dimensão comunitária da vida social, naquilo que produz “laços” contra todas  as  tentativas  de  rompimentos  ocasionadas  pelo  sistema  político  e  econômico  da  sociedade.  A  vivência  comunitária  ou  a  “socialidade”,  ao  contrário  dos  sistemas  burocráticos  institucionalizados  (isso  vale  também  para  a  cultura  oficial),  prioriza  os  elementos subjetivos e não racionais das histórias humanas (MEFFESOLI, 2001), ou seja,  aquilo que realmente faz acontecer, aquilo que movimenta a história. O cotidiano, na ótica  da  Sociologia  Compreensiva  de  Maffesoli,  é  lugar  das  ações  não‐lógicas,  de  comportamentos  hedonistas,  instantes  efêmeros  que  constroem  o  vínculo  social.  Suas  características  essenciais  são:  banalidade,  complexidade,  polissemia,  localidade  e 

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ambivalência. Maffesoli explica que é na superficialidade que reside a profundidade das  coisas.   Em contraposição ao poder instituído que define o que é e o que não é relevante  numa  determinada  tradição  cultural,  apostamos  na  força  subterrânea  da  cidade,  regida  pela  espontaneidade  do  agir  humano  em  relação  ao  espaço.  Por  detrás  da  superficialidade  das  estruturas  de  poder  universal,  subsiste  a  potência  da  vida  em  sua  dimensão local, o poder instituinte que brota do cotidiano profundo, vivido muitas vezes  de  forma  caótica,  mas  duradoura.  O  nosso  interesse  pela  cidade  de  Bagé  não  está  nos  aspectos macro‐políticos ou produtivos‐econômicos da região, embora haja necessidade  também  de  estudos  aprofundados  sobre  essas  dinâmicas.  Almejamos,  ao  contrário,  adentrar  nos  espaços  que  realmente  movimentam  a  vida,  o  lado  de  sombra  do  mundo  social (MAFFESOLI, 1998), o interior das coisas. O cotidiano é o palco onde são encenadas  as  ações  humanas.  E  o  imaginário  é  a  instância  mais  profunda  sobre  a  qual  se  ergue  a  cultura de um povo.   

Fotografando a fotografia no ensino da Sociologia  No  trabalho  desenvolvido  com  o  grupo  de  alunos  narradores  de  Bagé,  pudemos  observar que a fotografia atua como instrumento potencializador da atenção imaginante  e,  consequentemente,  fundadora  de  uma  sociologia  poética.  A  fotografia,  nesse  caso,  não é simples cópia da realidade, mas a subversão da realidade pela imaginação criadora  de  formas  poéticas.  A  atenção  imaginante  nos  permite  vivenciar  o  instante  com  admiração  e  adesão  ao  espaço.  Mas  não  é  somente  a  experiência  que  a  fotografia  se  propõe  ficcionar.  No  nosso  caso,  ela  ficcionaliza  também  o  próprio  ato  de  pesquisar,  expandindo assim o nosso campo de investigação.   As  fotos  expostas  a  seguir  são  como  ficções  significativas  de  um  trajeto  (auto)formador alicerçado no ensino com pesquisa. Elas revelam o que normalmente se  esconde  dentro  dos  procedimentos  metodológicos  do  trabalho  acadêmico.  Revelam,  mediante  a  imagem  inscrita,  os  pensamentos  não  explicitados.  Não  o  conteúdo  em  si, 

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mas  a  forma  de  obter  a  imagem  do  conteúdo.  Por  isso,  são  formas  de  expandir  nosso  cenário de pesquisa e ampliar o campo de possibilidades par ao ensino da Sociologia.   Ficcionalizar  a  experiência  de  pesquisa  quer  dizer,  neste  caso,  fotografar  a  fotografia  e  mostrar  uma  intimidade  do  ato  de  pesquisar  usando  a imagem e  a  atenção  imaginante.  Para  demonstrar  isso,  selecionei  algumas  fotografias  representativas  dos  trabalhos  desenvolvidos  dentro  do  Projeto  Narradores  de  Bagé:  Rincão  do  Inferno  (Quilombo), Carreiras de Cavalo, Vida Cigana, Futebol de Várzea e Atos de fé em Bagé.  As  fotos  resultam  do  processo  dialógico  entre  os  estudantes  e  os  personagens  populares  da  cidade.  Representam  o  encontro  da  instituição  escolar  com  os  saberes  e  crenças  das  comunidades  tradicionais  de  Bagé,  que  faz  do  professor  de  Sociologia  um  verdadeiro iniciador de cultura. O cultivo da tradição mediante o ensino da Sociologia. As  fotografias  a  seguir  evocam  paisagens  culturais  que  são  redundantes  da  nossa  experiência de (auto)formação. São fabulações sobre o ato de ensinar e pesquisar a vida  comunitária  da  cidade,  em  que  a  invenção  da  imagem  não  é  só  meio  para  obter  informações, mas é também tema do processo de ensino. 

               Mapeando a várzea. Foto: Matheus Araujo   Anita  e  a  câmera.  Foto:  Natálie  Scherer       

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Doninha. Foto: Amanda Thomazi     

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                    Atos de fé. Foto: Luciana Gonçalves 

     Biografando Anita. Foto: Natálie Scherer      Narrativas de benzedeiras. Foto: Letícia Silva          

          Foto‐narrando causos. Giuliano Taschetto        Vidências. Foto: Amanda Thomazi                 

As  imagens  selecionadas  cumprem  a  função  de  interrogar‐nos  sobre  o 

“fazer‐se”  do  ensino  da  Sociologia  na  escola  para  além  da  escola.  Tornam  visíveis  os  nossos procedimentos de aproximação às pessoas e ao universo da cidade, com o auxílio  das câmeras digitais. São narrativas visuais que alargam nossas fronteiras em direção ao  tema da cultura popular de Bagé. A Sociologia passa‐se nas ruas. Repórteres do cotidiano,  cronistas  da  cultura  tradicional,  narradores  do  vivido?  O  termo  não  importa.  O  que  se 

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denota é a tendência cada vez mais acentuada do caráter concreto e virtual do trabalho  de campo sociológico.   Ao  mesmo  tempo  em  que  há,  por  parte  dos(as)  alunos(as)  narradores  de  Bagé,  um  percurso  em  direção  ao  redescobrimento  da  cidade,  por  meio  da  interlocução  com  novos  atores  da  cultura  popular,  há  também  uma  dinâmica  ficcional  que  narra  os  narradores no momento espontâneo da narração. É literalmente a fotografia da pesquisa.   

Em  toda  a  experiência  imersiva  realizada  com  as  comunidades,  o  que  se  destaca 

mesmo  é  o  papel  fundamental  que  a  presença  das  câmeras  adquire  no  processo  de  construção do conhecimento. Além de elas nos forçarem a ver com atenção, também nos  dão  autoridade  para  narrar.  Sobre  esse  ponto,  estou  amparado  nos  trabalhos  desenvolvidos por Luciana Hartmann (2012; 2009), que sugerem múltiplas reflexões sobre  as  implicações  do  uso  da  fotografia  e  da  filmadora  nas  pesquisas  acadêmicas,  especialmente na área da Antropologia. Segundo a autora, a utilização do audiovisual em  trabalhos  de  campo  facilita  a  comunicação  com  os  sujeitos,  mediante  o  fortalecimento  dos laços com a comunidade.   Da mesma forma, acredito que a simples presença dos aparelhos audiovisuais não  só estimulou os alunos a saírem a campo como também permitiu o contato mais seguro  com  os  seus  interlocutores.  Eles  conversaram  com  pessoas,  observaram  comportamentos,  ouviram  histórias,  enfim,  protagonizaram  situações  diversas  com  o  pretexto de fotografar e filmar. Pois, quando se está com a câmera fotográfica em mãos,  tem‐se o dever de estar atento, como nos sugere um dos personagens de Julio Cortázar  (2010)6.  Ou  seja,  tem‐se  o  dever  de  não  perder  sequer  o  movimento  das  mãos,  a  expressão  do  olhar,  o  suspiro  do  silêncio.  Com  o  despertar  da  atenção  imaginante  do  olhar  fotográfico  é  possível  transformar  as  minúcias  do  cotidiano  e  dos  gestos  aparentemente banais em experiências formadoras significativas.  

                                                             6

  “Entre  as  muitas  maneiras  de  se  combater  o  nada,  uma  das  melhores  é  tirar  fotografias,  atividade  que  deveria ser ensinada desde muito cedo às crianças, pois exige disciplina, educação estética, bom olho e  dedos seguros (...) quando se anda com a câmara tem‐se o dever de estar atento, de não perder este  brusco e delicioso rebote de um raio de sol numa velha pedra, ou a carreira, tranças ao vento, de uma  menininha que volta com o pão ou uma garrafa de leite.” (CORTÁZAR, 2010, p.72). 

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A  fotografia  é  como  um  laço  que  une  o  sujeito  (fotógrafo)  ao  objeto 

(fotografado),  os(as)  estudantes  à  comunidade,  o  ensino  à  pesquisa,  a  cidade  à  escola.  Fotografar, aqui, é transcender toda forma de separação. É religar‐se ao mundo através  da fabulação desse mundo. A fotografia imagina... A atenção imaginante é o exercício que  busca  o  além‐objeto.  A  câmera  fotográfica  é  o  elo  entre  o  ser  humano  e  o  mundo  circundante. É a imagem transformada pela vontade do sujeito atrás da lente.    

 Como  o  propósito  desta  pesquisa  não  foi  analisar  o  conteúdo  extraído 

dessas experiências de ensino com as comunidades tradicionais de Bagé7 – e sim a forma  de extraí‐los, e como essa forma pode reativar o reencantamento no desenvolvimento de  práticas (auto)formativas em educação e, especificamente, no ensino da Sociologia, – o  que  resta  ao  leitor  são  imagens  da  aventura  narrativa  em  busca  da  reinvenção  de  territórios do município de Bagé. Essa reinvenção narrativa acontece mediante a atenção  imaginante  e  o  contato  com  personagens  da  tradição  popular:  quilombolas,  ciganos,  apostadores, benzedeiras, e jogadores da várzea.   

Considerações finais  Este trabalho versou sobre as ressonâncias que determinadas imagens da cidade  de Bagé repercutem em mim e ressoam para o universo da escola. É nesse sentido que o  ato educativo é indissociável do próprio sujeito que educa. Talvez seja isto que nos falta  compreender:  que  a  formação  de  professores  não  depende  somente  de  metodologias,  técnicas  e  teorias,  mas  também  da  própria  consciência  do  educador  de  se  pensar  em  relação com o mundo, ou seja, de sonhar e projetar na imaginação a própria situação no  trajeto formativo. É a vida do professor que repercute na vida dos seus alunos, formando‐ os. Este é o sentido original do Mestre, como lembra Georges Gusdorf:     Entre o mestre e o discípulo, para além do discurso aparente do ensino,  um outro diálogo prossegue, em profundidade, como um jogo sobre as  estruturas  fundamentais  do  ser  humano.  (...)  O  discípulo  sofre  uma  influência  tanto  mais  decisiva  quanto  menos  ela  for  literal.  É  nesse                                                               7

  Esse  propósito  pode  ser  desenvolvido  em  trabalhos  posteriores,  de  cunho  mais  antropológico  do  que  pedagógico. Ademais, grande parte do conteúdo produzido pelos estudantes narradores de Bagé será  registrado em livro, a ser publicado ainda em 2014. 

X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014.                                                                               

 

 

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sentido que a ação do mestre se apresenta como criadora, na medida em  que produz no discípulo uma mudança de figura e um direcionamento. A  influência que parece ter deixado menos sinais visíveis pode ser assim a  mais essencial. (GUSDORF, 2003, p.206).   

O propósito em apresentar e meditar sobre a experiência de ensino em Sociologia,  dentro do contexto do projeto Narradores de Bagé, do IFSul, foi o de criar condições de  aproximação a uma pedagogia e sociologia do imaginário, por meio da vivência conjunta  com  as  comunidades tradicionais  de  Bagé.  Com  os  estudos  do  Imaginário,  pensados  no  interior  do  GEPIEM,  esta  experiência  (auto)formativa  trilhou  os  caminhos  de  uma  educação estética mediante a linguagem fotográfica. As fotografias produzidas pelos(as)  estudantes serviram de ponte entre a experiência vivida e a experiência imaginada.  As  narrativas  visuais,  que  fizeram  parte  deste  projeto,  demonstram  que  a  sociologia do imaginário é caminho para o reencantamento do mundo e da educação, cuja  finalidade  é  recuperar  o  sentido  simbólico  do  ato  educativo,  na  linha  da  pedagogia  simbólica  proposta  por  Peres  (1999).  A  escrita  fotográfica  fez  aparecer  a  atenção  imaginante, responsável por ligar os sujeitos ao espaço e de dar um colorido àquilo que se  vê e que se vive. Assim, a vivência passa a ser narrada pela força da imaginação criadora e  da atenção imaginante.  O  resultado  do  trabalho  aponta,  portanto,  para  a  importância  das  narrativas  visuais  e  da  atenção  imaginante  para  a  construção  de  um  ensino  em  Sociologia  “encarnado  à  vida”,  em  consonância  com  os  elementos  do  reencantamento  do  mundo:  enraizamento  ao  tempo  e  ao  espaço  circundante,  contemplação,  remitologização,  intuição  do  instante,  agir  cotidiano,  laços  comunitários,  momentos  de  partilha,  entusiasmo primordial, romantismo das ideias.   A  atenção  imaginante,  despertada  pelo  uso  das  narrativas  visuais,  representou  a  adesão  dos  estudantes  e  do  professor‐pesquisador  aos  espaços  da  tradição  bageense,  ajudando  a  exercitar  uma  sociologia  da  imaginação  poética.  A  atenção  imaginante,  portanto,  reduziu  os  elementos  lógicos,  racionalizantes  e  utilitários  do  ensino  da  Sociologia e  aumentou  os  aspectos  lúdicos,  poéticos,  indiretos,  oníricos  e  espontâneos,  indispensáveis também para a construção do conhecimento. 

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No  entanto,  ao  levar  em  conta  o  imaginário  e  a  imaginação  como  motores  do  ensino da Sociologia, não deixo de apontar também, em poucas palavras, as dificuldades  em transformar esta experiência de ensino em experimentação sistemática, suscetível de  ser aplicada em longo prazo e em diversas instituições. Pois, devido às atribuições formais  do  trabalho  docente,  nem  sempre  é  dado  ao  professor  as  condições  necessárias  à  realização de sua prática formativa.  A maior dificuldade que constatei ao longo da construção e realização do projeto  Narradores  de  Bagé  refere‐se  ao  engessamento  administrativo  que  ordena  o  sistema  de  ensino  como  um  todo.  É  preciso  um  esforço  além‐instituição  para  romper  com  o  isolamento da escola em relação à comunidade externa e, consequentemente, expandir o  espaço  de  atuação  do  professor  para  além  do  universo  da  sala  de  aula.  Deslocar  os  estudantes da sala de aula e colocá‐los em contato com a vida lá fora se torna uma missão  quase  impossível,  que  demanda  inúmeros  procedimentos  legais  e  administrativos.  Horários  fixos,  crescente  burocracia  dos  formulários,  projetos  e  programas;  currículos  especializados,  exames,  curta  duração  das  aulas,  disputas  internas,  sobrecarga  de  trabalho  e  de  carga  horária  em  sala  de  aula,  número  reduzido  de  professores,  redução  salarial  etc.  Todos  esses  elementos  que  compõem  o  quadro  político  da  instituição  de  ensino  dificultam  o  trabalho  colaborativo  entre  professores  e  alunos  e  entre  escola  e  cidade.   Cada  vez  mais  as  imposições  administrativas  do  ambiente  escolar  nos  fazem  esquecer  que  o  fundamento  primeiro  da  educação  e  do  trabalho  do  professor  é  a  formação  humana  com  sensibilidade.  E  que  é  preciso  resistir  à  institucionalização  do  saber  e  mergulhar  na  sabedoria  popular  das  comunidades  tradicionais  se  o  objetivo  é  reencantar a educação. Pois o conhecimento, apesar das tentativas de separação a que  está  submetido,  sempre  manteve  uma  ligação  orgânica  com  o  cotidiano  e  com  o  senso  comum.8  Sobre esse assunto, a contribuição da minha pesquisa está em buscar a liberdade  aventureira no plano do imaginário, que segundo Paul Ricoeur (apud ARAÚJO, 2003, p.31)                                                               8

 Ver Michel Maffesoli (1998, p.166): “não pode haver ciência senão fundada no senso comum”. 

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tem a ver também com a “função geral do sentido prático”, que nos permite transpor, via  imaginação  criadora,  as  porteiras  institucionais  que  delimitam  fronteiras  entre  o  conhecimento acadêmico e o saber ancestral da tradição popular. Pois “é no imaginário  que  experimento  o  meu  poder  de  fazer,  que  eu  meço  o  ‘eu  posso’”  (RICOUER,  apud  ARAÚJO,  2003,  p.31).  O  imaginário  é  dotado  de  uma  força  criadora  que  nos  permite  “ficcionar a realidade” em busca das possibilidades de abertura para a nossa existência.    Esta força consiste numa referência de segundo grau que é na realidade  a “referência primordial” e que, para Ricouer, não é senão “o poder da  ficção  de  redescrever  a  realidade”  (...)  Uma  poética  da  ação,  tendo  em  conta  que  não  existe  ação  sem  imaginação,  requer  que  a  própria  imaginação seja igualmente projectiva. (ARAÚJO; BAPTISTA, 2003, p.31).   

Portanto,  é  preciso  reativar  o  “imaginário‐motor”  (MACHADO  DA  SILVA,  2006)  como  ponto  de  fuga  que  nos  permite  criar  e  reinventar  a  educação.  Pois  é  graças  ao  imaginário  que  a  nossa  atenção  sobre  o  mundo  se  torna  imaginante.  A  imaginação  criadora, assim, é a abertura para a inovação, é o ato de transpor fronteiras e porteiras do  conhecimento.   

Referências  ARAÚJO, Alberto Filipe; BAPTISTA, Fernando Paulo. Variações sobre o imaginário:  domínios, teorizações e práticas hermenêuticas. Lisboa: Instituto Piaget, 2003.  BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.  BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. Primeira  versão. IN: BENJAMIN. Magia e Técnica. Arte e Política. Obras escolhidas. 7ª ed. São  Paulo: Brasiliense, 1994. [pp.165‐196].  BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. 2ªed. São Paulo:  Ateliê Editorial, 2004.  CORTÁZAR, Julio. As babas do diabo. In: CORTÁZAR. As armas secretas. Rio de Janeiro:  Civilização Brasileira, 2010. [pp.69‐86].  DURAND, Gilbert. Ciência do homem e tradição: o novo espírito antropológico. São  Paulo: TRIOM, 2008. 

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